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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.12 São Paulo jun. 2006

 

PARTE I

 

Infância, juventude e vivências nas ruas: entre o imaginário da instituição e do direito

 

Childhood, Youth and street living: between institution and rights imaginary

 

 

Ana Paula Serrata Malfitano*; Rubens de Camargo Ferreira Adorno**

Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tece reflexões sobre a infância e juventude brasileira, os imaginários que a recobrem, bem como as ações macro e micro-sociais, dentre estas últimas os circuitos de circulação nos espaços públicos. Faz-se um recorte de enfoque para a infância e juventude em situação de exclusão social, em especial as crianças, adolescentes e jovens em situação de rua. A questão do viver nas ruas é um temário histórico, com diferentes raízes causais, porém, que assume, na contemporaneidade, configurações complexas que demandam uma gama de ações do Estado e da sociedade para sua compreensão, intervenção e “controle”. No âmbito jurídico a pauta dos direitos humanos tem sido o modo pelo qual se questiona o respeito, proteção e efetivação de direitos institucionalizados. Pautamos o debate sobre a dificuldade de implantação de uma cultura de direitos em uma sociedade marcada pela desigualdade, como a sociedade brasileira, bem como a insuficiência das legislações no âmbito do direito, para abarcar a complexa fase liminar da juventude, em especial a dos jovens pobres. Para esta análise foi realizado um levantamento sobre a produção bibliográfica referente ao tema em estudo, aplicando a nossa experiência de campo de trabalho com esta população.

Palavras-chave: Infância e juventude, Vivência nas ruas, Direitos.


ABSTRACT

The present work handles with reflections about childhood and youth Brazilian, the imaginary which recovers it, as well as the macro and micro social actions, among these are included circuits of circulation in public spaces. An approach clipping for childhood and youth in situation of social exclusion, specially the children, adolescents and young in street situation. The matter of living in the streets is an historical theme, with different causal bases, which assumes, however, in the contemporaneity, complex configurations which demand a gamma of State and society actions for its understanding, intervention and “control”. In the legal scope the guideline of the human rights has been the way through which respect, protection and effectiveness of institutionalized rights are doubted. We discuss on difficulty of implanting a culture of rights in a society which has been characterized by inequality, as the Brazilian society, as well as the law insufficiency in the scope of the rights, to include the complex liminar phase of youth, in special of the poor young persons. For this analysis a research on the referred bibliographical production on the subject in study was carried, applying our experience at action field with this population.

Keywords: Childhood and youth, Street living, Rights.


 

 

Do imaginário do abandono à imagem da violência: uma história de ausência de direitos

O abandono de crianças é um tema antigo e exercido na prática e no imaginário da sociedade ocidental, fazendo com que a categoria “criança abandonada” esteja presente no imaginário popular há muitos anos, Marcílio (1998: 21) pontua que “abandonar bebês é um fenômeno de todos os tempos, pelo menos no Ocidente”.

As formas para este abandono foram variadas, de acordo com o momento histórico-cultural. No período colonial a criança era vista como um elemento a serviço do poder paterno, em uma posição secundária na casa, não merecendo maior destaque. Sua morte era compreendida como “purificação”, na visão iconográfica de “anjos” trazida pela igreja na figura dos jesuítas, não implicando, portanto, em preocupações adicionais a partir de sua morte (GOMES e ADORNO, 1991).

No século XVIII surgem no Brasil as primeiras instituições de proteção à “infância desvalidada”, sendo que a Roda de Expostos consagrou-se como marco simbólico e concreto deste fenômeno (MARCÍLIO, 1998).

A Roda de abandono de bebês recém-nascidos indesejados era mantida por um sentimento da caridade, em virtude dos valores cristãos, justificando a benevolência por aqueles bebês. Tal aspecto contribuiu para a institucionalização da cultura de caridade diante das “crianças abandonadas”, “crianças de rua”, “crianças pobres” e outros marginalizados socialmente.

Justifica-se a assistência através do sentimento de “fazer o bem ao próximo” – dentro dos valores cristãos, sem discutir as causas da problemática, nem mesmo as ações necessárias que demandam, criando uma cultura da dádiva, na qual a cidadania é concedida e configurada pela subserviência, associando a dimensão do “favor”, regendo historicamente, e em muitas ocasiões continuando a reger as relações de cidadania (SALES, 1994). A prática da “cultura da dádiva” acessa no imaginário das pessoas um código diferente daquele que propõe a dimensão dos direitos, mediado por uma relação entre cidadãos e Estado, cristalizando uma cultura que se afasta concreta e simbolicamente da discussão prática e subjetiva dos direitos. Não se encontra presente um caldo de cultura social no qual a criança é vista como sujeito de direitos, prevalece, majoritariamente, apenas a simbologia da criança merecedora de doações, benevolências e piedade.

No século XVIII, influenciado pelas idéias iluministas, emerge a filantropia de cunho científico. Criam-se as instituições totais, o médico passa a ter um poder diferenciado, dentro do discurso de aprimoramento do serviço, como o controle da mortalidade infantil.

“Desse movimento emergiu uma teoria da ação social relativa aos problemas de saúde e do bem-estar dos pobres não apenas por sentimento de caridade, mas com a intenção de controlar estas pessoas de modo racional e inteligente. (...) Exerce-se a beneficência para exercer um ato de poder e assim gozar da gratidão do outro” (MARCÍLIO, 1998: 75).

A preocupação com tal controle e assistência para este exercício culmina com a expansão das cidades, no século XVIII, sendo que, para tanto, são criadas várias estratégias de dominação da Metrópole, dentre elas destaca-se a higienização das famílias. O higienismo e a ação sanitária sobre a cidade vão propor sistematicamente a modelagem dos comportamentos de forma compatível com o modelo econômico vigente, sendo que a visão de criança passa por uma preocupação com condutas alimentares, disciplinares, pedagógicas e até de vestuário, na busca da formação do adulto identificado com o Estado Nação (GOMES e ADORNO, 1991).

Cria-se o cenário para o projeto de higiene na construção de uma moralidade, normalidade, modernidade, na educação das famílias e na socialização das crianças junto a elas e dentro das casas.

Para aqueles que se encontravam fora do modelo em curso era determinado a remoção para instituições isoladas do resto da sociedade. As instituições totais exerceram um controle e disciplina sobre diversos públicos que se encontravam como “sobrantes” no contexto social, dentre eles as crianças e jovens abandonados. Estratégias para controlar os pobres, que foram alvo da higiene e das práticas sanitárias no limiar da história contemporânea (FOUCAULT, 1979).

No reverso dessa prática registra-se, desde o fim da idade média, a presença dos jovens que se apartam da hierarquia de controle e tutela dos adultos, ocupando os espaços públicos para viver, formando bandos, hordas, grupos com hierarquia e comando próprios, opondo-se às instituições. Como define Rosemberg, “são crianças e adolescentes que, aparentemente, romperam com os dois cenários considerados, na modernidade, como naturais e adequados para desenvolvimento das crianças: a família e a casa (ou os seus sucedâneos)” ( 1995: 231).

No século XX, no contexto internacional, as discussões sobre o papel da criança na sociedade passam a adquirir uma nova institucionalidade, pautada por uma ênfase mais jurídica . O primeiro marco na defesa dos direitos desta população é a Declaração Universal de Direitos da Criança, da ONU, de 1959, que estabelece:

“É dever da Família, da Sociedade e do Estado assegurar a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (ONU, 1959, artigo 227)”.

No Brasil, a legislação em torno da infância e juventude ocorre em 1929, com o estabelecimento do Código de Menores, e em 1979, com o novo Código de Menores, basicamente uma revisão do anterior. Associavam a proteção ao controle penal, criando a categoria “menor” para aqueles que prescindiam de algum auxílio, prevendo um serviço único de assistência aos “menores”, que eram considerados todos aqueles que tivessem menos de 18 anos.

Tal auxílio era ofertado, para os abandonados, de forma assistencialista e voluntária, não sendo pautado pelo direito de todos. Configurava-se como benevolência e controle, não para todas as crianças e adolescentes, mas apenas para os “menores”, ou seja: os de “menoridade social” , crianças e adolescentes pobres. Para os abandonados a assistência era sinônimo de repressão e controle. Esta imersão de duas diferentes situações sobre o rótulo “menor” fez com que elas se tornam miscigenadas, associando pobreza e delito, estabelecendo-se, portanto, em uma lei para as crianças pobres, sejam eles infratoras ou abandonadas.

Exemplo claro desta política é a instituição FEBEM – Fundação para o Bem-Estar do Menor – que, por muitos anos, foi o único órgão provedor de serviços para os “menores”, ofertando abrigo para os abandonados e internação para os infratores, configurando a política de assistência a esta população (MARCONDI, 1997).

Este sistema híbrido de assistência contribuiu para a configuração de um imaginário que reúne a representação social do abandono com a delinqüência, criando um elo com a repressão como forma de se lidar com a infância e adolescência pobre, estabelecendo ligações difíceis de serem rompidas. A discussão do direito e da não-violência como forma de tratamento se confrontam com esta cultura instaurada.

Soma-se ao estabelecimento deste imaginário popular a questão de raça/ etnia como elemento componente da associação abandono, delinqüência e repressão. A criança e o adolescente negro e pobre são rapidamente associados à infração, para os quais é necessário o controle através da violência como repressão.

Estes fatores de raízes históricas na sociedade brasileira contribuem para aquilo que estamos denominando de imaginário popular frente à criança e ao adolescente pobres, que passaram a ser chamados de crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social e mais recentemente de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

No meio acadêmico e nos serviços assistenciais é a partir de meados da década de 70 que o problema denominado de “menor abandonado” começou a ser alvo de crescentes atenções, devido também a seu crescimento incômodo nas grandes cidades (VOGEL, 1995). Pesquisas foram realizadas buscando conhecer-se a situação, fundamentando os dados para uma vasta produção ocorrida sobre a temática nos anos 80 (RIZZINI e RIZZINI, 1996).

Este movimento, acompanhado de intensos debates entre profissionais da área de assistência à infância e adolescência, culminou, em 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – BRASIL, 1990), que veio substituir a “doutrina da situação irregular” pela “doutrina da atenção integral” (VOGEL, 1995).

O ECA abandona o termo “menor” substituindo-o por criança e adolescente, pretendendo ser uma lei para toda e qualquer criança e adolescente brasileiro, independente da situação de infração ou abandono, buscando uma mudança cultural que retira da criança pobre o aspecto identificador daquele que requer ações do Estado e pauta o direito de todos enquanto elemento central para o debate.

Os princípios do ECA vão ao encontro daqueles estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos da Criança (ONU, 1959), bem como representando grandes avanços para a sociedade brasileira no reconhecimento legal da criança e do adolescente enquanto sujeito de direitos. Porém, seu grande desafio é confrontar-se com um contexto social de exclusões e faltas inúmeras que distanciam o respeito aos direitos básicos da população e que favorecem uma cultura pautada pelo assistencialismo e benevolência, sem a vivência mínima de uma cultura de direitos.

Fonseca e Cardarello (1999: 84) problematizam o fato do Brasil ter “altos ideais para uma sociedade ideal” sem problematizar os reais caminhos para se atingir os princípios promulgados pelas leis de defesa de direitos. “(...) a premissa de que os direitos humanos em sua forma abstrata e descontextualizada pouco significam” (1999: 85).

 

Meninos e meninas em situação de rua

O perambular dos meninos e meninas em situação de rua é acompanhado de uma história interna e pessoal comumente, mas não exclusivamente, marcada pelo abandono e pela violência. Decidir por morar nas ruas, viver em bandos, conhecer este novo mundo, é uma “opção” para a maioria deles, “decisão” à qual se chega após longo processo. Opta-se por deixar de vivenciar diversos tipos de violência e pobreza e por buscar novas alternativas de vida na rua.

Definir quem são estes meninos e meninas em situação de rua não é tarefa fácil, uma vez que se encontra uma grande gama de situações que se inter-relacionam nos logradouros públicos dos grandes centros urbanos.

Panter-Brick (2002), que parte do olhar sobre os meninos de rua como uma questão de direitos humanos, problematiza o uso do termo “criança de rua” por ser genérico, pejorativo, estigmatizador, não corresponder às experiências com relação aos diferentes movimentos nas ruas e não refletir a complexidade das relações entre pobreza e exclusão social presente nesta população. Para a autora, os elementos que encontrou na bibliografia conceituando “criança de rua” debruçam-se sobre o tempo gasto nas ruas, o uso da rua como local de sobrevivência econômica e a não-existência de proteção de adultos.

Uma outra maneira de conceituação é definir a presença das diferentes crianças nas ruas, como cita Gregori (2000):

“Por menino de rua, definiu-se aquele que foi visto quando estava trabalhando em biscates, esmolando, perambulando ou exercendo atividades ilícitas. Além de ser feito à distância, dependendo do olhar do educador, treinado ou não, tal procedimento é duvidoso pela forma como define a quem contar: ele abrange crianças que trabalham nas ruas, mantêm vínculos familiares e freqüentam escolas, crianças que moram nas ruas com as famílias e crianças cujos vínculos familiares estão mais esgarçados” (2000: 20).

Por um lado, os direitos essenciais destas crianças e adolescentes não foram respeitados e nem protegidos – mesmo antes de se encontrarem nas ruas – apontando trajetos de contínuas exclusões, tais como as dos equipamentos educacionais, de saúde, de lazer, assim como pela falta de aportes familiares e afetivos. São trajetórias que levam à situação de desfiliação (CASTEL, 1994).

Por outro lado, a modernidade ao criar uma “fase” entre a infância e a idade adulta e ao operar uma construção social da adolescência, cria também uma situação de “liminaridade”, definida como um momento de transição entre uma “estrutura” e a filiação a outra “estrutura”, que pode se cristalizar como uma situação permanente (TURNER, 1994). Esta juventude liminar passa a ser vivida através do acesso a produtos, identidades ou bens culturais, de forma mais ou menos radical por alguns grupos, e que se expressaria também no contexto dos circuitos de rua e sua realização.

Do ponto de vista da visão dos direitos: viver nas ruas representa o estado “da não cidadania”, do não exercício de direitos, tais como – segundo o ECA, à convivência familiar (art. 19); à educação (art. 53), pois grande parte é considerada “evadida” pelo sistema formal de ensino; do direito de ser considerado em sua privacidade, autonomia e identidade (art. 17); estar em situação vulnerável para diversas formas de exploração (art. 18); e, conseqüentemente, estar prejudicado em seu direito a um desenvolvimento saudável (art. 7), uma vez que a vulnerabilidade a agravos físicos, por exemplo as DSTs/Aids, e psíquicos encontram-se presentes.

Partindo da visão do menino e da menina que estão nas ruas, este estado simboliza novas formas de vivenciar a liminaridade da juventude, realizando-a em outro contexto, com outros limites e vislumbrando outras possibilidades.

Porém, os instrumentos que lhe ofertam aportes para viver o curso da vida da infância à idade adulta são a desproteção, a ausência de instrumentos, equipamentos e a repressão; enquanto que para uma outra parcela dos jovens – os da classe média para cima, existe a proteção integral e a possibilidade, inclusive, de poder ter o direito de transgredir limites legais. Questiona-se aqui qual dimensão do direito que é estabelecida socialmente e para quais grupos populacionais são direcionados o enfoque do direito à vivência da juventude.

Estar nas ruas demandaria a previsão e ainda a criação de “novos direitos” decorrentes da situação em si. Panter-Brick (2002: 154-5) pauta o direito daqueles meninos e meninas à privacidade, respeito, proteção, incluindo a proteção à exploração da mídia, de Organizações Não-Governamentais – ONGs e de “ativistas” da causa, que se utilizam desta população para interesses não direcionados a ela.

Há aqui de se problematizar o quanto estas preocupações baseiam-se na visão da criança ou em um olhar pré-determinado sobre a proteção desta população. Ainda assim, não se direcionam ações com este fim, não existindo a oferta de recursos sociais para que isto ocorra.

A rua, contudo, abre-se como um novo caminho, permeado, no entanto, de violência, abandono e não respeito aos direitos. O preconceito social, a indiferença, a violência física, são vivências, dentre outras, às quais são submetidos estes meninos e meninas como cita e conceitua Graciani (2001). Acrescenta-se que, apesar disso, buscam viver esse caminho de forma lúdica, mas respondendo também na dimensão reflexiva daquilo a que são submetidos, criando novas formas de vivência desta fase liminar. Como expressão deste universo um exemplo se dá através da diversidade do uso de substâncias psicoativas, elemento que compõe o imaginário popular sobre esta população, bem como o próprio imaginário daquelas crianças e adolescentes sobre estar nas ruas.

 

Um olhar macro: políticas públicas, infância e juventude e exclusão social

Precariedade e vulnerabilidade extremas fazem parte da vida cotidiana de parcela significativa da infância e juventude brasileira (PRIORE, 1999) e apresentam-se como aspectos relevantes para as análises macro-sociais sobre o contexto infanto-juvenil.

É necessário que se assinale a indissociabilidade entre as estruturas macro e micro-social, observando na esfera local, na dimensão micro-estrutural cotidiana, a influência e relação com os fatores no campo macro, constituindo assim os elementos formadores dos processos sociais de “exclusão”. A categoria trabalho, dentro da perspectiva social (CASTEL, 1998), bem como a família, os espaços comunitários, o sindicato, os equipamentos sociais que compõem as políticas públicas; constituem os vínculos sociais das pessoas, influenciando no seu processo de inserção social.

A análise que contempla a relação entre a esfera macro e micro-social, pessoal e social, liga-se diretamente ao debate entre necessidades e direitos. Alguns autores (PANTER-BRICK, 2002 e SAVE THE CHILDREN, 2000), baseados na Convenção dos Diretos da Criança (ONU, 1989), pautam que a abordagem nas necessidades prevê uma referência sobre o indivíduo, em uma perspectiva “apenas” psicológica e individualizante; enquanto que a perspectiva do direito baseia-se nos princípios da Convenção da Criança, priorizando, dentre eles: a não-discriminação, o interesse superior da criança e sua participação ativa. Trata-se da diferença entre “necessidades do indivíduo” e “direitos de cidadania”.

Por várias décadas foi priorizada apenas a dimensão das necessidades, em uma perspectiva de culpabilização do sujeito pela sua situação. Em resposta, os sujeitos militantes que advogam pelos direitos humanos fortaleceram o debate pelo coletivo, pela promoção do direito, não pautando a discussão sob a ótica individual.

Atualmente, porém, faz-se necessário a articulação entre estas duas esferas: necessidades e direitos, pois a dimensão individual provou-se restritiva e a dimensão coletiva, frisa-se aqui sua essencialidade e relevância, não consegue, porém, responder a todas as questões complexas da sociedade contemporânea. Debate-se a necessária dedicação atual para estudos e práticas que se dediquem a junção entre atenção as necessidades e promoção dos direitos.

Pautar o direito enquanto elemento de enfoque significa colar a discussão na dimensão da cidadania. Para tanto, é necessário que se reconheça os direitos civis, políticos e sociais e sua necessária co-substancialidade (HABERMAS, 1997). Reconhecendo, ainda, o direito de todos, vale destacar o todos, o qual inclui as crianças e adolescentes em situação de exclusão social.

Porém, em uma sociedade fortemente marcada pela extrema desigualdade social, sem aportes e instrumentos que atuem para a promoção da cidadania, os direitos sociais ficam abalados, prejudicando todo o exercício de direitos, segundo a co-substancialidade entre os mesmos, conforme defende Habermas. Embora as leis sejam de suma relevância para o debate sobre o lugar social da criança e do jovem e seus direitos, população aqui por nós tratada, apenas sua promulgação não basta, pois sua inserção, por si só, em uma sociedade de desiguais não traz mecanismos para implementação de instrumentais para o respeito, acessibilidade e promoção dos direitos. Cria-se categorias dos “mais ou menos humanos”, parafraseando Fonseca e Cardarello.

As crianças e adolescentes no Brasil são legalmente reconhecidos enquanto prioridade nacional, portadores de direitos e sujeitos em “situação peculiar de desenvolvimento”, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).

Para respeito e promoção de seus direitos às políticas e programas sociais destinados a esta população assumem um papel de grande relevância. Questionamos o espaço que esta população ocupa no âmbito das políticas sociais e se tais políticas baseiam-se na promoção dos direitos para sua intervenção.

A problemática dos meninos e meninas vivendo nas ruas requer uma abordagem de vários campos para sua intervenção, devido à complexidade do fenômeno.

Estar em situação de rua demonstra, em si, o não respeito e a violação dos direitos da infância e juventude, a não-priorização do Estado por esta população, segundo o enfoque jurídico atual.

Porém, conforme destacamos, é necessário que se contextualize a discussão dos direitos em uma sociedade com significante patamar de desigualdade social enraizado, como a sociedade brasileira, e a conseqüente condição de vida nas periferias e a busca por um outro modo de vida, cuja “opção” extrapola a dimensão financeira do problema, incluindo aspectos socioculturais, bem como aspectos da subjetividade.

As intervenções direcionadas para esta população assumem uma direcionalidade majoritária dedicadas a uma visão de “salvar” estas crianças (PANTER-BRICK, 2002), de recolocá-las em suas famílias (SCANLON, 1998), nas escolas e nos ambientes tradicionalmente considerados adequados.

As políticas, programas e projetos partem de uma visão de incapacidade da criança e do jovem, e não de promoção da proteção, “as crianças vivendo e trabalhando nas ruas não são objeto de atenção das pessoas. Eles são vulneráveis, mas não incapazes. Eles precisam de respeito e não de pena” (ENNEW apud PANTER-BRICK, 2002: 56).

Os princípios da Convenção dos Direitos da Criança (ONU, 1989) apontam caminhos para embasar os programas nesta área. O princípio de promoção da vida, da sobrevivência e do desenvolvimento preconiza a prevalência da infância e da juventude, um fator que é contemplado pela lei brasileira, porém pouco efetivado no cotidiano dos equipamentos sociais.

A diretriz da não-discriminação é de difícil efetivação uma vez que ser menino e menina de rua é, por si só, condição de estigma social e que traz, embutida em si, tratamentos e acessos desiguais em diferentes níveis. Este é um ponto sobre o qual o Estado brasileiro deveria debruçar-se para atingir tal diretriz.

A temática de defesa do interesse superior da criança, ou do melhor interesse da criança (segundo a tradução brasileira), precisa ainda, ser apreendida pelos técnicos que atuam com a infância e juventude, pois, trata-se de analisar a situação em que se encontra aquele sujeito e possibilitar um encaminhamento que vá ao encontro do interesse da criança, tendo como base os direitos que devem ser respeitados. Trata-se, portanto, de um outro aspecto a ser promovido pelo Estado brasileiro.

Por fim, destacamos o direito à participação e promoção da autonomia das crianças e jovens pobres nas Políticas Públicas. A visão de incapacidade, acima mencionada, assistencialismo e paternalismo, freqüentemente presente nas intervenções com esta população, desconsideram justamente este princípio, realizando ações por esta população, sem ouvi-la, tendo como frutos insucessos dos trabalhos realizados.

Pauta-se aqui um grande desafio para as políticas direcionadas à infância e juventude, em especial aquelas para os meninos e meninas em situação de rua, que é o envolvimento desta população enquanto protagonista das ações voltadas para ela, criando espaços de escuta, voz, influência e decisão no escopo de tais programas. Trata-se de se inverter a lógica do realizar por para se realizar com, buscando aí, o respeito, a proteção e a efetividade do direito estabelecido, promovendo concretamente uma política enfocada no direito à participação, no direito a constituição de sua própria história.

Zaluar (1994) destaca o processo de protagonismo dos jovens como uma perspectiva que atua em busca da cidadania, e insere-se num campo contraditório, pois traz como retorno novas demandas, na medida em que os próprios adolescentes passam a reivindicar seus espaços e direitos.

“Com isto se queria dizer que o objetivo era mudar a perspectiva paternalista ainda predominante nesta população, que se considerava mero beneficiário do serviço, para a perspectiva de usuário, ou seja, alguém que partilhasse responsabilidades com a direção na manutenção dos serviços e na proteção do equipamento (1994: 145)”.

Contudo, trata-se de um princípio muito longínquo da realidade brasileira, sendo necessário a realização de ações em prol da efetivação de políticas que tenham reconhecido a promoção da participação da população infanto-juvenil em sua esfera.

Trata-se de um tema polêmico e que reconhecemos não ser de fácil implementação. A garantia de participação da criança e do adolescente tem que vir acompanhada da promoção de sua proteção por se encontrar em situação peculiar de desenvolvimento, como reconhece o texto jurídico.

As políticas, portanto, devem-se voltar para a análise da atenção as necessidades individuais e promoção dos direitos coletivos desta população.

Enfoca-se, contudo, que as demandas individuais existem e devem ser acolhidas, por se tratar de sujeitos únicos demandantes de atenção, requerendo, todavia, uma abordagem singular que atenda suas necessidades daquele momento.

Em paralelo, compondo o norte das intervenções, o respeito, a promoção e efetividade dos direitos coletivos devem ser priorizados.

É no respeito aos princípios consolidados, com a junção entre necessidades e direitos, que devem se pautar os projetos, programas e políticas para a infância e juventude.

 

Circuitos nas ruas: o aspecto micro-estrutural cotidiano

A questão dos meninos de rua atravessa uma discussão histórica, legislativa, das políticas públicas e a constituição de uma cultura de direitos, conforme discursamos anteriormente, bem como uma realidade que se estabelece nos micro-espaços, na formação de sociabilidades que a rua oferece, em uma cultura urbana contemporânea.

Estar em trânsito para e nas ruas, estabelecer neste território seu cotidiano, representa realizar atividades diversas nas quais os referenciais de tempo e espaço são vivenciados em sua liminaridade e, a partir de então, o uso das ruas passa a se dar para circulação, movimento, exposição, pedido de esmolas, relacionamentos, brincadeiras, consumo etc. (ADORNO, 1999).

As ruas, a mobilidade e o consumo simbolizam uma representação de um universo distante da realidade das crianças e jovens moradores das periferias dos grandes centros urbanos. A contemporaneidade, com a oferta de um acesso cada vez mais rápido e descontrolado de informações e propagandas, embute um desejo por estes bens de consumo que veicula como os “certos” e “bons” no imaginário das pessoas.

Assim, a rua torna-se como um espaço cada vez mais atrativo por representar diferentes formas de apropriação dos espaços e cenários da cidade, aparentemente inatingíveis na vida cotidiana e estruturada nas periferias.

Segundo Adorno e Silva (1999) o circuito da rua é uma referência estética, de sociabilidade, de costas para os bairros sem recursos, equipamentos e qualquer forma de expressão social, de proteção individual.

Esta dimensão traz para as ruas o desejo de estar nelas, experimentar novas coisas, não propiciada pelo seu espaço de origem.

A visão de que a rua oferece também prazeres e sociabilidades, sem deixar de reconhecer todos os sofrimentos e não direitos no interior dela, demonstra uma análise que é contrária àquelas apresentada por instituições e presente no discurso dos técnicos que atuam com os meninos e meninas em situação de rua. Para estes, estar nas ruas é repreensivo moralmente, “é errado”, e este aspecto é passado para os meninos e meninas que nela vivem.

Não se trata, evidentemente, de se fazer uma defesa de se viver nas ruas, ao contrário, pautamos nossa discussão sobre o não-exercício de direitos por esta população e a necessária mudança de paradigma sociocultural com relação a esta temática; contudo, não reconhecer a complexidade contemporânea do universo social de viver nas ruas é reduzir as análises sem lhes conferir todas dimensões que abrangem e a complexidade de fatores a serem abordados no trabalho com as crianças e jovens que se encontram realizando muitas atividades nas ruas das cidades.

Trata-se do imaginário da criança e do jovem sobre os prazeres do circuito da rua em contraposição ao cotidiano de escassez e violências dos bairros periféricos e das instituições para eles ofertadas. Perambular, estar em grupo, vivenciar limites, “sentir-se forte”, dentre outros fatores, unem-se à fase liminar juvenil e ao desejo pelo novo. Constitui-se aí um imaginário próprio deste grupo, distante daquele socialmente estabelecido e sobre o qual estes meninos e meninas são vistos e julgados.

A rua possibilita a liberdade do corpo, do agir e do experimentar, em uma amplitude maior de espaço, sem normas, hierarquias e restrições vivenciadas nas casas e nas instituições.

Será que quando nossas praças e espaços públicos estão sendo fechados e cercados, limitando locais de sociabilidade e convivência, não são esses atores os que ainda contestam e reivindicam a atenção para o espaço público?

E será também que juntamente com este cerco não os estamos fechando e delegando que se constituam como um grupo apartado, um gueto, condenado a cristalizar a sua liminaridade?

Enfim, resta o grande desafio e medo de alargar de fato a dimensão dos direitos para além dos mesmos imaginários já instituídos.

 

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Endereço para correspondência
Ana Paula Serrata Malfitano
Universidade de São Paulo
Faculdade de Saúde Pública
Departamento de Saúde Materno-Infantil
Av. Dr. Arnaldo, 715, 2º. andar.
01246-904 São Paulo, SP
E-mail: amalfitano@uol.com.br

Recebido: 14/11/2005
Aceito: 18/12/2005

 

 

* Terapeuta Ocupacional do Projeto Metuia e Doutoranda em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.
** Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.