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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.13 no.1 Ribeirão Preto 2012
ARTIGOS
Costuras da construção identitária de um jovem psicótico usuário de um CAPS
Seams of the identitary construction from a yong psychotic user by a public health service
La costura de la construcción en la identidad de un joven psicótico usuario de un servicio de salud publica
Tiago H. Rodrigues Rocha
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, Brasil
RESUMO
Um longo percurso de transformações nas práticas excludentes da psiquiatria fez surgir os atuais modos de tratamento da psicose. Com a criação do significante usuário, o portador de sofrimento mental grave passou a ser visto como um sujeito de direitos cuja doença não é um sentenciamento à exclusão definitiva, mas sim uma possibilidade de transitoriedade. Neste trabalho, é apresentado o desenvolvimento do atendimento de um jovem psicótico, usuário de um CAPS, por meio do qual se pode perceber a possibilidade de novas articulações com o grande Outro. A partir da produção delirante de histórias que o jovem trazia às sessões, foi possível construir um mínimo espaço de separação entre o usuário e o Outro primordial. Tal espaço permitiu que a identidade que aparece como algo fragmentado na psicose pudesse ser minimamente constituída, ainda que permeada por sua forma radicalmente delirante. Por fim o texto aborda a importância da construção de uma clínica que não desconsidera o contexto sócio-histórico de produção capitalista, servindo como contraponto à catalogação pretendida pelo DSM-IV.
Palavras-chave: Saúde mental; Psicose; Alteridade; Identidade; Centro de atenção psicossocial.
ABSTRACT
Many changes in the excluding practices over psychiatry's background have created the contemporary modes in treatment of psychosis. With the establishment of the significant user, the person with serious mental disorder is regarded as a subject with rights whose disease is not a definitive exclusion sentence, but the possibility of transience. This work presents the development of an assistance with a young psychotic who uses a public health service, through which it is possible to notice the new relations with the great Other. From the delusional stories brought to the sessions by the young man, it was possible to create a minimum gap between the user and the primordial Other. This space has allowed the apparently fragmented identity in psychosis to be constructed minimally, though permeated by its radically delusional form. Finally, the paper discusses the importance of establishing a clinic that does not ignore the socio-historical context of capitalist production, thus, as counterpoint against the cataloging required by DSM-IV.
Keywords: Mental health; Psychosis; Alterity; Identity; Public health services.
RESUMEN
Un largo camino de transformación en las prácticas excluyentes de psiquiatría hizo surgir las actuales maneras de tratamiento de psicosis. Con la creación de un usuario significante, el portador de sufrimiento mental grave paso a ser visto como un sujeto de derechos cuya enfermedad no es una sentencia a la exclusión definitiva, pero si la posibilidad de transitoriedad. En este trabajo, es presentado el desarrollo del atendimiento de un joven psicótico, usuario de un servicio de salud publica, por medio del cual se puede percibir la posibilidad de nuevas articulaciones con el gran Otro. A partir de la producción delirante de historias que el joven trajo a las sesiones, fue posible construir un espacio mínimo de separación entre el usuario y el Otro primordial. Tal espacio permitió que la identidad que aparece como algo fragmentado en la psicosis pudiese ser mínimamente, construida aunque este rodeada por su forma delirante radical. Por fin el texto aborda la importancia de la construcción de una clínica que no desconsidere el contexto socio-histórico de producción capitalista, sirviendo como contrapunto a la catalogación pretendida por el DSM-IV.
Palabras clave: Salud mental; Psicosis; Alteridad; Servicios de salud publica.
O ESTRANHO USUÁRIO
O início das práticas alternativas em psiquiatria se deu na Inglaterra, a partir das ideias do psiquiatra sul-africano Maxwell Jones, por volta de meados do século XX. A criação das primeiras comunidades terapêuticas foi destinada ao atendimento de dependentes químicos e marca o início das práticas alternativas à internação psiquiátrica. A partir dessas ideias de modificação da atenção psiquiátrica conferida até então, o movimento antimanicomial surgiu na Itália durante a década de 1960 como uma força ideológico-político-social buscando novas representações para a loucura. Como princípio norteador, foi proposto um sistema comunitário e mais humanizado para o tratamento da doença mental, em oposição ao modelo hospitalocêntrico excludente. De acordo com Amarante (1998), no Brasil o movimento antimanicomial teve o seu coroamento após a visita de Franco Basaglia no final da década de 1970, amplamente divulgada pela mídia. Como alternativa à institucionalização psiquiátrica no Brasil, começaram a ser pensadas e implementadas políticas públicas de assistência ao portador de doença mental. Com a reforma sanitária iniciada no final da década de 1970, houve não somente a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), mas também toda uma base de pensamento que se propunha pensar a qualidade de vida da população como um todo, considerando as condições de trabalho, saúde, saneamento e lazer.
Mais adiante, particularmente ao que concerne à psiquiatria, no dia 06 de abril de 2001 foi promulgada a lei 10.216, Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Paulo Delgado, que propunha a progressiva extinção dos manicômios do país e o reconhecimento dos direitos dos portadores de sofrimento mental. Assim surgem os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), ambulatórios de saúde mental e residências terapêuticas, nos quais o significante doente mental desloca-se para a posição de usuário do serviço. Por trás desta aparente simples mudança terminológica há o reconhecimento e sustentação de que o adoecimento possa ser transitório. O usuário seria alguém não mais sentenciado por sua doença, mas um sujeito em um estado de provisória enfermidade. Cria-se, por trás do movimento antimanicomial, a possibilidade de se pensar o sofrimento mental como uma condição temporária e não mais um sentenciamento à exclusão definitiva.
O trabalho nos CAPS é desenvolvido de forma mais abrangente, observando o sujeito não somente como mero substrato biológico, mas, sobretudo, considerando-se as interferências familiares e sociais no processo de reabilitação (Mielke et al., 2009). Ainda sobre as atuais práticas em saúde mental, é sobremaneira importante salientar, como alguns estudos (Ávila, 2003; Fernandes, 2009) apontam a importância dos vínculos estabelecidos como meio de auxiliar a relação terapêutica que se estabelece com o usuário.
Freud (1919), em seu artigo Das Unheimliche (O estranho), escreve sobre a sensação de estranheza decorrente do encontro com aquilo que supostamente seria um parente distante, mas que, quando emerge, revela-se como um vizinho bastante próximo com o qual guardamos íntima relação. O texto freudiano possui maior sentido lógico quando lido em alemão, uma vez que o vocábulo Das Heimliche significa tanto algo que é estranho quanto remete ao que é familiar. Tal fato não acontece na língua portuguesa, uma vez que a palavra "estranho" remete somente à qualidade do que é desconhecido. Logo no início do texto, Freud situa o estranho como "aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar" (Freud, 1919, p. 238). Paradoxalmente, o autor nos oferece a figura do estranho como algo há muito tempo familiar e conhecido, mas que se retirou da mente devido o processo de repressão. Como se segue:
a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho; e deve ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto. Em segundo lugar, se é essa, na verdade, a natureza secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso linguístico estender das Heimliche (doméstico, familiar) para o seu oposto, das Umheimliche (não-familiar, estranho); pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo de repressão (Freud, 1919, p. 258).
Tomando por base as considerações freudianas, torna-se menos complexo o entendimento sobre a estranheza que a loucura provoca. A afetação da normalidade por estes sujeitos que fazem parte do mesmo espaço social – também homo sapiens – ocorre menos pela distância que pela proximidade. Em outras palavras, o estranhamento que a loucura provoca ao ser humano é algo excessivamente próximo e não tão distante como, talvez, gostaríamos. Isto se explica pela loucura revelar justamente nossa parte mais obscura. Desvendar o que há de menos civilizado e de mais amoral em nós, e que guardamos, a expensas de grandes esforços, para manter reprimido. A loucura explicita-nos partes intoleráveis constituintes de nosso próprio psiquismo; vivenciamos no outro as moções pulsionais advindas de nosso próprio id, contrárias ao ego e à ordem civilizada do mundo (Freud, 1923). É tudo aquilo que vemos na alteridade de nós mesmos e que consideramos sem sentido, juízo e decência.
O portador de sofrimento mental não deixa de representar, portanto, nossa própria condição contraprodutiva. Condição nossa de cada dia que é contrária às normas instituídas pela lógica do capital. Tal lógica, ao mesmo tempo em que nos aprisiona e aliena de parte de nosso trabalho e prazeres, coloca-se, tanto no plano político quanto econômico, como fundamental à própria sobrevivência humana. Estando o trabalho, a produção e o consumo tão articulados e alienados em nós como sustentáculos ideológicos de todo nosso sistema social e cultural, nossa própria condição gozosa contraprodutiva e ociosa deve ser, necessariamente, expelida. Não há forma melhor de realizar tal movimento – seguindo a lógica freudiana do princípio do prazer e as exigências de gozo superegóicas – do que projetar toda a condição que vá à contramão deste sistema econômico e social nestas figuras que já trazem, desde séculos anteriores, o estigma da anormalidade.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA AS PRÁTICAS ATUAIS
Renato (nome fictício) contava com apenas dezoito anos de idade e havia sido encaminhado para tratamento no CAPS adulto por ter completado maioridade, não podendo mais permanecer no CAPS infantil. Em seu prontuário havia a hipótese diagnóstica F. 20.1 (esquizofrenia hebefrênica) com destaque para os seguintes sintomas relatados pelo médico psiquiatra: "comportamento desorganizado, agitação, risos imotivados, incongruência afetiva, agressividade e sexualidade exacerbada".
É o filho mais velho dentre oito irmãos e desde muito jovem sofre com os severos castigos impostos pelo pai, que o punia fisicamente açoitando-o com uma mangueira de jardinagem. A mãe revelava certo comprometimento mental, sendo desatenta na criação dos filhos. A imagem de Renato que a equipe carregaria por muito tempo era a de um "bicho acuado" e, como tal, arredio e descontrolado. No início do tratamento, Renato apresentava apenas a sexualidade e agressividade como recursos para afetar o mundo em que vivia. Frequentemente fazia investidas, tentando tocar os genitais, tanto dos homens quanto das mulheres que também frequentavam o CAPS, bem como da equipe técnica.
O início da construção dos laços se deu a partir do Jogo dos Rabiscos de D. W. Winnicott (1963). Esta técnica prima-se por seu fácil manejo e grande utilidade para entrar em contato com pacientes psicóticos e de difícil acesso. Utilizando apenas lápis e papel, foi pedido a Renato que fizesse um rabisco a partir de outro rabisco que o analista já havia traçado no papel. O Jogo se dá a partir da alternância dos traços. Cada um dos participantes faz um rabisco, deixando aberta a possibilidade do outro participante criar um novo rabisco como bem entender. Desta forma, cria-se um espaço transicional, no qual os desenhos são construídos a esmo, podendo ao final compor um todo. Com o desenho realizado, pedia-se a Renato que contasse uma história a partir da produção alcançada. No início parcas histórias foram produzidas com pouco entusiasmo.
O Jogo se produziu como um dos recursos durante toda a relação terapêutica que foi mantida com Renato por cerca de dois anos e meio, até a saída do analista da instituição. Mesmo com as histórias se repetindo, via-se que alguns elementos novos por vezes apareciam. Com o fortalecimento dos laços, o usuário passou a não mais assumir o caráter agressivo e a conter sua hipersexualidade, que agora podiam ser ditas, nas histórias que ele criava ao término dos desenhos. Durante o acompanhamento, Renato passou a produzir também curtas frases das quais se utilizava a fim de demandar algo à equipe técnica. Outra produção dizia respeito às histórias. Inicialmente incapaz de concatenar o pensamento e ser capaz de dizer uma frase qualquer que pudesse comportar sentido comum, ele passou a elaborar histórias. Dentre as histórias, uma frequentemente se repetia; a do "Gigante em seu Pé de Feijão". Por meio desta história ele conseguia comunicar alguns estados de angústia, fazer pedidos e relatar o que vinha ocorrendo em seu ambiente familiar. Tal processo ocorria uma vez que, por meio de sua produção delirante, Renato tornou-se o gigante que habitava o pé de feijão e sua relação com o analista era sempre contada a partir desta nova identidade.
Aos olhos da relação produção-consumo, característicos de nosso sistema capitalista de produção, Renato estará para sempre alocado à margem da sociedade. Todo seu estado se diz contraprodutivo, já que não está alicerçado nos moldes subjetivos da relação capitalista produtora de lucro. Porém, em outra possibilidade de se articular o que possa ser considerado produção, Renato pode ganhar produção subjetiva, sob distinta perspectiva.
Passemos, agora, às considerações sobre o processo de construção identitária de Renato.
PRODUÇÃO E SINGULARIDADE
Sobre a condição não barrada do grande Outro na psicose, Lacan (1966) ressalta haver a fragmentariedade imaginária e desarticulação simbólica do sujeito, tornando-o livre fluxo. No caso de Renato, tal categoria insustentável se faz sentir no real, em seu próprio corpo ou no corpo dos membros da equipe que, no início, são utilizados como meros objetos que autorizam a livre condição gozosa mortífera. O vínculo estabelecido durante o processo terapêutico permitiu a Renato encontrar certa contenção a seu gozo desmedido. Sua condição a priori contraprodutiva – enquanto mercadoria aos modos mercantilistas de produção – revelava justamente seu estado de gozo mortífero disruptivo, ainda não vislumbrado enquanto possibilidade de captura; sequer de aproximação. Com o fortalecimento do laço terapêutico, há possibilidade de se fazer as primeiras inscrições de ordenamento da Lei Simbólica esfacelada pela ausência do grande Outro (barrado). De tal forma, sua contraprodução pode tornar-se agora produtiva se a tomarmos sob um novo prisma. Mas produtiva em que ordem?
A contraprodução no modelo psicótico advém de sua própria condição não barrada. Na passagem edípica na psicose, por não haver a inscrição da castração, o indivíduo permanece agarrado ao modo anterior de gozo totalitário. De tal forma, a psicose tem desde seu berço, para a teoria psicanalítica, a característica fundamental de não estar inscrita numa lógica de produção/reprodução subjetiva. Para o pensamento freudiano, o complexo edípico é o que alicerça a possibilidade de engendramento do indivíduo em uma constituição subjetiva; a neurose é reprodutiva. Ficam, portanto, excluídas as possibilidades que retiram do cenário a castração simbólica.
Quinet (2009), ao considerar o trabalho com indivíduos psicóticos, faz duas grandes observações relativas ao manejo clínico que aqui devem ser consideradas. Segundo o autor, ao se trabalhar com a psicose devemos realizar o manejo clínico pautado em dois aspectos: o testemunho e o secretariado. Como a própria palavra já nos remete, o testemunho diz da posição na qual o analista deve acompanhar o discurso delirante do sujeito. Isso será feito com vistas a permitir que possa haver uma mínima construção de identidade, uma vez que esta se encontra dilacerada na psicose. Para a teoria psicanalítica, o delírio e a alucinação na psicose servem como modo de costura no qual o reconhecimento do nome-do-pai não pode ser feito. No caso de Renato, a função do delírio no qual ele encarna o personagem do Gigante que habitava o pé de feijão tem uma dupla função. Ao mesmo tempo em que denuncia a falência da inscrição da castração, ou seja, aponta para a impossibilidade de Renato lidar com a condição faltante do ser, ela serve também como uma espécie de costura subjetiva. Se tomarmos o comportamento psicótico não apenas sob os chavões psiquiátricos de seus sinais e sintomas (discurso e comportamento desorganizados, pensamento delirante, etc), poderemos encontrar o delírio como um meio de busca de uma mínima construção identitária.
O quadro clínico de Renato apontava para uma grande dificuldade de reconhecimento de sua própria identidade. Frequentemente ele relatava não saber se estava vivo ou morto, queixava-se de que seus pés não eram seus e, por inúmeras vezes, era pego cheirando partes de seu corpo ou substâncias que dele saiam, tais como cerume do ouvido, sangue e esperma. Neste momento, podemos pensar na ainda não constituição psíquica de um corpo imaginário. Este nos parece, no caso de Renato, ainda não ter sido consolidado, não havendo ainda um lugar para seu próprio corpo. Portanto, é possível pensar a necessidade de se criar condições para um espelhamento imaginário. De acordo com Lacan, o estádio do espelho pode ser compreendido "como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem" (1966, p. 97). Ou seja, aparentemente Renato nos faz pensar que ainda possa estar em um momento anterior – visto o estranhamento com seu próprio corpo – ao que Lacan denominou por alienação.
A alienação é justamente a primeira operação fundamental que irá fundar o sujeito (Lacan, 1964). Este momento tão crucial na vida do sujeito é justamente o que irá representar o encontro de duas faltas. Por um lado, do ser, sua incompletude representada por suas pulsões parciais que demandam ao Outro – aqui representando a outra porção faltante – um significante que é sempre de cambiável, ordem múltipla e não-toda. Neste processo há sempre um Outro que irá falar pelo sujeito, "decepando-o" fundamentalmente de parte de si próprio, uma vez que este Outro é sempre faltante. Portanto, no caso clínico aqui apresentado, parece tratar-se de um desafio de traçar no imaginário, mesmo que minimamente, uma superfície para o nascimento de um registro psíquico de seu corpo ainda não especular; ainda não alienado.
Ao construir as histórias do gigante, Renato passa a construir uma imagem de si. Tal fato nos remete à condição paranoica do conceito de identidade. A identidade é sempre paranoica a partir da consideração de que ela se coloca sempre sob a égide do conhecimento e não do saber. Não passamos a vida nos questionando sobre quem somos, o que fazemos e quais sentimentos habitam as pessoas que nos rodeiam; temos certezas em relação a isto. Quinet (2009) ressalta que a condição do conhecimento, ou seja, a certeza inabalável sobre algo é sempre uma condição paranoica, uma vez que é uma certeza construída como forma de possibilitar o ordenamento do sujeito no mundo. É aqui que a contraprodução da loucura deve ser potencializada como forma de construção de uma identidade. O trabalho com psicóticos esquizofrênicos deve ser norteado no sentido de se construir uma identidade para o psicótico, com fins a permitir que ele possa criar mínimos entraves com a condição tirânica e gozadora do outro materno. Os trabalhos manuais, laborativos, as histórias criadas, enfim, toda a gama de recursos que devemos lançar mão na clínica da psicose não tem o mesmo sentido da produção capitalista de lucros da estrutura neurótica.
Retomando a questão da construção identitária de Renato, cabe agora ressaltar a função de secretariado que Quinet (2009) ressalta no manejo analítico com psicóticos. Ao construir a identidade do gigante, Renato pode se ver em alguns momentos minimamente livre de ter que sustentar o gozo tirânico do Outro primordial. No entanto, por inúmeras vezes, as histórias contadas levavam a enredos que poderiam o colocar em risco. Certa vez, por exemplo, Renato testou a força do gigante desafiando os demais usuários do CAPS para uma disputa em uma luta física. Neste momento, secretariar a psicose significa que o analista deve estar em condições de evitar que o indivíduo possa colocar a si ou a terceiros em risco. Nestes momentos, o gozo mortífero da psicose pode conduzir o sujeito a uma atitude catastrófica e é aí que a intervenção deve ser pontual e castradora, impedindo que realize aquilo que se demanda. A fragmentação psicótica, nestes momentos, é auxiliada pela possibilidade do analista permitir ao sujeito que ele recomponha uma noção de identidade que terá que lidar com a condição barrada.
Pode-se pensar que a atuação do analista, ante a psicose, extrapole alguns limites e possa ser pensada a noção de borda. Tal como a castração e a inscrição da metáfora paterna servem como percursos balizadores para a pulsão na estruturação da neurose, a passagem à alienação, no caso de Renato, parece ter servido como esta borda que se fazia ausente antes do início do acompanhamento pelo analista. A partir das identificações que ele vai criando em sua história do Gigante e o Pé de Feijão, Renato passa a bordejar significantes que antes apareciam de maneira dilacerada, representados por seu estranhamento com o próprio corpo.
Tal processo não é realizado com vistas a otimizar a condição produtiva do sujeito. Secretariar a psicose nada mais é que permitir que a loucura possa caber dentro de determinado contexto social. A construção de uma sociedade sem manicômios, como defende o movimento da luta antimanicomial, somente será conseguida à medida que a loucura possa circular de forma indistinta no espaço urbano. Renato deve ser um gigante que habita um pé de feijão, pois esta construção de identidade é o que lhe permite falar a partir de uma posição singular. Cabe ressaltar que, ao encarnar o personagem de sua construção delirante, Renato passou a conversar sobre sexo e violência, comportamentos anteriormente atuados sobre a equipe de trabalho e demais usuários do CAPS.
Costa e Figueiredo (2004) ressaltam que o que há de mais importante no trabalho com psicóticos é o estabelecimento do vínculo com o usuário, e não o produto final empírico que possa surgir a partir deste trabalho. O que interessa é, portanto, a composição do laço social que a psicose fragmenta como modo defensivo frente o terror à castração. O maior desafio não se coloca em produzir um objeto, uma obra artística ou qualquer coisa do gênero, mas permitir que o vínculo terapêutico estabelecido possibilite ao sujeito visualizar, mesmo que minimamente, sua entrada no campo da linguagem. Claro que sem esquecer que esta se fará sempre de maneira singular e única na construção da identidade dilacerada.
A instituição nesse caso, como não consegue funcionar perfeitamente como um Outro, já que a castração foi forcluída pelo psicótico, pode fazer suplência, o que oferece a construção dessa identidade (imaginária).
Tais produções (um desenho, uma história, uma obra de arte), junto aos laços que se estabelecem entre usuário e equipe, tomam no lugar do ato puro a possibilidade de serem, elas mesmas, o que escapam ao grande Outro. Em outras palavras, o produto final da relação é um mero bônus, algo a mais que se fez sem um a priori ordenador. A perspectiva do tratamento modifica-se permitindo o reordenamento dos significantes em torno do Outro como não-todo, tendo perspectiva indubitável de atravessá-lo, sulcá-lo, e assim barrar o seu gozo a partir das costuras delirantes produtoras de identidade.
Na clínica da psicose, os vínculos e produções singulares farão compor o manancial deste grande Outro até então ausente enquanto baliza de contenção ao gozo, que ora se faz radicalmente mortífero – nos quadros alucinatórios e delirantes – ora se apresenta enquanto simples sombra de algo perdido – como nas manifestações melancólicas. Em sua radicalidade máxima ou mínima, a presença de um corpo técnico preparado e emocionalmente envolvido, é o que permite minimamente compor repertório psíquico que possa garantir baliza ao gozo desprovido de suporte no real.
O DISCURSO PSIQUIÁTRICO E A PRODUÇÃO DA LOUCURA
Antes de finalizar, ainda há fôlego para uma breve observação sobre o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-IV-TR – (APA, 2002). Este é um instrumento que pretende ser ateórico e que propõe uma linguagem universal sobre a classificação dos transtornos mentais. Ainda de acordo com o Manual, ele utiliza uma linguagem que deve servir para aproximar clínicos e pesquisadores, podendo ser utilizado por médicos, assistentes sociais, advogados, psicólogos e demais profissionais da saúde.
Para o caso aqui analisado, o DSM-IV-TR se revela, na verdade, como um mero instrumento catalográfico, uma vez que não oferece qualquer delineamento clínico para a conduta do trabalho terapêutico. De acordo com o Manual, Renato possui Esquizofrenia do tipo desorganizado, apresentando "discurso desorganizado, comportamento desorganizado e afeto embotado ou inadequado. O discurso desorganizado pode ser acompanhado por atitudes tolas e risos sem relação adequada com o conteúdo do discurso" (APA, 2002, p. 318). Se apenas considerada tal sintomatologia como algo que vá à contramão da ordem estabelecida pelos aparelhos de reprodução da ordem capitalista, Renato é um mero empecilho que deverá ser afastado do convívio social ou, no melhor dos casos, ter seu comportamento desorganizado silenciado por alguma forma de contenção. Não há como deixar de se pensar na importância da contenção química oferecida pelos fármacos em vista do desuso da contenção física das camisas de força, grades e correntes do início do século XVIII. Se tomado como se pretende, como um instrumento que almeja a ser universal e totalizante, o DSM-IV se coloca na posição de um importante instrumento de exercício da ordem e do controle sobre os corpos.
Portanto, para a lógica empírica e utilitarista do DSM-IV, o comportamento "desorganizado" de Renato está referido a uma determinada ordem do biopoder que já possui um parâmetro sobre o que seja um comportamento organizado. Ante um modelo capitalista – que tem como seu primeiro estágio de desenvolvimento o protecionismo mercantilista –, este parâmetro também protegido e organizado de ação não pode escapar da miséria utilitarista do produto final que tal processo enseja.
Sob esta perspectiva, o Manual Diagnóstico é um instrumento altamente ideológico, uma vez que parte da consideração de um padrão de comportamentos que deverão ser tomados como motes regulamentadores da estrutura subjetiva aceita em uma sociedade. O que a busca pela linguagem universal e menos vaga possível que o DSM oculta é sua condição ideológica que busca alijar qualquer forma de conflito que possa ocorrer. Se no início do século XX Karl Jaspers (1913) procurou enfatizar a vagueza dos diagnósticos como possibilidade do encontro de outras formas de se pensar o fenômeno humano, o DSM procura apaziguar possíveis confusões e desconhecimentos diagnósticos, mantendo oculta sua condição ideológica. Retomando a dimensão inversa que Zizek (1996) faz da lógica do pensamento de Marx "eles não sabem o que fazem, mas fazem" e pensando a partir da lógica de que "eles sabem o que fazem e continuam fazendo", podemos pensar que estamos ante a dimensão cínica que Zizek retoma para pensar a lógica do funcionamento subjetivo atual. É claro que os responsáveis pela montagem do Manual DSM tem clareza sobre o seu fazer e, mais ainda, que a criação de novas entidades psicopatológicas não servirá para minorar o sofrimento psíquico humano. No entanto, a dimensão cínica toma sentido quando nos deparamos com a realidade do lançamento anunciado da quinta versão do manual para o ano de 2013
Longe de querer encerrar tal problemática acerca dos impasses em relação às implicações clínicas do DSM, cabe lembrar que sua proposição em ser uma linguagem única não deve ser tomada como mote norteador na clínica com sujeitos em situação de sofrimento mental. Não foi por que Walt Disney produziu e difundiu a imagem da princesa alva e loira que devemos nos aprisionar a tal modelo. Mas isso é conversa para outra hora.
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Endereço para correspondência
Tiago H. Rodrigues Rocha
E-mail: tiagohrr@hotmail.com
Recebido em 08/12/2011.
1ª Revisão em 20/02/2012.
2ª Revisão em 20/04/2012.
Aceite Final em 21/04/2012.