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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.3 no.4 São Paulo  1998

 

DOSSIÊ

 

Os lieux d'accueil de Bonneuil, um espaço a criar

 

Bonneuil's lieux d'accueil: a place to be created

 

 

Leonardo Arrieta Aranda

Psiccólogo formado pela Universidade Diego Portales, Santiago, Chile

 

 


ABSTRACT

Relato da experiência vivida num dos lugares de acolhida da Escola de Bonneuil junto a quatro adolescentes em dificuldade grave, marginalizados do circuito de escolarização "normal".

Acompanhamento terapêutico; Bonneuil; adolescência.


ABSTRACT

This is a report of a life experience in one of those refuge places at Bonneuil School, together with four teenagers, outcast of the "normal" schooling, presenting severe difficulties.

Therapeutic follow-up; Bonneuil; adolescence.


 

 

Pretendo descrever no presente relato, dentro do que as palavras me permitem, parte da experiência de viver em um dos lieux d'accueil de nuit da École expérimentale de Bonneuil-sur-Marne. Foi uma estada que, junto com outro adulto, me proporcionou conhecer mais de perto a realidade quotidiana de quatro menores com alterações psíquicas diversas, que, excluídos do processo de escolarização normal, encontravam-se como internos nesta escola experimental, que também funciona como hospital-dia.

Parece-me importante começar este relato ressaltando o caráter incerto e variável em que se pode levar a cabo uma relação terapêutica. Assim, encontrar-se responsável, de repente, por três ou quatro adolescentes com alterações psíquicas graves, não diz muito sobre o tipo de trabalho a realizar.

Em oposição às intervenções desenvolvidas pelos modelos psiquiátrico e psicológico, o atuar em questão não encontrava uma linha terapêutica preestabelecida, mostrando-se muito distante dos tipos de intervenções clínico-hospitalares que havia conhecido antes como psicólogo. Não obstante, minha tarefa apresentava-se como um elemento específico entre as múltiplas instâncias que fazem parte da instituição.

Lieu d'accueil como mais um dos diferentes elementos que integram o pôr em prática da idéia de instituição éclatée desenvolvida por Maud Mannoni. Lugar de acolhida que não tem relação direta com a multiplicidade de atividades e ateliês que se desenvolvem na Escola, com o trabalho no exterior a que os menores se integram, com as sessões com o analista ou com as estadas fora de Paris, na casa de artesãos.

Tratava-se de viver com eles, fora do horário escolar, num apartamento que seria nosso albergue comum durante a semana. Estar encarregado da manutenção da casa, de lavar a roupa, da preparação da comida, de ajudar no banho e asseio pessoal daqueles que solicitassem, etc. Um participar de uma vida quotidiana que integra tanto jogos, saídas e diversões quanto a necessidade de estabelecer tarefas e regras de convivência e respeito mútuo. Trabalho destinado a permitir uma abertura do grupo para a vida do bairro, da Escola ou o que podemos entender por uma inserção em direção ao exterior.

Como pode-se supor, o primeiro e maior problema que se apresentou a mim foi o de ter de deixar de lado uma formação psicológica universitária, ao me deparar com o isolamento, a incomunicabilidade, os mundos sintomáticos e os múltiplos sofrimentos em que se organizam muitas das crianças de Bonneuil. Um deixar de lado que não tinha a ver com desconhecer o aprendido, mas onde o papel mesmo do psicólogo, seu atuar e suas explicações não vinham ao caso, não tinham relação com o trabalho a realizar.

As instruções ou normas a seguir eram mínimas, versando fundamentalmente sobre aspectos relacionados com a manutenção do funcionamento da casa e as atividades extra-escolares concernentes a seus membros. O elemento fundamental ao qual se apelava parecia ser a experiência de vida pessoal do adulto responsável e a maneira em que esta poderia contribuir para o espaço de convivência.

O modelo de trabalho não distinguia quadros clínicos. Sabia-se que nos relacionávamos com menores autistas, psicóticos ou afetados por neuroses muito graves, porém não existia um expediente, uma história, um diagnóstico ou uma hipótese clínica que guiassem a intervenção. Na prática, nós nos encontrávamos com pessoas, todas diferentes, como sempre, onde as particularidades de cada um participavam de uma vida em grupo.

Pouco a pouco fui entendendo como minha atuação tinha mais a ver com um acompanhamento e uma reorganização do "em torno" em função do que se necessitasse, em função do que fosse aparecendo. Comecei, assim, a pensar o lieu d'accueil como um lugar social que necessita de uma reorganização permanente para não se paralisar, para não se somatizar, onde eu assumia uma função ativa de interação e dinamismo.

Se já o feito em si de conviver com menores afetados por este tipo de problemas me parecia desde o princípio de uma riqueza formativa importante, o poder entender meu trabalho como um acompanhamento fez-me começar a aprender ainda mais com a experiência. O encontrar-me comprometido como mais uma pessoa neste tipo de dinâmica permitiu-me gradualmente conhecer melhor cada uma das pessoas com quem convivia. Já não se tratava de aprender, através da leitura de um texto, sobre as características de uma anomalia ou as diversas hipóteses ligadas à etiologia da mesma, senão de intervir diretamente e experimentar os efeitos que se produziam tanto em mim como nos demais frente às tarefas quotidianas de toda organização social.

À medida em que se sucederam os meses, minha estada ali adquiria cada vez mais sentido. A ligação com a Escola ou a certas diretivas continuava tão distante como antes, o que me possibilitou estimar a importância desta separação e desta independência. A maneira de fazer as coisas resultava de uma interação diária, própria do grupo, onde o acompanhamento periódico de outros membros da instituição permitia uma discussão e um intercâmbio de opiniões sobre os diversos questionamentos e problemas que pudessem surgir, contribuindo, por sua vez, para uma dialetização da experiência.

Tempos depois, já como responsável pelo lugar de acolhida, pude começar a me fixar mais diretamente na importância de poder diferenciar entre o que seria o estar encarregado de um lugar-grupo e o que é um trabalho que pretende reconhecer a individualidade de cada membro. Na importância de como o fato de articular uma vida quotidiana com estes jovens devia integrar o aparecimento de suas motivações e desejos, e de como tudo isto conduzia a uma série de mudanças dinâmicas de criação. A possibilidade de inaugurar novos marcos de referência, de rearticular as posições subjetivas em jogo dentro de um meio protegido, nos levava a novos modos de interação e expressão que repercutiam em cada trama particular.

É a partir deste último aspecto que pudemos criar e recriar atividades em que os adolescentes envolvidos podiam fazer coisas para as quais apresentavam anteriormente grandes dificuldades, assim como outras que não se julgavam capazes de realizar. Progressos que foram aparecendo na medida em que eles mesmos gradativamente se encarregavam de suas próprias atividades e de como estas iam se sucedendo a novas rotinas.

Estabelecer uma dinâmica flexível, em que cada pessoa podia participar de sua reconstrução, não era fácil, devia se fazer dentro de um marco legal prévio e demandava ao menos o dobro de esforço para cada um de nós. Porém, o fato de se encontrar frente a frente com os próprios desejos tinha, contudo, o atrativo da vida, da criação. Era um compromisso pessoal a partir do qual o adolescente podia se expressar e receber ecos mais diretos de seus próprios atos.

Após mais de um ano de estada ali, e a partir de atos, palavras ou gestos isolados, pude me dar conta da importância, para estes menores e para mim mesmo, de poder ter acesso a este tipo de intercâmbio e valorização do outro. Uma experiência que. em princípio, havia se revelado desestruturada para mim, sem um quadro definido ou carente de uma organização estratégica global, voltava a se apresentar a mim sob um novo ângulo. O sentido deste trabalho era dado por outras coordenadas. Os progressos das crianças de Bonneuil não haviam sido planejados, mas somente eram esperados e haviam sido potencializados pacientemente, para, chegado o momento, passar a se integrar à complexa dinâmica de uma convivência quotidiana.

De vez em quando podia reencontrar certas noções teóricas provenientes da psicanálise, onde a cura e a intervenção possível têm a ver primordialmente com oferecer um espaço onde quem empreenderá todo o trabalho será aquele que está no lugar do paciente.

O fato de se embarcar em um discurso que reconhece o desejo de um outro tem efeitos diretos sobre a posição que este outro pode assumir num relacionamento quotidiano. É uma tarefa que busca resgatar uma independência e uma autonomia que não pôde se cristalizar na relação primordial entre mãe e filho; onde o risco implicado em todo trabalho tenha o seu reconhecimento e permita uma assunção progressiva à diferenciação do outro.

Conheci pessoas diferentes, que pouco a pouco começam a encontrar um lugar e um sentido no interior de uma vida em comum; um lugar onde primeiro poder gritar, logo balbuciar, e talvez articular uma palavra própria. Surgimento de perguntas incomuns, para as quais se esperam apenas respostas simples, algo que possa aliviar ou servir de mediação frente à angústia de uma demanda nascente. Demanda que, se encontra um receptor, se consegue articular-se em uma antecipação simbólica, pode chegar a transbordar em desejo, para começar assim a habitar um corpo, a iniciar sua própria história.

Paris, janeiro de 1998.