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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.5 n.2 Brasília  1985

 

EM DEBATE

 

Pesquisa e ação política, profissional, científica...

 

 

 

Uma das atividades da XV Reunião Anual de Psicologia, realizada em Ribeirão Preto, SP, entre 23 e 27 de outubro de 1985, foi a mesa-redonda em que se discutiu PESQUISA E AÇÃO. Esse evento foi patrocinado pela Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto e pelo Conselho Federal de Psicologia, tendo como debatedores os professores João Cláudio Todorov, da Universidade de Brasília, e Isaías Pessotti, da Universidade de São Paulo (campus de Ribeirão Preto), além de Jairo Eduardo Borges Andrade, pesquisador em Recursos Humanos na EMBRAPA — Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária — e uma plateia composta por estudantes e professores de Psicologia de várias instituições.

 

PESQUISA PROFISSIONAL E AÇÃO POLÍTICA

João Cláudio Todorov: Nunca defendi uma visão idealista de ciência. O comportamento do cientista enquanto produz conhecimento, para um bom behaviorista, é comportamento como qualquer outro e depende das contingências das quais faz parte. O comportamento do cientista ao buscar soluções para um problema difere do comportamento de outras pessoas pelo tipo de contingências de reforço a que está submetido e pela sofisticação do controle discriminativo característico dessas contingências, O refinamento desse controle discriminativo é tal que todos reconhecemos que não se aprende a pesquisar apenas seguindo regras, e que a relação pesquisador/aluno é a própria relação artesão/aprendiz. A comunidade científica mantém o comportamento de seus membros reforçando diferencialmente de acordo com regras, nem sempre explícitas, que caracterizam o grupo. Reuniões como esta da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto tornam fácil a observação de como esse controle é exercido.

O pesquisador, é óbvio, interage também em outros grupos, como a família, os amigos, os colegas de trabalho, etc. Diferentes contingências caracterizam cada um desses grupos, e não seria um especialista em esquemas concorrentes quem iria negar que o que ocorre em cada um desses grupos pode afetar seu comportamento enquanto pesquisador. Mas vale ressaltar que essas diferentes contingências controlam diferentes comportamentos, e que o que torna possível a vida em sociedade é o longo treinamento que recebemos no processo de socialização desde criança. Agimos diferentemente em diferentes ambienes; os que não conseguem tal proeza costumam ser rapidamente recolhidos a instituições de custódia e, se forem ricos, tratamento.

Como cidadão, o pesquisador age politicamente. Seria ridículo negar que qualquer membro de um departamento de psicologia age politicamente entre seus pares. Omitir-se é apoiar francamente quem detem o poder. É muito comum o pesquisador que troca seu apoio, ainda que tácito, por facilidades de obtenção de verbas e outras facilidades para pesquisa, enquanto se proclama um acadêmico puro não interessado em política. Tal postura não é academicamente apolítica. É apenas fisiologicamente política.

Além de engajar-se em comportamento político inevitável no ambiente de trabalho, o pesquisador, enquanto cidadão, pode atuar em partidos políticos, em associações de classe, em grupos ecológicos, etc. Ao afiliar-se a um partido político submete-se ao controle exercido pelo grupo, influencia e é influenciado por seus companheiros. Seu senso crítico, aguçado na formação em pesquisa, pode criar-lhe problemas em partidos pouco democráticos, nos quais a disciplina partidária é exigida até em pensamentos e intenções. Em todo caso, pode até ser um fiel seguidor das orientações partidárias e um criativo pesquisador em seu campo de trabalho, pois as contingências controladoras em cada um dos casos não se sobrepõem.

Os problemas surgem efetivamente quando o pesquisador atua como pesquisador em áreas nas quais já exerce outro papel. É o caso da mãe psicóloga que resolve estudar a rivalidade entre irmãos observando seus próprios filhos, do torcedor fanático que vai ser psicólogo de seu time de futebol preferido, do psicólogo social que vai desenvolver suas pesquisas na comunidade na qual já atua como ativista político, do psicólogo clínico que resolve estudar a psicopatologia de seus colegas de departamento. Em todos esses casos as confusões surgem porque, tanto da parte do pesquisador quanto da parte das pessoas envolvidas na pesquisa, há interações ocorrendo sob condições confusas de controle discriminativo.

A confusão maior ocorre quando o próprio pesquisador não se dá conta do que está acontecendo. Quando confunde, por exemplo, a pesquisa com a ação política. No auge da ditadura não era difícil entender-se a necessidade de mascarar a atividade de conscientização política da população e a ampliação de quadros partidários pela fachada de pesquisa participativa. Nos dias de hoje é inconcebível que se confunda pesquisa com desenvolvimento comunitário, ação política com investigação científica, confirmação de dogmas partidários com geração de conhecimento. Por tudo isto, a formação do pesquisador que vai trabalhar com comportamento no ambiente natural talvez seja mais complexa do que a formação do pesquisador de laboratório, e exija sensibilidade a discriminações sutis de seu próprio comportamento, como no caso do psicólogo clínico. Por melhores que sejam as intenções do pesquisador, se não estiver preparado para separar o que é pesquisa do que é ação política, estará na mesma situação do clínico que não distingue os seus desejos dos desejos do cliente. Estará prejudicando tanto a pesquisa quanto a ação política.

Numa visão mais ampla da questão, o pesquisador/professor tem responsabilidades que vão além da formação científica e profissional de seus alunos. A universidade recebe da sociedade alunos ainda na adolescência e deve devolvê-los profissionais e cidadãos. Mas essa contribuição à formação política do aluno não requer que se o afaste de qualquer tipo de pesquisa que não aquela que envolve diretamente populações rurais ou da periferia urbana. Tenho conseguido ótimas discussões políticas a partir da análise de dados provenientes de esquemas de razão ou de controle aversivo, por exemplo. Aliás, esquemas de razão fornecem ótima oportunidade para uma discussão do conceito de mais valia; punição, esquiva e reforço negativo levam naturalmente ao assunto governo por controle aversivo; reforço diferencial de outros comportamentos pode ser ilustrado pelo uso de políticas de incentivo fiscal. Mas o Pesquisador contribui mesmo para a formação política de seus alunos por seu próprio exemplo como cidadão e professor.

 

PESQUISA E INTERVENÇÃO EM ORGANIZAÇÕES

Jairo Eduardo Borges Andrade: Trabalho em uma equipe de pesquisa em recursos humanos que tem a intenção de produzir conhecimentos para intervenção no meio organizacional. Vou tentar contar um pouco da história dos rumos dessa equipe, fazendo pesquisa e intervenção numa organização. Há seis anos a equipe, inicialmente composta de três pesquisadores, foi contratada pela EMBRAPA — Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, para trabalhar no seu Departamento de Recursos Humanos-DRH. Éramos um pouco atípicos: pertencíamos a um quadro de pesquisadores da Empresa, em que 75% eram agrônomos e, do restante, só uma pequena minoria era de cientistas sociais, pois ainda havia veterinários e biólogos.

A solicitação da Empresa era que fossem desenvolvidas pesquisas. Inicialmente, na verdade, não era exatamente pesquisa o que se queria. Era preciso que se fizessem avaliações das atividades e dos programas de desenvolvimento de recursos humanos que a EMBRAPA havia levado à frente desde 1974. A Empresa tinha e tem, entre outras coisas, mandado muitas pessoas para pós-graduação, possuindo um quadro admirável de pesquisadores, dos quais 85 por cento hoje têm mestrado e doutorado. Era necessário avaliar toda essa experiência, bem como outras, pois nelas se investiu muito dinheiro e esforço.

Nosso grupo foi contratado para fazer essa e outras investigações. Havia na equipe inicial um matemático com doutorado em educação e psicologia cognitiva, outra pessoa com graduação em história, mestrado em sociologia com ênfase em desenvolvimento e doutorado em sociologia com ênfase em recursos humanos e eu, psicólogo, com mestrado e doutorado em sistemas instrucionais. O grupo tinha uma vantagem, que era a de contar com pessoas já acostumadas a trabalhar em ambientes interdisciplinares. Depois, bem recentemente, passamos a contar com uma psicóloga, que tem mestrado em psicologia, e outra pessoa que fez doutorado em educação de adultos, interessada em avaliação qualitativa, que era uma área em que não tínhamos especialistas. O grupo era todo de formação mais quantitativista, até a chegada dessa pessoa. Há também um administrador, com mestrado em administração, um economista e um técnico em processamento de dados e estatística.

Não havia nenhum sistema de avaliação montado. Era preciso, para fazê-lo, contar com pessoas que tivessem formação científica, já que a avaliação, na verdade, é um processo de identificação de variáveis, montagem de instrumentos, análise de dados e julgamento dos mesmos. Do ponto de vista metodológico, seguimos os mesmos passos de quem faz pesquisa. Começamos avaliando o programa de pós-graduação da EMBRAPA, sempre com a preocupação de publicar os resultados, já que a Empresa supostamente promove seus pesquisadores também pelo que publicam e pelas tecnologias que geram. Além disso, se quiséssemos provocar mudanças dentro da instituição, tínhamos que escrever e divulgar o que fazíamos. E nós tínhamos todo interesse em fazê-lo, dada a nossa formação em pesquisa. Além das avaliações do programa de pós-graduação, realizamos avaliações dos treinamentos de curta duração da Empresa. Isso provocou mudanças profundas, muito maiores do que podíamos no início imaginar.

A partir do terceiro ou quarto ano em que estávamos lá, percebemos que não devíamos continuar fazendo só avaliações. Não podíamos deixar de fazê-las, já que tínhamos investido tempo e trabalho inclusive na montagem de todo um sistema automatizado de avaliação. Mas a gente estava, por outro lado, acumulando dados. À medida que se avaliavam cursos e mais cursos, por exemplo, aqueles dados iam entrando num arquivo de computador. Havia uma quantidade enorme de informações que talvez pudéssemos usar para algo mais que avaliar eventos isolados. A perspectiva já não seria mais simplesmente avaliar treinamentos, mas fazer outras investigações com aqueles dados secundários e com outros existentes.

Estavam arquivados em computador dados pessoais, familiares e institucionais, os quais poderiam ser variáveis que afetariam aqueles programas que estávamos avaliando. Então, começamos a mudar. Em vez de sempre partir para ações de avaliar, começamos a juntar esses bancos de dados pessoais com aquelas informaçêos das investigações que, ao longo dos anos, fomos guardando. E começamos a testar novas hipóteses e relações.

Aprendemos muito com os colegas que trabalhavam na equipe: por exemplo, a trabalhar com regressões múltiplas e análises de trajetórias, com grandes quantidades de dados, que era algo sobre o que eu, particularmente, não tinha recebido treinamento específico. Descobrimos que podíamos gerar conhecimento com aqueles grandes bancos de dados e com as relações encontradas. Nos dois últimos anos, constatamos que podíamos produzir sistemas de informação que nos ajudavam a explicar como é que a organização e os treinamentos funcionavam. Assim sendo, chegamos a alguns níveis de sofisticação, como o de detectar o quanto se deveria manipular determinadas variáveis, para conseguir que tipo de resultado. Na verdade tínhamos saído do nível da avaliação e estávamos fazendo algo distinto. Eu não me atreveria ainda a chamar isso de grande teoria mas, pelo menos, de um sistema teórico de conhecimentos, testado empiricamente, que explica como é que os fatos ocorrem e o que determina o que dentro da organização, principalmente no que se refere a treinamento. Fizemos isso em larga escala.

Recentemente, resolvemos dar um outro passo, que foi o de entrar numa área em que não existe nada feito nesse País e muito pouco feito fora daqui, que é a investigação da qualidade de vida nas organizações de pesquisa e sua relação com criatividade e produção científicas. Isso significa tentar identificar fatores que determinam a produtividade dos cientistas e responder questões como: O que se faz numa organização, para que o sujeito produza pesquisa de boa qualidade, para que ele produza mais pesquisa e para que ele seja mais reconhecido e citado na literatura do que outra pessoa? Que fatores individuais influenciam isso? Quais são os fatores, referentes ao relacionamento social dentro da organização, que fazem com que se realize mais pesquisas? Quais são os estilos ideais de gerência e de comunicação? O que o indivíduo faz quando define uma hipótese que vai testar? Como isso pode afetar a sua produção?

Indo um pouco mais adiante, para o terreno dos economistas: Como é que esses fatores determinam pesquisas que podem beneficiar os produtores rurais? Começamos também a investigar pesquisas que trazem mais benefícios sócio-econômicos e pesquisas que trazem menos benefícios e compará-las, para saber quais são as características pessoais e organizacionais que fazem com que indivíduos gerem pesquisas que levam a mais benefícios e outras que levam a menos benefícios. Conseguimos inclusive consultoria internacional, pois tínhamos conhecimentos restritos sobre a matéria. Eu acredito que nós estamos mais próximos de estar colaborando para construir uma teoria que explicaria, por assim dizer, a produção científica, pelo menos no setor agropecuário.

Quais foram os efeitos desse trabalho na organização? Inicialmente, as pessoas olhavam para a gente como animais estranhíssimos. O que é que sociólogos, psicólogos e educadores estão fazendo aqui? — Pesquisadores somos nós, os agrônomos, veterinários, biólogos etc. A partir do momento que saíram os primeiros resultados das avaliações, passamos a ser mais respeitados dentro da Empresa e com isso ganhamos "status". Ele veio, de um lado, porque passamos a sentar com os demais pesquisadores da Empresa e a dizer para eles: "Isso que você está falando não funciona e eu posso lhe mostrar com os dados que essas coisas não funcionam".

Começou a acontecer uma mudança positiva e nós passamos a ser mais chamados, para participar de discussões na organização. O que determinou essa mudança foi fundamentalmente — e isso foi diagnosticado pelo nosso grupo — o fato de que passamos a ter dados e a falar com base neles e não em suposições. O que identificamos foi que a nossa pesquisa estava nos auxiliando a provocar intervenções na organização. Isso nos deu chance de poder atuar politicamente e de definir metas ou mudar prioridades, a partir disso. O que nos permitiu fazê-lo, é bom ressaltar, me parece que não foram exclusivamente as avaliações ou os estudos, mas o "status" que eles nos deram.

Isso fez com que começássemos a participar de uma série de discussões de política e diretrizes, que muitas vezes nem tinham nada a ver diretamente com os resultados das avaliações que tínhamos feito, mas eram resultados das brechas que abrimos para ser ouvidos. Talvez isso não aconteça tão rapidamente em outras organizações. Trabalhamos sob um clima extremamente favorável à pesquisa, já que a Empresa é uma organização com essa finalidade e que valoriza muito essa atividade. É verdade que trabalhamos com o vento soprando do nosso lado. O que tínhamos que fazer, então, era aproveitar esse clima e fazer investigações. Então, no último ano começamos a perceber que, apesar disso tudo, de termos passado a trabalhar num nível político na organização, os resultados obtidos nas nossas avaliações e estudos não estavam produzindo mudanças como gostaríamos. Isto é: se um tipo de treinamento tal comprovadamente não funcionava com um tipo de clientela, nós queríamos que definitivamente aquele treinamento não fosse dado para aquela clientela e que as normas da Empresa fossem mudadas e que o pessoal de execução não insistisse mais naquele tipo de coisa. Entendemos que havíamos conseguido influenciar num nível político, embora não conseguíssemos o mesmo sucesso no nível operacional ou de execução. Alcançamos o "status" para poder interferir nas políticas, mas não conseguíamos uma atuação tão efetiva quanto gostaríamos, no nível executivo, em que muita coisa às vezes acontece à revelia do nível político.

A partir de 1985 ampliamos a nossa estratégia de intervenção. Além de intervir nesse nível político, resolvemos ser mais agressivos com o pessoal operacional e penetrar melhor nesse grupo. Isto é, com a mudança política grande que houve, a Empresa toda começou a ser repensada e decidimos que deveríamos participar ativamente de todos os grupos que discutiriam as mudanças das normas e modos de ação no nível de execução. Estamos agora fazendo justamente isso — um segundo tipo de intervenção — que é o de colocar as nossas pesquisas debaixo do braço, sentar com esses grupos de execução e discutir novas normas. E dizer, faça assim ou não faça assim e eu posso lhe dizer que funciona ou não funciona, porque eu tenho dados. Assim, iniciamos um outro tipo de ação, baseada diretamente nos dados, o qual se dirige mais para baixo, onde ocorre a execução.

Fundamentalmente, o que eu queria fazer aqui era um depoimento da experiência que tivemos e que foi bastante rica. Dela aprendemos que se pode fazer dois tipos de intervenção bastante distintos: um, que depende indiretamente dos dados e diretamente do "status" que eles nos dão e que ocorre no nível político; outro, que necessita primordialmente da existência de informações científicas e que acontece no nível operacional. Ambos, no entanto, dependem da realização prévia e sistemática de pesquisas na organização.

 

POR UM PESQUISADOR CRÍTICO

Isaías Pessoti: Tratando-se da relação entre pesquisa e seu produto na sociedade e da viabilidade e dificuldades em traduzir o resultado científico para a prática social, caberia a mim falar de aspectos filosóficos como assunto de pesquisa. Mais especificamente, sobre a importância, para a ação, de um tipo de pesquisa em Psicologia que é pobre no Brasil: o estudo histórico-crítico dos conceitos. Como é que os conceitos que nós usamos — ansiedade, reflexo, emoção, por exemplo — foram sendo gerados e modificados, a partir de contingências históricas, de história da ciência, políticas e até cotidianas, da atividade acadêmica. A gênese dos conceitos que hoje fazem a nossa maneira de ver o comportamento, a personalidade, a aprendizagem etc.. Parece que esse é o tipo de pesquisa mais distante de qualquer produção de efeitos na sociedade mas para mim é a maneira mais segura de se chegar a isso.

O estudo histórico-crítico de conceitos, de operações experimentais, de escolas psicológicas ou de "is-mos" dentro da Psicologia é fundamental para produzir algumas coisas que eu acho importantes. Por exemplo: a consciência da relatividade lógico-sistemática do produto da pesquisa. Isto é: eu produzo um determinado resultado com o meu teste, a minha entrevista, o meu experimento sobre razão fixa etc... Esses dados têm alguma importância e algumas ligações com outros dados e conhecimentos, contemporâneos ou anteriores. Mas qual a relação do meu conhecimento com esse mundo do saber da minha área chamada Psicologia?

Outra coisa que fica beneficiada por esse tipo de pesquisa é a percepção da relatividade temporal de qualquer método, técnica, moda, de qualquer "ismo". Os critérios de validade em ciência, de significação dos dados, valem para uma determinada maneira de ver que pode durar uma época ou 50 anos. E há a relatividade temporal dos conceitos. O que é aprendizagem hoje e o que era em 1910, o que era ansiedade em 1920 e o que é hoje, e assim por diante.

Então temos: relatividade lógico-sistemática do produto da pesquisa e relatividade temporal desse produto. Isso fica bem claro quando você trabalha histórico-criticamente porque o estudo da história despersonaliza qualquer contribuição. Você vê que cada um é cria inevitável de um passado, de uma tradição, de uma linha de pesquisa, de um grupo que se formou numa cidade, etc.. Por outro lado, a tolerância à discrepância fica muito mais fácil de se obter com esse tipo de pesquisa. Além disso, a consciência do eterno retorno de velhas verdades e velhas explicações — porque há "n" tipos de pesquisa, mas há um que eu chamaria de a-histórico e acrítico, que se comporta como se o seu produto fosse o último, o resultado final de uma gênese e nunca o retorno a verdades já analisadas de outra maneira e formuladas com outra linguagem —, então, como consequência, nós teríamos uma certa humildade diante do nosso produto. Notem que esse relativismo não implica que se faça pesquisa histórica, isso pode existir quando você trabalha com Rorschach, com entrevistas, com animais em laboratório, com testes em geral, com qualquer tipo de pesquisa. Apenas o treino de analisar historicamente um conceito facilita a aquisição dessas, digamos, virtudes que um cientista deveria ter. Esse tipo de visão da ciência é importante porque vacina, principalmente o iniciante, contra algumas coisas como escolha acrítica do programa de estudo ou de modelos teóricos e experimentais. Essa escolha acrítica pode ocorrer quando eu trabalho com personalidade, com Rorschach, ratos, o que quer que seja.

Outro mal que fica conjurado por uma formação histórico-crítica do pesquisador seria uma certa idolatria. Nós temos aqui fãs incondicionais e dispostos a uma guerra santa em nome de Freud, Piaget, Skinner e outras divindades. Isso me parece uma evidência de falta de visão crítica da relatividade desses homens, do quanto eles são produtos e não demiurgos que pariram a natureza ou o saber. Há também uma mitologia que se refere à descoberta, ao fato e à validade, ou verdade, científica.

Quanto ao mito da descoberta, basta a gente se aprofundar um pouco na leitura da área em que vamos pesquisar e perceberemos que é muito difícil descobrir alguma coisa nova. Não é tirar do iniciante o entusiasmo pelo seu produto — pois ele é sempre novidade como evolução pessoal e pode servir de degrau para futuras descobertas — mas a descoberta não é o objetivo da ciência necessariamente e não é o produto de todas as pesquisas.

O mito do fato: muita briga em Psicologia ocorre porque alguns consideram que trabalham com os fatos enquanto os outros trabalham com os frutos — que seriam mitos, conceitos mentalistas, inferências. Nenhuma ciência trabalha com fatos, quem trabalha com fatos é a natureza. O material da ciência é a representação desses fatos, através de registro gráfico, contagem, números, pesos, etc., que são representações simbólicas. Esses registros sempre implicam a adoção de critérios, de um certo grau de inferência e isso não é pecado nenhum, apenas nós precisamos nos livrar do mito de que alguns estão mais perto do fato e outros mais longe. Todos nós trabalhamos com representações da natureza.

O terceiro mito é o da validade, da verdade. Isso depende. Uma curva pode confirmar uma hipótese ou não dependendo da unidade de tempo que eu escolher ou dependendo do que eu colocar no computador dos meus dados, verdadeiros. Então, tudo depende do critério adotado. No fundo, a verdade de uma "descoberta" é uma questão de evolução histórica da área, que vai mostrar quanto esse dado resiste a novas observações que lidem com ele.

Com esse tipo de formação histórico-crítica, nós temos a maneira de tornar qualquer tipo de pesquisador muito mais próximo da ação, porque ele nunca fará pesquisa para se divertir, para mostrar que Fulano tem razão ou que na polêmica X, tal equação é mas legítima. Não nego que isso possa ser objeto de pesquisa, nego que isso leve ao produto social que muitas vezes não pode ser esquecido — e não deve. Há um tipo de pesquisador, oposto a esse que eu disse, que é o que tem um ídolo e todos aqueles mitos, que vê a ciência como uma espécie de clube, com aspirantes e sócios fundadores e beneméritos, ou então, como um santuário onde talentos privilegiados devem ser desenvolvidos.

Há um artigo de Skinner, "The flight from the laboratory", onde ele mostra razões pelas quais se rejeita a pesquisa de laboratório. As direções dessa fuga do laboratório seriam várias: para o homem interior, para o rigor matemático, formal, das conclusões, etc. Coisas que ou não podem ser estudadas no laboratório ou que muitas vezes ele mostra difícil, precário. Eu resolvi substituir "The flight from the laboratory" por "The flight into the laboratory". O laboratório como refúgio, como fuga de outros envolvimentos. Porque nele você tem a sensação do rigor, da solidez do produto diante de si. Você se liberta, portanto, da precariedade de quem trabalha com personalidade, com psicopatologia, por exemplo, e também da obrigação, ou da necessidade, de teorizar — e então se submeter a toda uma artilharia epistemológica, lógica, etc. Há quem não esteja no laboratório para fugir dessas coisas mas o laboratório é cômodo, indiscutivelmente.

Há uma fuga da urgência social. É uma pergunta que vai aparecer hoje: o pessoal está morrendo de fome, cheio de verminose, analfabeto e nós estudamos preferência de cor em abelha. Que direito nós temos de fazer isso? A minha resposta é a seguinte: se para mim, criticamente, parecer que estudar preferência de cor em abelha é uma forma de contribuir para a melhoria da situação de vida do meu povo, eu vou investir nisso. Não é a natureza do tema que decreta a eventual utilidade do resultado. É a atitude crítica de quem escolhe o tema que dirigirá o uso que ele fará do seu produto, que para mim seria a garantia de uma expectativa de rendimento social da pesquisa.

Não se pode fugir da questão ética, quando se fala em política de pesquisa. João Cláudio, se entendi, acha que fazendo seriamente sua pesquisa como profissional está a cumprir uma parte e militar em órgãos da profissão, junto à reitoria, a comissões técnicas, é a parte política. Entende, então, que uma coisa é o trabalho de pesquisa e outra é a ação. Não concordo, porque, a meu ver, não dá pra você ser um militante nos dias pares e não nos dias ímpares. Estou preocupado com o engajamento direto do trabalho de pesquisa como produto social, independentemente da generosidade política ou social do pesquisador. Independentemente da sua dedicação à causa social, a sua pesquisa vai ter efeito.

 

DEBATE

Platéia: Eu gostaria de perguntar à mesa por que a associação entre pesquisa e ação, por que nessa associação está ímplícta a idéia de pesquisa científica ou tecnológica? Em parte esse problema foi evitado. Todorov evitou colocando como ação as atividades que o pesquisador tem além da sua pesquisa, o professor Pessoti colocou que a opção fica para o pesquisador, ou seja: se ele acha que vai contribuir para resolver os problemas coletivos ao estudar diferenciação de cores em abelhas, então aí ele está determinando a política da pesquisa. Acontece que a política da pesquisa não é definida exclusivamente pelo pesquisador, então me parece importante, no momento em que se discute pesquisa e ação, saber se nós estamos indo para uma política que visa a pesquisa científica — que independe de sua aplicabilidade, da ação — ou a pesquisa tecnológica, que visa a solução de problemas concretos.

Iasías Pessoti: É um problema ético a escolha de que pesquisa se faz. E esse problema ético não é do pesquisador, mas de quem o financia. Eu posso fazer pesquisa para me divertir, para me ilustrar numa área que me interessa. Por exemplo: percepção de cores em abelhas. O conhecimento que eu adquirir aí pode ser usado com uma preocupação tecnológica, como ensinar as abelhas a polinizar um tipo de planta e não outro, no inverno ou no verão, por exemplo. O que eu estou produzindo é o mesmo tipo de conhecimento, a minha intenção é que varia, num caso e no outro.

Eu estou interessado num pesquisador cujo produto, enquanto conhecimento, favoreça a aplicação tecnológica, independentemente de ele estar procurando mero conhecimento ou interessado na intervenção. Não é a natureza do tema que o torna produto social, que torna o meu dado tecnologia para produzir bem-estar. Cada um tem o direito de pesquisar o que quiser, para o que quiser, desde que haja quem pague. O problema ético é de quem financia. Vai se dar dinheiro para quem quer se divertir com o conhecimento, para quem quer um conhecimento que vai gerar tecnologia ou para quem já de saída estuda uma questão urgente e relevante, do ponto de vista social?

Se o Estado dá dinheiro pra quem quer se divertir, erra o Estado, porque nós não podemos nos dar ao luxo de financiar divertimento com o dinheiro público. Mas também não podemos fazer um processo às intenções, tipo: você quer ou não, com essa pequisa sobre abelha, fazer algum benefício para a agricultura? Acho que a possibilidade de erro nessa questão da destinação do dinheiro fica minimizada se se fizer um grande colegiado para decidir e esse colegiado não deve ser composto por representantes de áreas de pesquisa, mas por representantes da sociedade nos seus diversos segmentos.

Além disso, a maneira de nós termos uma pesquisa mais rentável, sem prejuízo da liberdade cientifica, é formar um pesquisador mais crítico do seu trabalho e não um cientista insulado, fechado no seu grupo, na linha de trabalho da sua panela científica. Um pesquisador que se pergunte a cada passo se o programa que escolheu está correto, se interessa ou não.

Agora falando concretamente: proponho a abolição de Estudos Brasileiros — um curso quase sempre fajuto, relativamente inútil porque é sempre superficial e dado por professores improvisados — da pós-graduação e a inclusão de Filosofia da Ciência, Crítica da Ciência ou Epistemologia, algo que desperte no pesquisador a crítica em relação ao seu trabalho.

 

Dependência Tecnológica

João Cláudio Todorov: Eu queria deixar claro, na minha exposição, que a gente tem essas superposições todas, quer dizer, o trabalho de pesquisar é comportamento, como qualquer outro, e está sob controle de determinadas contingências; o trabalho de ação política na comunidade é comportamento, também sob controle de certas contingências, muita vezes contingências partidárias, que são bem diferentes daquelas que deveriam controlar o trabalho de pesquisa. Basicamente, o que eu estava colocando é isso.

Agora, é óbvio que a gente faz coisas diferentes em diferentes situações e o que torna possível a vida em sociedade é que somos capazes de discriminar e agir segundo essas circunstâncias. Essencialmente, a vida em sociedade significa divisão de trabalho. Nem todo mundo pode fazer todas as coisas. Por outro lado isso pode levar a um certo perigo e agora, então, tomando a colocação do professor Álvaro Tamayo, na platéia, há aquela idéia de que existe uma separação entre a pesquisa que visa resolver um problema social urgente e a pesquisa básica. É como se fosse possível fazer essa diferenciação.

Se nós convencermos os nossos alunos e a comunidade que financia a pesquisa no Brasil de que existe essa separação, nós estaremos condenando o País a uma eterna dependência tecnológica. A gente nunca vai desenvolver, aperfeiçoar ou adequar tecnologias, mas vai ficar sempre dependendo do que vem do exterior, porque dificilmente vamos poder gerar teorias, novas maneiras de ver o mundo, simplesmente resolvendo um problema aqui e outro ali. É preciso ter, tanto na pesquisa básica quanto no trabalho de aplicação, uma teoria — que é a mesma que embasa os dois tipos de trabalho — e o que justifica a pesquisa básica é que ela contribui para o aperfeiçoamento dessa teoria.

Platéia — Eu concordo que não é possível essa separação mas no nível político pode haver. Vamos supor: no nível político poderia defínir-se que só vai ser subvencionada a pesquisa tecnológica, ficando de fora a pesquisa básica e criando-se — e aí eu concordo plenamente com você — a dependência tecnológica do País para sempre. Eu gostaria de colocar a questão no nível da política mesmo.

Todorov: No meu ponto de vista não deve ser separado e mais, acho que essa discussão que nós estamos fazendo aqui deve sair desse espaço puramente acadêmico e ir para os partidos políticos, porque essas coisas vão-se definir politicamente em nível de governo e é via partidos políticos que nós vamos poder fazer alguma coisa. Senão vamos ficar eternamente naquela situação de discutir muito aqui, voltar para as nossas instituições, continuar a submeter projetos de pesquisa aos órgãos competentes e às vezes não saber porque um deles foi aprovado e outro não. Porque quem está decidindo tem critérios que nós desconhecemos e não temos nenhum contato e nenhuma maneira de influenciar isso. É preciso agir politicamente, via partidos, numa área em que você pode contribuir mais, que é a política da ciência.

 

Contingências Históricas

Jairo Eduardo Borges-Andrade: Voltando à questão da pesquisa tecnológica e pesquisa científica, a pesquisa que eu faço é nitidamente tecnológica. Mas num determinado momento você vê que não dá pra ficar só fazendo isso. Quando você fica muitos anos na mesma coisa a sensação — e nós começamos a sentir isso no terceiro ou quarto ano — é como se você tivesse uma caixa d'agua vazia, por ter usado toda a água. De repente acaba. A maneira de resolver isso é abrir de novo as torneiras, isto é: voltar para a teoria. No sentido de começar a estudar outras coisas ou no sentido de fazer pesquisa científica, mesmo na organização. Caso contrário, o que você vai fazer é simplesmente repetir o que já foi feito.

Eu gostaria de comentar o que foi falado aqui, sobre a responsabilidade do Estado em determinar política de pesquisa, financiar isso ou aquilo, etc... O Estado, por mais intencionalidade que ele tenha, por mais que ele queira decidir que vai financiar isso e não aquilo, ele não pode, porque é preciso ter uma reserva técnica para o caso de a sociedade precisar disso num determinado momento. Ele precisa ter no seu orçamento de Ciência e Tecnologia uma quantidade de dinheiro — que não pode ser muito pequena — para financiar gente que está fazendo coisas como discriminação em abelhas mesmo. Citando um exemplo, da área agronômica, que eu tenho mais contato: durante anos nós tivemos gente estudando a vida sexual dos bicudos — um bichinho que ataca o algodão e que é considerado uma das maiores pragas do mundo. Do ponto de vista da aplicabilidade disso, não havia o menor sentido nessa pesquisa, porque não existiam bicudos no Brasil. Acontece que há dois anos começou a existir. Então como já havia um grupo de pessoas preocupadas com a questão, talvez a solução do problema esteja muito mais próxima do que se não houvesse. O que eles faziam antes era pesquisa científica e o que eles estão fazendo agora passou a ser pesquisa tecnológica. Passou a ser fundamental entender o processo de reprodução dos bicudos porque talvez com hormônios se consiga atrair a fêmea para uma armadilha evitando que ela vá para o algodão.

Há alguns anos não tinha nenhum sentido, do ponto de vista prático, pesquisar o vírus que ataca as lagartas da soja, mas, à medida que aumentaram os custos dos defensivos e a quantidade de pessoas que está morrendo por causa de agrotóxicos, a pesquisa com esse vírus passa a ser importante. Então, essa questão do Estado definir, tudo bem que ele defina, mas ele tem — por razões até de segurança — que destinar um tanto de recursos para essas coisas mesmo.

Pessotti: O que eu disse é que independentemente da natureza do assunto pesquisado, o que me interessa — e eu acho que deve ser investimento se se quer uma pesquisa produtiva social e economicamente — é um tipo de pesquisador e não o fomento de uma área ou outra. Esse tipo de pesquisador eu descrevi no começo. Disse também que concordo que a conversão de uma pesquisa científica em tecnológica é uma questão de contingência histórica. Agora, o investidor — não digo o Estado, mas os cientistas que o Estado encarregar de, junto com os políticos, planejar a distribuição de dinheiro — tem que fazer a opção e tem que ter sensibilidade para proteger essa reserva técnica de pesquisa pura que amanhã pode servir. Essa tem que ser financiada mesmo que hoje pareça ser dinheiro perdido. Mas, o pesquisador que receber o dinheiro não tem nenhum problema ético, ele simplesmente faz a pesquisa. Se ele for o pesquisador do tipo que eu estou propondo, ele vai ser criterioso; mas se ele for um que se diverte com aqueles mitos todos, que quer ser o Einstein da Psicologia, talvez o trabalho dele nunca vire um produto real, mesmo que ele esteja engajado numa pesquisa tecnológica. E a formação desse pesquisador implica alguma mudança na pós-graduação.

 

Lógica x Técnica

Andrade: Nós temos alguns resultados de pesquisa que fundamentam esse tipo de preocupação, de dar formação metodológica. Um dos problemas que a gente avaliou no nosso programa de formação é que o nosso pessoal era técnica e politicamente ingênuo. O remédio que nós receitamos foi uma melhor formação metodológica. As Ciências Biológicas, por estarem mais próximas das Ciências Naturais, deixam de dar essa formação. Em Ciências Sociais isso é bem melhor. Isso às vezes compromete o trabalho deles porque insistem nos mesmos tipos de técnicas, que às vezes não servem, são ingênuos. A gente já tem até dado de pesquisa que corrobora isso. Esse pesquisador transforma a lógica em técnica e no momento em que a técnica deixa de funcionar ele não sabe mais o que fazer, é um tecnicista. Aí ele pára de trabalhar ou começa a produzir coisas irrelevantes.

Platéia: O professor Pessotti falou da formação na pós-graduação e eu acho que esse tipo de pesquisador que ele fala não começa a ser formado na pós-graduação mas na graduação, e mesmo antes. E não é só o pesquisador que precisa ter muitas das características colocadas. Eu gostaria que a mesa falasse um pouco da questão da graduação, já que tem tanta gente dessa área aqui.

Pessotti: Você tem toda razão. Por mim, haveria Filosofia da Ciência, e da Sociologia, ou alguma coisa sólida e sistemática de estudo das urgências sociais, com o nome que for, em todos os níveis, desde a escola de primeiro grau. Seguramente, na graduação seria desejável, salutar, que houvesse Filosofia da Ciência. Acontece que como nem todos vão para pesquisa, seria meio forçado estender isso para todo o currículo. Mas para quem quer fazer ciência isso deve ser dado o quanto antes e pelo maior tempo possível.

Todorov: Tranqüilamente, a formação do pesquisador começa na graduação. É o que nós fazemos na UnB. Essa formação vai ser útil qualquer que seja a atividade do aluno depois, porque desenvolve o sentido crítico dele.

Andrade: Eu não sou professor de universidade, a minha responsabilidade sobre a formação de psicólogos é no estágio. Quando o Isaías fala de Filosofia da Ciência, Metodologia Científica etc., é coisa que tem que vir antes. No estágio o que se pode fazer é ensinar a montar instrumentos, analisar dados, coletar dados, coisas desse tipo. É difícil para mim analisar a formação, eu só posso avaliar o produto dessa formação. Pode ter sido sorte minha mas o produto que eu tenho recebido de alunos de Psicologia — comparando com os de Administração e Pedagogia, porque em geral são dessas três áreas que eu recebo gente para estagiar - é melhor que os outros. Falando em termos de quem recebe o produto de três anos de curso, teoria etc., é muito melhor, do ponto de vista relativo.

 

PREVENÇÃO E CONTROLE

Platéia: O Professor Pessotti falou que o problema ético de escolher qual pesquisa deve ser financiada fica com o financiador. Acontece que esse financiador, em última análise, pode não entender de pesquisa. Os políticos não entendem necessariamente de pesquisa, então eu pergunto: não é muito delicado deixar o problema ético para o financiador? Segundo: não é uma obrigação do pequisador deter a ação política, como colocou Todorov, no sentido de influenciar, tentar ao menos, quais as pesquisas que devem ser determinadas? Isto é: definir a política de pesquisa em Psicologia.

Pessotti: Quando eu digo financiador não me refiro ao Estado nem ao tecnocrata, mas a um colegiado, um organismo composto por cientistas, políticos e outros segmentos da sociedade. Os cientistas devem participar como representantes da pesquisa e não de áreas de pesquisa. Senão nós vamos ter lobby de geneticistas, ou de físicos nucleares etc... Então, quando eu digo financiador, é para designar um organismo e não uma pessoa. Tem de ser um colegiado de cientistas, políticos, e outros segmentos da sociedade não envolvidos na luta partidária.

Platéia: A mesa falou sobre o conceito de urgência; eu queria pensar também, dentro dessa preocupação de uma política, sobre o conceito de previsão. Isso não foi claramente colocado, mas me parece que o que levou à organização desse debate seria o interesse de se promover subsídios para uma possível ação política, uma reestruturação. Eu gostaria de saber o que a mesa pensa a respeito da previsibilidade, no sentido do estabelecimento de uma política.

Todorov: Não sei se a intenção era sair daqui com alguma política, acho que não é o caso. Quanto à urgência, eu acho que, quando você pensa na importância dos problemas sociais a serem resolvidos, você vê que o que há de mais urgente não está precisando tanto de pesquisa. O desenvolvimento do Nordeste, por exemplo: o que existe de conhecimento sobre isso talvez já seja suficiente para que o problema se resolva. A questão é saber porque é que as coisas não são postas em prática. Não é por desconhecimento, porque os cientistas não se preocuparam com isso, mas por uma questão política. E isso deve ser resolvido pela ação política. Partidária. Eu acho que às vezes a gente foge do problema político discutindo as imperfeições da nossa atuação enquanto pesquisador. Talvez fosse mais importante a gente discutir as nossas omissões enquanto cidadãos, nesse caso.

Andrade: Você falou em previsão, não é? O cientista pretende prever e controlar. Talvez fosse o caso de entrar pra valer mesmo, pra interferir, pra disputar. Participar do jogo político efetivamente, como disse o João Cláudio.

Agora, em termos de previsão. Uma coisa que tem me preocupado atualmente, é aquela chamada Lei Calmon. A intenção é aumentar os recursos da Educação, mas para onde vai esse dinheiro, realmente? Ele pode ser todo repartido em termos de aumento de salário, por exemplo. Não estou dizendo que os salários não devam ser aumentados mas se esse dinheiro cair todo para salário, a questão da pesquisa não fica resolvida na universidade, porque tem laboratório, equipamentos, um mundo de coisas que precisa ser refeito.

Eu tenho medo da interpretação que possa ser dada pra esse dinheiro que vai pra Educação. Alguém pode achar que Ciência e Tecnologia não precisam mais porque são feitas na universidade e como ela já está recebendo mais dinheiro, então está resolvido. Eu não sei como isso está sendo tramitado, não estou nesse meio, nem tenho outros dados mas tenho medo do que tenho ouvido por aí. E só uma preocupação, não uma previsão.

 

Chovendo no Molhado

Pessotti: Você parece que faz uma oposição entre urgência e previsão, como se a ciência num caso caminhasse a reboque dos problemas e no outro preparasse medidas para quando eles surgirem. A nossa ciência, me parece que em alguns aspectos está trabalhando para o futuro e em outros para o passado. Como João Cláudio disse, nós sabemos praticamente tudo o que precisa ser feito para melhorar a escola, para nutrir o povo, para despoluir os rios, as cidades, etc.. O que falta é a vontade, em termos políticos, de fazer essas coisas. O papel a desempenhar enquanto cientista, então, seria pesquisar formas de vencer essa inércia, essa resistência política a essas mudanças.

Por exemplo: a automação, a superpopulação, a utilização de computador na escola. São coisas das quais não se pode fugir. Tem alguém trabalhando nisso? Ou como mudar a mentalidade do agricultor para não usar tanto agrotóxico... Se trata um pouco de ser crítico do seu momento, de ver o quanto se está chovendo no molhado. Ficar trabalhando sobre uma coisa da qual já se sabe tudo é ser acrítico. Talvez com a melhor das intenções mas não é nas intenções que está a liquidez de um produto de pesquisa.

Platéia: Eu não vi uma ligação entre os pesquisadores — o que fazem e o que pretendem fazer — e os partidos políticos. Nós não deveríamos deixar de incluir nesse panorama político partidário, o papel das sociedades científicas do País, já que fazemos parte de uma. Até agora as áreas mais desenvolvidas têm primado por sociedades científicas bastante fortes e organizadas, procurando justamente, e cada vez mais, chegar a estabelecer política. Como todo partido político está sempre servindo a outros propósitos que não Ciência e Tecnologia, a mediação, a presença, a participação em sociedades científicas se torna cada vez mais importante e é preciso saber que elas têm um papel. Muitas áreas de pesquisa estão muito mais adiantadas que a Psicologia. Nós estamos engatinhando, mas temos de começar a participar. Eu acho que a gente deve ficar sabendo o que as sociedades científicas estão fazendo nesse sentido que vocês descreveram, sobre política, comunidade, dinheiro público etc...

As sociedades científicas brasileiras, em conjunto, estão acabando de produzir um documento. Quantos dos senhores já leram tal documento? A Psicologia aparece pouco, algumas linhas em Ciências Humanas, porque nós não participamos disso. É um momento de emergência, estudado durante seis meses pelas sociedades científicas do País. Nós deveríamos ter participado. Então, acho importante falar nesse outro nível de participação, para tratar dos problemas que sejam chamados de política, de ação, de prioridade.

Todorov: Só que essa organização em sociedades científicas não ocorre separada dos partidos políticos...

Platéia: Mas deve ser apartidária.

Todorov: Sim. Como qualquer associação de docentes deve ser apartidária. Mas o ideal, o que a gente deveria estar batalhando, é o fortalecimento dos partidos políticos em todos os níveis. Dizer que o Congresso atende a outros interesses e as sociedades científicas é que vão ter que defender os interesses da Ciência e Tecnologia, talvez seja uma coisa do passado e que a gente deva até combater. O que eu gostaria é que esses documentos pudessem ser discutidos no Congresso com conhecimento de causa e talvez o nosso papel seja o de pressionar, via partidos políticos, os nossos representantes.

 

Linha Especulativa

Pessotti: Para mim não é tão relevante que seja o coletivo dos psicólogos a dar palpite, que nós participemos da luta dos cientistas, dos pesquisadores ou da universidade brasileira. Porque mesmo se nós tivessemos, por hipótese, a receita ideal de como repartir dinheiro, priorizar um ou outro tipo de pesquisa, não ia adiantar nada, porque nós não participamos desse processo de decisão. O que é preciso é arregaçar as mangas, ser cidadão por inteiro, via associação de classe, centro acadêmico, partidos políticos, o que for. É a forma de nós chegarmos a alguma mudança. Nós temos que entrar pra valer na luta política e usar a nossa produção, tomando agora um termo político, como cacife para brigar.

Platéia: Minha preocupação é quanto à instalação — e manutenção — do comportamento de pesquisa. Nós temos, em Florianópolis, conseguido levar as pessoas, alunos inclusive, a iniciar um trabalho de pesquisa. O que não temos garantido é manter esse comportamento de pesquisar. Mesmo que chegue o dinheiro nós não vamos ter pesquisadores para consumi-lo, porque não tem ninguém fazendo pesquisa.

Eu acho que nós devemos, fundamentalmente, colocar o comportamento do pesquisador, do aluno que está começando em pesquisa, sob o controle de coisas bem concretas, reais. Trabalhar com creches, problemas de aprendizagem, por exemplo. Coisas que fazem parte do cotidiano. Quem sabe, a partir daí, não conseguiríamos fazer o aluno se interessar por pesquisa, podendo até derivar para pesquisas mais básicas, de menor aplicabilidade imediata. Colocar o pesquisador diante de problemas socialmente relevantes, nessa primeira fase, para fazer com que ele goste de pesquisa.

Todorov. Seria ótimo se mais gente se preocupasse em fazer com que os alunos se interessem por pesquisa. Mas você não precisa começar trabalhando com assuntos socialmente relevantes para fazer com que eles gostem disso. Os meus alunos começam com a pesquisa que estiver em andamento no laboratório da faculdade. Nessa fase de início de carreira, eles se adaptam muito bem a qualquer tipo de problema que esteja sendo estudado. Gostar de pesquisa se aprende quando se é reforçado pelo resultado daquilo que se faz.

Pessotti: O que ele diz é que se você ensinar pesquisa usando problemas mais concretos — por exemplo: ao invés de saber o que significa uma curva que um rato produz, saber o que acontece quando muda o professor numa escola primária — o aluno vai se ligar mais naquilo.

Platéia. Eu acho que você tem muito mais feed-back, você produz algumas coisas que vão poder interferir naquela situação.

Todorov: Tenho a ligeira impressão que nós vamos entrar numa linha puramente especulativa, onde não se teria dados para confirmar. Seria o caso de se fazer uma pesquisa com todos os alunos que fizeram mestrado e doutorado no Brasil, ver no que eles estão atuando e se é possível encontrar relações aí. Como é que ele foi formado, o que está fazendo agora, porque alguns dão certo continuam fazendo pesquisa mesmo que você o mande para o Acre etc.. Sem esse levantamento nós vamos ficar numa pesquisa de opinião, tipo "eu acho que é melhor fazer assim..."

Platéia: Mas quando você trabalha com uma coisa concreta, do ponto de vista da própria relação com o problema, e possibilidade de resolver, você se dedica àquilo.

Todorov: Talvez seja mais fácil atrair, de início, os alunos para a pesquisa com coisas socialmente relevantes, mas manter, desenvolver esse comportamento é difícil tanto nesse caso quanto no laboratório. Essa discussão é puramente especulativa.

 

Pesquisa e Ação

Platéia: Eu gostaria de levantar outro problema. Já foi lembrado aqui que a maioria dos participantes desse debate são estudantes de graduação, isto é: que estão preparando-se para a vida profissional. Por outro lado, o CFP — que lida fundamentalmente com profissionais — está de certa forma patrocinando essa atividade. Então eu pergunto: qual é a relação entre pesquisa e ação profissional? É uma coisa que está sendo negligenciada nos nossos departamentos e tenho a impressão que a maioria dos nossos alunos vê a relação de uma coisa com outra, apenas no fato de que alguns resultados de pesquisa podem ser utilizados na atividade profissional. Mas a relação é mais profunda. Então, coloco a questão de forma mais precisa: em que sentido a atividade profissional é pesquisa, em que sentido deve seguir os parâmetros fundamentais da pesquisa? Daí, me parece, poderia surgir essa relação importante entre pesquisa e ação profissional.

Todorov: Para mim é básica na formação profissional, a formação em pesquisa. Se você pensar nos requisitos, nas características da atividade de pesquisador e no campo profissional, você vai encontrar muitos elementos comuns. Ambos vão lidar basicamente com solução de problemas. Algumas habilidades de pesquisa vão ser muito úteis qualquer que seja a atividade profissional posterior. Há passos comuns da atividade de pesquisador dentro da pesquisa básica, tecnológica, ou do profissional de clínica. Então, eu vejo muito sentido no CFP estar interessado no assunto.