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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.26 n.4 Brasília dez. 2006

 

EXPERIÊNCIAS

 

Uma vida que não vale nada: prisão e abandono político-social

 

A worthless life: prison and political social abandonment

 

 

Vania Conselheiro Sequeira*

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é contribuir para a compreensão crítica do crime e da pena de prisão, a partir do questionamento dos fundamentos do sistema prisional em nossa sociedade. A Lei de Execução Penal defende uma terapêutica prisional que levará à reeducação e à ressocialização do preso .A reinserção por meio da exclusão é uma incoerência a ser decifrada e quiçá superada. Este texto estabelece uma dialogia entre o homem dito criminoso e o estrangeiro, de Albert Camus, tomado aqui como metáfora da condição humana, tendo como ponto de articulação o conceito de homo sacer proposto por Giorgio Agamben.

Palavras-chave: Crime, Pena, Prisão, Homo sacer, Estrangeiro.


ABSTRACT

The aim of this study is to contribute for crime and prision critical comprehension, penalty that starts to question the prisional system fundamentals in our society. The Penal Execution Law defends a prisionaltherapeutic which leads to the reeducation and to the resocialization of theprisoner. Insertion through exclusion is a incoherence to be deciphered and maybe overcome. A life that isn't worth - this is the dialogy between the man said to be a criminal and the foreigner of Albert Camus, taken here as a metaphor of the human condition, having as a point of articulation the homo sacer proposed by Giorgio Agamben.

Keywords: Crime, Penalty, Prison, Homo sacer, Foreigner/Stranger.


 

 

Homo sacer

Proponho, neste trabalho, uma reflexão sobre o lugar reservado àqueles que cometem crimes, transgridem leis, ultrapassam limites, rompem, pelos atos, um suposto pacto social. Escolho iniciar este trabalho a partir de uma discussão sobre o conceito de homo sacer, proposto por Agamben (1995/2002), conceito que designa um ser cuja vida nada vale, uma vida matável, uma figura enigmática, obscura, porque contém em si sentidos contraditórios: o sagrado, o impuro e o não sacrificável. A vida do homo sacer se situa no cruzamento entre a "matabilidade" e a "insacrificabilidade", fora tanto do direito humano quanto do divino. O termo sacer indica o enigma de uma figura do sagrado aquém ou além do religioso (1995/2002, p.16), uma figura obscura do Direito romano arcaico, que foi julgada por um delito, e que, a partir disso, não é considerada pura e não pode ser oferecida em sacrifício; porém, se for assassinada, seu assassino não é considerado um homicida. Agamben retoma a expressão sacer esto - impune occidi, que indica exclusão do sacrifício, e o termo Sacrum, que indica o que é destinado aos deuses. Isso nos leva à dificuldade conceitual do significado do termo homo sacer, pois, enquanto é vetado violar coisas sacras, é lícito matar o homem sacro. Se o homo sacer era vítima de sacrifício arcaico, poderíamos entender que sua morte fosse defendida na forma prescrita de um ritual; porém não se trata disso, embora pudessem matá-lo sem que isso fosse sacrilégio ou contaminasse (tornasse impuro) seu autor. Alguns afirmam que esse conceito é resíduo de uma época em que o Direito penal e o religioso eram indistintos, sendo essa a mais antiga forma de penalidade do Direito criminal romano.

Agamben entende o homo sacer como um conceito - limite do ordenamento social romano, eliminando a possibilidade de compreender esse conceito simplesmente pela ambigüidade do sagrado. Aponta ressonâncias da categoria religiosa do sagrado, que atravessa um processo irrevogável de dessemantização que a leva a assumir significados opostos e reunir, em si, traços contraditórios:"(...)na vida dos conceitos, há um momento em que eles perdem sua inteligibilidade imediata e, como todo termo vazio, podem carregar-se de sentidos contraditórios.(...) Nenhuma ambivalência religiosa pode dar conta de explicar o fenômeno político-jurídico da antiga acepção do termo sacer." (1995/2002, p. 88).

O autor discute os conceitos de bíos (forma de viver própria do individuo e do grupo) e zoé (vida comum a todos os seres vivos, a vida nua). Existem laços que unem o simples viver e a vida política. O caráter sagrado da vida tornou-se familiar no discurso moderno, mas, na Grécia antiga, berço dos nossos conceitos éticos e políticos, não havia um termo para o que designamos vida. A oposição entre bíos e zoé nada tem em si que possa levar a pensar em uma sacralidade da vida como tal. Para tornar a vida sagrada, os gregos a separavam do mundo dos viventes, a partir de rituais que eliminavam seu aspecto profano.

A definição de homo sacer está não na ambivalência inerente à sacralidade, mas sim, na dupla exclusão do terreno dos homens e dos deuses. Surge uma dupla subtração, que se abre entre o profano e o religioso, em uma zona de indistinção cujo significado buscamos compreender.

Seria diferente se houvesse sacrifício, transformação pelo ritual de algo impuro em sagrado, mas o homo sacer é simplesmente posto para fora da jurisdição humana, sem passar para a divina. O homo sacer pertence a Deus na forma de sua "insacrificabilidade", e é incluído na comunidade por meio da exclusão, de sua "matabilidade". Sua morte não é sacrifício, nem sacrilégio. Por isso, Agamben prefere lançar luz sobre uma zona que precede o sacro e o profano, o religioso e o jurídico e que, para ele, constitui o primeiro paradigma do espaço político do Ocidente: o estado de exceção.

Retoma Michel Foucault o assunto, em sua discussão sobre a biopolítica, afirmando que, se o homem era um ser vivente capaz de existência política, o homem moderno passou a ser um animal, cuja política coloca em questão sua vida de ser vivente, que controla, através de técnicas políticas, a zoé. O poder penetra o corpo e o modo de viver das pessoas. Para Agamben, a vida sacra é o oculto ponto de intersecção entre o modelo jurídico institucional e o modelo biopolítico do poder, a vida nua na pólis. Retifica a tese foucaultiana, já que considera que a inclusão da zoé na pólis pode ser mais antiga do que Foucault supunha. Considera como fato decisivo que a modernidade seja regrada por um Estado, "pelo qual a exceção se torna, em todos os lugares, a regra; o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente coincidir com o espaço político, e exclusão - inclusão (...) entram em uma zona de irredutível indistinção" (1995/2002, p.16).

O estado de exceção da vida nua é o fundamento oculto sobre o qual repousa o ordenamento político. A vida nua torna-se sujeito e objeto do ordenamento político e de seus conflitos e ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da sua emancipação. Para o autor, as conquistas democráticas não conseguiram salvar a zoé. O problema central da atualidade está na sacralidade da vida. Considera os campos de concentração, de extermínio, no fascismo e no nazismo, fraturas fundamentais da modernidade: "O campo, espaço puro da exceção, é o paradigma biopolítico para o qual (...) não consegue encontrar solução" (1995/2002, p.140).

Compreende a exceção como uma espécie de exclusão, um caso singular à margem das normas gerais, mas que mantém uma relação com a norma, na forma de suspensão. A exceção é ex-capere, capturada por fora, e não só excluída. No caminho de elucidação da exclusão, retoma um termo hebraico - bando - herem - entendido como pecador ímpio, como inimigo da comunidade, aquele que deveria receber a total destruição. O verbo banir tem relação com consagrar, e envolve a destruição de tudo que uma pessoa possa ter. O termo bando não quer dizer inteiramente dentro ou fora do ordenamento, em italiano - in bando ou a bandono significa à mercê de, a seu talante, livre, e a bandono e bandito quer dizer excluído, posto de lado, aberto a todos, livre. Bando é uma forma de relação, o que nos leva a pensar que não existe o fora da lei, existe o abandono, que é uma forma de relação entre a vida e a lei.

Há relação entre o estado de exceção e o termo bando: "Aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem" (1995/2002, p.36). Bando e tabu estão implicados nessa ambigüidade do sacro, assim como na exclusão-inclusão do puro e do impuro.

Agamben compreende o homo sacer e o soberano como figuras simétricas. A soberania é a lei além da lei, à qual somos submetidos; uma forma pura de lei é uma forma vazia de relação, mas a forma vazia da relação não é a lei, mas uma zona de indiscernibilidade entre lei e vida, um estado de exceção. Agamben indica uma estrutura ontológica do abandono, tanto na atualidade como na história do Ocidente, entendida como tempo do abandono:"Abandonar é remeter, confiar ou entregar a um poder soberano, e remeter, confiar ou entregar ao seu bando, isto é, à sua proclamação, à sua convocação e à sua sentença. Abandona-se sempre a uma lei...o banido é também abandonado fora de qualquer jurisdição(...) O abandono respeita a lei, não pode fazer de outro modo." (Jean-Luc Nancy, apud Agamben, 1995/2002, p.66).

Agamben busca, na teoria do estado de exceção, de Carl Schmitt1, um paradigma bastante atual, uma forma de governo dominante na política contemporânea.O estado de exceção "é aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual pertence e não pode pertencer ao conjunto no qual está desde sempre incluído" (1995, p.32). Por isso, considera os campos de concentração e extermínio como paradigma biopolítico do Ocidente: "quando nosso tempo procurou dar uma localização visível permanente a esse ilocalizável (o estado de exceção), o resultado foi o campo de concentração" (1995/2002, p.27).

Agamben ratifica a tese de Badiou, de que o Estado não se forma sobre um liame social, mas sobre sua dissolução, dissolução essa não de vínculo preexistente, mas de um vínculo que "(...) tem ele mesmo originariamente a forma de dissolução ou de uma exceção, na qual o que é capturado é, ao mesmo tempo, excluído, e a vida humana se politiza somente através do abandono a um poder incondicionado de morte" (1995/2002, p.98). Essa dissolução implica e produz a vida nua, e a vida nua (a vida sacra) fica como ponto de entrelaçamento entre a política e a vida, já que a política moderna entrou em simbiose com a vida nua. Badiou faz uma distinção entre pertencimento/apresentação e inclusão/ representação, pois algo pertence a uma situação quando contado como unidade, apresentado na singularidade, como os indivíduos na sociedade; já para estar incluído, é preciso ser representado na estrutura, no Estado.

O Direito não possui existência por si só, mas existe pela vida dos homens, se nutre dela, tenta capturá-la para dentro de si pela exceção, confirmando que a regra vive pela exceção: "a lei aplica-se desaplicando-se, mantém-no em seu bando, abandonando-o fora de si" (1995/2002, p.57). Portanto, há uma ambigüidade semântica e política no abandono. O que foi posto em bando foi remetido à própria separação, à mercê de quem abandona, excluso e incluso, dispensado e capturado. Badiou nos alerta: "é essa estrutura de bando que devemos aprender a reconhecer nas relações políticas e nos espaços públicos em que ainda vivemos"(apud Agamben,1995/2002, p.117).

Fiz esse percurso, por considerar essa uma discussão fundamental: a lógica de exclusão-inclusiva que embasa o Estado e a lei. Um paradoxo do estado de exceção, já que nele é impossível distinguir a transgressão da lei e a sua execução, que coincidem, produzindo resíduos... E retomo a vida sacra para estender sua aplicabilidade à vida do bandido:

Observemos agora a vida do homo sacer, ou aquelas, em muitos aspectos similares, do bandido, do Friedlos, do acquale et igni interdictus. Ele foi excluído da comunidade religiosa e de toda vida política: não pode participar dos ritos de sua gens, nem (se foi declarado infamis et intestabilis) cumprir qualquer ato jurídico válido. Além disto, visto que qualquer um pode matá-lo sem cometer homicídio, a sua inteira existência é reduzida a uma vida nua, despojada de todo direito, que ele pode somente salvar em uma perpétua fuga ou evadindo-se em um país estrangeiro. Contudo, justamente por ser exposto a todo instante a uma incondicionada ameaça de morte, ele encontra-se em perene relação com o poder que o baniu. Ele é pura zoé, mas a sua zoé é capturada como tal no bando soberano e deve, a cada momento, ajustar contas com este, encontrar o modo de esquivá-lo ou de enganá-lo. Nesse sentido, como sabem os exilados e os banidos, nenhuma vida é mais "política" que a sua (Agamben,1995/2002, p.189).

A proposta deste trabalho é olhar em volta, no entorno, verificar quem sofre esse abandonamento, quem ocupa o lugar de homo sacer e refletir sobre essa vida inerentemente política, na qual a lei se aplica, desaplicando-se.

 

Um bandido ou um abandonado?

Realizei atendimentos a homens presos, por cerca de quatro anos; um dia qualquer, a caminho do lugar que me foi destinado para realizar atendimentos, encontro um preso que me espera. Severino2 me procura pra dizer que teve o pedido de progressão de pena negado, que vai ficar mais tempo ali dentro, que não agüenta mais, que não sabe o que deu errado. Não há expressão de dor ou sofrimento em seu rosto, nada se altera nele, apesar de essa fala ser um desabafo. Assim como durante todos os meses que o atendi, nada se alterou em seu olhar, gestos, postura corporal, etc.

Sempre penso nele, nos atendimentos, naquela vida; afinal, ele tem ciqüenta e um anos e quase vinte e sete anos de prisão; saiu e voltou da prisão várias vezes. Penso no que ele quer da vida, para que vida quer voltar, já que está ali há tanto tempo que parece se confundir com a própria cadeia. Seus delitos foram predominantemente roubos, furtos e estelionatos, embora tenha também um latrocínio em que diz ter envolvimento, e não culpa.

Fico pensando em quem fez o exame para progressão da pena, pois ele me contou que a psicóloga dera parecer negativo. Eu o atendi durante meses, seu discurso estava institucionalizado, vinte e sete anos de prisão deixam marcas, não havia como saber quem estava ali, atrás da instituição representada nele e por ele. Esse atendimento durou cerca de quatro meses, até a interferência de uma psicóloga da penitenciária, que o chamou porque ele era o próximo da sua lista, e disse-lhe que ele devia escolher entre o atendimento dela, que conhecia os presos, e o meu (eu não era funcionária da penitenciária), que nada sabia sobre presos (sic). Ele me disse que teve medo de que sua recusa em aceitar o atendimento dela interferisse no parecer da progressão da pena. Interrompeu o atendimento que fazia comigo, agora me procura para contar o que ocorreu, e parece demandar algo.

Lembro-me de como suas sessões eram difíceis pra mim; tudo o que dizia parecia pronto demais, palavras vazias, havia algo nele que não deixava fazer contato, um muro no olhar, nos gestos, na expressão inalterada do rosto, fruto dos vinte e sete anos de aprisionamento. Contou que roubava sempre que estava bêbado, que se sentia mais forte roubando, que conseguia mulheres e dinheiro quando embriagado, e não conseguia nada quando sóbrio, que tinha complexo de inferioridade, que isso era assim desde criança (sic).

Começo o atendimento pedindo para me falar mais sobre o seu complexo de inferioridade e sobre sua história de vida. Severino me contou que sua família é do Paraná. Em toda sessão, contava-me que o pai batia muito nele; lembrava que ele o deixava em exposição, amarrado no quintal. Tem oito irmãos, é o mais velho. Até os sete anos, morou num sítio; depois foi para a cidade. Sua família passou muita dificuldade; lembra de ter pouca coisa para comer e de vestir roupas velhas que o deixavam envergonhado. Era inibido desde criança, na escola ou na rua, com os amigos, e sempre se sentia fora do grupo. Tinha muita vergonha, não conseguia conversar, fazer a lição na lousa, etc. Começa a beber lá pelos doze anos, quando o pai trabalhava numa venda. Comenta que os pais não conversavam entre eles, e nem com os filhos; lembra de fazer arte e apanhar muito, de sua mãe sempre cansada de tanta criança pra cuidar.

Perde a mãe lá pelos quinze anos, ela adoece, não sabe o que foi que ela teve, mas sente culpa porque não cumpriu a promessa que fez à mãe, de cuidar dos irmãos e não deixar o pai separá-los. Sua família acabou toda dividida, depois da morte da mãe.

Fugiu de casa, começou diversos trabalhos, já foi manobrista, lembra de uma época em que estava bem na vida, ganhava bem, gastava, bebia, pagava tudo para todo mundo, aí perdia o trabalho. Chegou a cuidar de três estacionamentos; era um excelente manobrista, e perdeu o trabalho porque bebia demais. Conta que, sem beber, não fazia nada errado, mas também não conseguia se relacionar com as pessoas; bebia para poder conversar, arrumar namorada, e acabava se metendo em encrencas pra conseguir dinheiro.

Quem se importou com ele quando parou a escola, quando começou a beber ainda menino, quando tinha vergonha e ficava isolado das outras crianças? Quando fugiu de casa? Quando perdeu a mãe? E como vivenciou o fato de não ter dado conta de cuidar da família, como prometera à mãe em seu leito de morte? Quem se importou com ele quando bebia e se metia em encrencas? Quando bebia para conseguir o que não conseguia sóbrio ou quando bebia para destruir o que tinha conseguido sóbrio? Quem se importou com ele, quando foi preso pela primeira vez? pela segunda vez? pela terceira? Quando fugia do semi-aberto? Por que fugiu, quando estava tão perto de sair (afinal estava no semi-aberto)? Quem se importa com seus vinte e sete anos de cadeia? Quem se importa se ele vai ter que esperar mais tempo para ter sua liberdade? E quem se importa com o que ele vai fazer depois?

Essa indiferença constante no seu olhar, em sua postura, me lembrou Meursault, personagem de O Estrangeiro, de Camus, e vou deixar-me levar por essa insistente associação.

 

O estrangeiro

Quero retomar o texto de Camus (1957/1980) para marcar minhas impressões sobre ele e para podermos seguir nessa reflexão. Entendo Meursault como narrador de sua própria história; sem ser personagem principal da própria vida, ele vai vivendo cada momento, o dia, a noite, o desejo, a morte, a vida.

A abertura do romance se dá com a morte da mãe e sua relação de distância com esse fato: "hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem" (1957/1980, p.7) . Não sabe ao certo o dia em que a mãe morreu, nem a idade dela.

Sua mãe morava em um asilo. Outrora viveram juntos, mas, como não tinham mais assunto um com outro, e ele também não tinha recursos financeiros, resolveu mandá-la para um asilo. Quando comunicado de sua morte, viaja até lá, está presente em seu velório e em seu enterro, mas de forma ausente, como se nada tivesse a ver com aquilo.Volta de viagem, desviando-se de contato com conhecidos para evitar comentários sobre a morte da mãe. Volta ao trabalho. Estabelece uma relação agradável com um vizinho, mas afirma que lhe é indiferente o fato de ser ou não amigo dele. Reencontra uma colega de trabalho a quem desejou, ficam juntos. O que sente por ela? Ele a deseja, mas não lhe quer bem ou mal, simplesmente a deseja . Ela pergunta se ele a ama e se casaria com ela; ele diz não saber, depois afirma que não a ama, mas que se ela quisesse casar, casar-se-ia com ela.

Meursault é francês e vive em Argel, funcionário de escritório, aparentemente sem ambição; recusa uma proposta de trabalho em Paris, alegando que não tem interesse em mudar de vida porque, segundo ele, não se muda de vida realmente. Vive seu dia a dia, sua rotina. Num final de semana, recebe o convite do amigo para ir à casa de praia de um conhecido; esse amigo vem tendo problemas com um árabe, sente-se ameaçado. Na praia, encontram alguns árabes, brigam, voltam à casa de praia. Meursault sai sozinho, sem razão aparente, e volta ao local onde estiveram. Encontra o árabe, brigam e ele o mata.

Um homem para o qual viver é indiferente, acorda, vai trabalhar, namora e vai ao enterro da mãe, como se nada o tocasse, como se o que realmente importasse fosse o calor, que aparece em diversos momentos do texto como algo que o incomoda e lhe provoca emoções. Quando lhe perguntam sobre o motivo do assassinato, diz que foi por causa do sol.

A segunda parte do livro é uma narrativa sobre o julgamento, as testemunhas, as meias verdades, tanto da defesa como da acusação. O que me impressiona é que o texto mostra um homem sendo condenado pelo que é, e não pelo que fez; isso me faz questionar se nosso sistema penal não faz a mesma coisa, já que a prisão é para os pobres, basta adentrá-la para conferir; tal fato é notório também pelo quanto sua indiferença em relação ao cotidiano, e não mais seu ato, tomou papel central no seu julgamento. O livro termina narrando a espera da execução da condenação, a sua recusa em receber um padre, que quer, a todo custo, consolá-lo frente ao inconsolável. Em sua última noite, pensa na mãe, no quanto ela deve ter se sentido liberada e pronta a reviver tudo perto de sua morte, assim como ele, que se abria pela primeira vez à indiferença do mundo. Descobre que tinha sido e era feliz, e que só lhe faltava desejar que houvesse espectadores no dia de sua execução, para que o recebessem com gritos de ódio e ele se sentisse menos só.

Meursault é o personagem de um romance dramático sobre a existência humana. O romance denuncia um homem comum, indiferente à própria vida, com suas contradições, ambivalências e escolhas pouco refletidas, num mundo indiferente a ele. Um paradigma da alteridade:

Condenado, expiado, esvaziado de esperança, Mersault expõe-se à indiferença do mundo. Não era mais um estrangeiro, mas um homem universal, que não precisava mais da clemência dos homens. Camus/ Mersault, Mesmo / Outro, unidade indissolúvel, dialogia eterna, é o que o romance transmite em sua inteireza paradigmática. O resgate dessa unidade prevê, porém, um ato último, definitivo e fatal, que faz reaparecer a estrangeiridade que existe em cada um de nos, a cada dia e a cada hora, a cada tristeza e a cada alegria, nessa nau de insensatos que vive a tirania do outro e que caracteriza as desfigurações da contemporaneidade (Carvalho, 1998, p. 35).

 

O criminoso, um homo sacer: bandido, abandonado, estrangeiro...

É sob essa nau de insensatos e sob as desfigurações da contemporaneidade (Carvalho, 1998) que quero concluir este trabalho. Agamben nos diz que o protagonista de seu livro é a vida nua, eliminável, do homo sacer, "cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar" (1995/2002, p.16), e nos convoca a tomar posição quando diz que o primeiro problema de todos é a sacralidade da vida, e que as ciências humanas precisariam fazer uma revisão sem reservas de seus pressupostos. Os enigmas da atualidade precisam ser pensados a partir da biopolítica, a partir de uma interrogação sobre a relação entre a vida nua e a política, que governa as ideologias da modernidade. O referido autor anuncia a necessidade de se abrir um campo de pesquisa sobre esse ser, somente sobre sua nua existência, que jaz além da intersecção político-filosófica, das ciências médico-biológicas e que, antes disso, na fronteira das disciplinas, se possa verificar como algo como a vida nua pode ter sido pensada e o que a levou a um limite além do qual não podemos prosseguir, sob o risco de uma catástrofe biopolítica sem precedentes. Quero aceitar o convite de Agamben e correr o risco, e olhar em volta, no entorno, e pensar sobre as múltiplas formas de abandonamentos. Quantos estão vivendo sob essa exclusão-inclusiva? Quando olhamos nossas prisões e o número de condenados se multiplicando rapidamente, assim como vemos nossos jovens em instituições como a FEBEM, não fica a sensação de milhares de homens-feras, abandonados em algum limbo, entre o humano e o inumano?

Parece que as vidas do bandido, do abandonado, do exilado, do estrangeiro, tal qual a do homo sacer, estão no limiar do direito e da lei, regidas pelo estado de exceção, numa exclusão-inclusiva, numa lógica cruel, já que segrega, separa, e coloca-as à mercê daquele que segregou, num processo de captura.

Acredito que Severino e Meursault sejam exemplos dessa vida sacra, que está sob a lei, mas sob uma lei que vigora sem se efetivar, cuja riqueza do significado falha, e nada aparece para suprir esse lugar, lei ausente em sua aplicabilidade.

A Lei de Execução Penal defende um tratamento prisional que deve propiciar a reeducação e a ressocialização do preso. O sistema penal trabalha com a idéia da reabilitação do preso; esse é o discurso oficial que legitima o aprisionamento. Acredito que precisemos discutir essas concepções e suas raízes ideológicas, porque a reinserção por meio da exclusão é uma incoerência a ser decifrada, já que não acredito que a prisão seja um fracasso. Foucault nos ensina que ela fracassa desde o início, e todos sabem disso, ou seja, trata-se de um jogo perverso de exclusão-inclusão, de um sucesso em termos de desenvolvimento da marginalidade social.

A prisão é uma lixeira humana, um lugar de horror, de total invisibilidade, um lugar de aniquilamento do homem, de aprisionamento do ser. Condições desumanas, ou, como me ensinam os presos, um lugar onde não se dorme sossegado, onde ninguém confia em ninguém, nem se garante quem estará vivo amanhã, um lugar fora da lei. Em nome da lei e de um suposto tratamento penal, encontramos homens abandonados, em bandos, excluídos, sem lugar, embora incluídos pela lei. Uma constatação é inevitável: o não-lugar mata o homem em vida. É possível pactuar com esse não-lugar reservado aos que vivem em conflito com a lei?

É um absurdo que, em nome da lei, alguém tenha que se submeter a condições subumanas de vida, não tenha possibilidades de desenvolvimento pessoal, cultural, educacional ou de formação e qualificação profissional, que tenha que se submeter a regras de sociabilidade nas quais predomina uma lógica de favores e benefícios ditados por aqueles que têm poder sobre os outros, inclusive sobre a vida dos outros. A prisão parece destituir o sujeito de si mesmo, fazer a sua captura e incluí-lo numa lei perversa, onde predomina o mais forte, uma lei sem lei, onde inclusive os representantes da lei (policiais, funcionários das penitenciárias, advogados, etc), muitas vezes, agem fora da lei. É inacreditável que o preso encontre abrigo e proteção dentro da cadeia, na maioria das vezes, junto daqueles que agem ilegalmente.

Na prisão, há uma apropriação da vida da pessoa; ela é raptada da sua rede de relações e é colocada sob o Outro sem limites, como se fosse para um lugar sem lei. Essa lei fora da lei é que vigora na prisão; por isso, penso que a prisão aprisiona o homem para capturá-lo e engendrá-lo numa lógica cuja sobrevivência depende de negociações fora da lei, tudo isso em nome da lei e sem que ninguém, absolutamente ninguém da nossa boa sociedade, se manifeste contra isso. Na realidade, apesar do discurso ideológico da Lei de Execuções Penais, estamos sob uma lógica penal vingativa, com o objetivo de destruir esse outro à margem da sociedade; portanto, o que predomina é o caráter ilegal da prisão.

Acredito que poderíamos ter uma outra situação penal se, de fato, a lei fosse aplicada, efetivada, onde os objetivos de reabilitação, ressocialização e reeducação dos presos fossem metas a serem alcançadas e não palavras vazias da lei, palavras tão esvaziadas de sentido que ouvi, várias vezes, funcionários me perguntarem com qual reeducando queria falar, com risadinhas e em tom irônico, num gesto que denuncia a representação teatral em que vivem. Se tivéssemos como referência a Lei simbólica, a pena poderia ser entendida como marca possibilitadora de o sujeito incluir-se na lei, como uma chance ofertada à pessoa, convocando o sujeito que nela existe a apropriar-se de sua vida.

Quero pensar em Severino (tantos com o mesmo nome de pia, e com a mesma vida Severina) e em Meursault, na estrangeiridade que os une e sobre esse estar num mundo sem fazer parte dele, ou melhor, participar dele pela exclusão.

Essa inclusão sem pertencimento ou esse pertencimento sem inclusão me remete ao estrangeiro como conceito - limite entre o político e o psicanalítico, como propõe Koltai (2000), entre o sujeito e a sociedade. Podemos perceber que o criminoso é colocado nesse lugar de estrangeiro, de gozo, do que é recalcado e, portanto, rejeitado, mas presente em todos nós; enfim, do estranho, discutido por Freud (1919/1980) como aquele conteúdo que esteve presente em nós, foi recalcado e volta à consciência, na figura do que nos parece estranho, sendo, na verdade, muito familiar. O criminoso é tratado como um estrangeiro? Parece que sim; o olhar é de fora para dentro, como se olha um estrangeiro; o lugar do diferente lhe é reservado, automaticamente, pelas pessoas. Essa atitude é movida por um mecanismo de defesa, que tenta impedir o contato com o recalcado, com o potencial criminoso, ou melhor, com as características nem sempre boas, mas existentes na natureza humana e bem demonstradas por Freud.

Severino me parece estrangeiro porque está numa terra que não é a dele, mas, de tal modo encarnada nele que, quando sair da prisão e voltar ao suposto lugar de origem, também não será como os que lá ficaram. Não faz parte da malandragem da cadeia e nem da boa sociedade; vive num lugar entre lá e cá. Devíamos pensar no lugar sem lugar em que ele é colocado; estar incluído pela exclusão, pertencendo sem pertencer.

Quantos estão nesse lugar? Quantos são banidos da sociedade, cotidianamente, não arrumam trabalho, não têm escola decente, não têm moradia, comida e nem acesso a serviços de saúde? Quantos vivem uma vida que não vale nada? Mas, voltemos a Severino; ele parece sucumbir, totalmente apático, mantém a mesma expressão diante de algo que o alegre ou o entristeça; parece um zumbi, um morto-vivo, ou, como diz Agamben, no limite da dor, não subsiste nada além das condições de tempo e espaço (1995/2002, p.191).

E resta a pergunta: Que vida é essa? Meursault, estrangeiro que também é criminoso, toca-me em seu desamparo, ou melhor, na falta de amparo, na solidão e na distância que tem de si e dos outros, enfim, no estrangeiro que é para si e para os outros, assim como cada um de nós, estrangeiro como Severino ou como os ditos criminosos, esses estranhos que ultrapassaram a barreira, que realizaram o irrealizável, sem falar na sua indiferença para com o mundo ou na do mundo para com eles, ou ambas as coisas. Enfim, na vida desse outro que vale tão pouco.

Como é a vida daqueles que violaram os direitos e as leis? Será que não viveram cotidianamente sob a violação de seus direitos e das mesmas leis que hoje transgridem? Isso traz à tona mais uma questão, que, embora não seja o objetivo deste trabalho, não consigo deixar de apontar: como se dá a relação entre perversão, crime e sociedade? Tudo indica que não é tão simples como aparentemente poderíamos supor, se caíssemos no engodo ideológico de que os presos ou condenados são monstros e de que os criminosos são o exemplo da estrutura de personalidade perversa. Acho que é preciso caminhar mais, ir além do discurso pronto sobre o transgressor da lei e ir além dos preconceitos:

O estereótipo do criminoso como um indivíduo de alta periculosidade, intratável, mau-caráter, auxilia na caracterização que o indivíduo saudável deve ter para saber como agir quando se defrontar com o mesmo, ao mesmo tempo em que impede a identificação com ele. Quanto mais distintos julgarmos que somos dele, mais protegidos nos sentiremos dos impulsos hostis que nos pertencem. Nesse sentido, os estereótipos evitam termos de pensar como as condições sociais nas quais vivemos e que fortalecemos contribuem para o crime, e quanto nós próprios, nessas condições, poderíamos cometê-los. Em outras palavras, evitam a reflexão sobre o mundo social e sobre nós mesmos. (Crochik, 1997, p.22),

Uma barreira é formada e nos impede de ver a pessoa que ali está, o que ocorreu com ela, com sua vida pessoal e também em que condições concretas pode viver. Ao nos permitirmos uma aproximação, veremos que Severino, assim como muitos outros, não são criminosos tão terríveis; não são também inocentes; são pessoas, com toda a complexidade envolvida: dinâmica psíquica, vida pessoal e familiar, geralmente, com histórias de pobreza, sofrimento, carências e exclusão. O abandono parece anteceder a entrada na prisão; já viviam com poucas ou nenhuma perspectiva de vida e estavam, mesmo em liberdade, sem lugar na sociedade. Eram estrangeiros, sem um lugar que lhes desse, dentro da lei, reconhecimento social.

Quando me ponho a escutar (Zygouris, 1995), é verdade que escuto histórias cruéis, mas também escuto histórias tristes, de abandonamentos, maus-tratos, de sonhos que não puderam sequer serem sonhados, de vidas que nada valiam, aspectos que, acredito eu, contribuíram, e muito, para que emergisse neles esses homens-feras, duros, cruéis, frios, que violam os direitos dos outros, dos bons cidadãos.

Minha experiência me mostra que o crime é um ato humano, um ato predominantemente do homem comum. Portanto, não cabe o uso excessivo da psicopatologia; não acredito que tenhamos mil novos perversos ao mês em São Paulo3. É fundamental humanizar o crime (Lacan, 1950/1998), deixar de colocá-lo como ato não humano, por mais cruel que seja o delito; seu autor é o homem, no exercício de sua humanidade, o que nos remete à produção histórica e social dos processos de subjetivação.

É fundamental que nos questionemos: que sociedade é essa que produz mil novos criminosos ao mês? E, mais que isso, deveríamos pensar que uma sociedade que se funda não no pacto social, como nos ensina Agamben, mas na lógica de exclusão-inclusão, sofre conseqüências no mínimo temíveis, pois, se os laços sociais, que deveriam dar lugar e sustentação ao sujeito, são frágeis ou inexistentes, não garantem valores mínimos de pertencimento e filiação, é obvio que isso terá repercussões nos atos desses sujeitos. Segundo Calligaris, "esses atos seriam necessariamente marginais, fora da lei, pois eles estariam respondendo a uma ausência de lei simbólica, procurando encontrá-la, suscitá-la, de uma certa forma, fundá-la" (1992, p.111).

Uma vida no abandono é uma vida sem valor; isso, ciclicamente, nos remete ao horror. Ao horror de um Estado que governa fora da lei, pela exceção.

 

Referências

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______________. Homo Sacer - le Pouvoir Souverain et la Vie Nue. Paris:Ed. Du Seuil, 1995-1997.        [ Links ]

AGAMBEN, Giorgio. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 16/03/2003.        [ Links ]

CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil. São Paulo: Ed. Escuta, 1992.        [ Links ]

CAMUS, Albert. O Estrangeiro.São Paulo, Ed. Record, 1957-1980.         [ Links ]

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CROCHIK, José L. Preconceito, Indivíduo e Cultura. 2a ed. São Paulo: Robe, 1997.         [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 1975-1977.        [ Links ]

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KOLTAI, Caterina. Política e Psicanálise - o Estrangeiro. São Paulo: Ed. Escuta, 2000.        [ Links ]

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1950-1998.        [ Links ]

MELO NETO, João C. Morte e Vida Severina. In: Poemas Escolhidos. Lisboa: Ed. Portugalia, 1963.        [ Links ]

ZYGOURIS, Radmila. A Vergonha. In:______. Ah! As Belas Lições! São Paulo: Ed. Escuta, 1995.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Prof. João Arruda, 168, aptº 122
05012-000, São Paulo, SP, Brasil
E-mail:vaniasequeira@terra.com.br

Recebido 18/04/06
Reformulado 17/10/06
Aprovado 30/11/06

 

 

* Psicóloga. Psicanalista. Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP. Mestre em Psicologia social pela PUC/SP. Professora Supervisora em Psicologia Jurídica - Universidade
1 Escrita por volta de 1920, inscrevendo o estado de exceção num contexto jurídico.
2 Nome fictício, em menção ao poema de João Cabral de Melo Neto Morte e Vida Severina, já que considero o personagem do poema uma figura emblemática da vida de muitos presos.
3 Número que é resultado da comparação entre aqueles que são presos em São Paulo e aqueles que são liberados das penitenciárias, mensalmente. Dados da Secretaria da Administração Penitenciária.

Agradeço especialmente aos presos, pela generosidade de partilharem as vicissitudes de suas vidas, o que tornou essa pesquisa viável e ao Prof. Dr Edgard de Assis Carvalho, pelas valiosas orientações que me permitiram alçar voôs em busca de novos horizontes.