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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.10 n.1 Brasília  1990

 

Produtividade versus saúde mental do trabalhador?

 

 

O depoimento de Sigmar Malvezzi, psicólogo e professor do Instituto de Psicologia da USP e da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, faz uma avaliação desde as expectativas na contratação de psicólogos pelas organizações até os objetivos alcançados, ou não, por psicólogos, sobretudo, ao se considerar uma proposta de se tornarem agentes de mudanças.

A Psicologia do trabalho se fez presente na sociedade brasileira desde os anos 40 e evoluiu bastante, a partir dos anos 60. Teve muito prestígio nos anos 70 e diria que está definitivamente consolidada hoje.

Há uma enorme variedade de razões pelas quais os psicólogos são chamados para trabalhar dentro das empresas. Há pessoas ou empresas que contratam psicólogos para área de Recursos Humanos porque se diz por aí que os psicólogos devem fazer tais serviços, sem possuírem qualquer consciência das razões pelas quais os contratam. Outras empresas estão muito conscientes de seus objetivos, valores e projetos políticos, e contratam o psicólogo como um profissional fundamental para a realização destes valores e destes projetos. Entre um extremo e outro, encontram-se inumeráveis graduações.

Diria que a atuação do psicólogo, dentro desse chamamento tão heterogêneo pelas empresas, é igualmente variada. Alguns psicólogos estão conscientes de que trabalham numa organização, isto é, conhecem os objetivos, as limitações e os percalços da organização e atuam como membros dela. Procuram avaliar o produto de seu trabalho como uma variável organizacional, como parte de um processo organizacional e como parte das relações de trabalho.

Há um outro grupo de psicólogos que não está consciente de trabalhar em organização, pois se sentem como profissionais liberais que estão no lugar errado, como se a organização os atrapalhasse. Ficam limitados apenas a ver o resultado de seu trabalho como expressão de um indivíduo que ele avalia com parâmetros trazidos de sua formação acadêmica, isto é, se tal comportamento é normal ou patológico. Novamente, encontramos os que se colocam entre estes dois extremos como se se distribuíssem em uma escala de graduações.

Até agora situei os psicólogos que trabalham como funcionários de empresas. Também existe o consultor de empresas (é assim que me defino como profissional) que tem um olho mais sensível e um braço mais experimentado para colaborar com a empresa. Um dos objetivos principais do meu trabalho é sempre treinar e desenvolver os profissionais que me contratam. Por isso me coloco como um aliado deles, mas, ao mesmo tempo, um aliado que funciona como um crítico com capacidade de espelhar aquilo que fazem de limitador, assim como colocar algumas questões que despertam a reflexão crítica sobre seu trabalho.

Produtividade e saúde mental do trabalhador são dois objetivos distintos e podem, ou não, ser antagônicos. Acho que devem integrar-se ou, pelo menos, espero que se integrem.

Vivemos num momento de escassez e a produtividade não pode ser ignorada, mas ela nao deve ser o único objetivo. Por outro lado, a saúde mental do trabalhador foi sacrificada desde o início da industrialização. O psicólogo deve ter em mente a relação entre o que ele faz e estes dois objetivos. Ele não pode ignorar um dos dois porque a conjuntura da empresa o obriga nesse sentido.

Tenho visto vários trabalhos muito interessantes e promissores que, a médio ou longo prazo, teriam efeito, mas fracassaram porque se ignorou ou se descuidou da produtividade. Por exemplo, imagine um grupo de profissionais que trabalha com recrutamen. to e seleção e que queira desenvolver a participação na atividade de seleção. Então, convida os gerentes requisitantes de novos cargos a serem os selecionadores. Eles trabalham com provas situacionais para que os gerentes possam participar da avaliação dos candidatos. Envolvem os demais funcionários no próprio recrutamento, pedindo para estes indicarem pessoas para trabalhar na empresa. Enfim, é um projeto que pode desenvolver a participação e a consciência crítica dos funcionários sobre Recursos Humanos.

Entretanto, imagine que esse processo seja feito de maneira a desconsiderar que a empresa tem um número de vagas, tem prazos para cumprir e os psicólogos ficam dando mais atenção para detalhes do como fazer do que para a conjuntura da empresa e do "que fazer". Por estar mais lenta a seleção, começam a chegar reclamações, surgem outros problemas e pode chegar um dia em que o projeto é cortado e visto como prejudicial para a empresa.

O psicólogo não deve perder de vista que seu compromisso é com a saúde mental do trabalhador, que traduzo como o desenvolvimento da liberdade e a realização das potencialidades do indivíduo e da qualidade de vida do trabalhador. Para atingir estes objetivos, o psicólogo precisa levar em conta uma estratégia, tendo em vista o confronto da proposta com valores radicalmente opostos a ela. Não é uma questão de cooptação, mas de estratégia: pode-se conseguir muito indo mais devagar; comprometer-se não somente com o presente, mas com as gerações que virão a seguir.

O psicólogo é um agente de mudanças e só pode assumir este papel se ele compreender os conflitos que a sociedade atual apresenta, particularmente se compreender os conflitos internos de sua instituição e das instituições de fronteira com as dele. Se não tiver uma reflexão segura a esse respeito não será um agente de mudanças, por mais idéias que tenha.

É muito difícil de ser definido um critério específico de sucesso de um trabalho de intervenção do psicólogo. Somos chamados para participar de projetos e de objetivos tão diversos que sintetizar um critério é muito complicado. Por exemplo, uma empresa pode chamar um consultor porque ela está absolutamente desorganizada, confusa e assistematizada. Nessas condições, a experiência mostra que é preciso desenvolver certos passos inciais, sem os quais é difícil realizar qualquer outro trabalho. Nesse sentido, o fato de se conseguir chegar a patamares mais rudimentares dará condições de se propor em seguida algum projeto mais diferenciado.

Um exemplo de minha própria experiência pode ser relatado. Numa empresa, quem fazia na prática o recrutamento de pessoal eram os guardas da portaria que aceitavam, ou não, determinadas pessoas que apareciam espontaneamente como candidatos. Essa empresa não tinha garantido sequer o acesso livre aos candidatos para a recepção do recrutamento.

Neste caso, foi preciso desenvolver um primeiro estágio mínimo de organização que a empresa não tinha adotado até então. Este é um primeiro critério para a intervenção do psicólogo.

Um segundo critério geral é o de levar os profissionais no seu conjunto, e não individualmente, a refletirem de forma crítica sobre seu trabalho, de tal maneira que tenham autonomia e maturidade de análise. Por exemplo, uma atividade que faço com muita freqüência é o de pedir um seminário com os que me contratam. Em geral, peço para os profissionais de Recursos Humanos que se submetam ao seminário para que eles analisem seu próprio trabalho de seleção, de treinamento etc. Aí coloco sugestões e propostas ou até realizo determinadas atividades com a expectativa de que eles sejam sempre críticos daquilo que vai ser feito. Para mim, não importa dar uma simples resposta para um pedido mas me preocupo em levar o grupo a pensar sobre o que é uma política, que alternativas existem, de tal maneira que eles continuem pensando criticamente.

Um terceiro critério para a atuação do psicólogo no caso de ser um consultor, é a condição do grupo de profissionais da empresa ser capaz de continuar sozinho ou, pelo menos, ir diminuindo a participação ou a dependência do consultor.

Acho que todo trabalho tem um quê de sucesso e um outro de fracasso. Em qualquer trabalho concluído, penso sobre o fracasso e o sucesso. Nesse sentido, o fracasso é cotidiano e sempre conto com ele. É sempre um ponto de reflexão crítica que faço sobre meu próprio trabalho. Ele advém de várias determinantes: pode advir de uma configuração errada do problema, das dificuldades de controlar determinados processos que foram bem planejados, mas que fugiram do controle etc. Assim, o fracasso é um fato extremamente relevante como um fato pedagógico".