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Revista Psicopedagogia
versão impressa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.25 no.78 São Paulo 2008
ENTREVISTA
Cruzando as fronteiras da história da psicopedagogia: uma entrevista com Alicia Fernández
Maria Terezinha Carrara Lelis
Psicóloga, Mestre em Educação, Formação em Psicopedagogia e em Terapia Corporal
O passado e o presente se encontram no
início do futuro todos os dias e o
acompanham por muito tempo.
Lauro Morhy
A primeira vez que tive um contato mais próximo com Alicia Fernández foi por conta de minha participação no curso de formação em Psicopedagogia Clínica, nos idos de 1998, na cidade de Uberlândia - MG. Sua presença marcante me traz à memória a sua expressão tranqüila, a voz rouca e calma, firme e terna. Sua alegria e sorrisos fáceis são contagiantes, próprios dos que acreditam na vida e, em sua presença um olhar perguntador, que busca o outro, reconhece o outro.
Tive, também, o privilégio dos encontros e reencontros no curso e no "Grupo de Tratamento Didático para Psicopedagogos", que aprofundaram as minhas percepções iniciais, e me permitiram ir compreendendo seu pensamento rico, dinâmico, presente. E, me permitiram, também, conhecer uma mulher de hábitos simples e uma postura vibrante com os processos pessoais e sociais de nosso tempo. Mas, esse contato em especial me colocou em movimento, me fez sair da paralisia neurótica e ir em busca de espaços de mudanças pessoal e sociais que têm me acompanhado por todos esses anos.
Em 2005, por conta de minha escolha em fazer uma Dissertação de Mestrado, intitulada "O corpo nos processos de aprendizagem: contribuições de Wilhelm Reich e Alicia Fernández", solicitei uma entrevista com Alicia Fernández, no que fui atendida. Essa entrevista ocorreu na cidade de Ribeirão Preto - SP, onde Alicia Fernández estava ministrando mais um de seus cursos.
Como ela mesma diz, sua história se mistura com a história da construção da Psicopedagogia na Argentina, no Brasil e na América Latina. Alicia Fernández trabalha no campo do diálogo teórico com diferentes recortes na compreensão dos fenômenos humanos, tecendo uma trama, com sensibilidade e profundidade, requeridas nas relações complexas existentes em nosso cotidiano e; mobiliza-nos em busca de alternativas e mudanças em nossa prática profissional, quer seja como professores, psicopedagogos ou psicólogos. Seu pensamento dinâmico e profundo traz a marca da diferença que pode contribuir para transformar e modificar as relações humanas tão enrijecidas nas escolas, famílias e instituições sociais que permanecem no espaço da não-mudança, causando muitos sofrimentos a nós, humanos. Vamos, pois, a entrevista.
Terezinha - Alicia, solicitei essa entrevista com você, em função da realização de minha Dissertação de Mestrado cuja temática é "O Corpo nos processos de Aprendizagem: Contribuições de Wilhelm Reich e Alicia Fernández"1 . A opção por fazer esse estudo foi motivada por minha vivência profissional e pessoal e pelos cursos que fiz com vocês na EPsiBA2 e também no Instituto Lúmen de Ribeirão Preto - SP, que desenvolve uma abordagem terapêutica neo-reichiana. Nesse sentido, algumas lacunas estão presentes, como por exemplo, a história de construção da Psicopedagogia. Talvez você possa me ajudar nesse sentido. E, também, gostaria de abordar com você algumas questões teóricas que não estão claras para mim, como por exemplo, a formulação de Sara Paín sobre o processo de aprendizagem estar presente na relação entre organismo-corpo-inteligência-desejo e como você a utiliza, e outras que no decorrer de nossa conversa poderei colocar.
Alicia Fernández - Concordo com você sobre a importância de se realizar um estudo sobre a História da Psicopedagogia, a qual não tem sido objeto de minha análise, mas acho que de algum modo eu participei dessa construção. E essa construção está entrelaçada com minha história de vida. Acho que eu poderia começar pelos aspectos acadêmicos. Não sei as datas precisas, depois você pode me perguntar, vou falar em décadas. Mais ou menos pela década de 50 (1950), começa na Argentina, em Buenos Aires, uma Universidade privada que se chama Universidade de El Salvador, semelhante pelas suas características ao que me parece ser a PUC aqui no Brasil. Nessa Universidade, dirigida pelos Jesuítas, começa o curso de Graduação em Psicopedagogia. Muito ligado, naquele momento, à parte organicista, médica. Quero dizer que, quando eu ingressei com 17 anos para fazer a Graduação em Psicopedagogia, o decano era um odontólogo... A carreira de Psicopedagogia começou como uma formação paramédica, com duração de 5 anos. Esses profissionais estariam ao lado de médicos neurologistas, de oftalmologistas para ir acompanhando aquelas patologias que os médicos estariam observando por seus pontos de vista. Não estava definido porque a carreira começou dessa forma... foi se fazendo, juntando uma diversidade de profissionais que davam as aulas. Ao ingressar na Psicopedagogia eu queria fazer alguma coisa que estivesse associada à clínica, mas não particularmente à medicina, mas à clínica e à psicologia. Mas, não se existia nesse momento da década de 60, quando ingressei na Universidade, uma formação em nível de graduação que tivesse esse perfil. Existia na Universidade Nacional a Licenciatura em Ciências da Educação, voltado para o pedagógico, onde o profissional trabalhava a política educacional, a Pedagogia, mas não quanto às questões da clínica, nem da singularidade dos partícipes da cena educativa. Eu era muito jovem, tinha 17 anos, estava saindo da escola secundária. Então, essa Universidade de El Salvador foi a que primeiro organizou uma "Faculdade de Psicopedagogia". A palavra Psicopedagogia já existia, mas é a que primeiro coloca no meio acadêmico a formação em Psicopedagogia como Graduação. Hoje, temos muitas Universidades particulares e públicas com formação em Psicopedagogia. Mas, por um tempo bastante longo, foi essa Universidade a única que possuía a Graduação em Psicopedagogia. Quanto à formação que inicialmente recebi, além de confusa e não tinha orientação, não se tinha a definição de qual era o objeto da Psicopedagogia. Nós tínhamos naquela época, e ainda hoje continua assim, em outras tantas formações de Graduação, uma quantidade de matérias de Psicometria. Nós estudávamos todos os testes possíveis: de inteligência, de questões visomotoras, técnicas projetivas. Uma multiplicidade de testes, que se você quiser passar a vida toda os estudando, poderá fazê-lo... Existia, naquele momento, o que se chamava de "Pedagogia Terapêutica" ou "Pedagogia Emendativa" - tratava da reeducação da criança. Nesse momento, só se falava de crianças e alguma coisa sobre os adolescentes. Pensava-se a questão da aprendizagem enquanto um déficit e, o psicopedagogo seria aquele que deveria reeducar naquilo que faltava, por isso até o nome de "Pedagogia Emendativa" - emendar onde tinha uma patologia. Voltando à Universidade, tivemos alguns professores que introduziram Piaget, que já era naquele momento uma grande novidade. E de Psicanálise nada! Talvez uma referência, mas nenhuma profundidade. Sim, tínhamos muitas técnicas, técnicas projetivas, porque na Argentina os psicopedagogos, ainda hoje, são aqueles, digamos assim, que estão mais preparados para toda a parte dos testes. É muito diferente daqui, não é verdade? Lá, pelo contrário, os psicólogos, em sua grande maioria, têm uma formação psicanalítica, eles não gostam de aplicar testes e, então enviam as crianças para os psicopedagogos para fazer aquela parte do diagnóstico mais técnico. Já estaríamos nesse momento em meados da década de 60, período no qual, na Universidade Nacional de Buenos Aires, as carreiras de Psicologia e Sociologia (que pertenciam à Faculdade de Filosofia e Letras) tiveram uma época gloriosa. Eu estava mais ou menos no 3º ano da Faculdade de Psicopedagogia e ingressei na Psicologia da Universidade Nacional de Buenos Aires, eu queria alguma coisa que não sabia o que era e que não me davam na Psicopedagogia. Ainda da década de 50, na Província de Buenos Aires e em mais algumas da Argentina, havia sido instalado nas escolas o cargo de Orientadores Educacionais. Em 80% das escolas foi incluída essa figura, que naquela época se chamava Assistente Educacional. Mas, nessa época não tinha nem psicólogo formado, porque as primeiras Faculdades de Psicologia também estavam se formando e não havia, também, outros profissionais. Então essa função, nessa época, foi coberta por professores com anos de trabalho, que tinham feito cursos com algum aspecto de psicologia. Então, alguns estudantes de Psicopedagogia, inclusive eu, fomos contratados. Estava no 1º ano de Faculdade de Psicopedagogia, eu com 18 anos e já com um cargo de Orientadora Educacional, só pelo fato de que estava estudando. Isso na minha experiência pessoal foi muito importante, riquíssimo! Quem sabe foi o que me fez procurar, depois, outra coisa na Psicologia da Universidade Nacional, algo que fosse diferente do que eu estava recebendo na minha Faculdade. Havia, também, estudantes de Psicologia muito entusiasmados que ocupavam o cargo de Assistente Educacional em outras escolas e, isso em certo aspecto foi "possibilitador". Possibilitador no sentido de que não tinha uma coisa instituída, formalizada, por isso mesmo convocava à invenção. Em algumas escolas, os Assistentes Educacionais criavam equipes com os assistentes sociais, em outras com fonoaudiólogos e, em outras junto aos médicos... Entre algumas escolas vizinhas se formaram equipes interdisciplinares provisórias. Isso de um lado foi dando força aos psicopedagogos, que era uma profissão que não estava muito bem definida e, precisava definir sua singularidade em um trabalho comum com outros profissionais. Por isso, começaram também em outras Universidades a se criar a carreira de Psicopedagogo, mas não nas Federais, só recentemente. Já na década de 60, trabalhava como Orientadora Educacional, estudava Psicopedagogia na Universidade El Salvador e, ao mesmo tempo, Psicologia na Universidade Federal. Foi uma época gloriosa nessa Universidade pública, com grandes professores: Pichón-Riviére, Bleger, Boroslavsky, grandes nomes da Psicanálise e que foram inovadores em seus trabalhos. Estes mestres foram meus professores naquela época. Eu peguei pouco tempo, porque em 1966 veio uma ditadura militar e fecharam a Universidade e depois fizeram uma intervenção. Então, todos esses grandes professores erradamente (depois, eles mesmos reconheceram) renunciaram como medida de protesto. Não só eles renunciaram na Faculdade de Psicologia, mas muitos outros professores em diversas Faculdades e, deixaram algo muito rico que estava sendo construído no interior da própria Universidade. Não só a postura de Pichón-Riviére na Psicanálise e na Psicologia Social, mas também um movimento dentro da própria Universidade para que esta fosse em direção ao social. Mesmo durante a época daquela ditadura militar, no período de 66 a 70, se fizeram muitos movimentos, (continuávamos estudando e dando aulas nos bares, nas casas dos professores ou de algum aluno...) criaram-se associações de resistência como, por exemplo, a Associação dos Trabalhadores em Saúde Mental - em que estavam presentes psicanalistas, psicólogos, alguns psicopedagogos e outros profissionais da saúde. Tudo isso fora da Universidade, pois esta estava sob intervenção. Foi um movimento muito interessante e de grande aprendizagem para mim, pois eu participava como psicopedagoga em um movimento horizontal de caráter político, gremista, interdisciplinar, junto àqueles "mestres" reconhecidos internacionalmente... Nessa época, Pavlovsky (aquele do Psicodrama) trabalhava no Hospital de Crianças da cidade de Buenos Aires, começando a fazer grupos psicoterapeuticos de crianças (que ele relata em um de seus primeiros livros) - grupo de crianças com diferentes problemáticas (epiléticas, borderline, "hiperativas") com uma abordagem psicodramática, onde a corporeidade passa a ser protagonista. Então de diversos lados vai se fazendo presente, eu acho, a corporeidade junto com a saída dos psicanalistas dos consultórios rumo ao social. Eu vou conhecer Pavlovsky aí, porque ele estava nesse tempo junto ao movimento de psicanalistas que se opunham às normas da Associação Psicanalítica Argentina, que era aquela coisa muito verticalista. Todo um grupo muito forte de psicanalistas, pois tinham sido eles que haviam fundado a Associação Psicanalítica Argentina. Uma dessas pessoas do grupo era Mary Langer, uma mulher maravilhosa. Mas é uma autora pouco conhecida na Universidade, foi ela que formou muitos psicanalistas argentinos, e ela foi analista de muitos deles, inclusive de Pavlovsky. Bom, Mary Langer, Pavlovsky e outros psicanalistas saem da Associação Psicanalítica e criam o "Grupo Plataforma", que tem uma postura muito voltada para o social, e dizendo que a Psicanálise tem que sair dessas estruturas piramidais. O manifesto do "Grupo Plataforma" é muito interessante. E, é por meio de Pavlovsky, nesse momento, que eu escuto falar de Reich. Não vi se ele nomeia diretamente, não fiz uma pesquisa pontual em seus livros, não se pode dizer que sim, mas tenho lembranças. Acho que é a partir dos escritos mais sociais dele (Reich), agora eu não lembro os nomes, mas tinha um que ele analisava o que dá início ao Nazismo.
T. - Sim. O livro é "Psicologia de Massas do Fascismo".
A. - Isso, esse foi o primeiro que eu li dele. Justamente a partir desse Grupo Plataforma, que por sua vez participava daquela Associação de trabalhadores em Saúde Mental e, que eu também participava pela Associação dos Psicopedagogos. Era uma associação muito pequena, éramos uma "criancinha" diante de todas aquelas pessoas com tanta história. A Mary Langer era de origem austríaca, foi para a Espanha durante a Guerra Civil Espanhola, porque era médica e, durante o Franquismo, veio para Buenos Aires. Ela fundou juntamente com outros a Associação Psicanalítica Argentina, era membro, também, do Partido Comunista e dos dois lugares ela foi expulsa.
T. - Foi o mesmo que aconteceu com o Reich.
A. - Ela foi uma pessoa com uma história de vida muito interessante. Tem vários livros que contam a sua história. Mary Langer foi um modelo de vida para muitas pessoas, e para mim também. Apesar dela não ter sido minha analista, eu me analisava com uma pessoa (Pavlovsky) que se analisava com ela. Então, por meio disso, chegava até mim um pouquinho de sua postura. Nesse tempo ainda não conhecia Sara Paín. Até o início da década de 70, continuei por 9 ou 10 anos trabalhando como Orientadora Educacional em Escolas da periferia de Buenos Aires. E isso me deu grandes possibilidades, porque me fazia estar sempre questionando o que eu recebia no curso de Psicopedagogia na Faculdade de El Salvador. Por um lado, eu participava de todo aquele movimento social e da Psicanálise aberta a essas questões, por outro lado, todo aquele conhecimento bem comportamentalista dado em minha Faculdade e, ainda tinha a experiência de estar trabalhando como Orientadora Escolar nas Escolas públicas. Estar trabalhando "solta", sem que ninguém me dirigisse inicialmente, foi muito bom! Depois foi se conformando uma direção, que veio a se chamar "Direção de Psicologia e Assistência Social Escolar" que era independente da Direção da Escola. Existia a Direção Pedagógica, mas todo o pessoal de Psicologia e de Assistência Social escolar fazia parte de um setor autônomo da Direção Pedagógica da Escola. Isso foi muito interessante porque ficavam mais livres para intervir. E, muitos profissionais dessa época participaram daquele movimento social que falei. Por exemplo, nós fazíamos reuniões de todos os que trabalhavam nesse setor e intercambiávamos experiências e conformávamos equipes interdisciplinares, escolhidas por nós, para que fossem visitar as diferentes Escolas. No início não trabalhamos com os professores, só com os alunos, mas já começávamos a ver que, como os nossos vínculos dependiam da Direção da Escola, o dia-a-dia com as professoras, de certo modo, dificultava a intervenção. Então aí, nós fizemos essas experiências que chamamos de "interinstitucionais" e, ainda de forma muito incipiente grupos de pais em algumas escolas e, também grupos de professores. De algum modo, a função do Psicopedagogo também foi mudando, mesmo porque não estava restrito ao diagnóstico e ao tratamento de crianças. Por esse tempo, início dos anos 70, tivemos uma pioneira Blanca Tarnopolsky, ela vinha da carreira de Ciências da Educação e foi se aproximando das questões dos problemas de aprendizagem a partir da Psicologia Social. Também nesse tempo, Pavlovsky estava colocando, pela primeira vez, a importância do trabalho de grupo com crianças. E ela (Blanca) começou uma experiência com grupos de crianças com problemas de aprendizagem, no Centro de Saúde Mental Nº 1 (hospital público). Ela começou a experiência de "Grupo de Tratamento Psicopedagógico", que nesse momento, era completamente inovadora. Foi ela, por outro lado, quem introduziu a denominação Psicopedagogia Clínica, ou seja, o adjetivo clínica. Clínica, nos países de língua castelhana não se refere a "consultório" ou ao terapêutico, e sim a uma postura de escuta. Então Blanca começa a ver que a "reeducação" é um fracasso. Eu participei de uma série de cursos que ela dava nesse tempo. Cursos que questionavam a "reeducação" e que apresentavam o grupo, a questão grupal, como uma forma de trabalho psicopedagógico possível, ela estava muito perto de Pichón-Riviére. Verás como "o grupal", sempre vai colocando o corpo e tornando visível sua diferença com o "organismo". Esse tempo, para mim foi de grande aprendizagem: estava conhecendo Pavlovsky e começando a me analisar com ele, fazendo os cursos de Blanca e, por outro lado, continuando como Orientadora Educacional em Escolas públicas. Foi um tempo breve, porque já no início do ano de 1976 tivemos outro período de ditadura terrível na Argentina. Pavlovsky teve que sair do País de um dia para o outro, a grande maioria das pessoas que estava na Associação de Trabalhadores em Saúde Mental de um modo ou outro foi perseguida, expulsa ou morta. Mas, antes de chegar ao ano de 1976, em 1974, conheço a Sara Paín. Sara Paín vem da Filosofia. Ela tinha orientado seus estudos para as questões de aprendizagem e das crianças com problemas.
T. - Você a conheceu na Universidade ou em outro espaço?
A. - Ela era professora de Psicologia, mas eu não cheguei a ser aluna dela, porque ela dava essa matéria nos últimos anos e eu não cheguei a cursar. Eu a conheci por meio de uma relação familiar, porque ela era professora também da Universidade de Mar Del Plata e meu primo também. Ele me disse: Você vai ter que conhecer a Sara Paín. Aí eu fui ao Hospital Pinheiro, onde Sara era coordenadora de um serviço que ela criou, era um "Serviço de Aprendizagem" dentro do setor de Psicopatologia do Hospital Pinheiro, um hospital público que ficava numa região carente da cidade de Buenos Aires - foi uma inovação muito grande. A Blanca Tarnopolsky estava simultaneamente naquele outro Centro de Saúde fazendo uma experiência com grupos de crianças, mas ela não cria um serviço com toda uma estrutura dentro do próprio hospital. Sara sim, cria no hospital público esse serviço com uma equipe de psicopedagogos. Eu me apresento e começo a trabalhar com ela e continuo como Orientadora Educacional nas Escolas, foi um tempo riquíssimo. Sara estava fazendo a pesquisa que deu lugar a dois de seus livros - um deles é o "Diagnóstico e Tratamento de Problemas de Aprendizagem". Nessa pesquisa, eu participei juntamente com outras psicopedagogas, nós gravávamos muitos "motivos de consulta" dos pais, depois transcrevíamos e analisávamos o modo do discurso dos pais na sua relação com os sintomas que poderiam aparecer nos filhos. Isso foi uma aprendizagem muito grande e, nesse momento, entramos em contato com a postura de Lacan. Foi um tempo muito rico, porque ao mesmo tempo Sara nos dava um Seminário sobre Lacan, dentro do Hospital. Todos os sábados, tínhamos quatro horas de Seminário de Lacan, um personagem pouco conhecido à época e, sempre tratando de ver a relação com a aprendizagem, porque Sara não pretendia ser psicanalista assim como ninguém da equipe. Então víamos a questão do discurso, a Análise do Discurso, a importância da palavra, era isso que estávamos vendo de Lacan. Sara buscava nos discursos analisados algumas questões que tivessem a ver com a inteligência. Assim estamos no ano de 76 e tudo acontece num prazo de três meses: assassinam a Blanca Tarnopolsky e toda a sua família - ela, o marido e três filhos - somente um filho que não estava em casa sobreviveu, destroem sua casa, queimam os materiais, ficam somente poucos artigos, um deles está no livro de Pichón-Riviére de Psicologia Social, mas não temos uma obra escrita do pensamento dela. E, nesse momento, também começam a ameaçar a Sara, a Pavlovsky, um monte de gente sendo aterrorizada. E aquele serviço de Sara no Hospital Pinheiro desaparece junto com uma quantidade de pessoas que também desaparecem, bem como o serviço no Centro de Saúde que Blanca dirigia. A partir disso, Pavlovisky fica exilado. Eu também me auto-exílio junto com meu marido. Então vem todo um período na história da Psicopedagogia que eu não posso te relatar, não tenho elementos, mas tenho a impressão que foi um golpe muito grande em tudo aquilo que vinha sendo realizado, produzido, criado. Em meu caso pessoal, eu já havia me graduado em Psicopedagogia, mas não em Psicologia porque veio a 2ª intervenção e fecharam a Universidade Nacional em 1976, a 1ª foi em 66. Quando me auto-exílio da Argentina, já tinha muitos pacientes. Eu levei poucas coisas da Argentina, mas levei as histórias clínicas comigo, eu os encaminhei a outras pessoas quando tive que sair, também saí de um dia para o outro. Eu acho que trazer as histórias clínicas foi muito interessante, para poder fazer a associação com o que estava acontecendo em nosso país no momento em que o "terrorismo de estado" assassinava, torturava, roubava crianças trocando suas identidades, desmentia e escondia a atrocidade de tal genocídio, com lemas difundidos nas escolas e nos meios de comunicação, como: "os argentinos somos direitos e humanos" e "o silêncio é saúde". Como havia se produzido essa situação em que o silêncio imposto exteriormente havia se internalizado em tantos cidadãos de um modo tal, que "atrapase"3 suas inteligências? Como só um pequeno grupo de "Madres" (mães) colocavam seus corpos e alçavam suas vozes para denunciar o desaparecimento forçado de seus filhos? Meu marido (Jorge Gonçalves da Cruz) e eu - que estava grávida - diante dessa realidade exilamo-nos. Nem nós falávamos sobre o que estava acontecendo na Argentina. Percebíamos que não falávamos, mas não falávamos! Esse medo tinha se introduzido tão profundamente, pois tivemos muitas experiências concretas. Jorge e eu não éramos guerrilheiros, nem estávamos a favor da luta armada, não tínhamos nada a ver com as armas, tínhamos a ver com as idéias e com os movimentos sociais. Mas, mesmo assim, tínhamos um medo muito grande, era um terror, eu tinha visto muitas pessoas serem mortas ao meu lado, mesmo na minha rua. Muitos amigos queridos, pessoas muito queridas, membros de minha família. Então essa experiência, sem dúvida, se sentiu no corpo, não? É muito forte! Eu percebia, era o que acontecia com aquelas crianças que eu havia atendido em Buenos Aires. Porque nós somos seres inteligentes, seres pensantes, reflexivos...
T. - Mas não podiam falar...
A. - Porém, nossa inteligência estava de certo modo "atrapada"... Pensei, então, que algo disso deveria acontecer a um nível muito mais profundo a um humano que desde o nascimento em seu grupo familiar se desmente a realidade e os fatos de sua própria história. (A nós, naquele momento, apareceu como um golpe brusco, desde a violência de Estado). Eu comecei a analisar as histórias clínicas de meus pacientes e encontrei nas famílias, na grande maioria delas, a presença do segredo, do escondido... E aí aparece a idéia da Inteligência Aprisionada. Bom, a inteligência não pode estar "atrapada" sem uma corporeidade "atrapada". A inteligência não é algo tangível. De onde se pode perceber esse "atrape" na possibilidade de pensar? Esse "atrape" se expressa no próprio corpo. Eu nesse momento trabalhava com crianças. Aparecem-me imagens distantes, sem dúvida, corporais. Seguramente Reich estudou muito mais o que ele chama de couraças, etc. Eu não pensava em couraça, mas sim esse corpo que aparece expressando essa prisão, esse aprisionamento da possibilidade de falar e pensar. Ao fim da Ditadura na Argentina, eu volto para lá. Em todo esse tempo reconheço muito todo o diálogo teórico que sempre tive com Jorge, porque ele se mostra pouco, mas muitas das coisas que vou construindo têm a ver com o diálogo com ele. Quando eu volto para a Argentina também havia retornado Pavlovsky e começo a fazer Psicodrama com ele, foi uma experiência muito rica. Na verdade, eu havia começado antes, com diversos trabalhos psicoterapeuticos que incluíam o corpo. Sei que depois começo a fazer o Psicodrama com Pavlovsky, participo dos grupos dele, realizo alguns trabalhos. Mas... já antes, eu estou pensando... Eu estava grávida e... Estou me lembrando... fazia algumas experiências, não sei se tem a ver com Reich, mas uns trabalhos com meu corpo, que misturava algo de Yoga, num lugar chamado "Rio Aberto", muitas experiências com a Bioenergética, eu recebi muito dessas experiências, e acredito que no exílio isso me ajudou muito. Todo esse trabalho comigo mesma, pois eu estava grávida, foi muito difícil...
T. - Com todo esse nível de pressão, de violência que estava acontecendo...
A. - Não tínhamos dinheiro, mas dentre tantas dificuldades é por isso que eu digo que amo o Brasil, porque estar em contato com o povo da beira do rio, entre os pescadores do Rio Guaíba, foi maravilhoso. Porque nós precisávamos desse contato com a natureza.
T. - Foi um espaço de preservar a vida...
A.- Sim, foi. Porque se eu estive no espaço da cidade não sei se, nesse momento, eu teria resistido... Bom, depois quando eu volto, um pouco antes de 83, antes da Democracia, eu inicio o Centro de Aprendizagem no "Hospital Posadas", um hospital público de uma região carente e, aí já venho com muita força!
T. - Você já tinha contato com a formulação teórica de Sara Paín da relação entre organismo-corpo-inteligência-desejo?
A. - Exato. Sim porque ela já trabalhava essas diferenciações. Trabalhou pontualmente no "Diagnóstico e Tratamento" (livro), porém mais no "Estruturas Inconscientes do Pensamento" (livro). Mas quando trabalhei no "Hospital Pinheiro" com ela, sim tive contato, talvez não tão definido teoricamente, mas trabalhamos de algum modo nisso. Mas, Sara naquele tempo tinha muita prevenção em relação à corporeidade. Agora acho que não, porque ela se aproximou da arte. Voltamos à Argentina com a idéia de construir um serviço autônomo num hospital, porém que fosse interdisciplinar, interinstitucional, que trabalhasse em inter-relação com as Escolas desde o Hospital público, e que trabalhasse também com as famílias, que trabalhasse com todas as questões do corpo e, portanto, dos grupos. Sara discordava do trabalho com grupos. Lembro-me quando ela foi lá (na Argentina), porque ela não voltou a morar em Argentina, mas nós a convidávamos para que ela pudesse nos acompanhar de um ou outro modo. Tem até uma carta que ela me mandou a partir de um trabalho com grupos em meu Centro particular (que nós tínhamos, onde fazíamos também grupos de expressão plástica, corporal, musical), em que ela fala: "pelos grupos tenho a dizer como a um grupo de 'compadritos'", "compadritos" são aqueles do Tango, viu? (Risadas...). Pego da Sara, sem dúvida, aquela diferenciação imprescindível que ela faz de organismo-corpo-inteligência-desejo conformando a um sujeito aprendente com o ensinante. Mas, a importância da corporeidade, volto a te falar, a mim me parece vem do lado de Pichón-Riviére, daqueles que estavam trabalhando as questões dos grupos e de Pavlovsky, pelo Psicodrama. Porque com Jorge, quando voltamos à Argentina, formamos um Centro particular que nós chamamos, naquele momento, de "Técnicas Expressivas", onde nós fazíamos Psicopedagogia, Musicoterapia, Expressão Plástica e Expressão Corporal. Eu fazia Psicopedagogia, Jorge, a Expressão Plástica, porque ele gosta de pintar e tem toda uma formação artística e, outro psicólogo a Expressão Corporal. E, além disso, fazíamos um trabalho grupal, então introduzimos a questão da corporeidade. E, no "Hospital Posadas", também tínhamos uma equipe interdisciplinar com uma variedade de práticas e de disciplinas. Foi com o trabalho no "Hospital Posadas" e, também com o trabalho nesse Centro que escrevo a "Inteligência Aprisionada" (o livro).
T. - E a formulação do DIFAJ...
A. - Claro isso foi algo de novo, introduzir a família em Psicopedagogia. Sara havia introduzido os pais e, a introdução da família no trabalho psicopedagógico foi uma coisa nova. Fazíamos um trabalho no "Hospital Posadas", como também no Centro, de juntar muitos grupos e fazíamos um grande grupo. Coordenávamos juntamente com uma equipe interdisciplinar: um dia fazíamos experiências voltadas mais para a expressão corporal, outro dia, à Musicoterapia. Então, tudo isso fez parte desse processo. Foram os fios que teceram minha postura, que são múltiplos. Seguramente estou esquecendo alguns, mas são múltiplos.
T. - Ouvindo você falar, do que eu conheço hoje, um pouco da teoria e da experiência clínica de Reich, concordo com o que você está dizendo sobre o que ele propunha, as clínicas para se trabalhar com grupos. Para ele, um de seus questionamentos da Psicanálise é que não seria possível fazer análise um por um, porque como se iria resolver uma problemática neurótica que muitas vezes era produzida socialmente? É óbvio que ela (a neurose) tem sua constituição interna, pessoal, mas está colocada para todo mundo. Então, como que a gente poderia intervir, ajudar as pessoas a terem um pouco mais de saúde? E ele propunha os grupos, então acho que ele teve também uma influência nesse movimento da Argentina, do qual você viveu toda essa história da formulação dos grupos, através do movimento desse grupo da Psicanálise.
A. - Sim, Pichón-Riviére foi quem iniciou aquilo da Psicologia Social. Paralelamente a isso, uma parte que eu esqueci, há aquilo que era o movimento da Psicologia Institucional. Não tínhamos muito claro, naquele momento, como trabalhar com a instituição educativa e com os professores. Mas estava presente. Por isso, quando fui trabalhar no "Hospital Posadas", nós fizemos um trabalho interinstitucional, com grupos de professores, que vinham de forma livre e ali fazíamos uma diversidade de atividades, que não era dar cursos. Eu sempre questionei, e cada vez mais, porque há tantos cursos de capacitação na Argentina. Chega!! Os professores estão enlouquecidos fazendo cursos que lhes dão pontos. Nesses cursos dão "teorias, teorias", entre aspas, porque o que dão são informações e informações, são os chamados cursos de capacitação. Eu sempre estive contra porque acho que não se leva em conta a pessoa e, também, porque nesses cursos eles dizem aos professores o que eles deveriam fazer com os alunos, quando fazem o contrário com eles. Era assim e continua assim, é claro que têm pessoas que estão fazendo diferente... Sim, é certo o que você diz, às vezes nós precisamos que o outro nos assinale algum aspecto que conhecemos, mas não nomeamos. Por exemplo, isso que você diz, sem dúvida, que Reich deve ter tido incidência em minha construção, só que não deve ter sido direto, deve ter sido, talvez, através de Pavlovsky, mas também socialmente nesse momento vivido na Argentina, toda essa incidência... Há outra coisa que eu me esqueci de nomear que foi o Movimento da Anti-Psiquiatria, nesse sim eu participei através de Pavlovsky, e de todos aqueles grandes nomes daquele momento, que inclua muito de todas essas opiniões. Este foi, também, um aspecto importante. E eu sempre pensando na Escola, não para estar pedagogicamente na Escola, mas sim pensando essas questões - de que modo aqueles alunos que construíam esses sintomas de aprendizagem ou esse fracasso escolar não eram alheios às outras pessoas chamadas de professores e professoras? Por isso, passado um tempo, não... já antes (depois tenho que analisar essa questão dos anos), mas acho que já antes de escrever a "Inteligência Aprisionada", só que era muito inicial, sim era assim..., eu formei os primeiros grupos que chamei de "Grupo de Tratamento Psicopedagógico Didático", formei um que era de Psicopedagogos. Porque era assim: eu fazia Supervisão de Psicopedagogos e percebia no trabalho de Supervisão que muitas coisas, muitos obstáculos nos trabalhos com seus pacientes tinham relação com aspectos de suas histórias. Porém, no espaço da Supervisão, eu não tinha, vamos dizer assim, autoridade e nem era o enquadre para eu estar assinalando e, também não era o que elas esperavam, não era a demanda, para eu ir perguntando: Bom, e isso de sua história como foi? Fale-me um pouquinho disso. Às vezes, eu perguntava: por que isso que você está me relatando ficou para você tão importante? Por que você sugeriu isso a essa criança ou a essa família desse jeito? Às vezes, a pessoa podia responder: Sim, tem que ver com a minha história. Então fiz um grupo delas mesmas, com elas. O "Tratamento Psicopedagógico Didático" eu não inventei, mas elas inventaram! Porque elas falaram: Bom, por que não fazemos um grupo que trabalhe com as nossas histórias? Aí, eu não me sentia capacitada, então pedi a colaboração de um Psicólogo e fomos fazendo 2, 3, 4, 5 grupos... Esse Psicólogo tinha formação em Bioenergética.
T. - Você está falando de uma leitura sua muito importante e eu estava revendo o que o Reich fala sobre o analista, ele enfatiza a importância da flexibilidade e da abertura do analista ao novo e que a atitude e a própria disponibilidade do analista dependem em grande parte de sua própria couraça do caráter. Quer dizer, é uma formulação em que ele já identificava, naquela época, que o analista tinha que se colocar na relação com o paciente. Na verdade, você deu seqüência a isso ao perceber que o obstáculo da história... que a história de vida do psicopedagogo intervém em sua relação com o paciente).
A. - Olha que interessante, porque isso aconteceu aí comigo na relação com estas psicopedagogas, que eu percebi esse obstáculo. E, bom...
T. - E, criou um instrumento para trabalhar com isso.
A. - Sim, sem dúvida...
T. - Tem muitos aspectos teóricos que ele (Reich) coloca, que ele enxergava e que você traduziu em ações. Quando eu estou estudando o que ele dizia, fico pensando: mas como é que pode? Quer ver um exemplo: ele fala que não interessa o conteúdo que o paciente está dizendo, mas o como ele está dizendo...
A. - Ele fala isso? Que maravilha! Estou encontrando um amigo que não sabia que tinha! Que bom!
T. - É muito interessante, porque é a partir disso que ele vai trazendo essa questão de como se estrutura a pessoa na sua relação com o outro, com o mundo. E ele vai dizer que essa capacidade que a pessoa tem de estruturar sua inteligência na relação com o seu desejo está na relação do ensinante com o aprendente4 . Ele vai deixando para trás a formulação de Psicanálise de sintoma enquanto doença e vai trazendo isso enquanto uma característica da pessoa. Como a pessoa se constrói na relação com o outro.
A. - Claro, tem muito que ver.
T. - Mas, como ele tinha uma leitura, que é óbvio ele vinha daquele campo da ciência do início do século XX e ele traz algumas visões recortadas, ele fala: isso era a psicologia que explicava e eu não quero mais saber, agora é a biologia que vai explicar. Sendo que, se a gente consegue ter a visão plural que ele tinha, isso nos traz os germes, os embriões de algumas questões que depois foram sendo desenvolvidas.
A. - Que interessante, talvez, por esse lado é que eu pessoalmente... devo ter em minha biblioteca livros dele, sabe aquele que ele fala do orgone, não me lembro o nome...
T. - A função do Orgasmo...
A. - Sim e deve ser o que naquele momento eu o rejeitei, deixei de lado, deve ter sido essa questão da Biologia. Eu, superficialmente na leitura porque o primeiro livro que você me nomeou...
T. - Psicologia de Massas do Fascismo...
A. - Esse sim, eu gostei muito desse livro...
T. - E esse é um dos pontos de ruptura dele com o Freud. Porque como ele foi muito atuante na Sociedade de Psicanálise e também atuante no Partido Comunista e o Freud para defender a Psicanálise do Nazismo excluiu qualquer possibilidade de atuação política. E aí ele (Reich) vai abrir algumas discussões com Freud, que entra em rota de colisão. Por exemplo, Reich não concorda com a "Pulsão de Morte".
A. - Olha que interessante. Porque você sabe que hoje, entre parêntesis isso. Isso eu não sabia. Se eu sabia esqueci completamente. Porque agora estamos organizando o "Curso à Distância", no 2º módulo vamos falar algo disso. Justamente de todo um questionamento que alguns psicanalistas fazem da Pulsão de Morte. Jorge tem uma imagem muito linda que vai estar no 2º módulo do curso. Enquanto que para Freud o aparelho psíquico é organizado com as defesas, ele diz que tudo que tem a ver com os impulsos é com se tivesse que ter um dique de contenção que está associado à Pulsão de Morte. Jorge diz: - não, aos impulsos presentes no aparelho psíquico, justamente a partir da criatividade pegando uma imagem que seria a de um moinho, ou seja, pegar essa energia para transformá-la em outra coisa. Dentro da concepção freudiana, a idéia de Pulsão de Morte está associada com a idéia de ter que frear os impulsos como modo de defesa. Nós estamos pensando a questão da atencionalidade, da hiperatividade a partir desse ponto de vista. Porque tem todo um grupo, inclusive de psicanalistas, que está trabalhando a questão da hiperatividade numa visão vamos dizer não-medicamentosa, mas que está associando a hiperatividade com a Pulsão de Morte. E, nós estamos justamente, com outro ponto de vista. E olha que Reich já questionava naquele tempo! Ele ao ter em conta a corporeidade...
T. - Ele vai falar que a formação do conflito neurótico - antes era entre a libido e o medo da punição, o Freud falava - e depois ele evolui seu pensamento para resolver essa antítese assim: o conflito neurótico se dá entre a libido e o desejo de punição, que uma seria a Pulsão de Vida e a outra seria a Pulsão de Morte.
A. - Reich falava isso?
T. - Não, o Freud.
A. - Ah! Por isso estava estranhando! Porque agora você me falava de Reich.
T. - É que ele questiona isso.
A. - E o que fala Reich?
T. - Ele trabalha com a formulação anterior, ou seja, a energia, a libido quando é recalcada se volta contra o indivíduo, então é uma energia secundária e não primária, porque Freud falava que a Pulsão de Morte era uma energia primária.
A. - Claro, é maravilhoso que você tenha resgatado essa postura ou essas idéias de Reich, porque, sem dúvida, dentro do movimento psicanalítico me dá a impressão que isto está esquecido. O próprio Rudolfo trabalha bastante esse questionamento e também Jorge. Eles têm todo um questionamento que Jorge vai explicar melhor que eu nesse aspecto, mas não nomeia esse digamos antecedente em Reich. Provavelmente nem ele conheça...
T. - É na "Análise do Caráter" (livro), que é um clássico de Reich, que é apresentada essa discussão das divergências dele com Freud.
A. - Vou ter que ver isso. Espero que na Argentina tenha edições novas. (Mostro o livro) Olha o "intelecto como função defensiva"... Ah! Depois você vai ter que me ensinar muito disso... Sim porque você está me fazendo me interessar por isso. Aí vou aprender um monte... Depois de tudo isso você vai me contar como o seu trabalho está. Mas o que você acaba de me falar é muito importante, porque na minha postura isso está implícito, no próprio conceito de Modalidade de Aprendizagem e Modalidade de Ensino na Inter-relação. Até a mudança que eu faço entre os livros anteriores e o do "Idiomas do Aprendente" que já não falo de Modalidades de Aprendizagem patógenas, com falava na "Inteligência Aprisionada", mas sim feridas. E ferida tem a ver com essa idéia, não estar pensando como Pulsão de Morte. E, sabe que eu me esqueci de te nomear ao Winnicott. No curso você vai encontrar um monte de fragmentos de Winnicott. Ele foi apresentado a mim por Pavlovsky (Winnicott na Argentina foi trazido na década de 50), Winnicott fala da criatividade, do brincar como constitutivo do sujeito humano, ele não fala de Pulsão de Morte como função primária, porém inclui esse aspecto. E Winnicott também trabalha com a idéia que ele chama de "capacidade de preocupar-se com o outro". Está traduzido para o português e para o espanhol como se preocupar, mas é do inglês to concern que é interessar-se, incluir-se no outro, é a capacidade, é o lado positivo do que chamamos de culpa. Que é um conceito muito importante... Sempre estou trabalhando com Winnicott nos meus livros, a partir do "A Mulher escondida na Professora", eu incluo necessariamente Winnicott quando trabalho "agressividade", com as coisas que tem que ver com a Pulsão de Vida com os diferentes "avatares" (mudanças) que poderiam ir surgindo aí e, nessa base eu vou trabalhando a aprendizagem.
T. - Então, quando você fala na "Mulher escondida na Professora", porque é um livro fundamental para o que eu quero extrair da questão da corporeidade, você vai buscar os componentes somáticos do aprender: a alimentação e o olhar, você está se espelhando também no Winnicott? Porque ele destaca muito a questão do bebê na relação com a mãe, na formação...
A. - Na teoria, sem dúvida, Winnicott e tudo que vem do Psicodrama e na experiência direta que tem sido nos "Grupos Psicopedagógicos Didáticos", porque eu começo aí a trabalhar o lado das adultas, porque eu tinha começado a trabalhar com as mulheres, mas eram as pessoas que eu atendia que eram as psicopedagogas. Bom, rapidamente eu relacionei: se isso acontece com as psicopedagogas, quantas relações existem nessas práticas profissionais que podem estar inseridas também nas das professoras? Isso foi como uma passagem natural, eu posso dizer, em ir para as histórias das professoras... E aí passo da "Inteligência Atrapada" para a "La Sexualidade atrapada da Senhorita Maestra", em espanhol. E, Mary Langer não cito em quase nada, não sei porque, porque ela trabalha muito a questão da Mulher, ela tem um livro "Maternidade e Sexo", que foi muito importante para mim. Naquele momento associar maternidade a sexo era muito...
T. - Extemporâneo...
A. - Sim (risadas), isso também me deu uma "apoiatura" teórica.
T. - Bom, acho que é isso Alicia!
A. - Eu gosto muito do seu trabalho por me fazer aprender.
T. - Vou falar algo que tem a ver com a sua formulação. Eu peguei um teórico que analisa a Modalidade de Caráter em Reich: "... o significado do caráter como resistência e não só como mecanismo de defesa", que a pessoa resiste às questões que são colocadas para ela. É uma contribuição inédita dele (Reich), porque ele fala "que é uma dimensão total e ampla das atitudes individuais em relação ao mundo, trabalha na situação analítica no sentido de evitar certos conflitos e sentimentos inconscientes se tornem conscientes". Quando você fala sobre o Máximo, que ele não conseguia nomear a história que ele tinha queimado as cartas e que a psicopedagoga precisava ajudá-lo a fazer a transferência da história para os humanos... aqui podemos dizer que existe um trabalho de resistência a chegar à consciência...
A. - Isso sim.
T. - Então esse movimento que você fala de construção da Modalidade de Aprendizagem ou do enrijecimento não tem só mecanismos de defesa, mas tem a construção de resistências também?
A. - Da resistência sim. Mas eu não entendi, na frase que você falou, a palavra evitar. Fale novamente, por favor.
T. - "Na situação analítica, o caráter, a forma como a pessoa estrutura a sua forma de se relacionar com o mundo"...
A. - Ah, entendi! Não tinha escutado o sujeito da frase: o caráter. Claro, sim. O caráter teria essa função de evitar...
T. - "As resistências do caráter se ligariam
a formas de comportamentos, a pequenos traços de caráter, que revelando dimensões de resistências à análise davam novas possibilidades interpretativas ao analista".
A. - É certo, tem muito a ver com o que eu falei. Disso que eu digo de congelamento da Modalidade de Aprendizagem, da rigidez, a cristalização. E isso se percebe claramente e você está associando ao conceito de caráter em Reich.
T. - Sim. Ele (Reich) fala ainda sobre a questão das resistências do caráter: "estas derivam seu caráter especial não do seu conteúdo, mas dos maneirismos específicos da pessoa analisada. Não é por algum conteúdo ideativo isolado, mas pelos modos de agir próprio da pessoa que carrega em si, de forma inconsciente, tendências resistentes e defensivas. O caráter se distancia da noção de sintoma, se caracteriza por não ser estranho ao paciente. Consiste justamente naquilo que lhe é mais próprio e particular. É o seu processo de singularização e de identificação".
A. - Claro, tem muito a ver com a idéia de Modalidade de Aprendizagem. Por isso eu peguei a questão dos Idiomas. A Modalidade de Aprendizagem como um idioma, justamente porque na origem etimológica da palavra idioma está aquilo de mais singular que o sujeito, tem a singularidade do sujeito...
T. - Muito bom, vamos ver o desafio de fazer essa trança...
A. - Então, que bom. Eu agradeço porque me devolve muita coisa, com eu te dizia, quando outra pessoa aprofunda o que nós falamos, pensamos, trabalhamos e construímos como uma teoria e nos devolve - coisas que não pensamos que nós utilizamos como essa ferramenta, isso é muito interessante. Porque, claro que tem que ver tudo isso está na corporeidade. Esses maneirismos, nesses modos de falar, sim é na palavra, mas justamente não é a palavra fria, é na gestualidade, no modo como a pessoa traduz isso está a palavra, a palavra corporizada, como o gesto.
T. - E o que eu vejo como ele (Reich) era fruto daquela história, fruto dos estereótipos. Na verdade, ele questionava o Freud que era altamente revolucionário, naquele tempo, em suas formulações e Reich traz um novo olhar sobre isso, mas ainda rígidos. Você, não só você, mas outros teóricos também, vêm hoje trazendo a flexibilidade, o movimento. É muito rico, dando conseqüência... Porque o Reich foi taxado como louco, como inconseqüente...
A. - Sim, tem a ver com essa época. Particularmente no caso de Freud e seus discípulos, Freud foi como ensinante, um anti-ensinante. Porque Freud com toda sua genialidade, provavelmente justamente pela época, por ele ter trazido uma coisa tão nova e tão perseguido, não só pelo Nazismo, também foi se fechando. Então todo aquele que introduzia uma pequena diferença em relação à sua postura, ele expulsava. Todos esses discípulos ficaram soltos e quem sabe se tivessem tido outra oportunidade, cada um deles, como aquela que Jorge nomeia sempre: Lú A. Salomé, uma mulher que não tenho trabalhado com a postura dela, mas Jorge fala que ela, também, introduziu muitos elementos novos e que na medida em que não foi aceito por Freud e todos os seus seguidores, acharam que não deveriam pensar mais sobre essas contribuições. E essas pessoas ficaram soltas e cada uma sozinha então fez com que ficassem... (essa é uma visão muito superficial, certo?)... até ridigizando sua própria postura, sem poder se inter-relacionar uns com os outros. Pois Freud foi aquele "pai" terrível com seus seguidores. E tudo isso que acontece com Reich, aconteceu também com o Jung. O próprio Adler, que nem se estuda mais, introduziu e, depois ficou rígido, mas introduziu a temática dos irmãos, ele falou disso...
T. - É muito lindo vermos continuidades e descontinuidades nessa história toda. Eu te agradeço muito essa oportunidade tão especial de poder conversar com você.
Correspondência:
Maria Terezinha Carrara Lelis
Rua Barão de Camargos, 150 - Centro - Uberlândia, MG - CEP: 38400 - 160
E-mail: terezinhalelis@ig.com.br
1 Dissertação de Mestrado defendida em 2006 na Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
2 EPsiBA - Escola Psicopedagógica de Buenos Aires / Espaço Psicopedagógico Brasileiro Uruguaio Argentino.