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Imaginário
versão impressa ISSN 1413-666X
Imaginario v.12 n.12 São Paulo jun. 2006
PARTE I
Retrato de deficiente na escrita do jovem: o imaginário que desfoca sua face
Picture of handicapped people at the youth’s writing: the imaginary makes an unclear face
Cláudia AlaminosI; Claudia Rosa RiolfiII
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
RESUMO
Tomando como objeto a imagem que o jovem escolar faz do deficiente de mesma idade, o presente trabalho visou discutir a pertinência da hipótese segundo a qual uma correlação entre a convivência prévia com deficientes e a abertura para sua acolhida na escola pode ser traçada. Os dados colhidos por meio de questionários escritos foram analisados com base no referencial teórico da psicanálise. Concluiu-se que os jovens que convivem de maneira próxima com deficientes conseguem apreendê-los em sua subjetividade, sem precisar enxergá-los pelas lentes de um imaginário monstruoso, pelo qual o deficiente é visto como o “não-eu” e reduzido à condição de receptáculo da parte do “eu” que, nos oferecendo o triste espetáculo de nossos próprios limites, precisa ser denegada.
Palavras-chave: Jovens, Imaginário, Deficientes, Escrita, Psicanálise, Inclusão escolar.
ABSTRACT
This article aims to check the image of handicapped people in the young student’s imaginary. The main issue is the correlation between students who have a prior living with handicapped therefore somehow they might accept their inclusion at the school environment. All the data collected through written questionnaire were analyzed by psychoanalytical theory. As final conclusion it shows how the closer living changes the young’s vision about handicapped people from a “not me” to somebody will might be acceptable.
Keywords: Youth, Imaginary, Handicapped people, Writing, Psychoanalysis, Educational inclusion.
Dentes alinhados, cabelos brilhantes, músculos “malhados”, nível mínimo de gordura corporal, energia e disposição para dar e vender. Nos mínimos detalhes, os jovens que vivem na contemporaneidade forjam a própria aparência para que ela se torne rigorosamente igual ao que julgam ser o padrão imagético que lhes pode garantir um bom julgamento de seus semelhantes, e, ao menos em seus sonhos, um futuro brilhante.
Àqueles que conseguem se tornar, em certa medida, a imagem da perfeição, é reservado o novo pódio do “herói moderno”: uma aparição, ao menos fugaz, nos meios de comunicação de massa. Ao contrário, àqueles que não conseguem se tornar iguais a todos os outros, está reservado o destino de ser pária (ao menos até que consiga traçar seus próprios caminhos), ou a busca de uma solução miraculosa qualquer da medicina cosmética moderna, que não tem mostrado grandes escrúpulos em modificar cirurgicamente mesmo os mais jovens.
Nesse contexto, perfila-se uma interrogação sobre qual o lugar possível, no imaginário do jovem, daquele que, tendo idade aproximada da sua, não pode ser “corrigido” por meio da moda ou da medicina, uma vez que, por motivos variados, seu corpo é, de fato, diferente de todos os outros: o deficiente. Na presença de uma diferença corporal intransponível, nota-se uma sutil derrisão do imaginário paradisíaco do jovem, que, sem querer, é colocado face a face com algo que não se disfarça.
Um cego utilizando óculos de grife por acaso se tornaria menos cego aos olhos do adolescente que o vê? Não julgamos que adereços tenham esse poder miraculoso... No que diz respeito ao deficiente, seu corpo está lá, irredutível, fazendo barreira a esse imaginário paradisíaco no qual o jovem nada em meio de seres atléticos e dispostos a vencer os limites que pesaram sobre os ombros da geração precedente. Desse modo, o que acontece quando, por exemplo, um deficiente é matriculado em uma escola regular?
Ressalta-se que a inclusão está presente na legislação e é alvo das políticas públicas em educação no Brasil há menos de uma década. Assim, a sociedade atual ainda engatinha no movimento pela inclusão social do deficiente, cuja implantação satisfatória tem sofrido muitas e diferentes dificuldades, em especial no que tange ao processo de construção de acolhida do deficiente na escola.
Preliminarmente, não se pode negar que houve decréscimo da rejeição da presença do deficiente na vida social, embora ainda existam atitudes preconceituosas de todas as naturezas em relação a ele. Do momento histórico, no qual um deficiente era imediatamente eliminado em seu nascimento, à superação da segregação, à qual essa população tem sido vítima, passamos por um tempo no qual o imaginário dominante era o de que os deficientes são dignos de compaixão e de piedade, devendo ser “protegidos” de sentimentos e de ações hostis por parte de alguns segmentos da sociedade, por meio de sua colocação em instituições que cumpram o papel de torná-los invisíveis à população dita normal.
Foi, portanto, necessário um longo período para que, nos dias de hoje, possamos cogitar perguntas de pesquisa derivadas da possibilidade da presença física dos deficientes nas escolas regulares. Louvando a oportunidade de a criança deficiente, atualmente, poder “passar sua infância na escola, no pátio, no parque” LAJONQUIÈRE (2001) lembra-nos do fato de que, há não muito tempo, havia a seguinte pluralidade de destinos reservados aos deficientes:
“Como sabemos, aos idiotas lhes era reservado o asilo psiquiátrico, aos imbecis, os trabalhos manuais no ateliê, aos DM ou débeis mentais, a simplicidade do tédio de escolas muito ‘especiais’, enquanto, agora, às crianças com ‘necessidades educativas especiais’ lhes é prescrito o direito de freqüentarem a escola comum...” (p. 48)
No entanto, sabemos que, no miúdo do cotidiano, não basta a matrícula de um deficiente na escola para que haja garantia da possibilidade da escuta de uma criança que não se reduza às suas dificuldades específicas. Não podemos nos reconfortar com a crença de que, por meio das novas definições, todas as crianças serão bem-vindas à escola. Nossa prática indica, inclusive, que muitas vezes tem-se rechaçado a inclusão escolar em nome da turma, a quem são atribuídas, entre tantas, as afirmações de que ela não o aceitará; de que o aluno a ser incluído será ignorado ou hostilizado; de que talvez ele se sinta melhor entre seus pares, para que não nasçam “complexos de inferioridade” e assim por diante.
É, portanto, justamente o discurso manifesto pela “turma” que o presente trabalho escolheu investigar. Partimos da assunção da necessidade de que, na contemporaneidade, torna-se premente conhecer qual imagem de deficiente é hegemônica, tomando-se como população os jovens escolares que serão, um dia, convocados a receber e a acolher um deficiente em sua turma.
Cumpre observar que os estudos sobre inclusão têm privilegiado, em sua maioria, o aluno a ser incluído, suas dificuldades e progressos, bem como o professor que recebe esse aluno, sua formação e sua disposição, mas são pouquíssimos, se não inexistentes, os trabalhos que investigam o imaginário dos colegas que, supostamente, deveriam ser co-autores no processo de inclusão a respeito do colega que vai ser recebido.
Por considerarmos os demais alunos da turma uma parcela bastante importante nos processos de inclusão, a respeito deles formulamos algumas questões: como eles percebem a inclusão? Como é a recepção de um aluno com alguma deficiência ou distúrbio do desenvolvimento? Que viabilidade eles atribuem à presença de um aluno diferente em sua turma? Que imagem eles fazem dos deficientes?
Assim, visando auxiliar na construção de caminhos que facilitem os processos de inclusão escolar nas escolas regulares _ muitas vezes obstruídos pela presença de imagens negativas que não encontram correspondente no cotidiano escolar _ o presente trabalho investiga traços constitutivos do imaginário presente no discurso manifesto do jovem que está no início da adolescência (faixa etária de 12 a 13 anos) no que tange às expectativas projetadas com relação às possibilidades, as dificuldades ou à presença de elementos que supostamente tornariam impossível acolher um aluno com deficiência para estudar em sua sala de aula.
Esburacando o imaginário para aprender a suportar as diferenças
Para além das garantias básicas do acesso à educação, ao trabalho, ao lazer e à vida social, conseguimos o avanço de conceber um processo de inclusão que passa pelo fato de os próprios deficientes poderem tomar a palavra para dizer de suas necessidades e de suas capacidades. Entretanto, poucos avanços têm sido feitos na superação de uma “surdez seletiva” que, muito curiosamente, faz com que muitos sujeitos, ao escutarem o que um deficiente diz sobre sua própria condição, apaguem as partes de um enunciado que não encontram correspondentes em seus preconceitos habituais.
A respeito desses últimos, Crochík (1997) afirma que, em frente dos seus objetos, os preconceituosos agem de forma congelada, análoga à paralisia momentânea que ocorre frente a um perigo real ou imaginário, uma vez que, na verdade, são tomados de uma impotência para lidar com os sofrimentos e as incertezas provenientes da realidade. Essa reação aponta para a existência de um ponto cego no preconceituoso que, não podendo se ver, não compreende que a reação causada pelo outro encontra respaldo em si próprio.
Essa reflexão está em concordância com Freud (1923) que, já naquela época, afirmava que a reação de medo ao nos depararmos com o diferente é menos produto daquilo que não conhecemos do que daquilo que não queremos ou não podemos reconhecer em nós por meio dos outros. Daí decorre que poder aceitar o outro em sua diferença passa, antes de tudo, pela possibilidade de poder enxergar a si próprio de um outro modo.
Se mais não for, essa incapacidade de escutar e ver a realidade do outro, do diferente, remete ao conceito de assujeitamento, definido por Althusser (1985) como se referindo a uma impossibilidade de um sujeito manter-se fora da engrenagem ideológica à qual está exposto. Trazendo essa noção para nosso assunto específico, cumpre dizer que conhecer, ao menos, fragmentos da “engrenagem ideológica” determinantes da imagem de deficiente que circula na contemporaneidade é condição necessária para que a palavra proferida pelo deficiente sobre sua própria condição possa chegar a ser escutada com a dignidade ética que merece.
Com relação ao lugar teórico de onde a pesquisa foi concebida, cumpre esclarecer que estamos mobilizando o conceito de imaginário do modo como é trabalhado na psicanálise de orientação lacaniana, em especial, levando em consideração sua pertinência para a construção da teoria da subjetividade. Por esse motivo, o texto de que partimos é a conferência escrita em 1949: “o estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” (LACAN, 1949).
De acordo com esse trabalho, em média dos seis aos 18 meses, à condição de estar ancorada em uma companhia que lhe ofereça as precondições para que se reconheça como um ser humano inscrito em uma certa linhagem das gerações, a criança antecipa a noção de que seu corpo apresenta uma unidade funcional, identificando-se com uma imagem de perfeição que ele julga poder se tornar no futuro. A imagem que possibilitará à criança construir um “eu” é, conseqüentemente, falaciosa, uma vez que sua apreensão se dá em termos de um ideal sem falhas e, não, sob a forma imatura e incompleta que é aquela que, de fato, corresponde a da criança dessa faixa etária.
É importante ressaltar, nesse momento, que essa imagem idealizada, perfeita, não recobre tudo o que de fato a criança é, deixando um resto para além do registro do imaginário. Esse resto permanece, para cada qual, como uma faceta que não é possível reconhecer no espelho, não sendo, portanto, integrável à imagem na qual o sujeito se reconhece. Algo está lá, ronda ameaçando, a todo instante, obrigar o sujeito a reconhecer que sua “perfeição” é falaciosa.
Para Lacan, portanto, o aparelho psíquico pode ser metaforizado através de um nó, em forma de trevo, (cf. figura 1, que se segue) composto por três círculos que simbolizam uma tríplice aliança. Sua especificidade é o fato de que, se cada um dos anéis for retirado, os outros três ficarão livres, sem que se forme par.
Para apresentar o nó, LACAN (1972-73) parte de três míticas rodinhas de barbante (uma vez que não se fabricam rodinhas de barbante fechadas), cada uma delas representando uma das instâncias que compõem o aparelho psíquico:
(i) o simbólico, conceito que se refere à lei combinatória que organiza os significantes e sua circulação na cultura;
(ii) o imaginário, conceito que remete à dimensão que é apreensível dos objetos por meio dos órgãos dos sentidos, ou que pode ser projetada mediante esse contato sensorial;
(iii) o real, conceito que nomeia a tudo que não pode ser recoberto nem pelo meio de uma imagem nem por meio das palavras, como o caso da morte.
Observando-se a “Figura 1”, pode-se ainda notar que, ao se entrelaçarem, os três registros formam em seu centro um campo no qual os três registros sobrepõem-se, nomeado como espaço do não-senso, ou seja, o registro daquilo que, no momento em que assumiu uma imagem corporal como o seu “eu”, o sujeito não pôde integrar a ela.
Em especial, estamos nos referindo a todo tipo de ação que, ao ser exercida sobre um corpo, pode ser vivida pelo sujeito como se fosse uma mutilação irreparável, como é o caso, por exemplo, do momento em que o bebê percebe que o seio, objeto que lhe dá tanto prazer, não faz parte do seu corpo próprio; conseqüentemente, pode ser perdido a todo o momento. Ainda continuando com esse exemplo, podemos dizer que é justamente deste corpo deficiente, amputado de sua fonte de prazer primeira, no qual faltam os meios de gozo, do qual queremos nada saber.
Que conseqüências esse voto de ignorância poderia ter sobre o imaginário que o jovem constrói de deficiente? No que se segue, o leitor encontrará o início de abordagem investigativa visando construir uma teorização sobre o imaginário do jovem que, em primeiro lugar, inclui sua condição subjetiva no seio de sua própria teorização.
Investigando o imaginário que o jovem tem sobre o deficiente
Os dados que embasaram essa pesquisa sobre a imagem de deficiente que faz o jovem foram coletados numa classe do sétimo ano do ensino fundamental de uma escola particular, de confissão religiosa, na qual estudam 33 meninos e meninas de classe média-alta, em sua maioria.
O teste para essa pesquisa foi aplicado durante o horário destinado a uma aula de redação, por um período de duas horas. Todos os alunos concordaram em participar da pesquisa por sua livre vontade. Eles não foram pessoalmente identificados. Colocaram em cada uma das produções suas iniciais, sexo e data de nascimento. Isso se deu como uma tentativa de minimizar a censura feita pelos próprios sujeitos para dar sua concepção de deficiente.
De fato, a sala mostrou-se receptiva (embora um tanto aflita) para a realização da atividade proposta, que consistiu de duas etapas: (1) a realização de uma redação, baseada em figuras, apresentadas em três quadros designados como: “Quadro I: Pessoas; Quadro II: Situações e Quadro III: Locais”; e (2) a aplicação de um questionário que versou sobre o contato que cada um tem com pessoas deficientes e suas concepções sobre os deficientes na escola. Dados os limites do presente artigo, são as respostas dadas a esses questionários a base para nossa análise subseqüente.
O comando dado aos alunos na etapa do questionário foi o seguinte: “respondam o questionário anexo o mais sinceramente possível, lembrem-se que vocês não serão identificados”. Manifestamente, o questionário investigava se o aluno conhecia algum deficiente; o tipo de deficiência da pessoa conhecida; se ele convive ou conviveu com alguma pessoa com deficiência; a esfera social em que convive ou conviveu com o deficiente; se o aluno pensa ser possível ou impossível um deficiente estudar em sua sala; e, finalmente, os motivos da possibilidade ou da impossibilidade atribuídos à presença do deficiente.
Com base nas respostas dadas à primeira questão, subdividimos os alunos em três grandes grupos, a saber:
(1) Grupo 1: alunos que jamais conheceram ou conviveram com algum deficiente, no caso, composto de 10 jovens.
(2) Grupo 2: alunos que têm ou tiveram um contato superficial com algum deficiente, no caso, composto por 12 jovens.
(3) Grupo 3: alunos que tiveram uma convivência mais prolongada com algum deficiente, no caso, composto por 11 jovens.
A seguir, o leitor encontrará uma tabulação inicial dos dados coletados, que, em momento oportuno, servirão de base para uma análise mais aprofundada do imaginário do jovem sobre o deficiente.
Ressalta-se, imediatamente, que essa tabulação não tem qualquer compromisso com a verificação do fato de que os jovens tenham, ou não, declarado a verdade em suas respostas, uma vez que nosso interesse principal incide, justamente, sobre o que eles dizem a respeito dos deficientes.
Dos Grupos 2 e 3, pudemos apurar que os tipos de deficiências conhecidas foram mental, física, auditiva e visual, na proporção descrita no Quadro A, que se segue:
Além disso, pudemos apurar que os alunos do Grupo 3 relataram que a convivência deu-se nas seguintes esferas sociais descritas no Quadro B, a seguir:
Observando especificamente o que os alunos dizem a respeito da inclusão de deficientes, obtivemos a seguinte proporção para a resposta da pergunta que remete, de modo específico, ao imaginário do jovem no que tange à possibilidade de projetar um deficiente ao seu lado, em seu cotidiano escolar:
. Dezessete alunos conseguem imaginar um deficiente em sua escola regular.
. Dez alunos afirmaram que essa presença pode ser possível, ou não, dependendo da sua configuração específica.
. Seis alunos negaram a possibilidade de acolhida de um deficiente.
A fim de melhor elucidar os motivos alegados pelos jovens para justificar sua afirmativa, negativa ou ressalva com relação à inclusão de um deficiente em sua sala de aula, julgamos importante trazê-los, ao menos em forma de síntese, no Quadro C, a seguir. Ele é composto de três colunas. Na primeira, o leitor encontrará palavras-chave que, posteriormente, serão utilizadas para ver a distribuição das respostas dadas pelos jovens. Na segunda, poderá ler uma descrição sintética da lógica que foi nomeada por meio da palavra e, por fim, na terceira, encontrará alguns trechos das respostas dadas pelos sujeitos, transcritas exatamente como se encontram nos questionários, sem nenhum tipo de alteração ou correção nos aspectos formais da língua portuguesa ou a respeito do seu conteúdo, seguida da indicação, entre parênteses, do grupo que pertence o aluno autor da opinião emitida.
Quadro C: motivos alegados pelos jovens para justificar sua afirmativa, negativa ou ressalva com relação à inclusão de um deficiente em sua sala de aula.
Para dar uma visão mais acurada do conjunto, utilizamo-nos, posteriormente, das palavras-chave encontradas no quadro precedente para quantificar as justificativas dadas pelos jovens à possibilidade ou à impossibilidade da inclusão de deficientes em sua sala de aula (Cf. Quadro D). Esclarecemos que, nesse quadro, os números entre parênteses indicam o número de respostas que cada justificativa obteve.
Com relação às opiniões dos jovens que serviram de base para a elaboração dos Quadros C e D, ressaltamos que elas não são as únicas possíveis, nem determinam que os Grupos 1, 2 e 3 sejam homogêneos na visão que têm dos deficientes e da inclusão escolar destes. Não obstante, pudemos perceber que existe uma certa relação entre a opinião do jovem e a sua experiência prévia ou atual de convivência com deficientes.
Pudemos notar que as justificativas dadas pelos estudantes pertencentes ao Grupo 3, em sua maioria, fazem ressonância à experiência que eles têm ao conviver com deficientes. Isso pode se observar, por exemplo, na afirmativa transcrita no Quadro C “... eles também são gente”, pois ela pode indiciar o fato de que, por meio da convivência com um deficiente, houve uma opacificação de um imaginário preconceituoso em favor do crescimento de uma categoria de pertencimento universal (simbólica).
Paralelamente, a preocupação com o tipo específico de deficiência e suas limitações particulares, bem como o fato de levar em conta a reação específica do grupo entrevistado à presença de um deficiente, pode denotar que os alunos que tiveram convivência mais próxima com deficientes conseguem vê-los em sua subjetividade e não apenas como uma entidade nosológica.
Processo inverso está expresso na afirmação “Um demente mental não poderia estudar conosco pois ele não se adequa neste local e sim em um lugar onde haja outros dele”. O uso de termos lexicais de caráter francamente inadequado e preconceituoso para designar o deficiente “demente mental”; a atribuição da capacidade de prever comportamentos do outro a si próprio e não prever possibilidades de variações “ele não se adequa neste local” e, ainda, o raciocínio bastante explícito a favor da segregação “em um lugar onde haja outros dele” pode estar indiciando que, na falta de experiência de convivência com um deficiente real, o jovem lançou mão de um imaginário monstruoso, povoado de figuras tenebrosas e assustadoras. Aquilo que é o “não-eu” oferece perigo, ele parece estar dizendo.
Visando iniciar o estabelecimento de algumas relações que possam mostrar o imaginário do jovem sobre o deficiente, relacionamos os dados colhidos nas duas partes do questionário e obtivemos o cruzamento registrado no Quadro D, a seguir:
Essa tabela traz um dado particularmente interessante: só responderam que um deficiente não pode estudar em sua sala os alunos do Grupo 2, isto é, aqueles que, tendo tido a oportunidade de vislumbrar a aparência imediata de um deficiente, não aprofundaram o contato de modo que, para além dela, houvesse oportunidade de conhecer uma pessoa. Dessa forma, vale interrogar: quando olham um deficiente, esses jovens conseguem, de fato, ver um outro ou, ainda muito próximos do momento em que, alienando-se a um “eu”, recusaram tudo que poderia vir a desestabilizá-lo?
Para nos aproximarmos um pouco melhor dessa vertente exploratória, analisemos um lapso de escrita (no sentido inaugurado por Freud em 1901), cometido inadvertidamente por um aluno quando, na escrita de seu questionário, tentou justificar porque havia afirmado ser impossível receber um deficiente em sua classe. Tentando completar sua negativa com “na minha classe não tem recursos para um deficiente”, o aluno escreveu: “na minha classe na tem recusos para um deficiente”.
Observam-se, neste excerto, dois fatos que nos interessam. O estudante escreve na em lugar de não sem se dar conta de que realizou o erro. Sabendo que o sujeito cursa o sétimo ano do ensino fundamental, e que demonstra em suas produções ter domínio da escrita, consideramos inadmissível pensarmos nesse erro como uma dificuldade em escrever a palavra “não”, a qual, inclusive, foi escrita corretamente em outros lugares do questionário. Ao que parece, portanto, o sujeito inconscientemente bloqueou a negativa, deixando ver a asserção que melhor correspondia à verdade dos motivos de sua negativa em receber um deficiente.
Na continuidade do enunciado, num primeiro tempo, o aluno escreve corretamente a palavra “recursos”, para, muito curiosamente, em seguida riscar o “r”, vindo a escrever, portanto, a palavra recusos. Ao somarmos os dois lapsos de escrita, teremos como resultado a asserção “na minha classe tem recusos para um deficiente”, o que diz de uma recusa ao deficiente (verdade inconsciente) e não de uma falta de recursos para recebê-lo (resposta racionalizada). Resta interrogar, portanto, a natureza dessa recusa que, denegada, precisa de um lapso de escrita para se perceber.
Projetando os nossos próprios limites em um conveniente receptáculo
Em 1919, Freud escreveu um texto fundamental para auxiliar na compreensão da aversão que os deficientes costumam despertar: “Das Unheimliche”, em português, “O Estranho”. A palavra alemã “unheimliche” não tem uma tradução possível para a língua portuguesa por se tratar, no alemão, tanto de algo que é desconhecido quanto de algo que é familiar e usual. Freud, no artigo, refere-se a algo que era familiar e que, súbita e inexplicavelmente, se torna estrangeiro.
De acordo com essa hipótese, o terror que o sujeito sente ao se deparar com o estranho não deriva de uma fonte externa mas, ao contrário, de algo estranhamente familiar que foi recalcado; porém, não se rende às tentativas do sujeito de livrar-se dele, retornando “disfarçado” em lugares que não oferecem tanto perigo, como filmes de terror, obras de arte, produções do inconsciente etc.
Dada essa consideração preliminar, é importante ressaltar que, via de regra, os sujeitos não se sentem felizes ao encarar seus limites, intransponíveis e inexoráveis, uma vez que estamos todos sujeitos à morte, à passagem do tempo e às necessidades básicas do corpo. Nós, os “normais”, gostaríamos muito de que essas coisas não existissem e, se pudermos, não olhamos para elas. Assim, denegamos o tempo todo nossas pequenas limitações, seja “esquecendo” o horário das refeições, seja prorrogando ao máximo o momento de ir ao banheiro e assim por diante.
Dessa forma, é possível afirmar que na mesma medida que um sujeito desconhece seus próprios limites e busca manter-se ignorante deles, ele precisa de uma “ovelha negra” em que projetá-los: aí entra o deficiente desconhecido, porém imaginarizado. Essa sombra que ninguém vê, trancafiada nos quintais das famílias “de bem” ou das instituições que os mantém convenientemente à margem, torna-se, desse modo, o receptáculo ideal para receber, “como se fossem dele”, traços de um imaginário monstruoso.
Na pesquisa que aqui expusemos, as justificativas dadas à possibilidade ou à impossibilidade de convivência com alunos com algum tipo de deficiência na sala de aula permitem considerar que _ não obstante haver uma boa vontade política _ o sucesso da inclusão escolar encontra-se seriamente prejudicado pelo mecanismo que acabamos de descrever.
Pudemos observar isso de maneira particularmente significativa, no fato de que aqueles que afirmaram que os deficientes não poderiam estudar em sua sala são os alunos que apenas tiveram oportunidade de entrever, de modo superficial, um deficiente.
Nossa reflexão sobre esse assunto encaminha-nos para a seguinte questão: o mero “conhecimento” de um deficiente, sem que seja possível uma convivência, não tornaria a visão de deficiente por demais ameaçadora ao sujeito, por fazê-lo se aproximar de seus conteúdos recalcados que revelam que os não-deficientes são tão vulneráveis quanto os deficientes.
Com base nessa breve pesquisa, pensamos em poder sustentar a hipótese de que, sem a convivência com a qual se possibilita ao sujeito não deficiente uma percepção dos limites e das possibilidades de um deficiente, a tendência é que haja um congelamento da imagem do deficiente nos seus traços específicos que permitam a cada um de nós projetar nele o que julgamos ter de estranho, de anormal, de limitado e de aberrante.
Dessa forma, sugerimos que os processos de inclusão passem por atitudes não alienadas em relação à inclusão e aos deficientes, pela tentativa de discutir cada caso em sua especificidade, buscando proporcionar o contato do grupo que inclui com um sujeito singular, que, como todo e qualquer um, tem vantagens e desvantagens, e não com alguém que teria tido o infortúnio de concentrar todas as desvantagens do mundo, para que os demais não tivessem de arcar com o peso da castração, que, para o bem e para o mal, é a própria condição humana.
Bibliografia
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Endereço para correspondência
Cláudia Alaminos
Rua José Gonçalves, 25, apto 134
05727-250 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3743-8446
E-mail: claudia.alaminos@ajato.com.br
Recebido em 22/10/2005
Aceito em 16/12/2005
Notas
I Fonoaudióloga, mestranda da Faculdade de Educação da USP.
II Lingüista, psicanalista, professora doutora da Faculdade de Educação da USP.