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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687

Rev. bras.ter. cogn. vol.6 no.1 Rio de Janeiro jun. 2010

 

ARTIGOS

 

Terapia cognitivo-comportamental infantil em situação de separação conjugal: estudo de caso

 

Cognitive-behavioral therapy for children in a situation of marital separation: a case study

 

 

Silvana Soriano FrassettoI; Daniela Di Giorgio Schneider BakosII

IGraduanda em Psicologia (Universidade Luterana do Brasil - ULBRA)
IIDoutora em Psicologia (UFRGS). Professora de Graduação da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Estudo de caso de uma criança com Transtorno Fonológico relacionado a conflitos familiares e separação conjugal, atendido de acordo com o modelo da Terapia Cognitivo-Comportamental. Tem como objetivo descrever a abordagem de tratamento realizada, enfocando a aliança terapêutica estabelecida com a paciente, as técnicas cognitivas e comportamentais utilizadas e os resultados do processo terapêutico. O manejo terapêutico baseou-se fundamentalmente na utilização de atividades lúdicas, desenhos, técnica de role-play e intervenções com os pais. Ao final de 20 sessões com a menina e seis com os pais, mudanças positivas puderam ser observadas na criança, como uma maior aceitação do processo de separação e um melhor relacionamento estabelecido com seus pais. Além disso, os pais estabeleceram um diálogo saudável, melhorando a sua compreensão da importância de um ambiente psicologicamente saudável para o desenvolvimento da criança. Permitir tais mudanças neste período inicial de desenvolvimento é extremamente importante, uma vez que afetam diretamente a construção esquemática do indivíduo, que ocorre a partir da interação da criança com a família e outros ambientes em que atua.

Palavras-chave: Separação Conjugal; Terapia Cognitivo-Comportamental; Transtorno Fonológico.


ABSTRACT

This is a case study of a child with phonological disorder related to family conflicts and divorce, according to the model of cognitive-behavioral therapy. It aims to describe the treatment approach performed, focusing on the therapeutic alliance established with the patient, the cognitive and behavioral techniques used and the results of the therapeutic process. The therapeutic management was based primarily on play activities, drawings, technical role-play and interventions with the parents. At the end of 20 sessions with the child and six with the parents, positive changes could be observed in the child, such as greater acceptance of the separation process and an improved relationship with parents. Moreover, parents established a healthy dialogue, enhancing their understanding of the importance of a psychologically healthy environment for the development of the child. To enable such changes in this initial period of development is extremely important, since they directly affect the schematic construction of the individual, which occurs from the interaction between child, family and other environments in which it operates.

Key words: Divorce; Cognitive-Behavioral Therapy; Phonological Disorder.


 

 

INTRODUÇÃO

A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) infantil tem cada vez mais favorecido o relato verbal da criança e atribuído força à relação de interação entre terapeuta e paciente (Branco & Ferreira, 2006). Para tal, a TCC com crianças utiliza recursos que abrangem entrevistas com os pais, observação da criança na sessão, em casa e/ou na escola, uso de desenhos e atividades lúdicas, leituras, inventários de atividades diárias e monitoramento dos comportamentos disfuncionais (Souza & Baptista, 2001).

A psicoterapia com crianças tem em comum com a psicoterapia com adultos os objetivos de propiciar, ensinar ou desenvolver habilidades e competências que lhe permitam não apenas obter o alívio do sofrimento, como também retomar a normalidade da vida saudável. No entanto, diferentemente da psicoterapia com adultos, a psicoterapia com crianças implica dois tipos distintos, embora interdependentes, de atuação do terapeuta: a intervenção realizada diretamente com a criança e a intervenção realizada com os pais ou com a família (Moura & Venturelli, 2004; Silvares & Souza, 2008). Isto porque, na abordagem infantil, considerar o contexto familiar é um prelúdio à obtenção de êxito. Uma vez que as crianças agem dentro de sistemas (Bunge, Gomar & Mandil, 2008; Friedberg & McClure, 2004), levar em conta os aspectos sistêmicos circundantes potencializa a compreensão das variáveis envolvidas no funcionamento destas.

Dentre os fatores comumente associados aos problemas comportamentais infantis, destaca-se a interação entre a criança e seus familiares (Silvares & Souza, 2008). Nesta direção, muitas pesquisas têm relacionado discórdia familiar e separação conjugal a prejuízos comportamentais evidenciados por algumas crianças (Benetti, 2006; Peris & Emery, 2004; Pruett, Willians, Insabella & Little, 2003).

Com base nos aspectos mencionados, o presente trabalho busca explorar a abordagem cognitivo-comportamental de transtornos psicológicos associados a conflitos familiares. Através do estudo de caso de uma criança com Transtorno Fonológico relacionado com discórdia familiar e separação conjugal, objetiva analisar a aliança terapêutica estabelecida com a paciente e seus pais, as técnicas cognitivas e comportamentais utilizadas e os resultados do processo terapêutico conduzido.

A escolha de um paciente infantil justifica-se pela abordagem com crianças ser uma área menos explorada na TCC, especialmente no que concerne a sua integração com fatores parentais (Cartwright-Hatton & Murray, 2008). O trabalho de avaliação e intervenção do terapeuta infantil é desafiador quando comparado à psicoterapia de adultos, uma vez que o paciente é considerado em sua relação com o sistema no qual se insere. Sendo a aliança terapêutica a base para um desfecho terapêutico positivo, o papel do terapeuta é dobrado na clínica infantil, uma vez que este deve estabelecer uma sólida aliança terapêutica com a criança e um bom vínculo com seus familiares. Caso contrário, o desfecho clínico poderá não ser bem sucedido.

 

MÉTODO

Participante

B., sexo feminino, 7 anos, freqüentando a 2ª série do Ensino Fundamental. A paciente foi encaminhada pela Clínica-Escola de Fonoaudiologia de uma Universidade particular situada em Canoas/RS para avaliação e atendimento no serviço de Psicologia, com a queixa principal relacionada a comportamento e fala infantilizados, agressividade e irritabilidade com a mãe. Com base no laudo fonoaudiológico, a paciente apresentava boa evolução nas questões de linguagem. No entanto, mostrava comportamentos regressivos, aparentemente associados a situações de discórdia conjugal no contexto familiar.

Histórico desenvolvimental e relações familiares

O processo gestacional e o parto de B. ocorreram normalmente. No que concerne aos marcos desenvolvimentais, estes foram atingidos dentro dos parâmetros considerados padrões. Similarmente, seu desenvolvimento cognitivo e emocional acompanhou as normas esperadas para sua idade. Na ocasião do atendimento, a paciente estava sendo alfabetizada e já conhecia e escrevia algumas letras. Em termos de sociabilização, apresentou dificuldade de se enturmar na escola nos dois primeiros meses. Brincava e se divertia, porém de forma muito tímida.

Aos 3 anos, época que antecedeu a separação dos pais, a paciente começou a apresentar problemas relacionados ao desenvolvimento da linguagem. Logo após a separação dos pais houve um bloqueio neste desenvolvimento, a partir do qual a linguagem falada se caracterizava como infantilizada. Este progrediu, sendo acompanhado, ainda, de comportamentos infantilizados e timidez. Durante o processo de separação dos pais, a paciente presenciou muitas discussões e agressões. Segundo a mãe, ficava muito assustada e paralisada. Aos 6 anos procuraram atendimento fonoaudiológico e psicológico, no intuito de abordar tais questões. As principais queixas trazidas foram agressividade e "revolta" com a mãe.

Seu relacionamento com a mãe incluía uma dificuldade de interação plena por parte desta. Havia momentos em que a criança estava com a mãe no mesmo ambiente, algumas vezes com outras crianças, mas não parecia haver qualidade na interação entre as duas. Durante o período que transcorreu a psicoterapia, a mãe começou a ficar progressivamente menos tempo com a menina, devido ao aumento de atividades em seu trabalho. B. ficava mais com uma tia (irmã da mãe).

O relacionamento de B. com a tia era igualmente prejudicado, incluindo brigas e discussões. Com a avó paterna, a menina estabelecia uma boa relação. Porém, esta proporcionava um ambiente que a infantilizava, com a oferta de mamadeira e outras atitudes que dificultavam a indepêndencia de B. Ademais, a avó posicionava-se criticamente com relação à mãe e ao padrasto da menina, descredibilizando-os.

Um ano após a separação, a mãe casou-se novamente. Este acontecimento gerou muito ciúme por parte do pai em relação à paciente e à mãe, uma vez que o desejo de separação na ocasião desta foi somente da mãe. As brigas entre os pais da paciente ficaram mais freqüentes, levando-a a presenciar cenas de ameaça física por parte do pai em relação à mãe.

No relacionamento com o pai havia muita troca de afeto e uma interação positiva através de brincadeiras. Ao mesmo tempo, os limites adequados não deixavam de ser impostos quando necessário. Apesar de demonstrar muito carinho pela filha, o pai mostrava-se inseguro e temeroso, considerando ameaçadora a relação de B. com seu padrasto.

Procedimento

O procedimento incluiu uma avaliação inicial e a intervenção propriamente dita (psicoterapia).

Avaliação inicial

Nessa primeira fase foram realizadas a avaliação psicológica e a conceitualização cognitiva (Araújo & Shinohara, 2002; Beck, 1976; Beck, 1997; Caminha & Caminha, 2007), através de entrevistas com os pais e a avó e atividades lúdicas com a criança. Sendo assim, as primeiras sessões tiveram como objetivos: a) estabelecer uma aliança terapêutica com os pais e a criança, para um bom desfecho terapêutico; b) acessar as emoções e representações cognitivas da paciente, relacionadas à separação dos pais; c) acessar os pensamentos relacionados às interações com a mãe, com o pai e demais familiares; d) avaliar seus esquemas cognitivos em processo de construção e/ou consolidação e; f) psicoeducar a paciente quanto ao problema e com relação ao modelo de tratamento, principalmente junto aos pais. Para o diagnóstico nosográfico, foram utilizados os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (APA, 2002).

Intervenção

O atendimento em psicoterapia foi realizado com 20 sessões semanais com B. Estas incluíram observação, atividades e procedimentos lúdicos (como desenhar, jogar e imaginar situações), role-play, utilização do baralho das emoções (Caminha & Caminha, 2008) e bonecos que caracterizavam uma situação natural para a criança e um ambiente livre de censura para expressar sentimentos (Caminha & Caminha, 2007; Haber & Carmo, 2007). A criança foi estimulada a reconhecer suas emoções e identificar sua relação com seus pensamentos (Bunge et al., 2008). Além disto, o processo de separação foi trabalhado através do livro "Quando os pais se separam: as crianças podem aprender a lidar com a tristeza do divórcio" (Heegaard, 1998), que propiciou o acesso e a modificação dos esquemas emocionais e cognitivos relacionados ao processo de separação.

Com os pais foram realizadas 6 sessões, nas quais trabalhou-se o desenvolvimento de práticas educativas parentais positivas. Conforme evidenciado em pesquisas na área, os seguintes pontos foram abordados: 1) estabelecimento consistente de limites (time out e reforçamento diferencial); 2) monitoramento positivo; 3) treino de comunicação e expressão de afeto; 4) interação social positiva; e 5) promoção do comportamento moral (Barkley, 2002; Bolsoni-Silva, Silveira & Maturano, 2008; Caballo, 2002; Friedberg & McClure, 2004).

Os objetivos das intervenções foram: a) orientação para a resolução dos problemas; b) reestruturação cognitiva e trabalho com as emoções, no sentido de intervir nos esquemas cognitivos e emocionais que estavam sendo construídos a partir da interação da paciente com a família e demais ambientes nos quais estava inserida; e c) prevenção de recaída.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados da avaliação e dos atendimentos foram obtidos através da análise dos atendimentos realizados com a criança e com os pais, juntamente com a compreensão dos desenhos da criança no contexto de sua conceitualização cognitiva.

Avaliação inicial

Na avaliação inicial, procurou-se obter o exame do estado mental (Cordioli, Zimmermann & Kessler, 2004). A impressão física geral transmitida pela paciente foi saudável. Em termos de conduta, B. foi cooperativa, atenta e assídua nas sessões. O comportamento e atividade psicomotora estavam dentro da normalidade, assim com a atenção, a sensopercepção e a memória. Apresentou consciência lúcida e orientação autopsíquica e alopsíquica normais. Seu pensamento evidenciou organização de conceitos e idéias, juízo e raciocínio. Além disso, o curso, a forma e o conteúdo do pensamento, bem como a inteligência, estavam dentro da normalidade para a idade da paciente. Contudo, havia um atraso na linguagem falada, apresentando dislalia funcional com substituição de fonemas (trocava o v pelo f). Em relação à afetividade, apresentou-se um pouco tensa nas primeiras sessões, mas, posteriormente, com o desenvolvimento da aliança terapêutica, mostrou-se mais segura e relaxada.

Segundo a avaliação das entrevistas realizadas com o pai, a mãe e a avó, a menina apresentava-se agressiva com a mãe e muito tímida em contextos sociais. Além disso, estava com dificuldades no desenvolvimento da linguagem, prejudicando o aproveitamento escolar. A formulação cognitiva do caso foi feita concomitantemente com a investigação do diagnóstico ateórico do problema apresentado pela criança. Levou-se em consideração informações obtidas através de familiares e do ambiente escolar, bem como o relacionamento que B. estabelecia nestes contextos.

No que tange ao diagnóstico ateórico, os seguintes critérios do DSM-IV-TRTM (APA, 2002) para Transtorno Fonológico foram contemplados: a) fracasso em usar os sons da fala esperados para o estágio do desenvolvimento, próprios da idade e do dialeto do indivíduo (p. ex., erros na produção, uso, representação ou organização dos sons, tais como substituições de um som por outro ou omissões de fonemas; b) dificuldades na produção dos sons da fala interferem no desempenho escolar ou na comunicação social; e c) ausência de déficit motor da fala, déficit sensorial ou condição neurológica alterada. Desta forma, obteve-se o seguinte diagnóstico nosográfico: Eixo I - V61.20 - Problema de Relacionamento entre Pai/Mãe-Criança e 315.39 - Transtorno Fonológico; Eixo II - V71.09 - Nenhum diagnóstico; Eixo III - Nenhum; Eixo IV - Problemas com o grupo primário de apoio. Ruptura da família por separação. Novo casamento da mãe; Eixo V - AGF = 70 (atual).

Em termos de sua conceitualização cognitiva, observou-se através das atividades lúdicas e das entrevistas com seus familiares, que B. apresentava algumas crenças relacionadas aos esquemas iniciais desadaptivos (EID's) do domínio de desconexão e rejeição (Young, 2003a; Young, Klosko & Weishaar, 2003b). Conforme o autor, os EID's se desenvolvem durante a infância e são elaborados ao longo da vida. No que concerne ao domínio de desconexão, este normalmente envolve experiências de instabilidade e rejeição vivenciadas na família.

Considerando as situações de discórdia e instabilidade emocional às quais B. foi exposta, é plausível pensar que estas tenham influenciado seu desenvolvimento esquemático (Young, 2003a; Young et al., 2003b). Na relação com seus pais, por exemplo, apareciam algumas crenças inicias do esquema de abandono, com as quais B. lidava de forma hipercompensatória (chamando atenção por meio de uma linguagem infatilizada e exigindo a presença de seus pais).

Seus sentimentos ligados ao esquema de defectividade podiam ser observados em suas relações sociais, que normalmente evitava. Também é possível sugerir que, em algumas situações, a paciente utilizava estratégias hipercompensatórias para combater seus sentimentos de inferioridade, lançando mão de comportamentos agressivos. Ademais, estavam igualmente presentes algumas crenças relacionadas ao esquema de inibição emocional, as quais eram evitadas e contidas ou hipercompensadas (principalmente na expressão de sentimentos em relação à mãe).

Ficou evidenciado que, devido à separação do casal, havia a necessidade de melhorar o diálogo entre os pais, além de promover uma melhor interação da mãe com a paciente. Uma vez que a menina tinha a oportunidade de brincar com o pai quando na companhia deste, ficava brava com a mãe porque não havia semelhante interação entre elas. Por outro lado, suas crenças de privação emocional a impediam de expressar constantemente estes sentimentos para com a mãe, segundo o próprio relato da menina. Quando isto ocorria, B. sentia-se extremamente culpada. Por vezes, inclusive, este sentimento não demonstrado para a mãe era excessivamente dirigido ao padrasto e à tia. Apesar de sua relação com o pai ser geralmente positiva, este demonstrava em sua presença sentimentos como raiva e ciúmes em relação à mãe.

Intervenção e evolução do tratamento

No decorrer da psicoterapia, várias emoções relacionadas à separação dos pais e à interação com a mãe puderam aparecer, foram expressadas e trabalhadas. Havia compreensão por parte da paciente do que era solicitado e uma relação paciente-terapeuta baseada na confiança. A paciente demonstrava, inicialmente, não aceitar a separação dos pais, bem como um desejo de que estivessem juntos. Na Figura 1, a paciente desenhou como se visualizava com relação a sua família, expressando a vontade de reintegrar o pai (Moura & Venturelli, 2004).

Os sentimentos da paciente concernentes à separação apareciam conforme entrevista dialogada a seguir (T = terapeuta; B = paciente): "B- Posso desenhar nesse canto aqui da folha ?; T- Pode, faz como tu quiseres; B- Esse aqui é o meu papai, essa é minha mamãe, eles estão de mãos dadas. Essa aqui é eu com a minha mãe (Figura 1); T- E quem é essa aqui do teu lado ?; B- É a minha tia; T- A tia que mora contigo e a mamãe ?; B- Sim; T- E o papai anda assim com a mamãe ?; B- Não; T- Mas aqui eles estão de mãos dadas...; B- Sim. Acho que eu vou para o meu papai hoje; T- E o que tu fazes no teu papai ?; B- A vovó me dá mamadeira, mas a minha mãe não pode saber tá ? Ela não gosta. A vovó dá sempre mamadeira quando eu vou lá."

Através da verbalização descrita acima, pode-se observar, além da expressão do desejo de que os pais fiquem juntos, uma preocupação em não desagradar a mãe. Uma vez que a mãe deixava muito clara sua intenção de manter a separação, a menina tentava preservar o pai e sua família, no intuito de reverter a situação. Em similar direção, exibia algumas crenças advindas do esquema de busca de aprovação e reconhecimento, na tentativa de evitar desagradar a mãe, o que traria a possibilidade de abandono. Isto aparecia, principalmente, na culpa que sentia quando demonstrava seus sentimentos de raiva com relação à mãe.

À medida que foram trabalhados a expressão dos sentimentos, conteúdos de raiva foram aparecendo progressivamente nos desenhos, auxiliando na reestruturação dos pensamentos disfuncionais relacionados à separação dos pais. Através da reparação parental limitada, a terapeuta proporcionou uma experiência emocional corretiva, ao permitir que a criança expressasse seus sentimentos com relação à separação (Young, 2003a; Young et al., 2003b). Foi possível, desta forma, modificar as idéias disfuncionais que embasavam a evitação dos sentimentos relacionados à mãe.

As citações da entrevista a seguir exemplificam o trabalho com pensamentos relacionados à separação: "T- Olha só o que tu desenhaste aqui toda colorida. É a casa do papai ?; B- É, o papai mora lá.; T- Com quem o papai mora?; B- O papai mora em outra casa, eu moro com a minha mamãe.; T- O papai mora em uma casa separada da mamãe; é como a história do livro (Heegaard, 1998), o papai e a mamãe estão separados. Mas mesmo eles estando separados eles podem ser amigos. E o papai e a mamãe te amam muito. Então, tu vês o papai e a mamãe de mãos dadas, assim, agora ?; B- Não. Eu posso desenhar mais depois?; T- Vamos ver essa outra folha então, aí tu podes desenhar mais.; B- Vou desenhar de vermelho.; T- Olha o que diz aqui no livro. Pode haver muitas mudanças quando os pais se separam. Um deles precisa encontrar um novo lugar para morar. Os filhos talvez não vejam um dos pais tantas vezes. Tudo isso pode ser muito difícil de entender. Os filhos muitas vezes se perguntam porque seus pais não se amam. Aqui fala aquilo que nós conversamos antes, e aqui tu podes desenhar o que te vier na cabeça sobre isso; B- Aqui todo mundo fica junto; T- E quem é esse daqui ?; B- É o F. (padrasto); T- E estão todos de mãos dadas nesse desenho ?; B- Sim.; T- Mostra para mim nessas carinhas como tu te sentiste quando o papai foi morar na outra casa ?; B- Braba e braba. A mamãe ficou feliz, e o papai com medo.; T- E com quem tu ficaste braba ?; B- Com o F. Ele chora às vezes, a mamãe briga com ele; T- A mamãe briga com o F. às vezes ?; B- Sim; T- E o que tu achas do F. ?; B- Eu não gosto dele, o meu pai também não."

Os processos de facilitação da demonstração das emoções e de reestruturação cognitiva em relação à separação dos pais aconteceram em várias sessões. Vários pensamentos associados a sentimentos de raiva e insatisfação com a mãe começaram a ser revelados. Com o tempo, quando a paciente começou a entender que a separação era um processo dos pais e não da sua relação com seus pais, trouxe o desejo de que os pais realmente se separassem porque brigavam muito, conforme entrevista dialogada a seguir: "T- E quem não quer a separação do papai e da mamãe ?; B- É o papai. Ele gosta muito da mamãe.; T- Ele diz para ti que gosta da mamãe ?; B- Diz; T- E tu, não queres a separação ?; B- Eu quero; T- Tu queres ?; B- Sim, eles brigam muito."

Para abordar os esquemas de privação emocional e busca de aprovação e reconhecimento, os quais embasavam a idéia de não poder ficar braba com a mãe, trabalhou-se a técnica de role-play com a paciente. Ficou evidenciado que a menina ficava braba com mãe quando esta brigava com seu pai, mas este sentimento não era demonstrado. Nestes momentos, novamente, a sólida relação terapêutica garantiu acolhimento aos sentimentos da paciente. Na prática clínica, o fantasiar propiciado através do role-play é um recurso que o psicólogo da abordagem cognitivo-comportamental pode utilizar ao trabalhar com crianças, uma vez que motiva a emissão de comportamentos publicamente observáveis e o relato verbal de eventos privados (Haber & Carmo, 2007).

A entrevista dialogada a seguir demonstra a técnica de role-play utilizada: "T- Vamos fazer uma brincadeira. Faz de conta que sou a tua mãe, e tu estás braba comigo. O que tu ias dizer para mim se eu fosse ela ?; B- Eu não sei. Tu és a minha mãe na brincadeira ?; T- É, eu sou a tua mãe na brincadeira. O que tu queres dizer para ela ?; B- Tu não contas nada para ela ?; T- Lembra que nós conversamos antes, tudo que acontece aqui só fica entre nós, é um segredo nosso.; B- Por que que tu brigas com o meu pai ?; T- E o que ela responde ?; B- Ela me xinga, me chama de louca.; T- E o que tu pensas, neste momento ?; B- Que errei.; T- Que mais tu podes pensar ?"

Também ficou evidenciado que a menina ficava braba com a mãe porque não havia uma relação mãe-filha realmente efetiva, uma vez que praticamente não brincavam juntas, além de a mãe não a ajudar em tarefas cotidianas, como os temas de casa. Assim, a mãe passava muitas horas do dia trabalhando, chegava à noite em casa e a menina ficava somente em companhia da tia. O manejo desta situação foi feito através de sessões com a mãe, onde foram organizados alguns horários e em que ela pudesse interagir melhor com a menina, nos quais B. escolheria o que fazer com a mãe; isto é, brincar ou qualquer outra atividade (Barkley, 2002).

Além disso, algumas sessões com o pai foram realizadas com o objetivo de demonstrar que a expressão de sentimentos de raiva e ciúmes do padrasto, a agressividade na presença da menina em relação à mãe, e o fato dele compartilhar seu sofrimento amoroso à filha, estavam prejudicando o desenvolvimento da paciente. Este trabalho com o pai foi muito importante, uma vez que havia ainda uma interferência negativa causada pela demonstração intensa e freqüente dos sentimentos negativos deste. Esta expressão de sentimentos negativos do pai na presença da menina estava muitas vezes relacionada a conteúdo de morte, o que ocasionou nela alguns sonhos de que o pai havia morrido e, conseqüentemente, sentimentos de medo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo de caso relatou o tratamento cognitivo-comportamental de uma criança com Transtorno Fonológico associado a problemas emocionais e separação dos pais. A psicoterapia com crianças é uma tarefa bastante difícil, uma vez que a identificação de pensamentos e emoções é algo que requer um trabalho cognitivo muitas vezes difícil de ser obtido pela criança. Desta forma, diferentes manejos são exigidos por parte do terapeuta, como foi o caso de algumas abordagens presentemente aplicadas: 1) desenhos, 2) atividades de role-play, 3) jogos, 4) livros, e 5) baralho das emoções (Caminha & Caminha, 2008). Adicionalmente, a relação terapêutica desenvolvida tanto com os pais quanto com a criança foi fundamental.

Com base na evolução do caso, após a intervenção realizada, mudanças positivas puderam ser observadas no relacionamento de B. com seus pais. Igualmente, um melhor diálogo entre os pais foi constatado. Ambos compreenderam o efeito de sua conduta no comportamento da menina, aceitando a importância de um ambiente psicologicamente saudável para o desenvolvimento desta. Assim, estas mudanças foram importantes como resultado do trabalho de intervir nos esquemas cognitivos que estavam sendo construídos a partir da interação da paciente com a família e demais ambientes nos quais estava inserida.

Com base na avaliação, sugere-se que os principais esquemas iniciais desadaptativos que estavam sendo construídos eram de abandono/instabilidade, privação emocional, e defectividade/vergonha. Relacionando-se estes esquemas aos problemas enfrentados pela paciente em sua infância, ressalta-se a instabilidade emocional dos pais em decorrência de seus problemas afetivos, bem como sua ausência ocasional (Young, 2003a; Young et al., 2003b).

Não havia um grau adequado de apoio emocional na relação com os pais, sendo que havia privação de cuidados como atenção e companheirismo por parte da mãe, privação de empatia com ausência de escuta e compreensão dos sentimentos de raiva e medo da menina, e privação de proteção uma vez que, pela desorganização emocional dos pais, a menina se sentia perdida e desorientada. Estes comportamentos, provavelmente, encontram-se relacionados ao desenvolvimento dos esquemas de abandono e inibição emocional. Estes aspectos de privação e abandono, por sua vez, se associam a sentimentos de ser indesejada, inferior ou defectiva, desenvolvendo o esquema de defectividade/vergonha.

A identificação dos fatores ambientais que estavam contribuindo para que os comportamentos problemáticos se mantivessem foi igualmente fundamental para uma intervenção mais efetiva. Independentemente da etiologia que tenha gerado os problemas comportamentais ou da história do seu desenvolvimento, a ação dos psicólogos infantis, em geral, é focada de acordo com o padrão de interação que os pais mantêm com seus filhos (Silvares & Souza, 2008). Assim, embora ainda não exista um grande número de estudos observacionais sobre padrões de interação entre pais e filhos de famílias conflituosas, o fato é que as crianças provenientes de lares em que há discórdia usualmente se ressentem e mudam seus padrões de interação, comportando-se de forma desajustada. Isso acontece porque os pais experimentam sentimentos de desconforto, e, em virtude disso, não dispõem de tempo para os filhos, ou porque, em função de suas dificuldades, trocam seus antigos padrões amigáveis de interação com os filhos por um novo padrão disfuncional Fincham. (2003 como citado por Silvares & Souza, 2008).

Durante a infância, as relações com a família e a escola são fundamentais na construção da personalidade, sendo a reestruturação cognitiva favorecida, uma vez que os esquemas ainda estão em construção. Então, tem-se como resultado da psicoterapia, além do alívio do sofrimento, um papel preventivo de construção de alternativas aos esquemas iniciais desadaptativos em construção.

 

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Endereço para correspondência:
Silvana Soriano Frassetto
Universidade Luterana do Brasil. Curso de Psicologia
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Fone: 51-34779215. Fax: 51-34771313
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