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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.7 n.2 Brasília  1987

 

Tortura. Entre a vida e a morte

 

 

 

"Como se iniciou o seu trabalho sobre tortura?"

Alfredo Naffah Neto — Resolvi pesquisar sobre a tortura, em primeiro lugar, porque a universidade me impunha a condição de defender uma tese de doutorado. Em segundo lugar, porque eu tinha resolvido que só faria tal tese se fosse sobre um tema importante, que tiversse sido fundamental ao Brasil, nos últimos vinte anos. Achei que a questão do poder como poder arbitrário era central e que a situação de tortura era a que poderia revelá-la de forma mais crua. Estávamos, então, em 1979. "Com quem trabalhou?" Alfredo — Lídia Rosenberg Aratangy fez, junto comigo, os psicodramas dos torturados. E Ivan, Cecília, Rosalina e Joana foram os sujeitos-colaboradores. Com os dois primeiros fiz entrevistas; com as duas últimas, eu e Lídia tentamos realizar psicodramas. O trabalho todo durou uns quatro anos.

"Qual foi o enfoque teórico adotado?"

Alfredo — Eu trabalhei numa perspectiva teórica que chamei de fenomenológico-dialética, com influências de Hegel, Heidegger,Merleau-Ponty e Lacan, principalmente, que formavam o meu universo teórico da época. Hoje estou numa outra, mais próximo de Nietzsche, Deleuze, Foucault, a genealogia de forma geral. Na época, entretanto, ainda estava bastante envolvido pela fenomenologia e pela dialética que foram as perspectivas que se impuseram ao longo do trabalho.

A tese constou de uma introdução teórica (de análise crítica dos trabalhos já realizados sobre o tema), de uma parte de pesquisa de campo (com as entrevistas e psicodramas com torturados) e, por último, de uma reflexão, a partir das vivências dos torturados, sobre as relações entre Poder, Vida e Morte, e seus significados na situação de tortura. "Como foram os psicodramas com os torturados?"

Alfredo — Este trabalho com os sujeitos torturados foi o que levou mais tempo e foi a parte mais difícil. Eu e Lídia "apanhamos" muito, entramos em vivências que envolviam muita dor e angústia. Por vezes, ficamos envolvidos e perdemos o rumo quando as nossas próprias angústias eclodiram. Até hoje sinto um certo malestar, como se tivéssemos invadido um terreno proibido, cheio de fantasmas, horrores e maldições, mesmo a nossa intenção tendo sido a de ajudar terapeuticamente os sujeitos torturados. Hoje não sei se faria tudo de novo. "A que conclusões chegou?"

Alfredo — É difcil resumir conclusões aqui. De forma geral, descobri que o Poder na tortura se mantém através de um teatro de horrores, montado e representado com maestria. Descobri também o processo de "desumanização" do torturador que consiste na abolição de qualquer reflexão sobre o que está fazendo, pois se refletir desmorona. E descobri os múltiplos significados de viver e morrer que emergem para os torturados nessa situação-limite. Onde viver, humanamente falando, pode, muitas vezes, significar morrer, biologicamente falando, e vice-versa. E descobri também toda a estrutura simbólica que sustenta as hierarquias do Poder. E muitas outras coisas que só dá para aprender lendo a pesquisa. Aliás, ela foi lançada sob a forma de livro, com o título, Poder, Vida e Morte na Situação de Tortura. Esboço de uma Fenomenologia do Terror, Editora Hucitec, 1985.

"O que o psicólogo pode fazer com relação à tortura e ao torturado?"

Alfredo — O psicólogo tem uma contribuição importante a dar em relação à tortura e ao torturado, seja como pesquisador, revelando e desmascarando as artimanhas desse tipo de poder e como elas funcionam no nível do psiquismo humano, seja como terapeuta, ajudando pessoas torturadas a ultrapassarem o universo de horrores que ficou gravado na sua memória e as impede de viver no presente.

"Por que ocorre o 'esquecimento ' dessa fase de tortura na história do Brasil?"

Alfredo O "esquecimento" dessa fase da história do Brasil se explica como qualquer esquecimento de coisas traumáticas, desagradáveis e que envolvem culpa: todas elas acabam sendo "apagadas" da consciência pelo desprazer que produzem (como, aliás, Freud já mostrara). E isso é muito mais intenso do que se pode imaginar. Você não imagina a quantidade de pessoas, inclusive, amigos meus, que não quiseram ou não conseguiram ler a tese! Eles diziam: "Você desculpe, mas..." ou: "Tentei e tive ânsia de vômito..." etc. e tal. Mas existem diferentes significados possíveis para a recordação. Recordar pode, por exemplo, funcionar como arma para o ressentimento, para alimentar um desejo de vingança contra o outro e se regozijar da própria impotência. É nesse sentido que Nietzche coloca o esquecimento como algo salutar. Mas recordar pode também significar extrair do passado o que ele carrega de brilho, de fulgor, de lampejo capaz de expandir e intensificar a vida presente, mesmo que se tenha que mergulhar em coisas escuras como o terror e a morte. Nesse sentido, o recordar significa usar da lembrança para recuperar do passado o que ele carrega de vida e poder, assim, enterrar os mortos. E, finalmente, poder esquecer.

Por outro lado, a tortura no Brasil ainda não é somente passado, história. Ainda se torturam presos comuns nas delegacias e nos presídios!