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Imaginário
versão impressa ISSN 1413-666X
Imaginario v.12 n.12 São Paulo jun. 2006
PARTE III
Experiência poética na alquimia do fetiche: deslocando sensualidade e transcendência no poema Beleza de Charles Simic
Poetic experience through the alchemy of the fetish: displacements of sensuality and transcendality in Charles Simic’s poem Beauty
Stephan Baumgärtel
Universidade Federal de Santa Catarina
RESUMO
Por meio de uma análise da retórica do erotismo no poema Beleza de Charles Simic, o presente trabalho discute, no âmbito contemporâneo, a relação entre experiência poética e erotismo como fetichista. Desenvolve uma leitura do fetichismo, além dos limites da psicanálise clinica, como fenômeno que subverte a separação clara entre o mundo transcendental e o mundo cotidiano, bem como e instala um desejo errante que vagueia entre esses dois aspectos da experiência humana. Mostra como o uso que Simic faz em Beleza de uma retórica fetichista situa o poema criticamente, tanto em relação às estratégias de ruptura modernas nos moldes do erotismo de Bataille quanto às cegas e grossas promessas sensuais do mundo mercantil pós-moderno do capitalismo tardio, embora compartilhe com ambos uma celebração do impulso erótico.
Palavras-chave: Poesia americana contemporânea, Fetiche, Erotismo.
ABSTRACT
Analysing the rhetorics of eroticism in Charles Simic’s poem Beauty, this essay discusses within a contemporary context the relation between poetic experience and eroticism as a fetishistic one. It develops a reading of fetishism beyond the confines of clinical psychoanalysis, as a phenomenon that undermines a clear separation between the transcendental and the quotidien aspect of human experience and incites a wandering desire that is constantly on the move between both aspects. It shows how Simic, by using the fetichist rhetorics in this particular way, situates his poem critically in relation to modern strategies of rupture and transgression in the wake of Bataille as well as to the blind and uncouth sensual promises of the post-modern world of late capitalism, although it makes the poem partake in both contexts through a celebration of the erotic impulse.
Keywords: Contemporary american poetry, Fetishism, Eroticism.
“Fui visitar o meu amigo Bob que me disse:
Alcançamos o real ao superar a sedução das imagens.
Fiquei tomado por alegria até me dar conta que
Tal abstinência nunca seria possível para mim”
Charles Simic1
Introdução
A experiência denominada poética pode abranger as mais diversas situações e contextos, mas se constitui por uma distância em respeito às experiências “cotidianas”. Aparentemente, a discrepância ocorre em virtude de uma diferença de qualidade que é fundamentalmente uma diferença estrutural. Em textos literários, manifesta-se como diferença retórica. Usando a chamada retórica poética (rima, ritmo, linguagem figurativa etc.), textos literários juntam o seu material mimético assim que nele se parece abrir um espaço, e com esse espaço uma profunda sensação de que o mundo do texto poético oferece a experiência simbólica de liberdade, de satisfação e de valorização do indivíduo dentro de um contexto maior. É essa sensação de abertura, mais do que qualquer conteúdo específico, que qualifica, a meu ver, uma experiência como poética e um texto como poético.
Para configurar tal abertura, a mímesis do mundo textual tem que tanto incorporar quanto deslocar as estruturas do mundo vivido na realidade social. Essa interação, que é movida pelo diálogo entre o impulso crítico e o utópico na forma artística, atribui as diferentes aberturas às suas características históricas. As estratégias e as finalidades politicamente transformadoras e/ou conservadoras, que textos poéticos aplicam, alinham-se necessariamente à configuração específica da experiência poética. O teor social reside na experiência poética que oferece, como se tal experiência representasse um recurso contra a vida sócio-política.
Quero aproveitar a poesia Beauty do poeta servo-americano Charles Simic para fazer algumas considerações sobre a experiência poética num contexto contemporâneo, e visto, mais especificamente, sob a ótica do desejo sexual. A semelhança estrutural entre uma experiência erótica e poética já foi descrita por Bataille na introdução ao seu livro Erotismo. Uma auto-análise dessas duas experiências pode revelar como momento comum a descentralização e o desvio da atenção do sujeito, daquela focalizada a uma atenção mais flutuante. As experiências eróticas e poéticas constituem uma linha tênue: elas são tão linha, em que o espaço vasto, além do sujeito, e as regulamentações que estruturam e estabelecem o sujeito humano se tocam. A forma como tal contato é esboçado pode ser compreendida como a história da fantasia erótica e poética. Pois, embora o desejo sexual seja uma energia universal, enraizado na biologia dos corpos, sua simbolização no mundo da cultura, das idéias, da linguagem, liga essa energia ao universo social.
Analisar a retórica poética sob o foco do desejo sexual é, atualmente, ainda mais interessante porque a cultura contemporânea parece ter instalada o corpo e seus desejos e sensações como instância central (embora problemática) para julgar a legitimidade das imagens artísticas.2
Se Foucault reconhece o encontro com o que chama uma “Ausência” como objetivo característico da sexualidade moderna,3 reconhecemos nas imagens eróticas de Simic um objetivo diferente, melhor descrito talvez como um encontro (sempre adiado, ou apenas parcialmente sucedido) com uma presença inerentemente polimorfa. Em vez de procurar chegar, por meio de um gesto de ruptura ou de negação, a uma posição além do estruturado espaço sócio-simbólico (em direção a um campo em que não há mais símbolos e palavras), Simic tenta desestruturar e hibridizar tal espaço, vestindo os seus elementos (símbolos, palavras) abertamente com qualidades de um fetiche,4 produzindo, assim, signos ambíguos que revelam um fluxo desestabilizador de energia do campo não-simbólico (além do sujeito e provendo do Outro) para o campo simbólico, e vice-versa. Tal fluxo confunde a estabilidade do sujeito eu-observador, bem como o status do objeto fetichizado.
Analisar a retórica desse fluxo erótico na poesia Beleza, situá-la no contexto de usos políticos do erotismo chamados modernos e pós-modernos, é o objetivo central deste ensaio. Quero mostrar como o uso que Simic faz em Beleza de uma retórica fetichista situa o poema criticamente, tanto em relação às estratégias de ruptura modernas nos moldes do erotismo de Bataille quanto às cegas e grossas promessas sensuais do mundo pós-moderno do capitalismo tardio, embora compartilhe com ambos uma celebração do impulso erótico.
A alquimia do fetiche
Em extratos dos seus Notebooks 1987-1993, publicados na coletânea The Unemployed Fortune-Teller. Essays and Memoirs, Simic esboça a sua concepção da experiência e prática poética. Menciona especialmente a necessidade e o prazer de invocar a presença do que ele chama “o Outro”, de medir a distância entre o eu e o Outro, de avaliar o mundo social à luz desse desejo pelo Outro (101-114). Embora Simic não defina o significado desse Outro (com letra maiúscula), o uso que ele faz do termo remete a um espaço indefinido e atemporal de plenitude que corresponde, no sujeito, à experiência de uma carência existencial, semelhante ao Outro de Lacan como posição simbólica central com a qual o eu-sujeito quer fundir-se em vão.5 Simic concede que ninguém pode definir o que esse Outro é, mas afirma que se pode descrever como está sendo experimentado no presente humano. O poético nas poesias de Simic pode ser compreendido como uma expressão retórica desse encontro. Diz Simic: “O presente é o único lugar onde experimentamos o eterno. […] Na sua essência, uma poesia lírica é sobre o tempo parado” (SIMIC, 2002: 44)6. Essa parada do tempo cotidiano constitui a abertura para o eterno entrar na consciência humana – como poético e como potência inerente ao mundo humano.
Se entendemos que para Simic a linguagem poética captura o encontro com tal espaço numa forma inevitavelmente humana, começamos a ficar atentos à forma como ele mistura na sua poesia o banal com o sublime, o sentimento íntimo com uma observação social, e, com isso, configura e evoca o que ele chama de “o encontro com o Outro” como uma estrutura híbrida, impura e inacabada, aberta para o enigmático Outro, bem como agonizante na sua ligação necessária com o contexto sócio-histórico.
Transferida para o interesse erótico, a tentativa de fazer o tempo parar aparece como a antiga problemática de como descrever uma experiência erótica desestabilizadora com palavras socialmente estabelecidas. A problemática estética remete a um problema ético: como descrever (e, portanto, fixar e controlar) um objeto ou uma pessoa que mostrou a sua capacidade de subjugar o eu lírico e deslocá-la/lo para um campo fora de si. Como pode um eu lírico inventar e fixar uma retórica erótica que subverte o eu observador, bem como o colocar num estado liminal entre discurso (a linguagem como experiência inteligível e tradicional, convenção mecanizada) e êxtase (experiência única e enigmática, não contornável pela linguagem)? Que forma retórica poderia oferecer tal prazer num contexto contemporâneo?
Vejamos, por exemplo, a tradição problemática do blazon renacentista. Desmembra retoricamente a pessoa (feminina) amada para poder fixá-la como ser idealizado, bem como exaltar o desejo e a paixão narcisista do eu lírico (masculino). Reifica e fetichiza as aparências femininas. Como contraponto, o soneto 130 de Shakespeare ironiza tal convencionalização da linguagem poética, o seu hábito de idealizar mecanicamente as partes do corpo feminino.7 Com a ascenção do amor romántico na cultura ocidental, estruturas fetichistas tornaram-se marginalizadas.
Atualmente, num contexto sócio-histórico marcado pela erotização dos objetos de consumo, o olhar fetichizante tornou-se socialmente aceitável. Se o soneto 130 de Shakespeare localiza o amor como uma emoção enigmática além do impulso reificador e fetichizante, Simic encontra a energia subversiva nesse mesmo impulso. Vejamos, como exemplo, o poema Beleza que – não somente pelo assunto, mas também pelo fato de ser composto por 14 linhas – pode ser associado com tal tradição do blazon no soneto.
“Beleza
Estou te dizendo, isso era a coisa real, a mesma
que eles expulsaram da Estética, dizendo-lhe que não existia!
Ah, tu, simples, indefinível, inefável, e assim por diante.
Gosto do teu avental negro, e teu novo penteado de menina
chinesa. Gosto também de sonecas à tarde, de vinho branco
bem fresco e das brigas dos filósofos.
Quanta felicidade e alegria nos dás cada vez que
passas pelo balcão para pegar nosso dinheiro, e nós sentimos
o bafejo da tua respiração. Tinhas mastigado
bolachas de gergelim e salame com alho, criatura divina!
Quando ouvi o velho homem, Plotino, dizer algo
sobre “cada alma querendo te possuir”, lançei-lhe
um olhar enviezado e corri para casa para desembrulhar e beijar
o presunto rosa que fatiaste para mim com tua própria mão.8 “
A poesia introduz um eu lírico masculino que confidencia o encontro com a beleza como “coisa real”, expulsa da estética (transformando-a em estética pós-transcendental e, ultimamente, sociológica, podemos deduzir): a Beleza com B maiúsculo, manifestação de um princípio maior do que o eu observador. Paradoxalmente, depois de afirmar sua existência, a poesia a representa na aparência, nos atributos e nos atos de uma simples vendedora de uma loja de petiscos. Na sua fascinação, o eu lírico a eleva a uma posição de criatura divina. No entanto, o tom paródico dessas linhas endeusadoras, expresso, por exemplo, na justaposição dos gostos e prazeres heterogêneos do eu lírico, subverte uma leitura unicamente idealista desse processo endeusador e prepara o leitor para o fim peculiar quando o freguês consome a sua obsessão em casa, num ato claramente fetichista. A atração pelo avental e pelo penteado já introduziu uma estrutura fetichista: algo inefável materializa-se num objeto cotidiano e banal, e o objeto adquire qualidades mágicas.
Apesar da alusão a atributos transcendentais e espirituais (expressa, por exemplo, pelo uso dos adjetivos indefinível e inefável, pela alusão a uma estética antiga que incluía a Beleza como atributo da Divindade e da Perfeição, reforçada posteriormente pela incorporação do comentário de Plotino), Beleza está longe de afirmar como último objeto do desejo a Beleza pura e transcendental, apreciável somente por um julgamento desinteressado e “puro”, como afirmou Kant.9
Por um lado, o desejo do eu lírico reconhece que uma parte do poder sedutor da bela vendedora consiste na capacidade de incorporar a transcendência e de despertar uma certa sensibilidade por ela (veja linhas 3 e 10). Por outro lado, mesmo que tal “coisa real” aponte para um aspecto espiritual da sensualidade humana, a mulher está sendo desejada por um olhar do eu lírico que não limita os prazeres aos espirituais, como indica o olhar feio para o filósofo neo-platônico Plotino. A brincadeira com a verbo “possuir” qualifica bem a oscilação do desejo entre possuir a bela vendedora e possuir a Beleza como qualidade da própria alma. Logo, o olhar feio para Plotino oscila igualmente entre desprezo e ciúmes.
Qualidades transcendentais misturam-se, portanto, com atitudes sensuais, e o poema dissolve a possibilidade de distinguir claramente entre os dois contextos. O desejo vagueia entre ambos e tal movimento estabelece uma experiência híbrida: a transcendência e o prazer erótico se materializam no mesmo objeto. Esse é transcendental e sexual, objeto de consumo sensual e signo de uma realidade espiritual na existência humana.
Mais ainda, não só a fonte do prazer é ambígua (humana e divina), o objeto do desejo oscila constantemente em decorrência disso: é a comida tocada pela mão da bela vendedora, a vendedora mesmo, o penteado e o avental, as brigas dos filósofos e o inefável Divino. Assim, o leitor dificilmente pode limitar a um único objeto a experiência da coisa real. A qual objeto se refere o pronome “isso” da primeira linha, então? Pode ser limitado unicamente a um conceito de beleza? Ou será que a experiência da coisa real e inefável se realiza necessariamente na incapacidade de fixar o desejo, de priorizar claramente uma manifestação, um objeto só? Nessas condições, realiza-se no ato de escrita e de leitura. Ambos criam constantemente um desejo móvel e, nesse processo, reside a experiência da coisa real e inefável.
A justaposição dos vários objetos de desejo sugere, então, que no centro do poema não está um único objeto; apesar do título, nem a multiplicidade das formas que tal conceito de beleza pode assumir, mas a interação entre o conceito único e sua manifestação múltipla na percepção e na memória do eu lírico. Em outras palavras, se o objeto de desejo é a beleza como conceito do divino e como realidade sensual profana, então é um “conceito movediço” e uma “realidade metamórfica”. Ambos manifestam-se em uma variedade de objetos e situações que não só representam ou aludem a esse conceito do divino, mas também o incorporam. Constituem, então, uma espécie de fetichismo dinâmico: criam e recriam a acessibilidade do divino neste mundo. É um fetichismo que difere substancialmente dos padrões do fetichismo clínico da psicanálise.
Para valorizar tal movimento sob o termo fetichista, é importante reconhecer que o fetichista valoriza o objeto como acesso a uma situação cujo valor reside numa fantasia: o objeto particular remete à promessa de uma fantasia de plenitude; ele incorpora e materializa tal fantasia. A fantasia original na interpretação freudiana é a afirmação de um pênis materno do qual o fetiche representaria um substituto, portanto, um reconhecimento da sua perda e negação.10
Enquanto a abordagem freudiana postula uma origem traumática para o fetiche – o fetiche como defesa contra a fantasia da mãe castrada e da contínua ameaça paterna de castrar o próprio filho –, outros críticos realçam a estrutura do processo, o efeito produtivo do impulso fetichizante. Mais do que constituir um objeto substituto e uma marca de ausência, o processo fetichizante serve como exemplo fundamental da interação criativa entre desejo e imaginação. Tal interpretação ressalta que, já na concepção freudiana, o objeto original era um objeto fantasiado, e todo o processo de fetichização é um processo imaginário de inventar fantasias de plenitude para substituir perdas reais ou imaginadas, num processo incessante sem começo e fim.11 Dessa forma, tal dinâmica do fetichismo “que mobiliza a imaginação como desejo” (Bersani e Dutoit, 1985: 71) pode servir como modelo para um desejo vagante, livre do medo de castração, porque reconhece tal castração como fantasmagórica, pois o pênis materno (ou o phallus Lacaniano) desde já era um objeto imaginário que nunca ninguém possuía.12 Assim, o impulso fetichista nega um mundo que separa o real (castrado) da fantasia (plena), e reconhece que o prazer que um objeto oferece deve-se tanto às suas qualidades como às fantasias do observador que projeta a sua valorização sobre tais qualidades. O fetichista seguidor desse desejo vagante encontra, incessantemente, possibilidades para seus projeções. Cria e valoriza o mundo real e os objetos particulares na medida em que oferecem satisfações ao desejo pela fantasia de plenitude.
Conforme descrito anteriormente, no poema Beleza, os objetos e as situações fetichizados instalam uma cadeia de objetos que trazem para este mundo real algo imaginário e fugaz no sistema de significações, bem no sentido de Lacan: a dupla face da “coisa real” como coisa e como indefinível e inefável Outro.13 Nenhum objeto específico consegue manifestar-se continuamente como phallus, nem mulher, nem penteado, nem vinho fresco, e, conseqüentemente, ninguém consegue fixar ou controlar o jogo da fantasia e do desejo. Como dizem Bersani e Dutoit, a impossibilidade de fixar o phallus inicia o jogo do desejo móvel. Podemos dizer que, nesse poema, Simic sugere um fetichista que prolifera seus fetiches e deixa de insistir numa relação fixa entre um objeto de desejo predileto e o phallus.14 Melhor dizer, então, que o fato de que a paixão pela inefável beleza pode ser despertada pelos mais diversos objetos e percepções sensuais constitui no poema um mundo fetichista de prazeres polimorfos que confundem a hierarquia freudiana (e burguesa) do desenvolvimento sexual humano e a distinção entre gratificação real e substituinte. O prazer real na coisa real se cria-se e dissolve-se numa infinita cadeia metonímica de prazeres significantes.
Da mobilidade do desejo resulta sua produtividade artística, a sua configuração como algo retoricamente construído. O poema constitui-se assim ao sublinhar, já na primeira linha, a existência da experiência como efeito de uma confissão retórica: “Estou te dizendo”. O eu lírico confidencia uma experiência ao leitor15 e, ao relatar tal experiência, refere-se à coisa real, mas também a cria ao escrever o poema. A experiência da coisa real não existe independentemente do desejo retórico de criá-la. Tal retórica fetichista estabelece poeticamente a leitura como ato erótico.
Essa retórica parece-me o meio que Simic inventou para seguir a advertência de Wallace Stevens que na poesia a transcendência precisa de uma base na experiência e, assim, dá forma ao chamado encontro entre mundano e transcendental.16 Num ensaio sobre o desenhista Sigmund Abeles, Simic escreveu: “A arte almeja o Outro. Obscurece a distinção entre o humano e o divino e revela a conexão secreta entre a imaginação religiosa e o erotismo, tornando divino o que é mortal e desta terra.”17 A contemporaneidade da poesia de Simic consiste na forma fetichista que encontrou para revelar tal conexão: o divino manifesta-se no profano, objetos supostamente banais oferecem uma atração – e assim um acesso – ao “prazer real” e divino. Neste processo, tanto imaginário quanto sensual, reside o potencial alquímico do fetiche.
Exatamente a estrutura abertamente fetichista com a sua dupla face de sensibilidade pela transcendência e a sua fascinação pela sensualidade mundana permite evitar que a intenção de tornar divino o que é mortal resulte num romantismo idealista e na fixação conservadora. O poema brinca com um fetichista que brinca com o fetichismo freudiano. Simic subverte ironicamente a tradição freudiana e anti-freudiana quando baseia o ápice do entusiasmo (criatura divina!) e o momento mais dialógico do encontro no ato mercantil de comprar as especiarias, assim como em um bafejo da vendedora. É óbvio que brinca aqui com a tradicional idealização masculina que divide a imagem feminina em santa e prostituta. Ridiculariza e ironiza ambas, e, com isso, esse olhar masculino. Nessa justaposição, o impulso fetichizante reconhece-se como desejo que tanto perde o alvo quanto o mantém como imagem real: o presunto adquirido manifesta tanto a presença bela como mercantil da vendedora “divina”, afirmação e perda da Beleza e do amor romântico sem que tal ambivalência destruísse o prazer em fantasiar o encontro com o Outro sob essas condições.
A troca mercantil e a consumação feliz desta paixão num ato fetichista (desembrulhar e beijar o presunto rosa que fatiastes) não só impossibilita uma noção de beleza como algo puro, de perfeição sublime, mas lança um olhar crítico sobre supostas verdades naturais no desejo erótico. O poema nega-se a traçar prazeres mais “verdadeiros” do que aquele prazer fetichista de consumir com olhos, nariz, boca, e nega-se igualmente a isolar tal impulso da realidade social quando faz o eu lírico confessar ter pago pela consumação, embora in efigie, das qualidades da vendedora.18 Mas se nega também a separar tal desejo corporal do desejo pelo divino e transcendente.
Podemos perceber como em Beleza um desejo errante, criando e subvertendo os seus fetiches, cria um diálogo instável e impuro entre duas esferas (humano – divino; individual e romântico – social e mercantil) e assim preserva a si. Mediante de tal diálogo, o poema evita o fetichismo clínico, isto é, a fixação neurótica, bem como o fetichismo idealista, isto é a fixação essencialista e metafísica. O realce retórico da distância entre o Outro e o humano evita que os fetiches se tornem obsessões, imagens totalizantes. O prazer nesse jogo irônico afirma um prazer do desejo em si próprio, em manter-se como diálogo e risco, como manipulação humana do devir divino. É uma manipulação que reconhece a sua própria limitação – o presunto oferece o prazer da vendedora, mas não é a vendedora, e a vendedora oferece o prazer da coisa real, no entanto, a incorpora como inefável –, mas nesse reconhecimento conhece a sua justificativa e força eterna.
Podemos dizer que Simic, num gesto quase tântrico, alude ao enigma da transubstanciação essa fantasia alquímica religiosa mais inintelígivel, mas por meio de um processo que talvez seja descrito mais adequadamente como para-religioso ou para-metafísico: mantendo a metafísica e a religião como contexto geral, mas subvertendo e dinamizando as estruturas do seu funcionamento.19 A valorização do potencial alquímico do fetiche não descarta atitudes críticas perante certos tipos de fetiche. O valor do fetiche varia na medida em que apresenta tal alquimia – revelando a sua dupla face sem culpa e com uma dose de ironia para com a necessidade do ser humano de criar e desejar imagens de uma plenitude inefável.
O potencial político da alquimia do fetiche
Construir um desejo que vaga por uma série de elementos fetichizados, como Simic faz no poema Beleza, propõe uma retórica e sexualidade que subvertem a priorização do momento de clímax. O poema mantém o clímax, o absoluto, o orgasmo, presente na sua textura, mas não os focaliza de uma forma linear como objetivo principal do impulso erótico. Melhor dizer que tece uma rede de prazeres cujos nós são feitos de dois fios, desejo pelo divino e prazer com o mundano. Ao entrelaçar os fios, o eu lírico toca em prazeres considerados “a coisa real” ou a “coisa banal” de tal forma que não pode mais distinguir entre eles. O poema oferece, por meio de uma leitura identificadora, ao(à) leitor(a) recuperar para si a amplitude polimorfa de seus desejos e prazeres.20 Ironizar e subverter a obsessão com um clímax, bem como confundir a delimitação entre coisas e objetos supostamente banais e divinos, marca uma clara distância entre o trabalho poético de Simic e poesias eróticas modernas.21
Tal distância fica evidente quando se compara a retórica do poema Beleza com a retórica erótica de Georges Bataille, cuja fascinação com a violência como força redentora revela uma cumplicidade com a figura da transgressão tão embutida na cultura e contracultura moderna, pois em tal violência desaparece o peso do mundo ambivalente, das limitações impostas pela ambivalência inerente ao mundo dos seres humanos. 22
O erotismo fetichista de Simic não transgride violentamente o sistema da ordem social e simbólica. Aponta para o inefável, mas não para fazer o palpável mundo dos objetos e parceiros eróticos desaparecer em tal desejo, como sublinha Bataille quando declara que “cada forma do erotismo […] conduz à indistinção, à fusão dos objetos distintos. Ele nos conduz [como seres descontínuos] à eternidade, à morte, e pela morte, à continuidade.”23 O que importa nessa citação não é a direção imaginária do impulso erótico, mas a forma de valorizar o ato erótico, o sentimento de continuidade, unicamente sob a ótica da fusão, isto é, da experiência orgástica. A introdução ao O erotismo, na qual, segundo o próprio autor, estão concentradas todas as teses do livro, vincula tal ótica várias vezes com a violência: “Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro do jogo”.24 Daí a centralidade do assassinato como ato transgressivo na obra erótica de Bataille.25
A experiência erótica em Bataille é tanto mais transgressora e autêntica quanto maior é sua capacidade de viabilizar tal encontro com o além da descontinuidade. A aniquilação dos parceiros implica uma destruição das estruturas da subjetividade, o que instaura a lógica da transgressão.26 Impressiona na concepção de Bataille a lucidez com que a racionalidade, a descontinuidade, ergue, no campo erótico, o palco para os seus impulsos de autodestruição, expressos na violência, na morte e no sacrifício como figuras de superação do estado descontínuo do ser. Estruturalmente, o pensamento de Bataille mostra-se herdeiro da tradição platônica para a qual, como observa Otávio Paz em A dupla chama, o outro desaparece, ou melhor, só existe como meio para chegar à essência absoluta.27
De maneira interessante, Bataille alinha sua concepção do erotismo com a poesia moderna francesa, especificamente com Rimbaud. Cita um verso dele para esclarecer que o objetivo da poesia é o mesmo do erotismo. Poderia ter citado igualmente outros representantes da poesia moderna do século XX, como T.S. Eliot, Garcia Lorca, Paul Eluard ou Guiseppe Ungaretti. A linguagem hermética dessa poesia, configurada por metáforas absolutas, imagens sinestésicas, parataxe de imagens impressionistas, pode ser interpretada como tentativa de dissolver o sujeito e seu aparelho de percepção comum. A liberdade artística e o prazer do contato com o absoluto pressupõem um ato de ruptura total com o sistema simbólico social.28
A poesia erótica de Simic, com a sua apresentação do desejo como impulso fetichizante, não mostra tal desejo pela fusão dos distintos, e apenas ironicamente (indefinível, inefável, e assim por diante) uma nostalgia pela continuidade que Bataille assume como traço central que “comanda […] as formas do erotismo.” 29Ao contrário, caracteriza-se por uma distância irônica diante do violento erotismo existencial moderno nos moldes de Georges Bataille, bem como dos impulsos abstratos da tradição platônica, ambos exemplos de uma profunda insatisfação com o mundo dos corpos e objetos reais.
A tensão libertadora entre profano e sagrado, a momentânea dissolução de limites claros no encontro erótico, a experiência erótica como experiência que excede as características do eu racional, informam, sem dúvida, as poesias de Simic. No entanto, o encontro erótico não culmina numa transgressão aniquiladora ou numa abstração unificante. Antes, Simic mostra tal encontro como uma seqüência de momentos disparados e simultaneidades híbridas: a face dinâmica e ambígua do fetichismo. O prazer encontra-se no movimento do desejo de um objeto a outro, e também na experiência como cada objeto se manifesta como “a coisa real”, e simultaneamente como elemento parcial e mundano.
A diferença retórica com a poesia moderna implica éticas diferentes. A ética na estética híbrida de Simic é uma que coloca o indivíduo em uma posição de tensão com a tradição, os valores sociais, o objeto de desejo, mas não acima da tradição. Recusa a entregar-se à fascinação moderna pela violência, à destruição da estrutura fechada, como ato supostamente libertador, sem, por isso, reprimir a existência do desejo pela experiência do inefável. A poética e o erotismo de Simic mantêm-se distantes dos violentos impulsos totalizadores da ética e da política modernas.
Se é óbvia a posição crítica do poema para com um erotismo violento moderno, a relação com o mundo chamado pós-moderno, o mundo do capitalismo tardio de consumo, é mais problemática. A retórica fetichista e sua celebração dos sentidos e seus prazeres alinham o poema Beleza, no mínimo superficialmente, às promessas da cultura de consumo, da cultura de massas. A construção de um desejo errante que valoriza a mobilidade produtiva contra a procura por uma plenitude perdida, sem dúvida, constrói uma direção para o desejo que celebra o mundo do consumo. Em ambos os contextos, o fetiche apresenta-se como mercadoria.30 A grande diferença, no entanto, entre o fetiche no sentido de Marx e o fetiche erótico consiste no fato de que o fetiche marxista esconde a relação social, enquanto o fetiche erótico da poesia Beleza mantém a sua capacidade de referência. O fetiche marxista enquanto objeto de consumo, para poder manter sua promessa de satisfação, tem que existir fora do tecido social como objeto mágico isolado, enquanto o fetiche erótico, no uso que Simic faz dele, abertamente, marca a sua relação com um contexto que podemos chamar (surpreendentemente, talvez) o processo da sua produção: corrí para casa para desembrulhar e beijar/o presunto rosa que fatiaste para mim com tua própria mão. Atrás do objeto, mantém-se visível uma pessoa que transfere as suas qualidades para ele. Tal relação remete ao mundo pré-capitalista dos artesãos, mas não ao mundo anônimo de objetos industrializados.
O fetiche híbrido de Simic abraça o mundo sensual, mas na medida em que oferece o acesso à “coisa real”. O seu referente é essa fantasia de plenitude, o encontro fantasiado com o Outro, mediado por um ser humano que produz o fetiche, não o trabalho alienado como processo da sua produção. Portanto, as campanhas de publicidade têm que fazer de tudo para oferecer o produto sem as marcas sociais das condições da sua produção, ou apresentar tais condições como expressão de um valor superior, reprimindo os seus aspectos traumáticos. O fetiche no poema de Simic não resolve tal tensão, mas a expõe abertamente. Sugere que o objeto de consumo – como fetiche – somente pode adquirir o seu pleno valor, embora um valor limitado, ao fazer transluzir o trabalho social da sua produção como “a coisa real”, da forma como o presunto traduz o eu lírico à bela vendedora. O fetiche erótico de Simic critica o fetiche econômico do sistema capitalista. E a experiência erótico-poética marca a distância entre a realidade sócio-econômica e o sonho dos prazeres prometidos por seu fetiche principal, a mercadoria de consumo.
A configuração híbrida do fetiche em Beleza marca uma posição de crítica solidária para com o mundo pós-moderno. Solidária, pois abraça o impulso fetichizador e não demoniza o mundo do consumo. Mas crítico, porque não aceita criar um valor de troca independentemente da pessoa que produziu o objeto a ser trocado, da situação e do contexto em que tal objeto está sendo consumido. Com uma variação baseada em Adorno, posso dizer que o teor poético do fetiche, nas mãos de Charles Simic, mostra-se indissociável do teor social.31
CODA
“O ouro falso é aceito somente porque o
Ouro verdadeiro existe.”
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Paz, Octavio. A Dupla Chama. Amor e Erotismo, Trad. Wladir Dupont São Paulo: Editora Siciliano, 2001. [ Links ]
Endereço para correspondência
Stephan Arnulf Baumgärtel
Universidade Federal de Santa Catarina
Depto. de Letras e Línguas Estrangeiras
88040-900 Florianópolis, SC
E-mail: stephan@cce.ufsc.br
Recebido em 08/09/2005
Aceito em 12/09/2005
Notas
1 I went to see my friend Bob, who said to me: / We reach the real by overcoming the seduction of images./ I was overjoyed, until I realized / Such abstinence will never be possible for me. (Excerpt from the poem “A letter”, SIMIC, 2003: 22).
2 O enfoque no corpo funciona tanto como lugar para criticar o culto à autenticidade da natureza, por exemplo em discussões do cyborg (Haraway), quanto exemplo para subverter a suposta objetividade e universalidade de um pensamento racional. O corpo humano, com seus desejos construídos biologica, cultural e espiritualmente, manifesta a inescapável existência híbrida do ser humano, uma tensão que a cultura moderna tentava reprimir quase incansavelmente.
3 “Há, certamente, uma sexualidade moderna: aquela que, sustentando sobre si mesma e superficialmente o discurso de uma animalidade natural e sólida, se dirige obscuramente à Ausência.” (FOUCAULT, 2001: 29) Refere-se à ausência de Deus como ausência de um último princípio regulador de transgressões, e, conseqüentemente, o início de um progresso infinito de atos transgressivos.
4 Tanto para Freud como para Lacan, o fetiche é um símbolo híbrido, metáfora/signo e metonimia/objeto, que reconhece e igualmente desmente a castração simbólica como fato irreduzível. Funciona que nem um suporte que permite ao desejo do sujeito projetar para dentro deste mundo algo que se percebeu necessariamente como além dele. Um objeto perfeito e, ao mesmo tempo, um objeto de substituição. Seguindo essa direção, sugerimos que Simic se aproveita dessa contradição inerente no fetiche para mostrar como tudo pode ser investido com a energia erótica fetichista. O resultado, como vamos ver, é um processo de transubstançiação de objetos cotidianos, até banais, no campo erótico.
5 Daí, a dupla sensação de gozo e angústia perante essa posição imaginária. Veja por exemplo: “the enigmatic Other, the abiding mystery of that which we are not, the awe and terror of that vision which the pencil and the pastel labor to make visible to us all. There’s an element of transgression, voyeurism, eroticism, and even blasphemy in that“ (SIMIC, 2002:116) [o enigmático Outro, o permanente mistério daquilo que não somos, a veneração e o terror daquela visão que o pincel e o lápis-de-cor esforçam-se para tornar visível para nós todos. Há um elemento de transgressão, de voyeurismo, de erotismo e até blasfêmia nisso.] Esses elementos acabam marcando a linguagem poética de Simic. A descrição dele também remete à ideia da ruptura do simbólico por forças pré-lingüísticas, conforme elaborado por Julia Kristeva em Revolution in Poetic Language.
6 “The present is the only place where we experience the eternal. […] In its essence a lyric poem is about time stopped.”
7 Citando, critica e subversivamente, a convenção, o soneto 130 consegue preservar a vividez e singularidade de um momento sentimental comovente que seria fixado e apagado, em outro caso, pela banalidade estática da linguagem convencionalizada. Reconhece, mas logo subverte o interesse narcisista e dominador do observador masculino em sua amada. Ou, em outras palavras, o soneto seduz o leitor masculino a compartilhar os valores tradicionais do blazon, para depois afirmar o valor superior de um amor que excede tal sistema.
8 Beauty. I´m telling you, this was the real thing, the same one they kicked out of Aesthetics, told her she didn´t exist! O you simple, indefinable, ineffable, and so forth. I like your black apron, and your new Chinese girl´s hairdo. I also like naps in the afternoon, well-chilled white wine, and the squabbling of philosophers. What joy and happiness you give us each time you reach over the counter to take our money, so we catch a whiff of your breath. You´ve been chewing on sesame crackers and garlic salami, divine creature! When I heard the old man, Plotinus, say something about “every soul wanting to possess you” I gave him a dirty look, and rushed home to unwrap and kiss the pink ham you sliced for me with your own hand. (Simic, 1992: 57). A tradução Beleza é de minha autoria. Agradeço a José Roberto O’Shea pelo esclarecimento de algumas dúvidas.
9 Por isso, os elementos de avental, penteado, bafejo etc. não são símbolos de uma realidade maior, mas a sua concretização.
10 No contexto deste ensaio, não interessa a legitimidade do fantasiado pênis materno como fetiche original, mas a sua função como símbolo de plenitude.
11 Veja, entre outros, Apter, Bersani e Dutoit, Fernbach.
12 Como mencionado anteriormente, essa interpretação do fetichismo contradiz o fetichismo clínico. Bersani e Dutoit formulam sua versão do fetichismo assim: “O fetichismo […] cria um intervalo entre o novo objeto de desejo e um primeiro objeto não identificável, e assim pode ser o modelo para todas as formações substituintes nas quais o primeiro termo da equação é perdido, ou não localizável, e de qualquer forma ultimamente não-importante” (71). [“[F]etishism depends on an ambiguous negation of the real, a negation which mobiliyes the desiring imagination.This negation creates an interval between the new object of desire and an unidentifiable first object, and as such it may be the model for all substitutive formations in which the first term of the equation is lost, or unlocatable, and in any case unimportant.”]. Conseqüentemente, concluem que o “erro” do fetichista clínico consiste em não aceitar suficientemente o fato imaginário da castração. Em vez de brincar com a liberdade do desejo móvel, fixa tal desejo num único objeto.
13 Lacan mesmo, no Seminário IV, falando sobre as relações com o objeto desejado, iguala o fetiche a um véu, com que o ser humano encarna, faz um ídolo do seu sentimento deste nada que está além do objeto de amor. Reconhecer este espaço além como nada, mas insistir na necessidade de manifestá-lo, dinamiza o jogo do fetiche e o coloca como modelo fundamental da manifestação dos desejos.
14 Veja também Apter, descrevendo o efeito destabilizador da criação imaginária do fetiche: “O phallus imaginário, venerado em outro lugar, ultimamente chega a ocupar nenhum lugar fixo. [Isso] acaba por subverter a pressuposição de uma forma fálica original, ou Ur-form.” [the imaginary phallus, venerated elsewhere, ultimately comes to occupy no fixed place at all. [This] ultimately undermines the presupposition of a phallic ur-form] (4).
15 Uso o gênero masculino ao desconfiar que o encanto com o poema depende de uma leitura identificadora, uma relação de cumplicidade entre leitor e eu lírico, que, a meu ver, são dois personagens masculinos.
16 Simic cita tal advertência de Stevens num ensaio sobre James Merrill (Metaphysician, 74). Stevens escreveu: “The imagination loses vitality as it ceases to adhere to what is real. When it adheres to the unreal and intensifies what is unreal, while its first effect may be extraordinary, the effect is the maximum effect that it will ever have.” Em outras palavras, Stevens e Simic posicionam-se contra um simbolismo hermético.
17 “Art covets the Other. It blurs the distinction between the human and the divine and reveals the secret link of religious imagination to eroticism by making divinities of what is mortal and of this earth” (Fortune, 116-117).
18 Pode-se notar que o eu lírico, de fato, não consome o corpo da vendedora. Duas leituras parecem-me possíveis. A primeira, que tal fato é necessário para continuar o jogo do desejo vagante e da imaginação. A consumação iria parar tal jogo, ou por satisfazer ou por frustrá-lo completamente. Ou a segunda, que não existe diferença fundamental entre o fato de ter consumido ou não o corpo da vendedora, pois cada consumação marca só um intervalo no movimento do desejo vagante. A consumação iminente do presunto prefigura a satisfação oferecida pela consumação do corpo. Simic, me parece, abre ambas as possibilidades, mas consegue reconciliá-las de uma forma interessante. Subverte a noção de uma satisfação ou frustração completa ao afirmar que qualquer consumação é essencialmente fetichista. Nunca se consome a coisa real, embora ela esteja imaginariamente presente no evento da consumação - enigma da transubstanciação.
19 Uso o prefixo “para” no sentido que tem em “paramilitar”. Marca uma estrutura de mera semelhança funcional, mas não de organização interna e de ação.
20 O poema direciona-se, em primeiro lugar, a um leitor masculino, mas como constrói o desejo como função da fantasia, acredito que o desejo errante é aberto a ambos sexos.
21 Essa marca é perceptível, por exemplo, no uso da linguagem culinária para expressar a relação do eu lírico tanto com emoções quanto com conceitos mais abstratos - um dos traços mais característicos do trabalho poético de Simic.
22 Sobre modernidade e ambivalência, veja principalmente Zygmunt Bauman.
23 Erotismo, p.23
24 Erotismo, p.17
25 Na minha visão, Bataille percebeu esse perigo de uma forma teórica no texto “A Estrutura Psicológica do Fascismo”, em que elabora o conceito de uma heterogeneidade imperativa, associada ao movimento fascista. Uma fascinação pelo excesso inerente a homogeneidade. Apesar da condenação teórica dessa heterogeneidade, as histórias eróticas de Bataille são repletas dessa fascinação, como se tratassem de narrativas exorcistas.
26 Mas como conseguir tal fusão de seres descontínuos, como dissolver-se nesse monólogo vazio, ou melhor, neste silêncio metafísico? Double-bind da transgressão racional que somente consegue destruir os limites num processo ilimitado, mas não esvaziar o eu da sua noção de limites. Isto é o “dirigir-se” à Ausência à qual Foucault se refere.
27 Paz, Octavio, 2001: 187.
28 Veja nesse aspecto especialmente Friedrich, 1956.
29 Erotismo, p.15.
30 Uma tentativa de sistematizar a relação entre concepções Freudianas e Marxistas do fetiche encontra-se na introdução de Fetishism and Curiosity de Laura Mulvey.
31 Em sua Palestra sobre lírica e sociedade, Adorno mostra de uma forma exemplar como a lírica reage em seus traços formais ao estado da sociedade. Postula: “[A] universalidade do teor lírico […] é essencialmente social. […] Conceitos sociais não devem ser trazidos de fora às composições líricas, mas sim devem surgir da rigorosa intuição delas mesmas” (67).