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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.17 no.2 Ribeirão Preto 2016
ARTIGOS
A sexualidade em pacientes com fibromialgia: panorama da produção científica
Sexuality in patients with fibromyalgia: overview of scientific production
La sexualidad en pacientes con fibromialgia: panorama de la producción científica
Neftali Beatriz Centurion1; Rodrigo Sanches Peres2
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Brasil
RESUMO
Este estudo objetivou empreender uma revisão integrativa das pesquisas empíricas sobre a temática da sexualidade em pacientes com fibromialgia. Para tanto, foram realizadas consultas às bases de dados MedLine, LILACS, SciELO-Brasil, PsycInfo e PePSIC a partir do cruzamento dos descritores "fibromialgia" e "sexualidade", "fibromialgia" e "função sexual" e "fibromialgia" e "disfunção sexual". As 14 referências selecionadas de acordo com os critérios de inclusão estabelecidos foram apreciadas a partir da utilização de um conjunto de dimensões de análise. Constatou-se que predominaram pesquisas quantitativas, transversais, publicadas em periódicos médicos, desenvolvidas junto a mulheres por meio da aplicação de instrumentos de autorrelato e que, desconsiderando a pluralidade de significações e o aspecto relacional da sexualidade, conferem atenção sobretudo à (dis)função sexual.
Palavras-chave: Sexualidade; Fibromialgia; Psicologia da Saúde; Revisão de literatura.
ABSTRACT
This study aimed to develop an integrative review of empirical researches on sexuality in patients with fibromyalgia. To this end, MedLine, LILACS, SciELO-Brazil, PsycInfo and PePSIC were consulted and using the descriptor pairs "fibromyalgia" and "sexuality", "fibromyalgia" and "sexual function" and "fibromyalgia" and "sexual dysfunction". Fourteen references were selected according to specific inclusion criteria and were assessed using a set of analysis dimensions. Predominant references derived from quantitative and transversal researches, published in medical journals, developed with women through self-report instruments, which gave special attention to sexual (dys)function, disregarding meaning plurality and the relational aspect of sexuality.
Keywords: Sexuality; Fibromyalgia; Health Psychology; Literature review.
RESUMEN
Este estudio tuvo como objetivo realizar una revisión integradora de investigaciones empíricas relacionadas a la sexualidad de pacientes con fibromialgia. Por lo tanto, fueron realizadas consultas en las bases de datos MedLine, LILACS, SciELO-Brasil, PsycInfo y PePSIC a partir del cruzamiento de los descriptores "fibromialgia" y "sexualidad", "fibromialgia" y "función sexual" y "fibromialgia" y "disfunción sexual". Las 14 referencias seleccionadas de acuerdo con los criterios de inclusión establecidos fueron apreciadas a partir de la utilización de un conjunto de dimensiones de análisis. Se constató que predominaron investigaciones cuantitativas, transversales, publicadas en periódicos médicos, desarrolladas junto con mujeres por medio de la aplicación de instrumentos de auto-reporte, desconsiderando la pluralidad de significados y los aspectos relacionales de la sexualidad y confiriendo atención especial a la (dis)función sexual.
Palabras clave: Sexualidad; Fibromialgia; Psicología de la Salud; Revisión de la literatura.
A fibromialgia é uma síndrome reumatológica predominantemente feminina que se caracteriza pela ocorrência de dor musculoesquelética difusa, crônica, nãoinflamatória e geralmente acompanhada de alterações na memória, na atenção e no sono, além de fadigabilidade, depressão, ansiedade e cefaléia (Clauw, 2014). Segundo os mais recentes critérios propostos pelo American College of Rheumatology, o diagnóstico é clínico e se aplica quando da presença, sempre por um período superior a três meses, de: (1) relato de dor em pelo menos sete de 19 sítios anatômicos preestabelecidos e obtenção de, no mínimo, cinco pontos em uma escala de severidade de sintomas associados – dentre os quais sintomas depressivos e ansiosos – ou (2) relato de dor entre três e seis sítios e soma de nove ou mais pontos na escala de severidade de sintomas associados (Wolfe et al., 2010).
Embora seja presumida uma alteração do processamento da dor no sistema nervoso central, a fibromialgia não é causada por alterações orgânicas passíveis de detecção, razão pela qual sua origem ainda não é clara (Bellato et al., 2012). Por outro lado, se encontra bem documentado o fato de raramente ocorrer remissão completa, de modo que a síndrome tende a afetar globalmente o bem-estar de pacientes, quer sejam homens ou mulheres. Afinal, estudos voltados à avaliação da qualidade de vida neste público revelam o desencadeamento de importantes prejuízos em termos físicos, psicológicos, sociais e sexuais a partir da eclosão dos sintomas (Tawadros et al., 2013). Porém, uma melhor compreensão a respeito dos prejuízos sexuais ainda se faz necessária para subsidiar intervenções multidisciplinares voltadas mais diretamente a essa problemática, geralmente negligenciada ou relegada a um plano secundário nos tratamentos (Bazzichi et al., 2012).
Ressalte-se que, conforme Giami (2008), a sexualidade é uma noção que não admite definição unívoca, mas, de forma geral, se reconhece que a mesma não se limita ao ato sexual propriamente dito e encerra significações sociais e psicológicas diversas. Contudo, na esteira do lançamento de certos fármacos, os discursos públicos a esse respeito vêm sendo pautados, sobretudo, pela questão da função sexual, ou, mais especificamente, da disfunção sexual, como também observou o referido autor. É justamente nesse sentido que Russo (2013) sustenta que, desde o final do século XX, observa-se um movimento de "farmacologização" da sexualidade, o qual seria correlativo de uma redução da vida sexual à sua dimensão orgânica, objetiva e individual.
Nas últimas décadas foram realizadas diversas pesquisas sobre a sexualidade de pacientes com fibromialgia, como se verá adiante. Considerando-se a relevância do assunto para o aprimoramento dos tratamentos oferecidos a essa população, um mapeamento do conhecimento já produzido a respeito se justifica na medida em que é capaz de proporcionar informações úteis para a prática clínica de diferentes profissionais de saúde. Ademais, pode se revelar oportuno para a identificação dos desafios atuais e das perspectivas futuras para a produção científica, contribuindo, assim, para o desenvolvimento de novos estudos. E as revisões da literatura, quando conduzidas em conformidade com procedimentos metodológicos apropriados, possibilitam a obtenção desse mapeamento (Souza, Silva, & Carvalho, 2010).
Tendo em vista o que precede, este estudo objetivou, por meio do empreendimento de uma revisão da literatura, estabelecer um panorama da produção científica sobre a sexualidade em pacientes com fibromialgia. Mais especificamente, buscou-se responder à seguinte questão norteadora: "Qual é o status do conhecimento atualmente disponível nas pesquisas empíricas sobre o assunto em termos: (1) da fonte das publicações; (2) da amostra; (3) da abordagem metodológica; (4) do delineamento de pesquisa; (5) dos instrumentos; (6) dos objetivos e (7) dos principais achados?".
Método
Desenho metodológico
Como destacam Grant e Booth (2009), há uma variedade de modalidades de revisão da literatura, sendo que muitas vezes as designações que seriam capazes de diferenciá-las são empregadas indiscriminadamente. Nesse sentido, consideramos relevante explicitar que o presente estudo pode ser enquadrado como uma revisão integrativa, modalidade de revisão em que se admite a inclusão, no corpus de análise, de pesquisas desenvolvidas a partir da utilização de desenhos metodológicos diversificados (Soares et al., 2014). Nesse sentido, as revisões integrativas são consideradas mais inclusivas e tratam de tópicos mais amplos do que as revisões sistemáticas, que comumente privilegiam pesquisas experimentais – em especial ensaios clínicos randomizados – e se debruçam sobre questões mais circunscritas (Souza, Silva, & Carvalho, 2010). Não obstante, ambas demandam a definição de uma questão norteadora capaz de determinar com clareza a população e os resultados de interesse.
Estratégias de localização das referências
Para subsidiar a localização das referências, foram realizadas consultas às bases de dados MedLine, LILACS, SciELO-Brasil, PsycInfo e PePSIC. Buscou-se, dessa forma, contemplar publicações científicas nacionais e internacionais em Psicologia e, em um sentido mais amplo, em Ciências da Saúde, visto que o assunto em questão possui natureza multidisciplinar. As consultas às referidas bases de dados foram concluídas em Junho de 2015 mediante o cruzamento dos seguintes descritores, em inglês e português: "fibromialgia" e "sexualidade", "fibromialgia" e "função sexual" e "fibromialgia" e "disfunção sexual". Tais descritores foram selecionados por serem de uso corrente na literatura especializada – até mesmo por constarem de vocabulários técnicos como a Terminologia em Psicologia e os Descritores em Ciências da Saúde – e por terem se revelado mais produtivos do que outros semelhantes em buscas prévias, viabilizando a obtenção de resultados mais precisos. Os campos de busca selecionados foram "resumo" na LILACS, na PePSIC, na SciELO-Brasil e na PsycInfo, e o equivalente "título/resumo" na MedLine. Cumpre assinalar que, para viabilizar um levantamento bibliográfico completo, as consultas não envolveram a utilização de quaisquer limites – em relação à data de publicação ou idioma, por exemplo – oferecidos pelas bases de dados.
Estratégias de seleção das referências
Os títulos de todas as referências obtidas a partir das consultas eletrônicas foram inicialmente examinados para subsidiar a eliminação de eventuais duplicidades. Os resumos das referências selecionadas mediante o emprego desse procedimento inicial foram então submetidos a uma leitura preliminar, cujo propósito básico foi determinar o material que, efetivamente, viria a constituir o corpus de análise. Esta leitura preliminar foi realizada de modo independente pelos autores do presente estudo, assim como foi norteada em função de quatro critérios de inclusão básicos: (1) publicação no período compreendido entre 2005 e 2015, (2) redação em inglês, espanhol ou português, (3) publicação no formato de artigo empírico completo e (4) temática relativa à sexualidade de pacientes com fibromialgia em um sentido mais amplo, ou seja, não se limitando à questão da relação sexual propriamente dita.
Estratégias de avaliação das referências
Todas as referências que constituíram o corpus foram recuperadas na íntegra, em suas versões digitais ou impressas, e submetidas à avaliação mediante a execução da leitura exaustiva de cada uma delas, a qual também foi realizada de modo independente pelos autores do presente estudo. Os resultados decorrentes dessa leitura exaustiva foram organizados em sete dimensões dispostas em um crivo de avaliação e estabelecidas em consonância com a questão norteadora, a saber: (1) fonte; (2) amostra; (3) abordagem metodológica; (4) delineamento de pesquisa; (5) instrumentos; (6) objetivos e (7) principais achados. Os resultados inicialmente consensuais, obtidos com a aplicação independente do crivo de avaliação, foram aceitos automaticamente. Já os resultados inicialmente discordantes foram discutidos caso a caso pelos autores até que se chegasse a um comum acordo.
Resultados e discussão
Foram localizadas, no total, 80 referências, sendo 54 na MedLine, 24 na PsycInfo, 1 na SciELO e 1 na LILACS. Na PePSIC não foi encontrada nenhuma referência. Após a eliminação das duplicidades, contudo, restaram 43 referências. A seguir, foi realizada a seleção propriamente dita dessas referências, em função dos critérios de inclusão estabelecidos, o que levou à exclusão de mais 29 referências, sendo duas delas devido à aplicação do primeiro critério de inclusão (período de publicação), duas em virtude do emprego do segundo critério (idioma de publicação), 11 mediante o terceiro critério (formato de publicação) e 14 a partir do quarto critério (temática). Dessa forma, das 80 referências inicialmente localizadas, 14 vieram a constituir o corpus: Blazquez, Ruiz, Aliste, García-Quintana e Alegre (2015), Lisboa, Sonehara, Oliveira, Andrade e Azevedo (2015), Yener et al. (2015), Burri, Lachance e Williams (2014), Tutoglu, Boyaci, Koca, Celen e Korkmaz (2014), Batmaz et al. (2013), Ferreira et al. (2013), Rico-Villademoros et al. (2012), Yilmaz et al. (2012), Ablin, Gurevitz, Cohen e Buskila (2011), Orellana et al. (2008), Aydin et al. (2006), Prins, Woertman, Kool e Geenen (2006) e Tikiz et al. (2005).
Quanto à primeira dimensão de análise (fonte), os resultados obtidos revelam que as referências selecionadas foram publicadas em nove periódicos científicos diferentes, sendo a maioria deles da área médica. E apenas o Journal of Sex Medicine e o Journal of Sex & Marital Therapy – os quais veicularam as referências de Blazquez et al. (2015), Burri et al. (2014), Rico-Villademoros et al. (2012) e Yilmaz et al. (2012) – incluem mais explicitamente a sexualidade em seu escopo. Obviamente a escolha do periódico, por parte dos pesquisadores, é determinada por diversos fatores, dentre os quais a visibilidade do mesmo. Porém, seria interessante se novos estudos sobre a sexualidade de mulheres com fibromialgia fossem publicados com maior regularidade em periódicos de largo espectro para que o assunto pudesse ser mais difundido entre leitores de áreas variadas, de maneira a favorecer a abordagem dessa problemática no âmbito de intervenções multidisciplinares, como recomenda Bazzichi et al. (2012).
Os resultados relativos à segunda dimensão de análise (amostra), sintetizados na Tabela 1, evidenciam que a maioria das referências que constituíram o corpus elegeu como sujeitos tanto pacientes com fibromialgia quanto indivíduos saudáveis, pelo que se encontra relativamente bem documentada a existência de diferenças entre tais populações em termos da sexualidade, como será detalhado adiante. Assim, recomendase que novos estudos com enfoque comparativo também incluam amostras compostas por pacientes com outras condições reumatológicas, a exemplo do que já foi feito por Ferreira et al. (2013) e Orellana et al. (2008), estes últimos especificamente com pacientes com artrite reumatoide. Ocorre que, conforme Tristano (2009), as condições reumatológicas em geral tendem a comprometer a sexualidade de modos e em níveis distintos. Além disso, são necessários mais estudos sobre a sexualidade de pacientes com fibromialgia do sexo masculino – como aquele de autoria de Batmaz et al. (2013) – para subsidiar o preenchimento de uma importante lacuna ainda existente na literatura especializada, a qual, entretanto, é compreensível levando-se em conta o fato de a síndrome ser predominantemente feminina.
Acerca da terceira (abordagem metodológica) e quarta (delineamento de pesquisa) dimensões de análise, houve expressivas recorrências entre as referências selecionadas, posto que todas elas derivam de estudos quantitativos e – salvo aquela de autoria de Lisboa, Sonehara, Oliveira, Andrade e Azevedo (2015) – transversais. Seriam bem-vindas, portanto, pesquisas qualitativas dedicadas ao assunto, as quais, obviamente se desenvolvidas de acordo com os procedimentos metodológicos típicos dessa abordagem, poderiam contribuir para uma maior compreensão acerca da dimensão subjetiva da sexualidade em pacientes com fibromialgia. Afinal, conforme Turato (2005), as pesquisas quantitativas em saúde priorizam a mensuração de certas ocorrências – como, por exemplo, a frequência de sintomas de disfunção sexual – e, como consequência, não possibilitam a exploração das múltiplas significações atribuídas às mesmas pelos sujeitos. Outrossim, pesquisas longitudinais poderiam auxiliar a compreender se e como a sexualidade em pacientes com fibromialgia varia com o transcorrer do tempo. Todavia, é digno de nota que estudos com este delineamento, como bem observou Meltzoff (2001), exigem um planejamento bastante detalhado por demandarem a execução de avaliações com os mesmos sujeitos em diferentes momentos, o que, no contexto brasileiro de assistência e pesquisa em saúde, representa um desafio a ser considerado.
Quanto à quinta dimensão de análise (instrumentos), os resultados apresentados na Tabela 2 apontam que instrumentos de autorrelato no formato de índices, inventários e afins foram marcadamente priorizados para a avaliação de aspectos relacionados à sexualidade, o que já seria esperado considerando-se a predominância de pesquisas quantitativas no corpus. O instrumento mais frequente foi o Female Sexual Function Index (FSFI), elaborado por Rosen et al. (2000) e constituído por 19 itens que avaliam seis domínios da resposta sexual feminina (desejo sexual, excitação sexual, lubrificação vaginal, orgasmo, satisfação sexual e dor) nas últimas quatro semanas. Ressalte-se que nas referências derivadas de pesquisas com pacientes do sexo masculino o instrumento empregado foi o International Index of Erectile Function (IIEF), de Rosen et al. (1997), que abrange, por meio de 15 itens, cinco domínios da função erétil (função erétil, orgasmo, desejo sexual, satisfação com a relação sexual e satisfação sexual em geral).
Instrumentos de autorrelato como o FSFI e o IIEF se caracterizam pela praticidade quanto à aplicação e avaliação. Em contrapartida, subsidiam apenas a obtenção de informações concernentes ao que os sujeitos puderem revelar acerca de si – ou seja, sobre o que possuírem conhecimento consciente – e, ainda, se quiserem fazê-lo. Ademais, os instrumentos de autorrelato viabilizam a emergência de respostas permeadas por vieses sob a forma de "faking good" ou "faking bad", por meio das quais o sujeito intencionalmente pode se apresentar mais favorável ou desfavoravelmente (Hogan, 2006). Logo, seria interessante se em estudos futuros sobre a sexualidade de pacientes com fibromialgia fosse mais comum o recurso a instrumentos que, como as entrevistas não-dirigidas, proporcionam maior liberdade de expressão. Em tese, assim se poderia coletar dados relativos ao ponto de vista subjetivo dos mesmos, um relevante componente das variadas significações da sexualidade.
A partir dos resultados relativos à sexta dimensão de análise (objetivos), nota-se que os autores de sete referências selecionadas – Lisboa et al. (2015), Tutoglu et al (2014), Batmaz et al. (2013), Rico-Villademoros et al. (2012), Aydin et al. (2006), Prins et al. (2006) e Tikiz et al. (2005) – explicitamente buscaram avaliar a função ou o funcionamento sexual dos sujeitos. Por outro lado, em cinco referências – Yener et al. (2015), Burri et al. (2014) Ferreira et al. (2013), Ablin et al. (2011) e Orellana et al. (2008) – o foco foi a disfunção sexual. Constata-se, assim, a centralidade do desempenho sexual, "normal" ou "anormal", no contexto do corpus como um todo. Ou seja, na literatura especializada também se verifica a tendência à ênfase no tema da performance sexual, a exemplo do que tem ocorrido nos discursos públicos sobre sexualidade como desdobramento da erotização da vida em sociedade capitaneada pela mídia, segundo Giami (2008). E isso demarca a existência de outra importante lacuna ainda existente no atual estágio do conhecimento a respeito do assunto. É válido mencionar também que apenas uma referência – Lisboa et al. (2015) – se ocupou da avaliação dos efeitos de uma determinada intervenção na função sexual dos sujeitos, pelo que este se destaca como um enfoque promissor para novos estudos.
Acerca dos resultados relativos à sétima e última dimensão de análise (principais achados), inicialmente é válido destacar que a maioria das referências selecionadas revela que, quando comparados com sujeitos saudáveis, pacientes com fibromialgia – homens ou mulheres – apresentaram maior prevalência de disfunção sexual, evidenciada, por exemplo, por menores escores de desejo sexual, satisfação sexual, excitação sexual, lubrificação vaginal ou função erétil (Ablin et al., 2011; Aydin et al., 2006; Batmaz et al., 2013; Burri et al., 2014; Orellana et al., 2008; Prins et al., 2006; Rico-Villademoros et al., 2012; Tikiz et al., 2005; Tutoglu et al., 2014; Yener et al., 2015; Yilmaz et al., 2012;). É preciso salientar também que insatisfação com o relacionamento afetivo, níveis mais elevados de distress mental e depressão e maior número de tender points se destacaram como preditores de problemas sexuais (Ablin, 2011; Burri et al., 2014; Prins et al., 2006). Por outro lado, melhor funcionamento físico e melhor saúde mental se mostraram associados à melhor função sexual (Batmaz et al., 2013; Tutoglu et al., 2014).
Ademais, ressalte-se que uma das referências que integrou o corpus – Ferreira et al. (2013) – reportou que mulheres com fibromialgia apresentaram maior frequência de inatividade sexual do que mulheres com lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, esclerose sistêmica e síndrome antifosfolípide. Em contrapartida, outra referência – Orellana et al. (2008) – não encontrou diferenças estatisticamente significantes entre mulheres com fibromialgia e mulheres com artrite reumatoide quanto à disfunção sexual. Tal fato reforça que novas pesquisas sobre a sexualidade voltadas à comparação de pacientes com fibromialgia e pacientes com outras condições reumatológicas são necessárias. E o mesmo se aplica a estudos desenvolvidos com o intuito de avaliar efeitos de intervenções, sendo que na única referência selecionada que possuía tal enfoque – Lisboa et al. (2015) – constatou-se que a cinesioterapia pode contribuir para a melhora da função sexual.
Para encerrar os resultados concernentes à sétima dimensão de análise, cumpre assinalar que duas referências – Yener et al. (2015) e Tutoglu et al. (2014) – se diferenciaram das demais por terem incluído entre os participantes cônjuges de mulheres com fibromialgia. Mas apenas a segunda delas avaliou a sexualidade, ou melhor, a função sexual, dos mesmos, tendo constatado que cônjuges de mulheres com fibromialgia apresentaram menores escores de função erétil do que cônjuges de mulheres saudáveis. Embora tal referência, assim como as demais que constituíram o corpus, privilegie o tema da performance sexual, a mesma tem o mérito de não negligenciar a existência do aspecto relacional da vida sexual. Este, a propósito, poderia receber mais atenção em pesquisas futuras de modo a evitar, na literatura especializada, a circunscrição da sexualidade à esfera da individualidade, tendência esta que, conforme Russo (2013), está associada à sua "farmacologização".
Os achados reportados pelas referências selecionadas, portanto, evidenciam que, como já sugeriam estudos anteriores sobre qualidade de vida em pacientes com fibromialgia, comumente neste público a vivência da sexualidade se encontra comprometida. Porém, inegavelmente houve um importante avanço no sentido de uma delimitação mais apurada dos indicadores e da magnitude de tal comprometimento, tendo-se comprovado, inclusive, que o mesmo atinge os cônjuges de mulheres com a síndrome. Estas informações seguramente se afiguram como importantes acréscimos à literatura especializada. Não obstante, é preciso sublinhar o fato de que a ênfase no tema da performance sexual no âmbito do corpus representa uma questão preocupante, na medida em que demonstra, com base nas proposições de Giami (2008), que as construções científicas sobre a sexualidade têm refletido diretamente as construções sociais predominantes desde o advento de medicamentos que se prestam à melhoria da potência sexual.
Ao menos em tese, competiria às construções científicas sobre a sexualidade discutir e problematizar as construções sociais. E, para além desse alerta, cabe pontuar que é possível qualificar a ênfase no tema da performance sexual como uma faceta de um processo mais amplo, em pleno curso no campo da assistência e da pesquisa em saúde, o qual, como descreveu Russo (2013), vem promovendo a biologização não apenas da sexualidade, mas também do comportamento humano como um todo. E seguramente o processo em pauta testemunha que a perspectiva organicista e objetivista defendida pelo modelo biomédico segue vigente a despeito de suas limitações terem sido evidenciadas há décadas quando da proposição do modelo biopsicossocial.
À guisa de conclusão, procurando fortalecer a integração dos resultados obtidos no presente estudo em seu conjunto, cumpre assinalar que aqueles relativos à sétima dimensão de análise (principais achados) podem ser considerados o paroxismo de uma limitação das referências selecionadas que já se vislumbrava a partir daqueles relativos à terceira (abordagem metodológica), quinta (instrumentos) e sexta (objetivos) dimensões de análise. Trata-se da desvalorização da dimensão subjetiva da sexualidade. Seguramente essa limitação está atrelada ao fato de, no campo da saúde, muitas pesquisas, sobre os mais variados assuntos, buscarem a objetivação por meio da quantificação como estratégia para assegurar sua validade científica (Taquette & Minayo, 2016). A reversão desse cenário, para Luz (2011), passa por um maior reconhecimento das contribuições das Ciências Humanas e Sociais no referido campo. E talvez se criem oportunidades especialmente fecundas para tanto a partir do desenvolvimento de pesquisa sobre fenômenos da vida que, como a sexualidade, possuem um pronunciado aspecto relacional e afetivo.
Considerações finais
Diante do exposto, conclui-se que o presente estudo responde à questão norteadora e possibilita a obtenção de um panorama do conhecimento já produzido a partir de pesquisas empíricas sobre a sexualidade em pacientes com fibromialgia. Em linhas gerais, constatou-se que, no âmbito do corpus, predominaram referências derivadas de estudos quantitativos, transversais, publicados em periódicos médicos, desenvolvidos junto a mulheres por meio da aplicação de instrumentos de autorrelato e que, desconsiderando a pluralidade de significações e o aspecto relacional da sexualidade, conferem atenção sobretudo à (dis)função sexual. Esse conjunto de informações se desdobra em diretrizes para a realização de pesquisas vindouras e, assim, fornece elementos potencialmente proveitosos para a consolidação de uma compreensão mais abrangente sobre o assunto.
É preciso sublinhar o fato de que o presente estudo possui limitações, determinadas principalmente pelas estratégias de localização e seleção das referências. Ocorre que foram contemplados especificamente artigos empíricos veiculados em certas bases de dados. Logo, novas revisões podem ser desenvolvidas mediante a consulta a outras bases de dados e o emprego de outros critérios de inclusão, caracterizando uma outra modalidade de revisão da literatura. Com isso, resultados distintos em certos pontos daqueles ora reportados eventualmente serão obtidos. Não obstante, o presente estudo coloca em relevo a necessidade de se contrapor à objetivação e à biologização da sexualidade que imperam na atualidade, para, assim, avançar no entendimento deste assunto considerando-se a complexidade que lhe é típica. Talvez os esforços envidados nesse sentido levem a um incremento da prática clínica baseado na superação da tendência à "farmacologização" da vida sexual vigente nos últimos anos.
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Endereço para correspondência
Rodrigo Sanches Peres
E-mail: rodrigosanchesperes@yahoo.com.br
Recebido: 20/06/2016
1° revisão: 10/09/2016
Aceite final: 24/10/2016
1 Neftali Beatriz Centurion é mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia.
2 Rodrigo Sanches Peres é docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.