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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.14 no.25 Barbacena jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

Atravessamentos entre discursos psi e discursos religiosos na sociedade em vias de midiatização

 

Crossroads between psychological and religious discourses in mediatized society

 

Encrucijadas entre discursos psicológicos y religiosos en la sociedad mediatizada

 

 

Matheus Barbosa da RochaI; Monalisa Pontes XavierII

IDoutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre e graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Especialista em Saúde Mental pela Faculdade Latino-Americana de Educação (FLATED). Foi professor substituto do curso de Psicologia da Universidade Federal do Piauí
IIDoutora em Ciências da Comunicação pela UNISINOS (2014). Professora do curso de Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar) e do Programa de Pós Graduação em Comunicação/UFPI

 

 


RESUMO

O campo religioso agencia-se na cena midiática, movido pelo interesse de inserção cultural, ampla disseminação e pelas emergentes formas de vinculação social com seu público, reconfigurando, a partir dessa entrada, sua lógica de funcionamento. Semelhante processo também se desenrola com os discursos psi quando se inserem na ambiência midiática. Este trabalho objetivou cartografar os processos de miscigenação e de dissolução de fronteiras que se desenham entre os discursos religiosos e os saberes psi. Analisamos oito episódios do programa "Show da Fé" e comparâmo-lo com os discursos psicológicos circulantes na mídia. Pudemos perceber que quando adentram a lógica da midiatização, as práticas religiosas são tensionadas em seus referentes canônicos, contudo, alguns elementos se mantêm, como governo das almas e externalização de conteúdos íntimos, características que em se aproximam da Psicologia na ambiência midiática.

Palavras-chave: Discursos Religiosos. Discursos Psi. Poder Pastoral. Sociedade em Vias de Midiatização.


ABSTRACT

The religious field acts in the media scene from an interest in cultural insertion, wide dissemination and by the emerging forms of social bonding with its audience, reconfiguring, from this entry, its operating logic. A similar process also unfolds with the psi discourses when they are inserted in the media environment. This work aimed to map the processes of miscegenation and dissolution of borders that are drawn between religious discourses and psi knowledge. We analyze eight episodes of the "Show da Fé" program and compare it with the psychological discourses circulating in the media. We can perceive that when these discourses are inserted in the logic of mediatization, religious practices are transformed into their canonical references, however, some elements remain, such as the government of souls and externalization of intimate content, characteristics that approach to psychology in the media environment.

Keywords: Religious Discourses. Psi Discourses. Pastoral Power. Society in the Process of Midiatization.


RESUMEN

El campo religioso actúa en el escenario mediático, impulsado por el interés de la inserción cultural, la amplia difusión y por las formas emergentes de vinculación social con su audiencia, reconfigurando, a partir de esta entrada, su lógica de funcionamiento. Un proceso similar también se desarrolla con los discursos psi cuando se insertan en el entorno mediático. Este trabajo tuvo como objetivo mapear los procesos de mestizaje y disolución de fronteras que se trazan entre los discursos religiosos y el conocimiento psi. Analizamos ocho episodios del programa "Show da Fé" y lo comparamos con los discursos psicológicos circulantes en los medios. Nos dimos cuenta de que cuando entran en la lógica de los medios de comunicación, las prácticas religiosas se hizo hincapié en su canónica relacionado, sin embargo, algunos elementos se mantienen, ya que el gobierno de las almas y la externalización de contenido íntimo, cuenta con éstos, que se acercan en gran medida la Psicología en el ambiente mediático.

Palabras-clave: Discursos Religiosos. Discursos Psi. Poder Pastoral. Sociedad en vías de Midiatización.


 

 

Introdução

Este artigo tem como objetivo cartografar os processos de miscigenação e de dissolução de fronteiras que se desenham entre os discursos religiosos e os saberes psi. Um primeiro aspecto a ser debatido considera que, apesar do autoritarismo ser recorrente em terras brasileiras - vide o Estado Novo, de Getúlio Vargas (1937-1945) e a Ditadura Civil- Militar (1964-1985) (ARAÚJO e CARVALHO, 2021) - na última década, o país assistiu a ascensão política da extrema-direita em seu solo, indo desde eventos, como o Golpe Jurídico-Parlamentar que culminou no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e na assunção ao poder de Michel Temer, até a eleição presidencial de 2018, que trouxe à cena pública nomes como a Família Bolsonaro, Wilson Witzel, Carla Zambelli e Damares Alves. Pelo que se tem observado, os representantes desse espectro político se ancoram em valores como o protofascismo, o populismo midiático, o ódio de classe, a xenofobia, o racismo, o capacitismo, o machismo, a misoginia, o heterocentrismo e, principalmente, os discursos religiosos (CASTILHO e LEMOS, 2021). É diante desse último aspecto que este artigo busca se demorar: como são veiculados e também consumidos os discursos religiosos circulantes em veículos de comunicação de ampla concorrência? E, considerando-se que ambos os discursos se constituíram a partir de um mesmo pilar - o poder pastoral e o governo das almas -, quais atravessamentos se desenham entre eles?

Para Michel Foucault, essa tecnologia de poder, denominada como poder pastoral, tem suas origens durante a Idade Média da Europa Ocidental a partir do princípio de que certos sujeitos podem, devido ao fato de possuírem qualidades religiosas específicas, servir aos outros, não como príncipes, magistrados, profetas, adivinhos, benfeitores e educadores, mas como pastores. Essa tecnologia de poder possui as seguintes características: é orientado para a salvação (por oposição ao poder político); é oblativo, isto é, funciona a partir de uma servidão voluntária (em contraste ao princípio da soberania); é individualizante (diferentemente do poder jurídico); é coextensivo à vida e constitui seu prolongamento e, por fim, está ligado a uma produção de verdade (FOUCAULT, 1995).

Com a emergência da modernidade, a religião, outrora reguladora das práticas sociais, findou por se deslocar do seu centro irradiador de poder e influência, o que possibilitou um processo de laicização das artes, do lazer, da música, das ciências, do Direito e do Estado, bem como uma reaproximação do sujeito moderno com os ideais de racionalidade humana (FRANCO JÚNIOR, 2001; PORTELLA, 2006). Essa perda da força da institucionalização eclesiástica não significa que o poder pastoral tenha se esfacelado. O mesmo continuou vivo e com novas configurações, a questão principal é que, em vez de o visualizar apenas em instituições eclesiásticas, passamos a percebê-lo como um elemento central do Estado Moderno: isso se deve ao fato dessa tecnologia de poder não ser uma mera entidade que se desenvolveu acima dos sujeitos mas, ao contrário, uma estrutura muito sofisticada, na qual os indivíduos podem ser integrados sob a condição de que ao poder pastoral se atribua uma nova forma que se submete a um conjunto de modelos muito específicos (FOUCAULT, 1995).

O referido pensador também pontua uma série de características que descrevem o poder pastoral na modernidade: já não se tratava mais de uma questão de dirigir o povo para a salvação no outro mundo mas, antes, de garanti-la neste. Houve também uma amplitude na sua atuação - às vezes era exercido pelo aparelho do Estado ou, pelo menos, por uma instituição pública; em outras situações emergia por meio de empreendimentos privados e benfeitorias e, por fim, houve o crescimento do saber sobre o ser humano em torno de dois eixos: um globalizador e quantitativo, concernente à população (governamentabilidade) e o outro referente ao sujeito e aos seus corpos individuais (poder disciplinar) (FOUCAULT, 1995).

No que concerne aos objetivos deste artigo, é possível afirmar que o poder pastoral opera tanto nos circuitos religiosos como nos psicológicos. No primeiro caso, não fica muito difícil deduzir o seu modo de funcionar, já que, conforme foi explicitado acima, esta tecnologia surge com o cristianismo. Já no que se refere à Psicologia, o pastorado se constrói a partir da produção de uma subjetividade historicamente articulada à valorização de uma interioridade psíquica e do enfraquecimento da perspectiva de modos de subjetivação em sua dimensão coletiva, conhecimento este produtor de corpos dóceis e obedientes, como efeito de práticas de ortopedia moral (OLIVEIRA, 2018). As ciências psicológicas surgem, assim, pós-revolução burguesa, ancoradas em ideais liberais, humanistas, iluministas e românticos, como um conhecimento individualista e individualizante, focado na grande massa populacional, mas compreendendo cada indivíduo como um ser singular (SOARES e MIRANDA, 2009), e com a promessa de resolver os seus problemas de conduta, bem como dar explicações sobre o que se passa no âmago desses mesmos sujeitos (OLVEIRA, 2018).

Nesse sentido, a salvação, dentro desse cenário, adquire uma amplitude maior do que em outrora, quando estava presente apenas nos circuitos religiosos, já que agora também envolve saúde, bem-estar, segurança e proteção contra acidentes (OLIVEIRA, 2018). Nos discursos religiosos, essa complexificação do poder pastoral também se mostra perceptível, ganhando novos contornos nessa ambiência social conhecida como contemporaneidade, pós-modernidade, hipermodernidade, modernidade tardia, modernidade líquida, entre outros termos que ambicionam defini-la.

De modo geral, costumamos datar o advento desta nova ordem social a partir das transformações sociais, culturais, econômicas e políticas do início dos anos 1960, quais sejam: ausência de verdades totalizantes; descrença nos ideais coletivos; imediatismo e hedonismo; crise dos metarrelatos, saberes totalizantes e discursos legitimadores; perda da fé na construção de um mundo aos moldes iluministas; mercantilização das relações sociais; queda do espírito universalizante do Iluminismo etc. (SEVERIANO e ESTRAMIANA, 2001).

Esses acontecimentos foram o pano de fundo para o advento, nos anos 1990, de uma nova lógica social apontada por Xavier (2014) como sociedade dos meios. Nesta, os meios de comunicação exerciam uma atividade central de protagonismo, produção e veiculação, de modo que passavam a funcionar como mediadores da dinâmica social. Além disso, as mídias possuíam uma relativa autonomia frente à existência dos demais campos sociais como, por exemplo, a linguagem, a inserção de classe, as experiências práticas, o trabalho e a educação formal recebida.

Contemporaneamente, há uma redefinição nos modos de interação e comunicação entre os sujeitos, uma vez que a mídia ascende à função de organizadora da realidade social. Nesse sentido, os referentes midiáticos passam a transversalizar os campos sociais e as mais variadas dimensões da existência como, por exemplo, a relação com a alteridade, com a religião, com o capital, com o lazer, com a vida, com a morte e com a própria forma de existir (XAVIER, 2014). Esse processo é denominado por Braga (2012) como sociedade em vias de midiatização.

Nesse cenário, o campo religioso, tradicionalmente coroado por uma aura de reserva e mistério, é movimentado em direção à esfera midiática, movido pelo seu interesse de inserção cultural e pelas novas formas de vinculação social com seu público. Destarte, assume as lógicas desse processo social emergente, que nem sempre concordam com as lógicas e gramáticas do discurso religioso hegemônico gerando, em consequência, tensões, desajustes, distorções e transformações das suas reservas simbólico-expressivas (GUTIÉRREZ, 2006).

Por conta disso, é possível afirmar que nas últimas décadas, tem havido um crescente processo de midiatização da fé cristã, já que tem sido cada vez mais comum que a experiência religiosa não se limite ao contato físico e presencial entre pessoas de carne e osso, passando a também girar em torno de dispositivos interacionais (SBARDELOTTO, 2020). "Não estamos mais nos anos 1990. Não precisamos mais entrar na internet, como algo lá fora, porque nunca saímos dela [...]" (SBARDELOTTO, 2020, p. 102). E os discursos religiosos não ficam alheio a esse processo. É nesse cenário midiatizado e em constante transformação que emergem dois processos sociais indispensáveis para se entender os discursos religiosos nos dias de hoje: a teologia da prosperidade e a mercantilização da fé.

Na teologia da prosperidade, surgida a partir de estabelecimentos religiosos como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD) e a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD), há uma nova relação dos sujeitos com o sagrado, bem como com a sociedade, com o mundo e as pessoas que os cercam (BOECHAT, DUTRA e PY, 2018). É possível perceber, portanto, que circulam no interior dessa corrente enunciados que atribuem sentidos positivos e afirmativos às eventuais conquistas pessoais de quem dela faz parte, principalmente no que concerne ao sucesso financeiro e à meritocracia na vida terrena do fiel. Enquanto a salvação pós-morte não vem, as pessoas precisam buscá- la já neste mundo, de modo que, nesse cenário, o dinheiro e os bens materiais não aparecem como algo condenável, mas um caminho muito mais fácil para a possibilidade de realização individual (SOARES, 2019).

As figuras religiosas são, ao mesmo tempo, promotoras das mercadorias que ofertam, quais sejam: a fé cristã e a consequente possibilidade de salvação a partir do sucesso pessoal e financeiro, como também são um produto a ser vendido pois, conforme sabemos, estamos inseridos numa sociedade de consumidores, onde ninguém se torna sujeito sem antes virar mercadoria (BAUMAN, 2008). Aliás, quando voltamos nossos olhares ao cenário atual, percebemos que essas mercadorias religiosas (aqui concebidas como pessoas, dogmas, ideais e artefatos) transbordam os espaços sagrados e adentram também em outras esferas sociais, como a representação político-partidária e os movimentos sociais. É a mercantilização da fé e do sagrado, que atinge níveis inimagináveis a partir do poder pastoral, que cada dia ganha novos contornos. A salvação agora se torna uma moeda de troca para conchavos políticos, transforma-se em um brinde para o fiel que doa mais dinheiro, ou mesmo numa garantia comercial após a compra de produtos religiosos, como pacotes de televisão por assinatura.

Dessa maneira, o presente artigo, caracterizado como pesquisa documental e estruturado a partir da modalidade estudo de caso, tem como objetivo cartografar os processos de miscigenação e de dissolução de fronteiras que se desenham entre os discursos religiosos e os saberes psi. Para isso, analisamos, durante março de 2016, o programa televisivo "Show da Fé". No cenário internacional, como nos Estados Unidos, é bastante comum a presença desses programas de rádio e televisão de cunho religioso, destinados tanto para o grande público quanto para um universo mais seleto (através dos pacotes por assinatura em programas em canais fechados). Essa realidade não é muito distante do cenário brasileiro, visto que também vivenciamos cotidianamente a inserção de religiosos tanto em programas isolados quanto em toda a grade de programação de algumas emissoras de rádio e televisão, como é o caso, por exemplo, dos canais Canção Nova, Rede Vida, TV Aparecida, Canal da Igreja Universal do Reino de Deus (TV IURD), TV Reino e dos programas Fala que Eu te Escuto, Sagrado, Conexão Gospel e Show da Fé.

O "Show da Fé" é inspirado nos programas telerreligiosos norte-americanos, possuindo um formato bastante semelhante a esses - um talk show com uma plateia que interage com o apresentador por meio dos obreiros. Surgiu a partir de reformulações estruturais e modernizações técnicas do programa "Igreja da Graça no Seu Lar"1, transmitido pela Central Nacional de Televisão (CNT), de 1998 a 2003. O cenário principal da atração é o templo, sede principal da Igreja Internacional da Graça de Deus, localizada em São Paulo, porém, ocasionalmente acontecem alguns programas especiais, chamados campanhas, em outros templos do país (SEVERO e BORELLI, 2010).

O programa estreou em janeiro de 2003 na TV aberta pela Rede Bandeirantes de Televisão onde, até a ocasião da pesquisa, era transmitido de segunda-feira a sábado, das 21h25min às 22h20min, além de ser exibido também pela Rede TV!, das 05h00min às 08h30min; das 12h00min às 15h00min; das 20h40min às 21h40min e, pela RIT TV, das 03h20min às 04h30min; das 07h00min às 08h30min; das 17h10min às 18h00min e das 20h50min às 22h00min2.

O programa é apresentado pelo missionário e televangelista brasileiro Romildo Ribeiro Soares, ou simplesmente R.R. Soares. Além de números musicais, a atração também conta com alguns quadros, a saber: "Novela da Vida Real" - através de uma dramatização são mostrados testemunhos de pessoas que contam como eram suas vidas e como estas se transformaram por meio do evangelho; "O Missionário Responde" - pessoas fazem perguntas relacionadas à Bíblia ou a outros assuntos ao apresentador; "Abrindo o Coração" - pessoas que passaram por algum tipo de problema contam isso publicamente e pedem uma orientação; e "Missões em Foco" - que mostra eventos e cultos realizados pela Igreja Internacional da Graça de Deus no Brasil e no mundo.

 

Métodos

A cartografia foi utilizada como diretriz de trabalho. De modo geral, esta metodologia se mostra viável e produtiva por considerar a análise dos múltiplos atravessamentos que compõem o campo de pesquisa, permitindo, portanto, o acesso a tensões, desconstruções, conflitos e não-ditos na medida em que pontua a experiência como o ponto basilar de um estudo, não se prendendo ao objeto inicialmente proposto, mas à sua movimentação e posição no seio das relações nas quais ele se constitui (KASTRUP, 2009).

Diante da variedade de materiais empíricos midiatizados circulantes acerca do nosso objeto, optamos por analisar o programa televisivo "Show da Fé", mais especificamente os episódios referentes a oito dias de exibição, o que contabiliza um total de oito capítulos assistidos (14/03/2016-19/03/2016; 28/03/2016-29/03/2016). Além disso, é importante ressaltar também que comparamos, sempre que possível, as informações obtidas com os resultados da pesquisa conduzida por Xavier (2014) sobre a midiatização da Psicologia, a fim de produzirmos aproximações e distanciamentos entre os discursos religiosos e os saberes psi no que diz respeito à sociedade em vias de midiatização.

O programa em questão, com duração aproximada de sessenta minutos por episódio, foi assistido durante o mês de abril de 2016 a partir do canal do Youtube™ do pastor neopentecostal R. R. Soares. Com o intuito de observarmos as regularidades que atravessavam o programa, analisamos os episódios referentes a uma semana completa, em seguida alguns condizentes às semanas subsequentes.

O material empírico escolhido foi analisado à luz do que Kastrup (2009) atesta como sendo as variedades de atenção possíveis de serem utilizadas numa cartografia. Em um primeiro momento, no rastreio, houve uma varredura aleatória do campo, momento em que nos propusemos a conhecer o programa de TV que estávamos nos propondo a analisar. Em seguida, com o toque, assistimos novamente ao material de análise, dessa vez atentando- nos para os enunciados provenientes dos discursos religiosos, momento em que realizamos, transcrições e anotações do que estava sendo veiculado. Em um terceiro momento, denominado como pouso, nossa janela atencional focou nos enunciados que sinalizavam os atravessamentos entre os discursos religiosos e os saberes psi, para que, por fim, com o reconhecimento atento, pudéssemos destacar os contornos singulares de nosso objeto, o que significou um laborioso processo de costuras com processos contemporâneos que nos circundam e de costuras teóricas, com que o que fora previamente lido (KASTRUP, 2009).

 

Resultados e Discussão

Um primeiro aspecto importante de se destacar diz respeito que, em muitos momentos do mencionado programa televisivo, o fiel é convidado a narrar suas experiências pessoais, sejam elas de angústia ou de suposto milagre, conquistado depois de sua entrada na IIGD, mais especificamente no "Show da Fé", em suas respectivas vidas. Podemos visualizar essa realidade a partir de três exemplos extraídos do próprio programa. A primeira dessas ilustrações trata de um convite do apresentador da atração sobre um culto a ser realizado na cidade de Aracaju.

R. R. Soares: Eu vou estar agora, nessa terça-feira, em Aracaju, na praça dos mercados, às 7 horas da noite e vou estar depois, na quarta-feira, em Maceió, 15 e 19 horas, lá na Fernando de Lima, mil setecentos e alguma coisa, nossa igreja, que é conhecidíssima como Igreja da Graça, nessa avenida importante. [...] Então venha, traga os que sofrem e vamos usar toda a autoridade que Deus tem nos dado para poder libertar em nome de Cristo.

O segundo discurso diz respeito à narrativa de uma fiel que tem sua história de vida descortinada pelo programa no quadro "Novela da Vida Real":

Fiel 1: Eu tinha esporão no pé esquerdo e era três borbolha (sic) que furava, aquele pus amarelo. Eu tinha que andar quase com a ponta dos pés e eu não podia firmar o pé no chão. O médico falou que não tinha cura mesmo. Era só para acalmar a dor. Que eu não ia ter cura. Eu tinha que tomar sempre esses remédios para mim (sic) aguentar a dor para poder trabalhar. Sofri quatro anos de artrose e trabalhando com dor e não podia parar porque eu sou o homem e mulher da casa. Eu não aceitei essa dor de artrose na minha perna. Como eu ouvi o testemunho das outras pessoas como foi curada (sic), porque Jesus também não ia me curar? Pela graça de Deus, o missionário falou "quem tiver com dor, artrite, artrose, tivesse fé, tivesse lá na frente" e eu fui correndo lá na frente. Nenhum irmão falou que eu tinha que subir lá no altar, pois eu vou, em nome do Senhor, que esse lugar aqui é Santo, que o altar prega a palavra de Deus. E graças a Deus, eu saí de lá com minha perna leve igual a um passarinho [...].

O terceiro exemplo refere-se a um relato de uma pessoa aparentemente curada de uma queixa física após uma oração de R.R. Soares:

Fiel 2: Deus fez uma cura agora na minha vida, porque eu tenho, tinha astrose nas pernas, ai peguei essa chikungunya. Já fazia dois meses. Fazia um mês que eu estava com ela. Não saindo de casa para nada. Meu esposo me dava banho. Fazia tudo para mim. Hoje de manhã. Ontem de noite quase que eu ia ser socorrida. Ele hoje de manhã me deu banho [...]

RR Soares: E agora?

Fiel 2: Tô de roupa. Eu agora, para me levantar, me segurei na cadeira e agora eu tô podendo andar. Vou marchar.

RR Soares: Faz tudo que você não podia fazer. Olha ai [vendo ela andar]. Pode abaixar e tudo agora?

Fiel 2: [confirma com a cabeça]

RR Soares: Tá livre?

Fiel 2: [confirma com a cabeça].

Assim, a partir desses três exemplos, podemos identificar que o aspecto prioritário de organização dos discursos religiosos, quando adentram nas ambiências midiatizadas, são as narrativas dos fiéis sobre os seus pecados, representados sejam através de encenações, perguntas ou testemunhos. Desse modo, torna-se relevante trazermos ao debate o pensamento de Foucault (2011) quando o mesmo discorreu sobre o governo das almas: trata-se de um processo de obediência total dos indivíduos com a condição de dizer permanentemente a verdade acerca de si mesmo e de fazê-lo em forma de confissão. Nesse quesito, percebemos uma aproximação desses discursos religiosos midiatizados com as práticas religiosas hegemônicas, uma vez que os mesmos, além de funcionarem como um mecanismo de autogoverno, também constituem e atravessam os modos de produção das subjetividades como, por exemplo, as experiências de si.

De modo geral, essas experiências são compreendidas como aquilo a respeito do qual o sujeito oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina e/ou quando faz determinadas coisas consigo mesmo. Esse ser próprio sempre se produz com relação a certas problematizações e no interior de certas práticas como, por exemplo, as práticas terapêuticas, as pedagógicas e as religiosas (LARROSA, 1994).

A partir da leitura de Foucault (1995) sobre o poder pastoral, podemos perceber elementos de semelhanças entre as ofertas dos discursos religiosos e as práticas psi, uma vez que ambas tradicionalmente têm se preocupado com o governo das almas. Prova cabal disso é quando também nos deparamos com os discursos psicológicos presentes na ambiência midiatizada, onde semelhantes tecnologias de poder também mostram suas capilaridades. Na ocasião em que a pesquisa foi realizada, um bom exemplo de dispositivo interacional psi em que era possível fazer essa comparação era o site ajudaemocional.com, então administrado pela psicóloga, psicoterapeuta, colunista, palestrante e apresentadora de webTV, Olga Tessari (XAVIER, 2014).

O site em questão, até o momento de nossa entrada no campo de pesquisa, encontrava- se na rede mundial de computadores (www - World Wide Web) desde 2001 e funcionava como uma ambiência virtual na qual circulava uma vastidão de informações e possibilidades de interações com o saber psicológico. Na ocasião, o site possuía as seguintes funcionalidades: agenda, consulta, cadastro, atualizações, normas de conduta, política de privacidade, mídia, cursos e palestras, cursos e consultas on line (XAVIER, 2014). Além disso, o visitante também tinha a oportunidade de acessar links que dispunham de temáticas mais específicas, como:

Terapia, Ansiedade, Pânico, Timidez, Medo de dirigir, Medo de errar, Testes, Autoestima, Medo, Depressão, Obesidade, Pais/filhos, Livro, Qualidade de vida, Mulher, Amigos/grupos, Adolescência, Problemas de relacionamento, Bulimia/ anorexia, Idosos, Sexualidade, Fazer o bem, Demissão, Terapia em grupo, Coach, Bate-papo, Plantão psicológico [...], etc. (XAVIER, 2014, p. 158).

Dessa forma, percebe-se que as interações neste dispositivo giravam em torno de sofrimentos e angústias que por ventura o consulente em potencial poderia vir a ter, algo não muito diferente do modo como funcionam os discursos religiosos na ambiência midiática. Desse modo, tal qual denuncia Larrosa (1994) e que pudemos observar em nossa pesquisa, tanto os discursos religiosos como as práticas psi se propõem a fazer os sujeitos confessarem a peritos específicos, como padres, pastores, psicólogos e/ou psiquiatras os seus segredos mais íntimos; buscar a salvação do seu rebanho, se por essa palavra compreendermos "[...] saúde, bem-estar (isto é, riqueza suficiente, padrão de vida), segurança, proteção contra acidentes" (FOUCAULT, 1995, p. 238) e, por fim, cuidar não apenas da comunidade como um todo, mas também de cada sujeito em particular, durante toda a sua vida. Nesse sentido, no que se refere ao governo das almas, podemos perceber esse fato de maneira muito frequente nos discursos de R.R. Soares. Um deles ilustra muito bem essa situação:

R.R. Soares: Deixa eu orar pra quem precisa de um apoio em oração agora. "Missionário, eu não estou bem da saúde do corpo e da alma, que são os pensamentos, as emoções, chateações, qualquer coisa ou até mesmo a saúde espiritual". Você quer que eu ore para Deus lhe resgatar agora? Fique em pé que eu vou clamar o senhor por você agora. Você em casa faça a mesma coisa. Não tenha a menor vergonha, mas olha para mim aqui. Há um segredo: crer que Deus vai visitar você agora. Meu Deus, em nome do senhor Jesus, eu peço por todo esse povo que está orando agora, que acredita na tua palavra, eu uno a minha fé com a fé dessa pessoa, eu paraliso, em nome de Jesus, todo o mal e eu ordeno agora: Oh espírito da doença, da enfermidade, do chikungunya, da zika, de qualquer dor, qualquer mal-estar no corpo, na alma, no espírito, eu ordeno agora, pega tudo que é seu e vai embora, essa pressão na alma que tá enlouquecendo essa pessoa, saia, em nome de Jesus Cristo.

Dessa maneira, a partir desse exemplo e dos anteriormente citados, pudemos perceber um direcionamento dos discursos religiosos midiatizados às pessoas que passam por algum problema em suas vidas, sejam eles doenças físicas, conflitos familiares, angústias etc. Situação semelhante acontece nos dias atuais nos perfis profissionais de psicólogos no Instagram™ quando, ao se lançarem a potenciais clientes, apresentam uma cartela de problemas existenciais que os mesmos têm competência para atuar, indo desde ansiedade, depressão e insatisfação com a própria carreira até questões como problemas nos relacionamentos e transtornos mentais. Esse fenômeno pode ser visualizado também, mas com configurações distintas, em uma pregação feita pelo missionário R. R. Soares:

R.R. Soares: Muitas pessoas estão sofrendo e sempre desnecessariamente, porque Jesus já sofreu em nosso lugar. Talvez você não esteja conseguindo ter vitória na vida: as tentações têm sido maiores do que sua força, isso não é para existir, ao contrário, a tentação tem que tá muito longe do cristão. Se você é de Deus, não entre nesse negócio de gostar da tentação, mandar embora, mas gostar, mas mandar embora, porque isso vai ser sua destruição. Tome posse da benção, seja tentação em qualquer sentido, mental, espiritual, doença no corpo, problema na vida financeira, ou você se realiza em Cristo, ou você não aceitou Jesus, não crê em Jesus.

Nesse sentido, fazemos referência a Bauman (1998), quando ele descreve um fenômeno conhecido como surto de aconselhamento, ou seja, quando os especialistas das mais distintas ordens como, por exemplo, médicos, psicólogos, psicanalistas, educadores, filósofos, literatos e tantos escritores de autoajuda começam a povoar as crescentes esferas midiáticas e, consequentemente, destinar a seus leitores uma audiência/atenção destinada à construção de modos de ser e estar bem nas esferas social, individual e psíquica.

Os peritos em múltiplos domínios da vida humana se proliferam nos meios de comunicação, estabelecendo diretrizes confiáveis de como os sujeitos devem se vestir, comer, educar os filhos, decorar a casa, cuidar da saúde, da beleza, da autoestima, da carreira, fazer amigos e uma série de questões subjetivas como se tornar confiante, assertivo, menos ansioso, proativo etc. (CASTELLANO, 2012). A promessa da cura dos males da existência humana, promessa de muitos gurus da autoajuda, tornou-se a propaganda de muitos religiosos no cenário midiatizado. Aliás, quando investimos maior atenção no cenário contemporâneo, passamos a perceber que esse surto de aconselhamento religioso nos últimos anos tem adentrado em esferas até então inimagináveis, tais como o cenário político. Prova disso são as já famosas figuras políticas da extrema-direita que, ao flertar com os discursos religiosos, constroem um manual de conduta de como seus eleitores devem se vestir, comer e beber, quais ideais devem defender ou mesmo quais sexualidades podem manifestar ou em quais crenças religiosas é permitido acreditar.

Assim, uma nova aproximação com os saberes psi se faz perceptível, já que entre as transformações pelas quais a consulta psicológica passa quando adentra na lógica midiatizada, as principais são as seguintes: abdicação do linguajar acadêmico para se tornar acessível à grande massa; adoção de diferentes maneiras de interagir com o intuito de viabilizar trocas com a sociedade em geral; ressignificação dos acionamentos teóricos em prol de uma maior aceitabilidade; prescrição de modos de ser, o que ocasiona um aprofundamento nas questões de foro íntimo; miscigenação de elementos provindos de outros campos e adoção de comportamentos tentativos de melhor se inserir nas práticas cotidianas da contemporaneidade. Diante de tantas metamorfoses, essas práticas psi findam por deslocar os modos de fala, aproximando-se, muitas vezes, de conselhos de amigos ou conhecidos (XAVIER, 2014).

Nesse sentido, por mais que muitas das perspectivas epistemológicas dessas ciências psi defendam a promoção de autonomia dos sujeitos, quando esses saberes adentram a lógica midiatizada, uma série de transformações operam nessas práticas, fazendo-nos perceber um fenômeno semelhante ao que encontramos nos discursos religiosos midiatizados: a promessa de uma cura dos males da existência.

Outro elemento importante de análise no programa televisivo de R.R. Soares diz respeito à transformação de algumas práticas religiosas hegemônicas a partir de sua inserção numa lógica de inteligibilidade pautada nos processos midiatizados. As práticas que evidenciam essa assertiva são: leitura de pequenos trechos da Bíblia (um ou dois versículos no máximo), enquanto que em cultos tradicionais longos textos de várias passagens bíblicas são lidos e discutidos; a utilização de uma linguagem mais coloquial (em uma propaganda, por exemplo, são utilizados os termos top, parada muito legal, partiu Campo de Marte, faça sua hashtag), além de, em alguns momentos, acontecerem propagandas onde a filmagem ocorre na modalidade selfie. Essas atitudes são utilizadas tanto com o intuito de atender novas demandas de mercado como também objetivando atrair novos públicos e ganhar mais audiência, artimanha esta não muito diferente da utilizada por segmentos políticos envolvidos nas eleições presidenciais de 2018, tais como Jair Bolsonaro e Wilson Witzel, os quais, conforme já apontamos anteriormente, traziam em seus discursos enunciados religiosos que sinalizavam para muito dos processos sociais que aqui analisamos como o governo das almas, o surto de aconselhamento ou mesmo a mercantilização da fé e do sagrado, questões estas que estão circunscritas à midiatização da religião.

Desse modo, nesse cenário de transformação das práticas sagradas em decorrência de estarmos inseridos em uma sociedade em vias de midiatização, as pessoas passam a encontrar ofertas de experiências religiosas não apenas nas igrejas de pedras, nos padres e pastores de carne e osso, mas também nos bits e pixels da internet. Podemos citar como exemplo: versões on line da Bíblia e de textos sagrados; orientações on line com líderes religiosos; pedidos de oração; as chamadas velas virtuais; programas de áudio e vídeo; dentre muitas outras opções (SBARDELOTTO, 2012).

No caso do pastor, missionário e apresentador R.R. Soares, durante o período de coleta e análise do material empírico, isso ficou mais evidente através de elementos como: a sua página no Facebook™ (presente em idiomas como árabe, chinês, coreano, espanhol, farsi, francês, grego, inglês, italiano, romeno, russo, turco, e português) e o site http://www.ongrace.com/portal/, no qual encontramos informações referentes a seus cultos, à IIGD, ao Programa "Show da Fé", bem como serviços de "Bíblia Online", "Mensagem de Hoje", e o "Missionário Responde", dentre outros de seus empreendimentos.

Durante a atração, R.R. Soares também faz merchandising de vários produtos gospels como CDs, livros e canais por assinatura, além de incentivar plateia e telespectadores a colaborar financeiramente tanto para a construção de novos templos como para o custeio das despesas do programa através da campanha "Seja um patrocinador". Como forma de ilustrar essa realidade, trazemos uma fala do apresentador do programa em análise, quando o mesmo faz propaganda de uma TV por assinatura gospel:

R.R. Soares: A "Nossa TV" vai ser a benção na sua família, pessoal! E não adianta ficar com esse pão-durismo, que é um terço que os outros cobram e os canais evangélicos vão mudar a sua vida. Quanto vale a sua salvação? A permanência de você na fé? A salvação de você e da sua família? A reconstrução do lar? Meu irmãozinho, vale quanto um pacote que você escolher! Nós temos quatro pacotes, mas o principal são os canais da Bíblia, que todos os pacotes traz (sic). Os canais bíblicos são onze hoje, vai (sic) ser treze, catorze e nós vamos chegar a muito mais, ao total 60 [..].

Ao extrairmos frases como "Quanto vale a sua salvação?" e "Meu irmãozinho, vale quanto um pacote que você escolher!", percebemos que, nesse cenário midiatizado, em muitas denominações religiosas, como entre os neopentecostais, conforme explica Gabatz (2012), o dinheiro passa a fazer uma mediação com o sagrado de forma que a soberania divina fica renegada a um segundo plano e a individualidade contemporânea entra em evidência, fazendo com que o fiel tenha autonomia e Deus passe a ser um agente dos seus desejos materiais. Conforme mencionamos anteriormente, esse processo é descrito pelo autor como Teologia da Prosperidade.

Na concepção de Gabatz (2012), a Teologia da Prosperidade criou a ideia de que a obtenção de lucro não se trata de um problema ético ou moral. O sucesso por trás dessa prática teológica está em supostos milagres, na manipulação da emoção, na aparente solução de todos os problemas, o que permite aplacar o sofrimento, reconstruir a ordem financeira decadente e garantir valorização, reconhecimento e sucesso profissional. De modo geral, nesses casos, a relação dos fiéis com as igrejas neopentecostais ocorre a partir de uma legítima relação comercial, onde sobressai o produto vendido bem como o consumidor que compra o produto.

O que está por trás dessa comercialização da fé contemporânea é um processo que Bauman (2008) alerta como sendo a transformação das pessoas e das situações em mercadorias. Para o autor, a tarefa dos consumidores e o principal motivo que os estimula a se engajar em uma incessante atividade de consumo é sair da invisibilidade e imaterialidade cinza e monótona, de modo a se destacarem da massa de objetos indistinguíveis. Dessa forma, no contexto dos discursos religiosos midiatizados, visualizamos o processo da seguinte maneira: mais do que comprar esses produtos para garantir a salvação, muitos fiéis usufruem-nos na tentativa de se diferenciarem frente a outras pessoas.

Desse modo, não se trata apenas do consumo do produto em si, no caso em questão, dos elementos gospels, mas também da comercialização de ideias, atitudes e comportamentos, ou seja, mais do que assinar canais por assinatura, comprar CDs, livros, entre outros produtos ofertados pelo pastor, missionário e apresentador, o que os fiéis estão fazendo é garantindo os seus respectivos lugares no céu. Assim, cada vez tem sido mais frequente a transformação da fé em mercadoria, seja no cenário religioso ou mesmo no âmbito da saúde, da educação, da política, do consumo, do lazer e do existir, o que não está muito distante dos discursos psi quando imersos nas ambiências midiáticas, uma vez que, nos dias de hoje, para ter acesso a esse produto de grande valia chamado psicólogo, basta que entremos nas suas redes sociais e vejamos o que em nada se diferencia de um panfleto de supermercado com seus produtos e serviços disponíveis para compra (que quase sempre se confundem com a figura deles próprios).

Nesse sentido, levando em consideração a comercialização e a mercantilização da fé e os significados sociais atribuídos aos produtos vendidos (os quais exemplificamos acima), é necessário trazermos à discussão a concepção de valor signo de Baudrillard (1970). Na concepção do referido autor, o valor signo pode ser compreendido como aquele valor que o produto adquire em sua relação com os demais produtos, segundo um código de significações hierarquizadas. Assim, passam a predominar os valores subjetivos tais como status, poder, segurança, felicidade etc. agregados arbitrariamente aos objetos, de acordo com uma hierarquia social (BAUDRILLARD, 1970). Como forma de exemplificar essa realidade, podemos trazer um trecho da música "O preço do amor", cantada por Leandro Marques em um dos episódios do "Show da Fé":

Leandro Marques: Todo mundo quer/ Comprar alguma coisa/ Alguma coisa pra comer/ Pra beber, pra vestir/ Que dê para se comunicar/ Para assistir/ Alguma coisa para se divertir [...] Mas foi com o preço de sangue / Que Alguém pagou/ Pra ser meu fiador, me fazer vencedor/ Ele sofreu, ele morreu/ Ele me deu Seu amor/ Foi por amor, foi por amor/ Que Ele me comprou.

O que podemos perceber a partir da análise de todos os elementos expostos até então é que o sujeito (compreendido como ser dotado de determinadas modalidades de experiência de si), longe de ser uma substância atemporal, estática ou imutável, é uma construção histórica, cultural, econômica, política, interrelacional etc. (LARROSA, 1994). Nesse sentido, os discursos religiosos eclodem como um vetor de produção das experiências que as pessoas têm de si mesmas e dos outros sujeitos.

Quando adentram a lógica da midiatização, apesar das (re)configurações que tensionam as práticas religiosas, alguns elementos se mantêm estáveis, sendo os principais o governo das almas e a externalização dos pensamentos. Em primeiro lugar, percebemos que ambos os conhecimentos funcionam como modos de governar os sujeitos, seja prescrevendo modos de se comportar, de pensar, de se relacionar, de agir ou mesmo de sonhar, de desejar etc. Trata-se, dessa forma, de um mecanismo de controle e tutela dos sujeitos, os quais, imbuídos do desejo de cuidar, terminam por governar corpos e subjetividades. Além disso, tanto os saberes religiosos quanto os psi se constroem de modo a fazer falar, a suscitar a externalização de pensamentos, sentimentos e conteúdos íntimos, de forma a produzir um gerenciamento da intimidade e sua exposição cada vez mais frequente nos espaços de visibilidade.

Contudo, essas práticas religiosas, ao adentrarem no espaço midiatizado, geram um conjunto de rupturas e tensionamentos com os modelos clássicos de religiosidade, uma vez que produzem e lançam à circulação modos peculiares de escuta e tratamento de questões de foro íntimo, relativas a sofrimento, mal-estar, relacionamentos, patologias e tudo o mais que envolve os aspectos subjetivos e alguns modos ensaísticos de com eles trabalhar. Nesse sentido, percebemos que as práticas religiosas se reconfiguram a depender das lógicas de funcionamento de determinado período histórico, como na sociedade em vias de midiatização, onde as ofertas da religião são cada vez mais diversas: o fiel não precisa se deslocar de sua casa para assistir a um culto, podendo fazer isso por intermédio da TV, rádio ou internet; a Bíblia não se torna mais um elemento necessário nas relações religiosas, visto que o conteúdo da mesma, quando usado, é mostrado nas telas das televisões ou computadores e, por fim, ao entrar em contato com o pregador, o fiel encontra respostas a inúmeros males da existência, sejam eles de ordem física, psíquica ou emocional.

Assim, mais uma aproximação pode ser realizada entre os discursos psi e os religiosos, visto que ambos, ao adentrarem os dispositivos midiatizados, passam a compartilhar semelhante lógica de funcionamento e, dessa forma, muitas das suas práticas se aproximam em demasia. É o caso, por exemplo, da abdicação de um linguajar técnico, tornando-se acessível à grande massa; prescrição de modos de ser, o que ocasiona um aprofundamento nas questões de foro íntimo; miscigenação com elementos provindos de outros campos, por exemplo, do linguajar jovem e adoção de diferentes maneiras de interagir com as pessoas, as quais passam a acontecer, na maioria das vezes, por intermédio de sites,blogs, redes sociais e televisão. Diante das discussões que trouxemos até aqui, podemos afirmar que, a partir da leitura e análise do programa "Show da Fé", percebemos um esgarçamento de fronteiras entre os saberes religiosos e os psi, uma vez que sejam nos modelos canônicos ou midiatizados, ambos se aproximam em seus discursos e em suas práticas.

Observamos, além das aproximações, também um processo de distanciamento entre os discursos religiosos e os saberes psi, visto que ambos se estruturam a partir de perspectivas históricas, epistemológicas e com funções sociais completamente distintas: enquanto uma se define como um conhecimento científico que teve sua origem a partir dos ideais cartesianos de sujeito, a outra se construiu como uma explicação sobrenatural dos acontecimentos terrenos.

Nesse sentido, tomando como pressupostos os elementos narrados até então, compreendemos os discursos religiosos na ambiência midiática como práticas disciplinares e de pastorado. O sujeito religioso contemporâneo aparece, portanto, como resultado de um processo que Bauman (2014) define como "pan-ópticos do tipo faça você mesmo", ou seja, os sujeitos passam a autovigiar seus respectivos desempenhos 24 horas por dia, nos sete dias da semana.

De acordo com essa perspectiva, não seria permitido ao fiel viver uma vida de pecados, os quais contemporaneamente permanecem com as mesmas premissas (tudo o que foge ao escopo de governo e tutela da Igreja), mas com um campo de possibilidades bastante ampliado, em decorrência da capacidade das práticas religiosas de constantemente se reconfigurarem a depender do contexto histórico, econômico, político e cultural, sendo o caso, por exemplo, das práticas religiosas na sociedade em midiatização, conforme mencionamos em parágrafos anteriores. Dessa forma, passam a ser consideradas práticas pecaminosas não somente não pertencer à determinada igreja, mas também não consumir os produtos vendidos por determinado pastor, não colaborar financeiramente com a construção de novos templos ou mesmo não votar no candidato político cristão e defensor da família e dos bons costumes recomendado pela congregação religiosa.

Além disso, a própria punição do fiel muda com a transformação das lógicas sociais, uma vez que se anteriormente o sujeito seria privado de uma pós vida terrena eterna e feliz, atualmente o mesmo será privado de graças financeiras e de um completo bem-estar físico, emocional e espiritual já nesta vida. É o poder pastoral e o governo das almas ganhando novas conformações na sociedade em vias de midiatização.

Percebemos, assim, que a religiosidade e os discursos psi têm se configurado a partir das mesmas lógicas de funcionamento: o poder pastoral e o governo das almas; o hedonismo e a objetividade das práticas, ou seja, a promessa de um gozo imediato, presente já na vida terrena e autogoverno, ou seja, o sujeito é o responsável por narrar e julgar seu próprio desempenho, tomando como base os discursos religiosos e psi em circulação.

 

Considerações Finais

Os discursos religiosos, historicamente compreendidos a partir de uma áurea de reserva e mistério, atualmente, ganham novas luzes, a ponto de percebermos que, a depender do contexto sócio-histórico-econômico-cultural no qual esteja inserida, a religião se estrutura de modo a se articular com as respectivas normativas sociais. Essas práticas religiosas se apropriam das lógicas sociais contemporâneas, tais como os processos de midiatização, a mercantilização da existência e o pós-pan-optismo, de modo a (re)configurar suas práticas e, em consequência, construir o sujeito diante de ofertas de saberes.

De modo geral, quando adentram na esfera midiatizada, esses discursos mais se aproximam do que se distanciam dos saberes psi, como por exemplo: mudança no linguajar e nas formas de interagir com a sociedade em geral; prescrição de modos de ser; miscigenação com elementos provindos de outros campos etc. Mais do que instâncias isoladas, tais práticas compartilham a mesma lógica de funcionamento e é nesse sentido que se torna cada vez mais necessário voltarmos nosso olhar para esses atravessamentos entre esses dois discursos, uma vez que por mais que se trate de uma aproximação que é histórica, é também verdade que, na sociedade em vias de midiatização em que estamos inseridos, essa zona de contato ganha novos contornos.

Por fim, é importante ressaltar que o presente artigo também encontrou justificativa e relevância na ascensão nas últimas décadas do conservadorismo político no Brasil, o qual, conforme apontamos, está bastante atrelado aos discursos religiosos, o que faz com que iniciativas que se proponham a entender mais profundamente essas novas configurações das experiências religiosas devam ser cada vez mais valorizadas.

 

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MATERIAL DE PESQUISA

PROGRAMA 4094/16. Show da Fé. São Paulo: Rede TV!, RIT, TV Bandeirantes, 14 de março de 2016. Programa de TV. 47min09seg.         [ Links ]

PROGRAMA 4095/16. Show da Fé. São Paulo: Rede TV!, RIT, TV Bandeirantes, 15 de março de 2016. Programa de TV. 47min21seg.         [ Links ]

PROGRAMA 4096/16. Show da Fé. São Paulo: Rede TV!, RIT, TV Bandeirantes, 16 de março de 2016. Programa de TV. 48min28seg.         [ Links ]

PROGRAMA 4097/16. Show da Fé. São Paulo: Rede TV!, RIT, TV Bandeirantes, 17 de março de 2016. Programa de TV. 48min22seg.         [ Links ]

PROGRAMA 4098/16. Show da Fé. São Paulo: Rede TV!, RIT, TV Bandeirantes, 18 de março de 2016. Programa de TV. 48min30seg.         [ Links ]

PROGRAMA 4099/16. Show da Fé. São Paulo: Rede TV!, RIT, TV Bandeirantes, 19 de março de 2016. Programa de TV. 48min30seg.         [ Links ]

PROGRAMA 4106/16. Show da Fé. São Paulo: Rede TV!, RIT, TV Bandeirantes, 28 de março de 2016. Programa de TV. 48min45seg.         [ Links ]

PROGRAMA 4107/16. Show da Fé. São Paulo: Rede TV!, RIT, TV Bandeirantes, 28 de março de 2016. Programa de TV. 48min53seg.         [ Links ]

 

 

1 O Programa ainda é exibido diariamente pela RIT e, na TV aberta, pela Rede TV, das 00h30min às 02h00min, das 06h00 às 07h00min (ao vivo).
2 Esses dados são referentes às grades televisivas das emissoras no mês de fevereiro de 2016.

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