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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas
versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746
Rev. bras.ter. cogn. vol.11 no.1 Rio de Janeiro jun. 2015
https://doi.org/10.5935/1808-5687.20150009
ENTREVISTA INTERVIEW
Entrevista com Profa. Dra. Eliane Falcone: Carreira, vida pessoal e desafios futuros
Wilson Vieira Melo
Doutor em Psicologia, UFRGS/University of Virginia, US
INTRODUÇÃO
A professora Eliane Mary de Oliveira Falcone é uma das personalidades mais importantes da área das terapias cognitivas no Brasil. Concluiu a graduação em Psicologia em 1977, pela Universidade Santa Úrsula, o mestrado pela PUC-Rio, em 1989, e defendeu sua tese de doutoramento, intitulada "A avaliação de um programa de treinamento da empatia em universitários", em 1998 pela Universidade de São Paulo. Realizou dois cursos de Pós-doutorado, sendo um deles pela Universidade de São Paulo e outro pela PUCRS. Realizou estágio em Terapia Comportamental, em 1989, pela Universidade de Londres e especialização em Terapia Cognitiva, em 1999, pelo Beck Institute, em parceria com a FBTC.
É autora de aproximadamente 70 publicações, entre artigos científicos, livros e capítulos de livros.
Atualmente é professora associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social dessa instituição. Supervisiona estágio clínico em terapia cognitivo-comportamental e orienta pesquisas de mestrado e doutorado sobre temas relacionados a habilidades sociais, empatia, relação terapêutica e personalidade. Atuou como presidente da FBTC na gestão 2003-2005, quando fundou a Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, da qual foi editora responsável até 2009. Conheça um pouco mais sobre esta grande personalidade.
1) Eliane, como surgiu seu interesse pela psicologia e quando decidiu que esse seria seu caminho profissional?
Compreender o comportamento humano sempre me despertou muita curiosidade. Creio que essa foi a razão pela qual eu escolhi me graduar em psicologia.
2) Quais os maiores desafios que você encontrou no início da carreira e como isso moldou a sua trajetória?
Na época em que iniciei a faculdade, por volta dos anos 1970, a hegemonia da psicanálise era absoluta. Assim, tudo o que aprendíamos na graduação era sob esse enfoque. Não havia nenhuma disciplina que ensinasse como trabalhar na abordagem comportamental (não se falava ainda por aqui em terapia cognitivo-comportamental). A única disciplina que fornecia alguma base das teorias da aprendizagem era chamada de Behaviorismo e ministrada por professores não familiarizados com o tema. Certa vez uma professora solicitou um trabalho escrito onde deveríamos pesquisar os críticos da teoria de Freud. Nessa época eu fazia terapia em grupo de base existencial humanista, e os dois terapeutas do grupo me sugeriram procurar o Geraldo da Costa Lanna, professor da Gama Filho, que era especialista em "condutoterapia", termo que ele criou para a abordagem comportamental. Segundo esses terapeutas, o Lanna poderia me fornecer muitas críticas à psicanálise. A partir daí comecei a estagiar na clínica dele. O meu envolvimento e minha identificação foram tão grandes com essa abordagem que absorvi muito rapidamente os conhecimentos teóricos e práticos das teorias da aprendizagem aplicada à clínica. Os desafios também foram muitos, por seguir na contramão do que era vigente na época. A rejeição ao modelo comportamental decorrente do desconhecimento do assunto era muito grande, e isso me motivava a bons debates sobre aspectos da clínica. Além disso, eram raros os livros traduzidos da área e, para ficarmos atualizados, deveríamos importar, esperando cerca de seis meses para adquirirmos por Correio. Após concluir o mestrado na PUC-Rio, em 1989, fui para Londres realizar estágio sob orientação de Victor Meyer (o criador da técnica de prevenção de respostas para o tratamento do TOC). Nesse período de três meses que fiquei em Londres, comprei livros que já referiam em seus títulos a terapia cognitivo-comportamental. Essa foi uma nova fase de estudos e desafios. Os detalhes dessa experiência foram publicados no vol.3, n. 2, da RBTC e no site da ATC-Rio. Nessas publicações contamos a história de nossa luta para divulgar a TCC no Rio de Janeiro e no Brasil.
3) O que você percebe de semelhanças entre aquele tempo e as dificuldades encontradas hoje em dia pelos profissionais recém-formados?
Creio que a influência da psicanálise no Brasil ainda existe, porém em menor proporção do que no passado. Embora o acesso às publicações em TCC seja muito mais fácil hoje, permitindo uma atualização das novas produções nessa área, ainda temos dificuldades consideráveis na formação de terapeutas. Os cursos de graduação oferecem uma quantidade insuficiente de professores especializados nessa abordagem. Com isso, as oportunidades de estágio são bem menores em relação aos outros enfoques, considerando a demanda de alunos interessados na prática em TCC. Enquanto os usuários de psicoterapia buscam cada vez mais o tratamento cognitivo-comportamental, a oferta de profissionais adequadamente preparados é escassa. Como consequência, o graduando vai buscar esse conhecimento em cursos privados de especialização, quando ele já poderia obtê-lo durante a graduação nas universidades.
4) Há uma história muito engraçada sobre uma experiência profissional inusitada que você viveu no início da carreira como psicóloga clínica. Você se importa de dividir com nossos colegas?
Essa foi realmente uma experiência atípica. Certa vez, quando estava iniciando minha carreira como terapeuta, atendi um cliente que, por um grande equívoco, achou que a clínica onde eu trabalhava era uma "termas" disfarçada. Assim, enquanto eu achava que ele era um cliente de psicoterapia, ele me considerava uma espécie de garota de programa que estava ali para lhe fazer um "relax". O mais impressionante dessa história é que ficamos conversando durante vinte minutos até que ambos descobríssemos o que de fato estava ocorrendo. Quando conto essa experiência aos amigos, todos riem muito. Recentemente escrevi uma crônica sobre essa história intitulada "Uma conversa paralela" que será publicada em breve.
5) Quais os temas que mais despertaram seu interesse ao longo da carreira?
No início de minha carreira eu trabalhava principalmente com as fobias, em especial a fobia social. Atendia também problemas relacionados às disfunções sexuais e ao TOC. Entretanto, o tratamento da fobia social foi o principal tema de minhas primeiras publicações. Por volta de 1982 eu comecei a trabalhar com grupos de fóbicos sociais. Convidei uma colega que era gestalterapeuta, Teresinha Melo da Silveira, que tinha muita experiência com grupos. Juntas, fizemos trabalhos grupais muito eficazes com fóbicos sociais. Os resultados foram tão promissores que resolvi documentar em minha dissertação de mestrado a eficácia dessa intervenção em grupo. Ao aprofundar os estudos sobre habilidades sociais com essa população, comecei a me interessar pela empatia como habilidade de comunicação. Esse tema foi o de minha pesquisa de doutorado, que avaliou a eficácia do treinamento da empatia em estudantes universitários. Na época eu já era professora da UERJ e, ao concluir o doutorado, entrei para o Programa de Pós-graduação
em Psicologia Social dessa universidade, passando a me dedicar às pesquisas sobre empatia. Paralelamente, algumas lacunas sobre como me relacionar com pacientes difíceis me inquietavam na clínica. Em 2001, no congresso mundial de TCC em Vancouver, encontrei um livro do Robert Leahy sobre resistência em TCC. Posteriormente, em 2003, conheci os trabalhos de Jeffrey Young. A partir daí comecei a me debruçar no estudo da relação terapêutica. Pela primeira vez eu havia encontrado um modelo teórico e empírico consistente sobre como interagir com pacientes difíceis. Foi então que abracei o tema da relação terapeuta-paciente em TCC.
6) Atualmente, você é uma referência em terapia do esquema no Brasil. Quais são os aspectos da teoria com que você mais se identifica?
O que me encanta na base teórica da terapia do esquema é o seu poder integrador. Muitos saberes estão inseridos no modelo teórico e na prática dessa abordagem. Além da teoria do apego e dos princípios mais contemporâneos dos estudos sobre a estruturação da personalidade, percebe-se uma grande influência dos terapeutas cognitivos construtivistas, tais como Guidano e Safran, nesse enfoque de Young. Esses autores foram grandes exemplos para a construção dos aspectos ativos do modelo teórico e prático da relação terapêutica desenvolvido por Young. Percebe-se claramente essa influência quando se conhece a teoria e a prática da abordagem dos esquemas iniciais desadaptativos (EIDs), além do modelo de Bowlby, o qual foi muito considerado também pelos construtivistas. O próprio Jeffrey Young relatou isso quando foi entrevistado por mim e por Paula Ventura em 2007. Essa entrevista pode ser encontrada no vol.4, n.1, da RBTC. Outro aspecto encantador da teoria dos EIDs é que essa pode ser compreendida facilmente pelos pacientes, os quais se identificam e se mostram entusiasmados por passarem a entender seus problemas e seus padrões inicialmente desconhecidos para eles. Em síntese, a abordagem dos esquemas representa uma ampliação da TCC às questões referentes à estruturação dos transtornos da personalidade, à intervenção baseada na relação terapêutica e à identificação e à expressão das emoções por meio das estratégias vivenciais.
7) E em relação à rotina, como você distribui o tempo entre vida pessoal, docência, pesquisa e consultório? Quanto tempo dedica a cada uma das atividades em uma semana típica?
Esse é um dilema que ainda não consegui resolver completamente. Creio que ele é compartilhado pelos professores universitários e docentes de programas de pós-graduação. Esse dilema se torna ainda mais difícil quando ele também atende em clínica e dá aulas para cursos privados de especialização na área. Há semanas em que o trabalho me absorve inteiramente. Por outro lado, o encontro com amigos em congressos também propicia momentos memoráveis de risadas e de bem-estar pouco conhecidos entre os que não vivem essas experiências. Há também momentos em que posso estar apenas desfrutando o lazer. Mas é muito difícil organizar isso a cada semana.
8) Há algum momento na sua carreira que você considere marcante?
Sim. Esse momento ocorreu a partir de minha experiência como presidente da FBTC em 2003, quando essa ainda era chamada de SBTC (Sociedade Brasileira de Terapias Cognitivas). Logo que assumi a presidência, contava com poucos recursos e precisava manter o pagamento do site, assim como o de outros compromissos inerentes a uma sociedade científica. Minhas metas de candidata a presidente eram a de divulgar a TCC no Brasil e de fundar um periódico científico para publicação das pesquisas e intervenções na área. Entendia que uma revista de nossa sociedade era fundamental para estimular a produção de conhecimento na área e para aumentar a credibilidade da SBTC.
Para cumprir inicialmente a primeira meta, criei a 1ª Mostra Universitária de Terapia Cognitivo-comportamental, evento anual que até hoje se mantém no Rio de Janeiro. A colaboração de colegas da diretoria da SBTC foi fundamental para que esse evento se perpetuasse ao longo de todos esses anos. Assim, pessoas como Helene Shinohara (que deu o nome "Mostra" ao evento), Monica Duchesne, Paula Ventura, Cristiane Figueiredo, Lucia Novaes e Angela Oliva foram imprescindíveis na realização desse empreendimento.
Quanto à segunda meta, a fundação da Revista Brasileira de Terapias Cognitivas (RBTC) em 2005, os desafios foram bem maiores. Para esse empreendimento, contei com a colaboração de Lucia Novaes, que dividiu comigo a função de editora da revista, além de Adriana Nunan e de Monica Duchesne, as quais eram editoras auxiliares. Posso dizer que o nosso trabalho foi árduo, já que não tínhamos estrutura de uma instituição universitária que nos desse apoio logístico no trabalho. Assim, tivemos que ser criativas. Convidamos mestrandas e doutorandas na época que nos auxiliaram, com muita competência, como revisoras dos manuscritos recebidos. Dentre elas, ressalto o perfil proativo de Aline Sardinha. Ela foi muito além de seu papel de revisora. Conheceu Randi Mc Cabe e James Bascovich em um curso no Canadá e lá mesmo realizou duas entrevistas para a revista, por iniciativa própria (v. 3, n. 1; v. 3, n.2).
Devemos as primeiras edições da RBTC, em seu formato impresso, ao patrocínio de Ingo Guntert, na época um dos diretores da Casa do Psicólogo. Sem ele não teríamos condições financeiras para fundar a revista. A história da RBTC é contada em detalhes no seu editorial do v. 3, n. 1. Assim, a minha gestão como presidente da FBTC correspondeu ao meu principal desafio em toda a minha história profissional, tanto por ter contribuído para a expansão da TCC por todo o Brasil, solidificando a nossa Federação, como pela fundação da RBTC.
Ressalto que tudo isso só foi possível com a contribuição de todas essas pessoas citadas. É muito gratificante ver a RBTC crescendo e buscando novas metas, com a dedicação do Maycoln Teodoro como o atual editor-chefe.
9) Como estão seus projetos para os próximos anos? Em que tem focado suas energias atualmente e quais os desafios para um futuro próximo?
Sigo com as pesquisas sobre empatia e altruísmo, além de um projeto de avaliação de uma escala cognitiva de ansiedade, a ECOGA, em parceria com Makilim Baptista, da Universidade São Francisco, além da colaboração de três pós-graduandas e duas graduandas da UERJ. Há possibilidades de concretizar um projeto de um curso de mestrado profissionalizante em TCC em uma universidade privada. Na prática clínica, tenho focado o meu interesse atualmente para o tema da meditação e das emoções.
10) Sabemos que, ao longo dos anos, muitas experiências e aprendizados foram acumulados. Para encerrarmos, que ensinamentos poderia dividir com nossos colegas leitores?
Os estudos sobre terapeutas sugerem que o tempo de experiência torna esses profissionais menos dependentes dos modelos de tratamento. Embora considere os modelos teóricos e os dados empíricos essenciais ao nosso trabalho clínico, creio que a experiência nos proporciona um olhar mais crítico sobre que modelo usar e, sobretudo, que parte daquele modelo pode ou não funcionar para determinado cliente. Assim, o terapeuta deve saber integrar diferentes modelos contemporâneos de TCC e não ficar preso a apenas um ou dois.
O que me parece essencial ao terapeuta cognitivo-comportamental é saber fazer uma conceituação cognitiva. Creio que essa é a habilidade fundamental para se trabalhar com qualquer problema em clínica. Saber explicar por que um indivíduo desenvolveu este ou aquele transtorno, ou determinado problema, é o que define o bom terapeuta. Ele precisa conhecer os transtornos e os seus critérios diagnósticos, porém irá trabalhar essencialmente com os esquemas e crenças que favoreceram e mantêm aquele diagnóstico, e não com o diagnóstico em si.
Outro ponto importante refere-se a nossa pressa para reduzir a emoção negativa do paciente. Creio que adquirimos esse hábito pelo modelo de reestruturação do pensamento, pelo estilo diretivo de nosso trabalho, ou mesmo pelas nossas exigências pessoais. No entanto, precisamos aprender mais a humanizar e compartilhar esses sentimentos do nosso paciente, antes de ajudá-lo a refletir sobre os seus significados. Quando consigo fazer isso, vejo que o meu paciente se dispõe mais a explorar os motivos de seu sofrimento.
A influência da psicologia positiva nas psicoterapias tem levado os profissionais a focalizar os pontos fortes de seus clientes, em vez de apenas explorar as dificuldades deles. Tenho procurado fazer isso mais vezes em meu trabalho e posso afirmar como isso é construtivo.
A relação terapêutica representa uma grande oportunidade para se trabalhar com o estilo interpessoal disfuncional do cliente, mas é também um grande recurso de crescimento pessoal do terapeuta. Assim, utilizar-se da relação terapêutica para se tornar uma pessoa melhor constitui, a meu ver, um dos melhores recursos de tratamento.
Finalmente, a atualização e abertura para novos conhecimentos (leituras, supervisões em grupo, cursos, congressos, etc.), mantendo sempre o compromisso com o enfoque baseado em evidências, é o que mantém o nosso entusiasmo para continuar crescendo em nossa prática.
Correspondência:
Instituto de Terapia Cognitiva do Rio Grande do Sul
Av. Iguaçu, 525/603 , Bairro Petrópolis
Porto Alegre - RS. CEP: 90470-430
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBTC em 29 de maio de 2016.
Artigo aceito em 28 de Junho de 2016.