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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2021

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p145-164 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p145-164

 

Discursos sobre o risco no contexto da gestão de emergências e desastres

 

Discourse on risk in the context of emergency and disaster management

 

Discursos sobre el riesgo en el contexto de la gestión de emergencias y desastres

 

 

Juliana Catarine Barbosa da Silva*; Jaileila de Araújo Menezes**

 

 


Resumo

Este artigo tem como objetivo compreender e discutir os conceitos de risco produzidos no contexto do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sinpdec). Esse sistema é a instituição brasileira que concentra maior parte das intervenções sobre riscos no contexto das emergências e desastres. Trata-se de uma pesquisa de orientação qualitativa, fundamentada pelas perspectivas de discurso desenvolvidas por Foucault e pela Psicologia Discursiva. Foram realizadas 36 entrevistas. semiestruturadas, sendo 21 com trabalhadores e trabalhadoras, e 15 com usuários e usuárias. Chamou-nos a atenção que o conjunto de termos encontrados coloca o risco como algo socialmente negativo, que pode provocar danos. Observou-se, além disso, que, no Sinpdec, o risco é fortemente associado aos fenômenos da natureza, fator que limita, no interior do sistema, a problematização das questões políticas e sociais que envolvem a temática. Esperamos que esta pesquisa possa contribuir para a ampliação de sentidos sobre o risco que circunscrevem o contexto estudado.

Palavras-chave: Risco. Defesa civil. Produções discursivas.


Abstract

The aim of this article is to understand and to foster the debate on the concepts of risk elaborated in the context of the National System of Civil Protection and Defense (Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil - Sinpdec). The research, which has a qualitative grounding, is based on discourse perspectives developed by Michel Foucault and the English School of Discursive Psychology. In total, 36 semi-structured interviews were conducted, 21 being with workers and 15 with users. The terms which were found drew our attention since they situated risk as something negative from a social perspective, and that can cause harm. It was also observed that within Sindpec, risk is strongly associated with natural phenomena - this is a limiting factor which, within the system, can restrain the problematization of the political and social questions surrounding the issue. We hope that the research will contribute to the broadening of meanings about risk in this context.

Keywords: Risk. Civil defense. Discourse constructions.


Resumen

Este artículo tiene por objetivo comprender y discutir los conceptos de riesgos producidos en el contexto del Sistema Nacional de Protección y Defensa Civil (Sinpdec), la institución brasileña que concentra gran parte de las intervenciones sobre riesgos en el contexto de emergencias y desastres. Se trata de una investigación de orientación cualitativa, fundamentada por las perspectivas del discurso desarrolladas por Michel Foucault y por la Psicología Discursiva. Fueron realizadas 36 entrevistas. semi estructuradas, 21 con trabajadores y trabajadoras y 15 con usuarios y usuarias. Nos llamó la atención que el conjunto de términos encontrados establece el riesgo como algo socialmente negativo que puede provocar daños. Se observó, además de eso, que en el Sinpdec el riesgo está fuertemente asociados a los fenómenos de la naturaleza, factor que limita, en el interior del sistema, la problematización de las cuestiones políticas y sociales relacionadas a la temática. Esperamos que la investigación contribuya a la expansión de los significados sobre el riesgo en el contexto estudiado.

Palabras clave: Riesgo. Defensa civil. Producciones discursivas.


1. INTRODUÇÃO

Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sinpdec) é a instituição brasileira que concentra maior parte das intervenções sobre riscos no contexto das emergências e desastres. O Sinpdec surgiu durante a Segunda Guerra Mundial e, historicamente, foi convocado, pensado e problematizado em períodos marcados por grandes catástrofes. A defesa civil é definida pelo Decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010, em seu artigo 2º, parágrafo I, como "o conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas destinadas a evitar desastres, minimizar seus impactos para a população e restabelecer o cotidiano social".

Nas últimas décadas, o Sinpdec tem se modificado, aumentando o número de unidades nos Estados e Municípios. Contudo ainda são expressivos os números dos danos e mortes provocados por desastres no Brasil e no mundo. Segundo o Center for Research on the Epidemiology of Disasters (2016), 90% de 1,35 milhão de pessoas que morreram em decorrência dos mais de 7 mil desastres oficialmente registrados são de países considerados com baixa ou média renda. Enfatiza-se ainda que a elevada densidade populacional representa um condutor do risco, na qual a qualidade das moradias, a infraestrutura e os serviços são deficientes.

Ao observarmos a distribuição socioespacial dos desastres ao longo do território brasileiro, identifica-se o modo desigual como o fenômeno que afeta pessoas ricas e pobres. Para Maia (2016), a reprodução das desigualdades influencia diretamente a intensificação da pobreza e não é possível pensar em combater essa última sem enfrentar a primeira. Nesse sentido, observa-se estreita relação entre os desastres e as questões socioeconômicas. Valencio, Siena, Marchezine, & Gonçalves (2009) problematizam a definição de "desastre natural", compreendendo que estes não se apresentam, em sua maioria, como variáveis independentes e intrinsecamente relacionadas somente aos fenômenos naturais, pois estão totalmente interligados à dinâmica social na qual ocorrem, possibilitando importantes reflexões sobre relações sociais, territoriais e institucionais historicamente situadas.

Para Foucault (2008), a possibilidade do cálculo dos riscos pelos especialistas permitiu que o Estado qualificasse novos mecanismos para o controle das populações. Destacamos aqui os mecanismos para garantia de segurança como sistemas de seguridade; a polícia e a própria defesa civil poderiam servir como exemplo. Castel (1987), por sua vez, afirma que as estratégias preventivas modernas, principalmente as desenvolvidas após o domínio da estatística e da informática, tem no seu cerne o rastreamento dos riscos e estratégias de vigilância de determinados grupos, definidos pelos experts como grupos de risco.

Diferentemente de outras formas de controle, esse modelo preventivo apresenta como foco os dados estatísticos, a possibilidade de controlar, normalizar e erradicar as condutas desviantes, estas últimas, em sua maioria, pensadas com base na esfera individual. Tal modelo comporta os processos de institucionalização, quando os especialistas passam a atuar em conjunto, sendo constituídas as profissões do risco (Ericson, & Haggerty, 1997). A esse grupo ocupacional são atribuídos conhecimentos privativos para intervir em situações de risco e gerenciá-las. Neste artigo, o processo de institucionalização de saberes sobre o risco que nos tem interessado é o Sinpdec; os profissionais, focos de nossos estudos, são os agentes de defesa civil, especialistas de distintas áreas de conhecimento, a população a ser acessada são os usuários, usuárias desse sistema.

Bauman (2008) ressalta, entretanto, que o discurso científico que atribui à Modernidade o cálculo, a prevenção e a possibilidade de extinção das ameaças gerou frustração e um ideário extremamente polissêmico dos riscos, que cada vez mais deixam de ser objetivamente localizados para estar pulverizados em todas as instâncias do social. Essa fluidez atinge também as produções de conhecimentos sobre os riscos, pois, em muitos casos, são direcionadas para uma lógica de mercado baseada numa perspectiva capitalista de produção.

A questão discutida pelo autor aproxima-se de uma problemática que vem se reproduzindo nas capitais brasileiras, desde a época do Estado Novo: as motivações que levam um local a ser considerado ou não área de risco (Leite, 2010). Na capital de Pernambuco, existem muitas comunidades ribeirinhas e é comum observar-se, ao longo das paisagens, o contraste entre grandes empreendimentos imobiliários e barracos ou palafitas. Entre os inúmeros relatos de desigualdades e injustiças da cidade, um episódio nos chama atenção: durante muito tempo, a Bacia do Pina, localizada na região central do Recife, foi habitada por comunidades, edificadas em palafitas, que sobreviviam da pesca artesanal. O local sempre foi considerado "área de risco" e, por muitos anos, foi foco das ações da defesa civil municipal, sendo classificado como sujeito às sazonalidades das marés e, por conseguinte, sua população classificada como em risco, vulnerável aos desastres naturais. Após forte pressão de grupos empresariais, sob o argumento do risco iminente de desastres, parte do local foi desapropriado, e várias comunidades foram reassentadas para dar lugar a uma via para automóveis e para um dos maiores centros comerciais da região (Andrade, & Pereira, 2014).

Com a chegada do empreendimento, aquela área sem infraestrutura, permeada por diversos riscos passou a ser pensada sob uma nova proposta, figura agora segundo a lógica do capital. Parte da área foi reedificada, e o discurso mudou. Hoje não há mais risco, afinal, as classes média e alta não consomem em áreas de risco. Observa-se que, nesse modo de racionalização, o risco não está no lugar, mas nas pessoas e que os processos de "governamentalização" (Foucault, 2008) do Estado, atrelados à gestão do risco de desastres, fazem com que camadas mais pobres da população, aquelas que não têm acesso a políticas públicas, sejam colocadas às margens dos direitos sociais.

Nesse sentido, a existência social dos riscos, no atual modelo de sociedade, não se dá de modo harmônico ou democrático. Distintos saberes competem pela hegemonia sobre esses termos, indicar que certo fenômeno é fator de risco para uma dada população implica um direcionamento financeiro de recursos para o enfrentamento e dedicação dos especialistas que se disponibilizam a estudar a questão, além de um interesse político diante do risco a ser combatido. Mesmo a extinção completa do risco, quando possível, pode não interessar àqueles que lucram com sua existência (Beck, 2011).

Processos como esse colocam em debate os modelos de "governamentalidade" na sociedade do risco, questionando não a capacidade preditiva e explicativa dos saberes peritos (Giddens, 1991), mas os interesses políticos que entram em cena quando observamos as vontades de verdade (Foucault, 2013) sobre o risco.

Considerando os elementos debatidos até aqui, este artigo objetiva compreender e discutir os conceitos de risco produzidos no contexto do Sinpdec, a partir das produções discursivas de usuários, usuárias e profissionais inseridos no referido sistema. Partiremos de uma compreensão do risco como fenômeno histórico e sociocultural que ganhou contornos muito específicos nos atuais processos de modernização. Esperamos que as reflexões produzidas propiciem um novo ângulo para o debate e contribuam com compreensões multifacetadas e menos dicotomizadas sobre o tema.

2. PERCURSO METODOLÓGICO

Este estudo, com proposta metodológica qualitativa, fundamenta-se nos processos e reflexões sobre discurso desenvolvidos por Foucault e pela Psicologia Discursiva de origem inglesa. Do primeiro, enfocamos o macrodiscurso a partir de sua construção histórica, das relações que este estabelece entre o saber, a verdade, o poder e os processos de subjetivação (Foucault, 2013; 2014). Da Psicologia Discursiva, por sua vez, enfatizamos os microdiscursos, a linguagem em processo de ação e interação no cotidiano das pessoas (Billig, 1991; Davies, & Harré, 2001; Potter, & Wetherell, 1987). As duas perspectivas compartilham o pressuposto de que "Não é dentro de nossa mente que temos que 'olhar' para saber como pensamos, e sim devemos 'olhar' para nossos discursos, para o exterior (Gracia, 2005, p. 27)."

Nesse sentido, para construir compreensões a respeito dos discursos sobre o risco, acessamos cinco serviços de proteção e defesa civil de diferentes cidades da Região Metropolitana do Recife (RMR). Nessas organizações, foram realizadas 36 entrevistas. semiestruturadas (Alves-Mazzotti, & Gewandsznajder, 2002), com profissionais, usuários e usuárias, e foram coletados 78 documentos. Buscando ainda a proteção dos direitos dos envolvidos, conforme os aspectos éticos indicados pela Resolução n.º 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, todas as entrevistas foram realizadas após os participantes lerem e assinarem um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Pontuamos ainda que todos os nomes próprios utilizados para caracterizar os participantes são fictícios.

Nesse sentido, para construir compreensões a respeito dos discursos sobre o risco, acessamos cinco serviços de proteção e defesa civil de diferentes cidades da Região Metropolitana do Recife (RMR). Nessas organizações, foram realizadas 36 entrevistas. semiestruturadas (Alves-Mazzotti, & Gewandsznajder, 2002), com profissionais, usuários e usuárias, e foram coletados 78 documentos. Buscando ainda a proteção dos direitos dos envolvidos, conforme os aspectos éticos indicados pela Resolução n.º 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, todas as entrevistas foram realizadas após os participantes lerem e assinarem um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Pontuamos ainda que todos os nomes próprios utilizados para caracterizar os participantes são fictícios.

Após a identificação dessas pessoas, foram feitos os convites para a participação na pesquisa. Posteriormente ao fornecimento da lista de contatos, as instituições participantes não receberam nenhum tipo de informação sobre quais pessoas aceitaram participar das entrevistas nem sobre o local e a data em que as conversas ocorreram. Quinze pessoas, sendo 12 mulheres e 3 homens, foram entrevistadas.Algumas entrevistas foram realizadas nas residências dos participantes. Nessa ocasião, estavam presentes outros familiares que também colaboraram com o processo. Algumas dessas falas foram destacadas e utilizadas durante as análises. Salientamos que, mesmo nesses casos, contabilizamos uma única entrevista.

Os profissionais, por sua vez, foram selecionados enquanto acessamos os serviços, apresentamos os objetivos da pesquisa e convidamos os trabalhadores e trabalhadoras para participação voluntária no estudo. As entrevistas com essas pessoas ocorreram em suas respectivas instituições, contudo em salas privativas, com a presença apenas da pessoa entrevistada e da entrevistadora. Foram realizadas 21 entrevistas com profissionais, sendo 7 assistentes sociais, 5 bombeiros (4 militares e 1 civil), 4 engenheiros civis, 1 geólogo, 1 técnico de edificações, 1 pedagogo e 1 socióloga. O tempo de trabalho dos entrevistados na defesa civil variou entre 6 meses e 16 anos.

Quanto aos documentos, as coletas foram realizadas ao longo de entrevistas e momentos de observação das instituições. Após cuidadosa leitura de todos os documentos, nós os classificamos em quatro categorias: documentos para inclusão no auxílio-moradia, documentos que orientam ações, relatos de sinistro, material informativo para a população.

Todas as entrevistas foram integralmente transcritas e analisadas. Os documentos foram lidos integralmente e utilizados como recursos de compreensão do contexto pesquisado, sendo apresentados apenas em alguns trechos das análises. Utilizamos nesse material discursivo o processo de tipificação (Minayo, 2012), que consiste na realização de sucessivas leituras com o objetivo de identificar as definições e discursos sobre o risco, assim como na busca por compreender as aproximações e distinções entre tais termos.

Nesse sentido, conforme os discursos foram sendo lidos, fomos buscando neles caminhos organizativos que nos auxiliassem a compreendê-los. Tal processo nos permitiu aproximações entre os macro e microdiscursos que, como poderemos ver nos próximos tópicos, dialogam entre si e auxiliam na construção dos discursos vigentes sobre o risco no contexto do Sinpdec.

3. O RISCO SEGUNDO OS USUÁRIOS E USUÁRIAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO E DEFESA CIVIL

Nas entrevistas com os usuários e usuárias da defesa civil, encontramos ampla variedade de discursos sobre o risco. Nesse sentido, um dos primeiros pontos a chamar nossa atenção é que o termo risco não parecia fazer parte do discurso dos usuários e usuárias antes de seu contato com os profissionais da defesa civil. Ou seja, o termo risco aparece como um elemento externo, que passa a fazer parte do cotidiano quando é trazido por outro agente externo, os trabalhadores em defesa civil. Após esse momento, o risco passa a ser nomeado, conforme se observa nas falas de Marcos e Marcelo:

Entrevistadora: Antes de a Defesa Civil ir lá na sua casa, o senhor achava que estava em risco?

Marcos: Não. Porque chuvas e mais chuvas que deu durante esses doze anos, fazia doze anos que eu tinha levantado essa casa.[. . .] A gente saímos mais, porque a gente nem ia sair da casa, mas a gente saímos mais porque, quando eles fazem a pesquisa deles e olham e vê que está em estado de risco, aí ficam sempre martelando que é pra gente poder sair, né.

Entrevistadora: Quando o senhor construiu a casa, já sabia alguma informação sobre o risco do local?

Marcelo: Não, não tinha risco nenhum. Veio começar a acontecer com meus colegas que moravam debaixo. Aí começou, e veio cedendo, cedendo, cedendo, e eles foram saindo, saindo, e eu sempre falava com a defesa civil [. . .], vinha e olhava, aí chegou o ponto da escadaria chegar bem próximo do portão da casa da gente. Aí foi quando eles pediram pra gente sair urgente porque, a qualquer momento, poderia desabar, né?


O discurso dos entrevistados está permeado pelo contato com o risco, contudo este não é nomeado como tal. A princípio, observa-se que o risco é admitido e negado. Contudo, analisamos que, apesar de não ter sido desde o início nomeado como risco, esse fenômeno sempre esteve presente, mesmo que poucos recursos tenham sido utilizados para seu gerenciamento. Nesse sentido, tal postura diante do risco tem sido por nós interpretada não como negação ou negligência, mas como uma estratégia de conviver com um fenômeno presente, não nomeado, mas que inspira ameaça, ao passo que os recursos para sua mitigação são escassos ou mesmo inexistentes.

Nesse sentido, esse outro que nomeia o risco como tal não é qualquer pessoa, é o saber perito (Beck, 2011), especialista em defesa civil. Esse especialista que vem de fora, trazendo um saber, muitas vezes estranho ao contexto da comunidade, representa a figura do cuidado, mas, em alguns casos, a perda do único bem material construído pela família, conforme observamos no relato da companheira de Marcelo: "Uma coisa que era da gente, a gente estava na casa da gente e, de repente, ter que sair, de uma hora para outra ter que sair, sem ter pra onde sair". Para nossos entrevistados, o risco esteve associado à perda da tranquilidade, como sinalizou Marcos, e também a vulnerabilização socioeconômica, como relata a companheira de Marcelo.

A visão do especialista como detentor do saber, em alguns casos, fez com que os moradores desvalorizassem a própria experiência de vida. Arlinda e sua família desconfiavam que viviam em situação de risco, porém a palavra do engenheiro os fez mudar de ideia; fator que expôs a família a um grave desastre. Tal situação foi relatada no trecho de entrevista apresentado a seguir:

Entrevistadora: Antes do acidente, vocês já recebiam o acompanhamento da defesa civil?

Companheiro de Alinda: Quando estava chovendo, a defesa civil ia lá olhar a barreira da gente: "Isso aí não cai não, isso não cai nada não".Um engenheiro, a barreira veio de cima, né? O engenheiro: "Isso aí não cai nada não, pode ficar tranquilo", eu disse "Tá bom". Aí a gente ficou tranquilo. Faz 25 anos que a gente comprou, sabe? E nunca aconteceu nada, porque acontece, sempre acontece.

Arlinda: Porque tinha uma barreira na frente e tinha outra atrás, e ele disse: "Não, não tem problema nenhum com a barreira, desde que, assim, os vizinhos não estejam colocando água". Aí eu fui, falei com os vizinhos tudo, a gente estava tudo certo. Aí eu sei que, pronto, eles vieram, e uns três dias depois aconteceu o acidente.


Apesar das desconfianças de Arlinda e sua família, o olhar dos especialistas em defesa civil prevaleceu. Essa análise, além de negar a experiência dos usuários e usuárias, também os colocou em situação de risco. Não estamos aqui questionando a legitimidade da perícia técnica realizada, estamos, contudo, sinalizando que, no campo pesquisado, existe uma multiplicidade de saberes e experiências que precisam ser considerados quando se busca definir o que está ou não em risco. Vargas (2009) coloca que, no contexto da defesa civil, muitas vezes, as experiências com o gerenciamento dos riscos vividas pelas comunidades são subestimadas pelo saber científico. As vozes desses que vivenciam o risco em suas práticas cotidianas são colocadas em segundo plano ou silenciadas no jogo de poder estabelecido pelos saberes peritos.

Essa marca do saber do especialista também colabora na delimitação de quais elementos são considerados ou não como produtores de risco. Fator observado durante as entrevistas na frequente associação entre risco e características do terreno, principalmente no que toca à relação entre o imóvel e sua proximidade das barreiras:

Entrevistadora: O que é risco?

Sara: É você morar em barreira. É você morar em barreira, é o pior risco que você tá cometendo, você tá passando o pior risco da sua vida, é você morar em barreira [. . .].

Angélica: Risco para mim hoje é se eu voltasse para lá de novo, porque eu queria até voltar, mas hoje eu não quero mais, porque eu sei que a gente não ia ter paz toda vez que chovesse. A gente mora aqui, qualquer barulho que cai, eu já penso que é uma barreira [. . .].


Estar próximo às barreiras, principalmente aquelas não tratadas, ou seja, barreiras sem muros de arrimos, por si, é definido como risco. Tal situação sinaliza uma relação entre a nomeação do risco e as experiências dos moradores das áreas classificadas como de risco muito alto. Considera-se ainda que todos os participantes passaram pela experiência do auxílio-moradia e que, nos serviços pesquisados, o benefício é prioritariamente disponibilizado às pessoas que vivem em áreas de morros. Nesse sentido, a maior parte dos participantes de nossa pesquisa vivenciaram, de modo direto, experiências que associam as características do terreno a fatores de risco.

Essa associação reflete ainda o impacto do trabalho dos especialistas que recorrentemente promovem ações informativas para orientar a polução sobre como identificar, gerenciar e evitar o risco. Nos documentos identificados como "material informativo para a população", coletados nas diversas instituições pesquisadas, a associação entre risco e barreira é efetivada. Tais ações partem do pressuposto de que as pessoas residem nas áreas de risco por não identificarem os agentes potencialmente danosos, ou seja, ao passo que as famílias compreendam que a barreira pode deslizar e, por conseguinte, machucá-las, automaticamente elas construirão suas casas em locais seguros.

Desse modo, observamos que o território, no contexto pesquisado, apresenta-se como ferramenta para o controle das populações. Conforme sinaliza Leite (2010), a ocupação das áreas de morros da cidade do Recife partiu de um movimento (datado do início do século XX) de higienização do centro urbano via afastamento das pessoas mais pobres para as periferias da cidade, direcionadas principalmente para os morros da Zona Norte da capital. Para Foucault (2008), as estratégias de “governamentalidade” presentes no biopoder tentam, com base no domínio do território, gerenciar a coletividade. Os territórios classificados como estando em risco pela defesa civil são constantemente monitorados e estudados, assim como a população que os ocupa. O risco é apontado, localizado, está na barreira, no canal, na vegetação malcuidada, é produzido pelas chuvas, porém pouco se faz para efetivamente modificar esse cenário.

Valencio e Valencio (2011), ao pesquisarem ações de defesa civil em território brasileiro, concluem que o grande índice de desastres socioambientais que acometem Estados e Municípios sinaliza, entre outros fatores, para a incapacidade que tais instâncias apresentam em desenvolver ações transversais e propositivas, no âmbito das políticas setoriais e intersetoriais. Para Nascimento (2010), a articulação entre as diversas políticas que compreendem a esfera pública demanda um projeto amplo, que objetive realizar mudanças de práticas, padrões e valores, no tocante aos processos organizacionais das instituições públicas. Essas políticas em voga podem ser problematizadas via o próprio perfil dos participantes de nossa pesquisa, mulheres e homens que vivem em situação de extrema pobreza, que não têm condições socioeconômicas de subsidiar suas próprias moradias e que, por isso, acabaram por se vincular ao auxílio-moradia.

Para Paese (2012), o consenso atual entre os especialistas, de que as populações precisam compreender os riscos nos quais estão inseridas para poder preveni-los, levou a uma crescente demanda por ações informativas. Tais ações, contudo, têm deixado em segundo plano a problematização sobre as múltiplas causalidades das situações de risco, principalmente sobre suas implicações políticas e sociais. Temos agora pessoas que detêm um número significativo de informações sobre os riscos, porém possibilidades limitadas, principalmente de ordem financeira, para gerenciamento destes.

Não propomos aqui a redução das ações informativas, mas ressaltamos a importância de que sejam acompanhadas de recursos para o gerenciamento dos riscos. Pois a mera sinalização do risco por parte das equipes técnicas, sem a disponibilização de estratégias efetivas para seu gerenciamento, pode acarretar, na população atendida, sofrimento psíquico e sentimento de impotência diante das problemáticas apontadas pelos especialistas (Silva, & Menezes 2016).

Em muitos casos, resta aos entrevistados, entrevistadas um apelo ao divino como alternativa possível ante os perigos, como nos explicou a companheira de Marcelo: "Eu fico, pede a Deus, e Deus protege, mas é muito, muito difícil". Diante disso, fazemo-nos o seguinte questionamento: da compreensão de qual risco estamos falando quando nos propomos a discutir essa problemática no contexto do gerenciamento de emergências e desastres feito pela defesa civil? Nossos entrevistados, em vários momentos, demonstraram não apenas entender os riscos nos quais estavam inseridos, como também apontaram possíveis agentes para a solução da problemática:

Entrevistadora: Por que algumas pessoas acabam indo morar em locais de risco?

Rejane: Porque não tem condições, por falta de desempenho, de dinheiro, de condições, porque, como eu estou lhe explicando, muitos não têm onde morar. Aí só vê aquele aconchego ali. Se não tem o apoio de ninguém, aí ele tem que ir, mesmo arriscando a vida.

Entrevistadora: Nesse caso, como o risco poderia ser resolvido?

André: Olha, de acordo com a parceria que eles têm, não sei, eu acho que eles deveriam fazer um pouco mais, prevenir isso aí, tipo de uma prevenção, porque a defesa civil vem fazer alguma coisa exatamente quando o inverno já está avançado e aí, às vezes, é tarde demais. Não sei se você concorda comigo, tarde demais, muitas pessoas morreram.


As entrevistas de Rejane e André demonstram não apenas uma identificação dos fatores de risco nos quais estão inseridos, como apontam para estratégias de gerenciamento. Spink (2014) e Vargas (2009), em suas respectivas pesquisas, observaram que as pessoas residentes nas áreas classificadas como estando em risco, em muitos casos, hierarquizam os riscos aos quais estão expostas, ou seja, em seu cotidiano, tendem a valorizar determinados fatores de risco em detrimento de outros. Diante da possibilidade de um desabamento ou deslizamento de terra e a iminência de estar em situação de rua, muitas famílias preferem continuar em locais classificados como estando em risco de desabamento, por exemplo.

Esse risco cotidiano, conforme sinaliza André pode ser sanado e prevenido, e como um dos principais responsáveis pela mitigação desses fenômenos, foi-nos apresentado o Poder Público. Ao posicionar o Estado como aquele que tem recursos para reduzir ou mesmo sanar os efeitos do risco, os entrevistados, entrevistadas também estão definindo esse risco como algo que é passível de controle, que pode ser dominado e, por conseguinte, não é obra do acaso.

Grizendi (2003), ao realizar pesquisa com grupos em situação de vulnerabilidade aos desastres, sinaliza para a existência de uma consciência por parte da população de que existem soluções técnicas para mitigação dos fatores de risco, no que compete à intervenção sobre relevo ou edificações, sem que houvesse necessidade de remoção da população. Contudo, o argumento da falta de recursos promove um movimento de delegar o gerenciamento do risco ao plano individual, conforme também identificado por nossa pesquisa. As condições de vida precária as quais estão submetidas os usuários, usuárias de nossa pesquisa fazem com que o desastre os coloque no plano de visibilidade do Estado, contudo tal visibilidade apenas os posiciona num processo de realocação das situações de risco, considerando que pouco é feito para efetivamente mitigar o problema.

4. O RISCO SEGUNDO PROFISSIONAIS DO SISTEMA NACIONAL DE PROTEÇÃO E DEFESA CIVIL

Nossa busca por compreender e discutir os conceitos de risco entre as produções discursivas de profissionais do Sinpdec teve início pela leitura dos documentos coletados. A observação desse material surpreendeu-nos pela ausência de definições para o termo risco. Mesmo em textos contendo glossários, como o D1-Documentos, que orientam ações, não encontramos um verbete para risco. Tal constatação não nos desestimulou; ao contrário, fez-nos refletir sobre esses "não ditos" e quais associações e definições poderiam ser construídas com base neles. Compartilhamos aqui das reflexões de Deleuze (2005) sobre o estudo dos enunciados, quando o autor pontua que o enunciado pode não ser, a princípio, visível, mas não pode ser confundido com o oculto. Nesse sentido, não procuramos definições ocultas ou subliminares nos documentos estudados, mas consideramos que analisar a ausência direta do termo risco coabitando com uma série de associações foi um dos pontos centrais para a compreensão da visão de risco trazida pela defesa civil como instituição.

Observamos também que alguns serviços não utilizam a classificação "padrão de risco" (R1, R2, R3 e R4), geralmente empregada pela defesa civil: R1 corresponde ao risco menos grave, em que, mantidas as condições existentes, não se espera a ocorrência de eventos destrutivos no período de um ciclo chuvoso; e R4, ao maior grau de risco a ser detectado, em que, permanecendo as condições existentes, é muito provável o acontecimento de eventos destrutivos durante episódios de chuvas intensas e prolongadas (Carvalho, & Galvão, 2006).

Nesse contexto, ao realizarmos as entrevistas com profissionais do Sinpdec, questionamos a respeito da forma como era realizada a classificação de risco:

Entrevistadora: Como é que acontece a classificação de risco?

Ana (assistente social): O Serviço Social, ele participa ativamente dessa nossa classificação, porque é o pessoal da Engenharia que fica mais voltado pra é..., perceber, orientar a susceptibilidade, e a possibilidade da ocorrência do desastre, e essa parte mais voltada pra... análise da família, do risco social ambiental, fica pro Serviço Social.

Entrevistadora: Como é que vocês decidem qual família precisa sair, qual fica?

Daniel (engenheiro civil): Veja. É, na verdade, quem que cria isso é a Engenharia, tá certo? A área social é coadjuvante nesse processo. É fundamental, eu costumo dizer que toda a vistoria de classificação nossa, eu procuro, depois que eu cheguei aqui, eu procurei normas e procedimentos. Eu não encontrei normas e procedimentos. Aí encontrei R1, R2, R3, R4 [. . .]. A primeira análise é análise da edificação, e a segunda análise é análise da encosta.


Os relatos de entrevista destacados mostram modos distintos de pensar o risco. O primeiro, de Ana, apresenta o que classificamos como uma compreensão ampliada do risco, em que este é gerenciado não apenas sob o prisma de questões físicas, mas também sob o contexto socioeconômico das pessoas afetadas. Ao mesmo tempo em que constrói seu argumento defendendo que a análise do risco deve ser feita também pelo assistente social, Ana parece responder a outro argumento (com o qual ela não concorda) que aparece explicitamente na frase "Como é que você analisa um risco de desastre, se você só analisa a suscetibilidade desse risco, e cadê a vulnerabilidade daquela família?". A profissional dialoga com outros discursos não presentes no momento da entrevista. Mas que, conforme se pode analisar com base na fala de Daniel, materializam-se em seu contexto de trabalho, quando o profissional sinaliza, por exemplo, que quem decide quais famílias estão em risco são os engenheiros e que a área social é "coadjuvante nesse processo". Para Billig (2008), quando construímos um argumento, não estamos apenas defendendo uma posição, estamos combatendo argumentos alternativos que existem no interior de nosso meio social. É o que parece fazer Ana, respondendo ao discurso daqueles que dizem ser o risco uma questão para os profissionais das Ciências Exatas.

O relato de entrevista de Daniel nos dá subsídios para compreender com quem Ana está implicitamente dialogando. Observa-se que existe uma disputa em jogo pela área profissional que definirá o risco no contexto da defesa civil. Observamos, com base nos relatos do engenheiro, não a exclusão dos fatores sociais, mas o modo como eles aparecem discursivamente em segundo plano, quando se fala de risco.

Nesse sentido, identificamos, no decorrer das construções discursivas produzidas, a predominância de uma dicotomia entre aquilo que chamaremos de um risco definido por características físicas e um risco dimensionado por seus fatores socioeconômicos. O primeiro deve ser detectado pelas Ciências Exatas, aqui representados pelos engenheiros, técnicos em edificações, geólogos e alguns dos militares, apresentando-se discursivamente como o foco das ações em defesa civil; o segundo tipo de risco, descrito como sendo de responsabilidade das áreas psicossociais ou sociais, aparece como um agente secundário no sistema de gerenciamento.

A priorização do risco físico é tão forte no contexto de defesa civil que encontramos, durante a pesquisa, órgãos que têm apenas profissionais da área de exatas. Em outros órgãos, os profissionais da área social estão presentes, participam das visitas de campo, preenchem um questionário com poucos detalhes sobre o caso, mas não se posicionam quanto à definição de risco, sendo o documento que oficializa o risco no setor estudado de autoria apenas dos profissionais das Ciências Exatas.

Em nossas análises, observamos que essa visão de risco, promovida, em sua maioria, pelos profissionais das Ciências Exatas e também presente nos discursos dos profissionais de outras áreas, colabora para a forte associação entre risco e fenômenos naturais. Nesse contexto, o fator climático chuva aparece relacionado ao risco em muitos dos materiais discursivos analisados, como podemos observar nos recortes das falas de Joana (assistente social) e Mário (geólogo):

Entrevistadora: Quais os encaminhamentos após a classificação de risco?

Joana (assistente social): A gente pede, pelo menos nos períodos de chuva, no período de inverno, que tem maior índice, o maior risco de acontecer uma tragédia, eles irem para casa dos parentes. Geralmente eles vão e passam o período do inverno.

Entrevistadora: Em relação especificamente às classificações de risco, como vocês trabalham?

Mário (geólogo): É basicamente visual e pela experiência mesmo. Não tem nada concreto, nada exato, assim, até porque os processos da natureza não têm essa previsão de que vai deslizar amanhã, a casa vai cair hoje ou daqui a uma semana. É mais uma prevenção mesmo e, pela experiência dos anos mesmo, né? Não tem como você chegar numa casa, e a casa, hoje, é risco três, que a gente analisou, então é retirada em caso de chuva, mas aí pode dar uma chuva muito grande, e o movimento de terra aumentar.


Conforme se observa na entrevista de Joana, mesmo os profissionais do Serviço Social, que advogam em defesa de uma visão mais ampla do risco, constroem uma lógica de ação voltada para a observação das chuvas. Mário, por sua vez, pertencendo ao grupo das ditas Ciências Exatas, justifica, com base na imprevisibilidade da natureza, a falta de precisão das análises que desenvolve. No discurso deste último, a "retórica" é utilizada para dizer que não é à sua ciência que falta precisão, mas ao fenômeno que, segundo ele, produz os riscos: a natureza. A associação entre o risco e indicadores naturais traz ainda o elemento relevo para compor as definições de risco apresentadas por nossos entrevistados. Esse fator também observado nos discursos dos beneficiários, beneficiárias que acessamos.

Por outro lado, identificamos explicações que posicionam o risco como acontecimento que pode ser gerenciado ou mesmo prevenido. O Estado e a população seriam os principais gestores do risco, pontuaram alguns entrevistados:

Entrevistadora: Além dos recursos utilizados atualmente, quais outros recursos você acredita serem importantes para redução dos riscos que não estão disponíveis?

Breno (engenheiro civil): Era pra ter construção, seria uma outra forma. Foi feito alguma coisa no local, porque, quando a gente tira e não tem nenhuma obra estruturadora no local, nenhuma fiscalização, as famílias vão invadir de novo, ou aquelas ou outras famílias.

Amanda (assistente social): É por isso que a gente recomenda sair de casa durante o período de chuva, porque, quando se está dormindo, não se tem tanta atenção, então é através da fala mesmo, de orientação e de recomendação que eu tento buscar minimizar o problema, né? A gravidade do problema.


Em conformidade com os discursos dos beneficiários do auxílio-moradia, os profissionais também atribuem ao Poder Público a promoção de ações estruturadoras para redução dos desastres. O Estado é também descrito como aquele que não dá conta sozinho do enfrentamento das situações de risco. Nesse contexto, outro papel da defesa civil seria orientar e ativar o segundo agente responsável pelo gerenciamento de risco: a população. Foi recorrente, durante as entrevistas com os profissionais, o posicionamento da população como agente que deve gerenciar os riscos para sobreviver, que precisa responsabilizar-se quando as alternativas fornecidas pela defesa civil não garantem a extinção do risco, ou mesmo quando não há opções para se evitar ou mitigar a situação de risco. Tais movimentos dos agentes públicos para com a população também foram debatidos nos estudos desenvolvidos por Grizendi (2003) e Vargas (2009).

Em nosso contexto de pesquisa, observamos, contudo, que essa população que é, a todo momento, convidada para gerenciar o risco não é convocada ou considerada no momento de defini-lo. Metodologicamente, a possibilidade de consulta à população como forma de identificação de risco foi localizada em alguns dos documentos destinados à instrução dos profissionais, como o D30-Documentos que orientam ações, em que se lê: "R2 médio: O setor apresenta eventos frequentes de inundação, com registro ou relatos de moradores indicando a ocorrência de pelo menos 01 evento significativo nos últimos 05 anos" (p. 2). Contudo a metodologia de escuta da população não foi encontrada em nenhum dos registros de atendimento ou foi citada por algum dos profissionais entrevistados.

Nesse sentido, novamente observamos como os saberes peritos (Beck, 2011; Giddens, 1991) se sobrepõe aos saberes produzidos no cotidiano pelo público não especializado, como forma de legitimar o que deve ou não ser considerado como situação de risco. Marcadamente, existe uma lacuna entre ser alvo de uma política pública e poder participar dela de modo ativo. Para Valencio (2014), embora se dê bastante destaque aos contextos de crise aguda, enfatiza-se que esse tipo de acontecimento tem profunda relação com a crise crônica. Considerar essa interface amplia as possibilidades de pensar a mitigação de sinistros com base na lógica do combate à exclusão social e da potencialização da capacidade organizativa e reivindicativa dos grupos vulneráveis, questão que parece estar bastante distante do contexto pesquisado.

Com base nas análises dos discursos produzidos durante as entrevistas, chamou-nos ainda a atenção o distanciamento com que os profissionais se posicionam com relação aos riscos. Mesmo que todos os entrevistados, entrevistadas trabalhem de 6 a 8 horas diárias no contexto de defesa civil e atuem diretamente com as famílias afetadas e nas áreas classificadas como em risco, nenhum deles se colocou como exposto ao risco. Diferentemente do que se poderia pressupor, o trabalho nas áreas de risco não foi apresentado como uma situação de ameaça a ser gerenciada pelos próprios profissionais em seu contexto de trabalho. O risco está no outro, no habitat, a detecção e análise de situações de risco não se apresentou discursivamente como sendo uma atividade permeada pelo risco.

A princípio, tais posturas vão de encontro a pesquisas que debatem sobre o sofrimento psíquico enfrentado por profissionais que trabalham diretamente com situações perigosas, como agentes penitenciários ou policiais (Constantino, Ribeiro, & Correia, 2013; Rumin, 2006). Outros fatores, contudo, podem estar implícitos nessa ausência de discurso sobre os riscos enfrentados pelos profissionais de defesa civil no exercício de suas funções, como a estratégia de negação das situações que também os vulnerabiliza no exercício da profissão. Consideramos também a necessidade de processos formativos que auxiliem os profissionais a pensarem as questões a serem analisadas a partir de suas múltiplas perspectivas.

5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ao analisar os discursos sobre riscos produzidos por profissionais e usuários, usuárias no contexto do Sinpdec, chamou-nos a atenção que o conjunto de termos encontrados nesta pesquisa coloca o risco apenas como algo socialmente negativo, que pode provocar danos. Tais achados aproximam-se das ideias de Douglas (1992), quando afirma que, a despeito de uma multiplicidade de discursos sobre o risco, o termo, em nosso modelo de sociedade, tem cada vez mais adquirido sentidos negativos.

A forte associação entre clima e desastres, por exemplo, tem orientado várias das ações promovidas pela defesa civil ao longo da história. Observa-se que existe um regime de verdades sobre o risco que prevalece no atual contexto do Sinpdec, que se instala pelo discurso associado aos fenômenos da natureza; direciona e limita as estratégias de ação; e desqualifica o olhar do outro que, com suas experiências e histórias de vida, aponta que o modelo de sociedade no qual vivemos produz pobreza e, por conseguinte, formas muito específicas de risco. Essas ideias ressaltam estratégias de "governamentalidade" que, como nos indica Foucault (2008), apresentam a natureza como uma espécie de "bode expiatório", tiram o foco da negligência do Estado para com as vulnerabilidades da população e centra a problemática em elementos passíveis de pouca previsão: os fenômenos da natureza.

Valencio e Valencio (2011) apontam que o Estado, que geralmente está escassamente munido de estratégias preventivas para combater os desastres, também não tem planos de entrada no sistema para acolher e disseminar propostas alternativas que a comunidade possa lhe oferecer. Para os autores, quando a gestão pública coloca em segundo plano proteger a integridade física e material da população, está também intensificando a vulnerabilidade das pessoas empobrecidas. Nesse sentido, em nosso estudo, observamos um sistema de gestão dos riscos, que, de algumas formas, colabora para a manutenção dos fenômenos que se propõe a combater.

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Texto recebido em 10 de dezembro de 2018 e aprovado para publicação em 19 de dezembro de 2019.


 

 

* Doutora e mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), psicóloga, professora adjunta no Curso de Psicologia da Universidade de Pernambuco (UPE), pesquisadora no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas da UFPE (Gepcol). Endereço: Rua Engenheiro Oscar Ferreira, 101, ap. 501 – Poço da Panela, Recife-PE, Brasil. CEP: 52061-022. Telefone: (81) 99944-3754. E-mail: jucatarine@gmail.com.
** Pós-doutorado como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior (Capes), na área de Ciências Humanas, pela Universidade Federal do Ceará (UFC); doutora e mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); graduada em Psicologia pela UFC, professora associada na UFPE, vinculada ao Departamento de Psicologia e Orientações Educacionais do Centro de Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Endereço: Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Educação. Avenida Acadêmico Hélio Ramos, s/n.º - Cidade Universitária, Recife-PE, Brasil. CEP: 50670-901. Telefone: (81) 2126-8323. E-mail: jaileila.araujo@gmail.com.

 

 

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