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Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. vol.17 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021

https://doi.org/10.5935/1808-5687.20210004 

RELATOS DE PESQUISAS

 

O uso da narrativa da memória autobiográfica como recurso para o aumento da autoconsciência

 

The use of the autobiographic memory narrative as a resource for increasing self-awareness

 

 

Edi Cristina ManfroiI; Maycoln Leôni Martins TeodoroII; Heitor Blesa FariasI; Lucas Lacerda CamiloI

IUniversidade Federal da Bahia (UFBA), Instituto Multidisciplinar em Saúde (IMS) -Vitória da Conquista - Bahia - Brasil
IIUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia: Cognição e Comportamento (CogCom) - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O efeito da narrativa e devolutiva da história de vida no aumento da autoconsciência foi avaliada por meio da Escala de Autorreflexão e Insight (EAI). Para coleta das memórias autobiográficas (MA) foi utilizado um modelo denominado de Narrativa da Linha do Tempo (NLT). Trata-se de um estudo com delineamento ensaio clínico randomizado com três grupos em que participaram 64 adultos. Os dados foram analisados no Programa R. Primeiramente, foram realizados testes de diferenças entre grupos para amostras não paramétricas, porém não se obteve resultados significativos. Depois foram calculados os tamanhos de efeito entre os grupos clínico e ativo usando o d de Cohen em que se constatou que apenas na dimensão Autorreflexão foi obtido um tamanho de efeito moderado. Com o objetivo de verificar o impacto da devolutiva a partir das mudanças individuais, análises foram feitas com o Método JT com o grupo clínico (grupo que recebeu a devolutiva da história de vida), constatando que a maioria dos participantes apresentou mudanças clinicamente significativas (positivas ou negativas) após as intervenções. A dimensão Autorreflexão obteve maiores ganhos clinicamente positivos se comparado a dimensão Insight. Conclui-se que a devolutiva é uma ferramenta que apresenta maior impacto para promoção do aumento na dimensão Autorreflexão.

Descritores: Memória; Autobiografia; Psicoterapia


ABSTRACT

The effect of narrative and feedback on life history in increasing self-awareness was assessed using the Self- Reflection and Insight Scale (SRIS). To collect the autobiographical memories (AM), we used a model called the Narrative of the Timeline (NT). This is a study with a randomized clinical trial design with three groups in which 64 adults participated. The data were analyzed in Program R. Firstly, tests of differences between groups were performed for non-parametric samples and no significant results were obtained. Then effect sizes between the clinical and active groups were calculated using Cohens d, and it was found that only in the self-reflection dimension a moderate effect size was obtained. In order to verify the impact of feedback from individual changes, analyzes were performed using the JT Method with the clinical group (the group that received the life history feedback), which found that most participants showed clinically significant changes (positive or negative) after the interventions. The self-reflection dimension obtained the greatest clinically positive gains when compared to the Insight dimension. Finally, we concluded that feedback´s tool has the greatest impact in promoting an increase the Self-Reflection dimension.

Headings: Memory; Autobiography; Psychotherapy


 

 

INTRODUÇÃO

A memória autobiográfica (MA), definida como o conjunto de recordações de experiências, acontecimentos e fatos pessoais, tornou-se temática em evidência na área da psicologia, sobretudo para intervenções no âmbito clínico (Bauer, 2015; Rubin, 1986; Souza & Gomes, 2005), com significativo aumento do número de pesquisas e publicações, principalmente a partir da década de 1980 (Rubin & Umanath, 2015; Schneider, 2015). Recordar esse grupo de memórias possibilita o acesso à autoconsciência, ou self, propiciando lições e insights em direção ao crescimento, principalmente quando compartilhadas socialmente (Rubin, 1986), tornando-se altamente benéfica se forem acessadas e trabalhadas em contexto de psicoterapia.

Diversas definições de self coexistem nas teorias e práticas psicológicas. Essa variedade é resultante de bases epistemológicas, a partir das quais se adotam diferentes estratégias para abordar e demarcar os limites do objeto de estudo (Rubin, 1986). Como variável psicológica, a autoconsciência pode ser compreendida como um processo típico e único da espécie humana, com característica intencional, que combina eventos internos e externos e possibilita a expressão de pensamentos e sentimentos em experiências subjetivas com alta carga emocional (Souza & Gomes, 2005).

De acordo com Rubin e Umanath (2015), a capacidade de reviver acontecimentos é decorrente da forma de evocação da MA, que envolve a construção mental do evento, sendo, portanto, uma atividade que pode ser ocupada por outra pessoa. É por meio da narrativa da história de vida que as pessoas expressam suas MAs (Rubin, 1986), sendo ela uma das principais formas de acesso do self pelos psicoterapeutas, independentemente da abordagem teórica, e uma poderosa ferramenta de transformação para a pessoa que narra. Assim, o acesso da MA pode ser feito por meio da interação com o outro, de forma mais simples, bastando pedir para que a pessoa conte a sua história de vida.

Por exemplo, Poletto et al. (2015) fizeram uso da narrativa da MA para construir uma linha do tempo com uma família em processo de psicoterapia breve, devido à vivência de múltiplas violências. Essa técnica consistiu na elaboração de um painel com papel pardo e canetas, demarcando temporalmente a ocorrência dos eventos traumáticos. Segundo os autores, a importância da ilustração dos eventos traumáticos de maneira organizada ao longo da história de vida familiar é baseada em interações entre tempo e espaço, sugerindo que seres humanos representam o tempo como espaço, de maneira unificada.

A técnica também propiciou uma organização temporal de eventos traumáticos, estabelecimento de novos padrões de relacionamento e estratégias de resolução de problemas e desenvolvimento de regulação emocional. Os autores ainda relatam que o uso da técnica facilitou a narrativa de situações traumáticas de forma não invasiva, aspecto que viabilizou, desde o início do processo psicoterápico, o questionamento acerca dos padrões transgeracionais de abuso e violência.

Estudos relativos à forma como as pessoas armazenam, evocam e narram as MAs já se mostram bastante documentados na literatura. Descobertas revelam a eficácia do uso da narrativa no tratamento do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), com o uso da narrative exposure therapy (NET) (Jacob et al., 2017); para tratamento e diminuição dos sintomas decorrentes do estigma (Gronholm et al., 2017; Hansson et al., 2017) com a narrative enhancement and cognitive therapy (NECT) (Roe et al., 2014); em pacientes que passaram pela experiência e pelo tratamento do câncer (Benish-Weisman et al., 2014); na transformação do estilo de vida e bem-estar de pacientes psiquiátricos (Smorti et al., 2008); na diminuição dos sintomas do TEPT e depressão em pessoas que passaram por vivência ocasionada por desastre ambiental (Crombach & Siehl, 2018); e também para tratamento de traumas relacionados à infância e à vida adulta (Mørkved & Thorp, 2018); entre outros. No entanto, é no tratamento da diminuição dos sintomas do TEPT (Crombach & Siehl, 2018) e nos sintomas decorrentes do estigma (Hansson et al., 2017) que a literatura tem mostrado mais robustez de evidências do efeito positivo do uso da narrativa das MAs.

A título de exemplo, Latorre et al. (2015) buscaram avaliar a eficácia da revisão de vida (RL) com base em eventos positivos específicos em idosos não deprimidos que participaram de um programa de envelhecimento ativo. Foram aleatoriamente designados para um grupo experimental ou um grupo controle ativo 55 idosos. Um treinamento individual de seis sessões de RL baseado em eventos positivos específicos foi realizado com o grupo experimental. As medidas pré-teste e pós-teste incluíram satisfação com a vida, sintomas depressivos, experimentação do ambiente como recompensador e escalas de MA. Os resultados mostraram que a intervenção da RL diminuiu a sintomatologia depressiva, melhorou a satisfação com a vida e aumentou as memórias específicas positivas.

Os resultados sugerem que a prática de MA para eventos específicos é um componente eficaz e se apresenta como uma ferramenta útil para melhorar o bem-estar emocional em programas de envelhecimento ativo, reduzindo, assim, os sintomas depressivos. No entanto, observa-se que a maioria dos estudos e intervenções que apresentam evidências científicas utiliza as narrativas do evento traumático, com algumas exceções em que o uso da história de vida também compõe o arcabouço de intervenções psicoterápicas. Por exemplo, na terapia de exposição narrativa, como parte do tratamento, cliente e terapeuta constroem em conjunto a história de vida do indivíduo, sendo este um recurso que possibilita maior engajamento do cliente no processo terapêutico (Schauer et al., 2011).

Já no contexto brasileiro, os construtos de MA e self são fenômenos importantes e extensamente investigados na literatura (Souza & Gomes, 2005). A narrativa da história de vida também é parte do processo de psicoterapia, seja para investigação dos eventos importantes da vida do cliente que auxiliem na elaboração de uma conceitualização cognitiva, seja como material interventivo (Polleto et al., 2015). No entanto, não há estudos que avaliem o efeito da narrativa e da devolutiva da história de vida na autoconsciência no contexto de psicoterapia.

Dessa forma, considerando essa lacuna na literatura e os dados científicos que descrevem o impacto positivo da narrativa da história de vida na diminuição de diversos sintomas, este artigo buscou testar as seguintes hipóteses: a narrativa das MAs e a devolutiva da história de vida promovem o aumento da medida da autoconsciência privada nas dimensões Autorreflexão e Insight?

 

MÉTODO

Delineamento

Para testar as hipóteses do estudo, foi adotado um delineamento do tipo ensaio clínico randomizado com três grupos. Um grupo clínico (G1), no qual foi aplicada a narrativa da linha do tempo (NLT) e devolutiva da história de vida; um grupo controle ativo (GC1), no qual foi aplicada apenas a NLT; e um grupo controle passivo (GC2), o qual passou apenas por duas sessões de triagem e avaliação.

Participantes

A amostra foi constituída por 64 adultos, com idades entre 18 e 64 anos (Média = 31 anos; DP = 11,2), sendo 53 do sexo feminino (83%). Os participantes foram alocados no grupo clínico (n = 25), grupo controle ativo (n = 22) e grupo controle passivo (n = 17). Da amostra, 40 (64%) participantes declararam ter religião, 13 (21%) eram casados, 47 (73%) eram solteiros, e 4 (6%) divorciados. Por fim, tratando-se do grau de instrução da amostra, 16 (26%) participantes tinham ensino superior completo, 24 (38%) tinham ensino superior incompleto, 14 (24%) completaram o ensino médio, 4 (6%) tinham ensino médio incompleto, 4 (5%) completaram o ensino fundamental e apenas 1 (1%) declarou ter o ensino fundamental incompleto. A amostra por grupo está descrita na Tabela 1.

Os participantes foram selecionados por meio de triagem no serviço-escola de psicologia de uma instituição de ensino superior. Não foram adotados critérios de queixa e/ou diagnóstico para participação na pesquisa, visto não se tratar de uma intervenção para condições clínicas específicas, mas para testar a mudança em um construto com relevância clínica. Os critérios de inclusão compreendiam ser maior de idade e aceitar participar da intervenção, não sendo adotado nenhum critério específico de exclusão. Após serem triados, os sujeitos foram alocados aleatoriamente em cada um dos grupos, sem utilizar nenhum critério de pareamento. Não houve desistências e perdas amostrais neste estudo.

Instrumentos

Formulário sociodemográfico: utilizado no intuito de ma-pear as características sociodemográficas dos participantes, contendo idade, sexo, grau de instrução, religião e local de residência.

Escala de Autorreflexão e Insight (EAI): escala australiana criada por Grant et al. (2002), originalmente composta por 20 itens, sendo oito referentes à dimensão Insight e 12 à dimensão Autorreflexão, que tem por objetivo avaliar tais dimensões da Autoconsciência. A Autorreflexão responde ao monitoramento dos próprios pensamentos, sentimentos e comportamentos. O Insight, por sua vez, é encarregado pela habilidade de compreendê-los, avaliá-los sob diferentes e novas perspectivas e expressá-los, a fim de tecer julgamentos e autorregular-se. Autorreflexão e insight seriam, para Grant et al. (2002), dimensões independentes, visto que um indivíduo pode dedicar tempo refletindo sobre si (autorreflexão) sem, necessariamente, alcançar um entendimento esclarecedor sobre a sua condição ou experiência (insight). Pesquisa com uma amostra de 690 adultos brasileiros predominantemente das regiões sul e sudeste (respectivamente 69% e 20% dos respondentes) evidenciou a adequação da estrutura fatorial da versão brasileira em relação à escala original (Grant et al., 2002), confirmando a hipótese da divisão entre as dimensões Autorreflexão e Insight. Em observação aos índices de consistência interna (alfa de Cronbach), os resultados foram .902 para Autorreflexão, e .825 para Insight, atingindo em ambas as subescalas valores semelhantes aos obtidos na escala original (DaSilveira et al., 2012).

Procedimentos de coleta de dados e intervenção

As sessões foram realizadas no serviço-escola de psicologia de uma instituição de ensino superior, e conduzidas por alunos de psicologia que passaram por treinamento e supervisão. Os atendimentos foram gravados, mediante autorização formal prévia por meio do preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da universidade sob o nº 03180918.2.0000.5556. Também foi obtida autorização dos responsáveis pela instituição para utilização do material analisado. Um mapa com os procedimentos da pesquisa foi utilizado pela pesquisadora principal (supervisora), a fim de acompanhar as sessões e conferir se todos os pesquisadores (alunos) cumpriram com as etapas.

Para testar as hipóteses deste estudo - a narrativa das MAs e a devolutiva da história de vida promovem o aumento da autoconsciência privada nas dimensões Autorreflexão e Insight? -, dois procedimentos foram adotados. O primeiro consistiu em coletar as narrativas das MAs dos grupos clínico e ativo com o uso de uma técnica desenvolvida e denominada pela pesquisadora principal como NLT. O segundo procedimento consistiu na elaboração da biografia da história de vida do grupo clínico, com base em um modelo também desenvolvido pela pesquisadora, o qual recebeu a intervenção e a devolutiva da história de vida. O grupo passivo participou da coleta das narrativas sem o uso da NLT, seguindo o modelo de triagem do serviço de psicologia. Para melhor compreender o procedimento de coleta das narrativas e o modelo de intervenção, as etapas nos grupos (clínico, ativo e passivo) serão descritas a seguir.

Coleta das narrativas das MAs: participaram dessa etapa os grupos clínico e passivo, totalizando quatro sessões de 90 minutos. No primeiro encontro, houve o estabelecimento de um enquadre terapêutico, além da delimitação dos objetivos de psicoterapia e a psicoeducação referente ao modelo da coleta da narrativa das MAs (NLT).

Para a psicoeducação foram utilizadas duas estratégias. A primeira consistiu em apresentar duas figuras de estradas, usadas como metáfora para demonstrar que o percurso da vida pode ser simbolizado por ela. Essa fase foi nomeada como "Olhando pelo retrovisor", visto que o passado é tudo aquilo que já percorremos, tendo ainda um caminho pela frente. A segunda estratégia, com o objetivo de apresentar os procedimentos da aplicação da NLT, foi realizada com o uso de um cordão (simbolizando a linha do tempo ou estrada percorrida ou a percorrer), no qual era feito um nó em cada memória significativa; três grampos para sinalizar no cordão as três fases do desenvolvimento (infância, vida adulta e velhice); figuras que pudessem simbolizar sentimentos (sol, espinhos, pedras, flores, tempestades, etc.); e uma cartolina em que, ao final de cada sessão, construía-se a linha do tempo utilizando os nós com as memórias mais significativas e as figuras que pudessem simbolizar o sentimento atribuído àquela memória. Essa estratégia foi denominada de "Demostrando o percurso". Ao final dessa primeira sessão, antes do início das narrativas das MAs, o pesquisador realizou a primeira aplicação do EAI (pré-intervenção).

Da segunda até a quarta sessão ocorreram a coleta e o registro das narrativas das MAs. Essa etapa foi denominada de "Percorrendo o percurso". As sessões foram focalizadas em uma entrevista semiestruturada com o objetivo de auxiliar o pesquisador a resgatar os eventos significativos, por meio da narrativa, com uso do cordão da linha do tempo, seguindo a cronologia de cada fase do desenvolvimento (infância, adolescência, vida adulta e velhice). Ao final de cada sessão, os participantes eram orientados a fazer um nó no cordão com as MAs mais significativas e, por fim, recortar e colar na cartolina os nós com uma figura que melhor pudesse simbolizar o sentimento de cada MA.

Para a entrevista semiestruturada, foi construído um roteiro com perguntas norteadoras que pudessem conduzir o pesquisador a investigar os eventos mais marcantes e as principais características de cada ciclo do desenvolvimento. Na infância, a ênfase foi no ambiente familiar (modelos de apego e estilos parentais), escola e socialização, qualidade das amizades e outros eventos significativos. Na adolescência, buscou-se investigar a qualidade das relações familiares e modelos de enfrentamento, escolha profissional, inserção em grupos sociais e amizade, iniciação na vida sexual e percepção de si, dos outros e do mundo. Na vida adulta, os principais marcos foram o início da vida profissional, casamento e iniciação com a parentalidade. E na velhice foram investigados relações familiares atuais, casamento e filhos, projetos de vida e saúde.

Após a coleta das narrativas das MAs ter sido encerrada, o pesquisador apresentou para os participantes a cartolina com a retrospectiva da linha do tempo. Essa sessão foi finalizada com a segunda aplicação do EAI (pós-intervenção I).

Elaboração e devolutiva da história de vida: ocorreu na quinta sessão e teve como propósito a leitura da biografia destinada para o grupo clínico. O pesquisador, durante as narrativas das MAs, e com base em um modelo estruturado, escreveu a biografia da história de vida dos participantes. Ao final dessa sessão, foi feita a leitura da história de vida. Além de realizar o manejo das emoções relacionadas ao uso da devolutiva da história de vida, o pesquisador fez a última aplicação do EAI (pós-intervenção II).

Para o grupo passivo, a coleta das MAs seguiu o modelo de triagem do serviço de psicologia, sendo que a NLT ocorreu em uma única sessão de 90 minutos. A aplicação da EAI foi realizada antes do início das narrativas da MA e após três semanas.

 

PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DE DADOS

Foram calculadas as pontuações brutas dos participantes dos grupos clínico, ativo e passivo nas duas dimensões da EAI, realizando os procedimentos de inversão dos itens e somatórios, conforme apontado por DaSilveira et al. (2012). Após a tabulação, foram realizados testes de diferenças entre grupos para amostras não paramétricas, o teste Wilcoxon, por meio da linguagem R (R Core Team, 2019). Também foram calculados os tamanhos de efeito entre os grupos por meio do delta de Cliff (Cliff, 1993). O parâmetro delta de Cliff foi calculado via função cliffDelta() do pacote, para a linguagem R, rcompanion (Salvatore, 2021), sendo que os limites inferiores e superiores do intervalo de confiança do valor do delta de Cliff foram calculados considerando o alfa de 0,05%.

O uso desses testes de significância estatística para avaliar a eficácia de um tratamento pode mostrar-se limitado em pelo menos dois aspectos. Primeiro, não há, nos testes de significância, as informações sobre a variabilidade da resposta de um tratamento dentro da amostra. Segundo, se existe um efeito de tratamento na estatística, o sentido tem pouco a ver com o significado clínico do efeito (Jacobson & Truax, 1991). Portanto, além de realizar os testes intragrupos e entre grupos, também se optou por analisar a diferença entre as variáveis do pré, pós-I e pós-II, do grupo clínico, com o método JT desenvolvido por Jacobson e Truax (1991), a fim de verificar o impacto da intervenção e da devolutiva a partir das mudanças individuais observadas nas escalas de Autorreflexão e Insight da EAI, fundamentado em dois indicadores: o Índice de Mudança Confiável (IMC) e a Significância Clínica (SC). As análises do método JT foram realizadas por meio da linguagem R (R Core Team, 2019), utilizando-se as funções desenvolvidas pelos autores a partir das fórmulas apresentadas por Jacobson e Truax (1991).

A análise de dados por meio do método JT implica, portanto, dois processos complementares: (a) cálculo da confiabilidade das alterações ocorridas entre a avaliação pré e a avaliação pós-intervenção, descrita em termos de um IMC, calculado em 1,96; e (b) análise do significado clínico dessas alterações (Jacobson & Truax, 1991). Assim, a partir do IMC, compreende-se que as mudanças ocorridas no fator tempo (pré, pós-I e pós-II) são oriundas das intervenções realizadas quando o IMC é maior que 1,96 (definido como Mudança Positiva Confiável) ou quando é menor que -1,96 (Mudança Negativa Confiável); e entre -1,96 e 1,96 representam a ausência de mudança confiável (Jacobson & Truax, 1991).

Nesse sentido, pode-se afirmar que um procedimento é efetivo quando altera, para mais ou para menos, dimensões descritivas do desempenho do indivíduo em termos de frequência, intensidade, duração, topografia, etc. As alterações desejáveis são aquelas que sugerem a redução de problemas ou maximização de medidas de ajustamento ou "saúde psicológica" (Del Prette & Del Prette, 2008). Os efeitos do tratamento são normalmente inferidos com base em comparações estatísticas entre as alterações médias resultantes dos tratamentos estudados.

 

RESULTADOS

As análises buscaram responder às hipóteses do estudo: se a narrativa das MAs e a devolutiva da história de vida promovem o aumento da autoconsciência privada nas dimensões Autorreflexão e Insight. Os testes de diferenças entre grupos (clínico, ativo e passivo) não apresentaram resultados significativos, assim como não foram encontradas diferenças significativas entre os diferentes tempos (pré, pós-I e pós-II) no mesmo grupo. A Tabela 2 sintetiza a média e o desvio padrão para cada um dos grupos nos diferentes tempos.

Optou-se, então, pela análise delta de Cliff apenas entre os grupos clínico e ativo, visto que ambos passaram pelo mesmo procedimento de coleta das narrativas das MAs e avaliação do uso da NLT (pré e pós-I), conforme descrito nos procedimentos, sendo que a devolutiva da história de vida ocorreu apenas no grupo clínico (pós-II). Na Tabela 3 é possível observar o delta de Cliff para diferença entre as intervenções de cada grupo analisado, sendo que em nenhum dos tempos (pré, pós-I e pós-II) apresentou tamanhos de efeito moderados ou grandes nas dimensões da Autorreflexão e Insight.

Ao comparar as diferenças entre os grupos (clínico e ativo), no que se refere à coleta das narrativas das MAs, constata-se uma diferença no período pós-I (após a coleta das MAs), com um tamanho de efeito moderado (ver Tabela 3), apenas na dimensão Autorreflexão. Na dimensão Insight, as diferenças apresentaram um tamanho de efeito negativo, mostrando uma discrepância nos índices dessa dimensão já na pré-intervenção entre os participantes dos grupos clínico e ativo. Esse resultado sugere um ganho na capacidade de autorreflexão dos participantes com o uso da NLT, e impõe limites na análise quanto à dimensão Insight.

Por fim, com o objetivo de verificar o impacto da intervenção e da devolutiva a partir das mudanças individuais observadas nas escalas de Autorreflexão e Insight da EAI, também se optou por analisar a diferença entre as variáveis do pré, pós-I e pós-II do grupo clínico, com o método JT desenvolvido por Jacobson e Truax (1991). Ao analisar as dimensões investigadas, foi observado que, dos 25 participantes, 19 apresentaram mudanças clinicamente significativas após as intervenções, considerando tanto as mudanças positivas quanto as negativas. As mudanças clinicamente significativas são indicadores que demonstram o impacto da intervenção sobre as dimensões avaliadas, por isso são constituídas pelo valor da diferença do escore após a intervenção menos o escore antes da intervenção. Essas mudanças podem ser clinicamente positivas, quando os participantes apresentam melhoras nas dimensões avaliadas (aumento dos índices nas dimensões Autorreflexão e Insight), ou clinicamente negativas, quando os participantes enfrentam perdas ou danos nas dimensões avaliadas (p. ex., redução dos índices nas dimensões Autorreflexão e Insight).

A Tabela 4 indica os escores de cada dimensão da escala nos períodos de pré- intervenção (aplicação da escala antes do início da coleta das narrativas), pós-I (aplicação da escala após o término das narrativas das MAs) e pós-II (aplicação da escala após a leitura da narrativa da história de vida), bem como o IMC. Entre os participantes, nove obtiveram ganhos clinicamente positivos na Autorreflexão nos períodos pré e pós-I, enquanto três obtiveram mudança confiável negativa. Nesse mesmo período, na dimensão Insight, apenas dois participantes obtiveram uma mudança confiável positiva, enquanto dois obtiveram uma mudança confiável negativa.

Nos períodos pós-I e pós-II, na dimensão Autorreflexão, quatro participantes obtiveram mudança confiável positiva e cinco obtiveram mudança confiável negativa. Nesse mesmo período, na dimensão Insight, três participantes obtiveram mudança confiável positiva, enquanto dois obtiveram mudança confiável negativa, conforme informações em negrito na Tabela 4.

 

DISCUSSÃO

Os resultados dessa investigação corroboram, mesmo que parcialmente, as hipóteses do estudo: a narrativa e a devolutiva da história de vida promovem um aumento na medida da autoconsciência na dimensão da Autorreflexão, sendo consequência do impacto positivo da intervenção, o uso da NLT como recurso para acessar, registrar e oportunizar ao participante a escuta da sua própria história de vida.

A autorreflexão pode ser compreendida como a atividade de se inspecionar sentimentos, pensamentos e comportamentos próprios (DaSilveira et al., 2015; Grant et al., 2002). A NLT possibilita ao cliente recordar as suas memórias mais significativas, ao passo que o terapeuta busca, a partir delas, investigar outros eventos que auxiliem em uma compreensão mais ampla das vivências, recordando também os pensamentos, as emoções e os comportamentos associados às memórias. Dessa forma, a narrativa das MAs promove maior senso de identidade pessoal, destaca o reconhecimento e o significado de redes emocionais inter-relacionadas a partir de experiências, facilitando a integração e a compreensão de esquemas e padrões comportamentais que evoluíram durante o desenvolvimento de cada um (Schauer et al., 2011).

Além disso, ouvir sua própria história, de forma mais organizada e linear, desencadeia emoções atreladas aos eventos significativos da vida. A emoção está intimamente relacionada à MA, assumindo assim um papel de destaque ao nível da organização do self (Rubin, 1986). Ou seja, na medida em que o cliente acessa as suas memórias, ele também consegue organizá-las de maneira a compreender a sua implicação na construção da própria individualidade e subjetividade (Rubin, 1986; Rubin & Umanath, 2015; Schneider, 2015; Schneider & Ornstein, 2015).

De acordo com Rubin e Umanath (2015), a capacidade de reviver acontecimentos é decorrente da forma de evocação da MA, que envolve a construção mental do evento, sendo, portanto, uma atividade que pode ser ocupada pelo psicoterapeuta. Nesse sentido, se torna cada vez mais importante a elaboração de modelos estruturados que auxiliem psicoterapeutas na investigação das MAs por meio das narrativas, lançando mão de estratégias que também contribuam no acesso dessas memórias pelos clientes, sendo essa última pouco explorada na literatura.

Por sua vez, de acordo com os resultados deste estudo, nenhuma diferença significativa foi encontrada na dimensão Insight. Ainda que integrem o mesmo construto da autoconsciência, Autorreflexão e Insight seriam, para Grant et al. (2002), dimensões independentes, visto que um indivíduo pode dedicar tempo refletindo sobre si (autorreflexão) sem, necessariamente, alcançar um entendimento esclarecedor sobre a sua condição ou experiência (insight).

De fato, é necessário levar em conta alguns aspectos importantes para justificar esse dado. O Insight é considerado o nível mais elevado da consciência e ocorre quando a atenção se volta para o ambiente interno ou privado e o indivíduo se torna um observador reflexivo de si mesmo, adquirindo a capacidade de reconhecer seus próprios pensamentos, sentimentos e comportamentos. Em outras palavras, é a habilidade de experienciar o presente, relembrar o passado e antecipar o futuro, de expressar crenças, sensações e sentimentos e de fazer julgamentos sobre si e os demais (DaSilveira et al., 2015; Grant, 2001).

Segundo Grant (2001), essa habilidade demanda processos autorreferenciais, como recuperação de MA e autodescrição, mas também requer autoavaliação, autorreflexão e fala interna, tendo como consequência a capacidade de autorreconhecimento, impactando na autoestima e na autorregulação emocional. A NLT foi desenvolvida com o objetivo de oferecer aos psicoterapeutas um modelo sistematizado para acesso e coleta das MAs, na medida em que também oportuniza ao cliente a possibilidade de compreender de maneira organizada e linear a sua história de vida. Considerando o Insight um processo que carece de mais recursos psicológicos, o uso da NLT não parece ser um modelo que atue nesse nível, devendo aos modelos psicoterápicos de intervenção o potencial de mobilizar o Insight. Nesse sentido, é de se esperar que essa dimensão não tenha apresentado resultados significativos.

Além disso, foram observadas algumas discrepâncias quando realizada a análise entre grupos que podem ajudar a explicar esse resultado. Ao avaliar os resultados do grupo ativo, é possível perceber que as análises já apontavam para uma pontuação alta nas dimensões Autorreflexão e Insight na fase de pré-intervenção, antes da coleta das narrativas das MA, o que impactou no resultado dos pós-I e pós-II em comparação ao grupo clínico. Não parece haver qualquer razão associada às características sociodemográficas que expliquem essa diferença, como é possível observar na Tabela 1. Os participantes não se diferem quanto ao nível de escolaridade, idade e sexo.

Pode-se considerar, também, que por mais que a amostragem probabilística em um estudo quase experimental seja superior a outras formas de seleção amostral e garanta a representatividade frente à população, ela está sujeita à risco de aleatoriedade no agrupamento da amostra, o que pode comprometer os resultados em alguma medida (Shaughnessy et al., 2012). Em função disso, não foi possível constatar mudança estatística significativa nos testes não paramétricos, uma vez que a amostra não foi homogênea. Pode-se atribuir isso, justamente, ao modelo probabilístico da amostragem, que, por meio desse delineamento, dependeu das características dos grupos clínico e controle ativo.

Ainda sobre as características da amostra, por mais que este estudo não tenha levantado indicadores de depressão e ansiedade nos participantes, há a probabilidade de uma porcentagem do grupo ativo apresentar índices em níveis mais elevados, por conta da correlação entre esses transtornos, estresse e o efeito ruminativo da Autorreflexão (Cowden & Meyer-Weitz, 2016; DaSilveira et al., 2015; Leal et al., 2018; Sutton, 2016). Essas características são observadas nas queixas do público das clínicas-escola de psicologia. Por exemplo, em uma pesquisa documental de caráter descritivo, o perfil dos usuários de clínica- escola levantado por meio de análise dos prontuários, aponta que os transtornos de ansiedade e os de humor são os mais comuns dos transtornos psiquiátricos (Santos et al., 2015).

Também merece um olhar mais cuidadoso a maneira como a EAI foi aplicada para avaliação do impacto das narrativas das MAs na autoconsciência. Ela foi utilizada em três momentos durante o processo de intervenção: pré (antes das narrativas), pós-I (após as narrativas) e pós-II (depois da devolutiva). As sessões de coleta das narrativas foram realizadas entre quatro e cinco semanas, e as escalas foram aplicadas nesse período. Esse fator pode ter interferido na capacidade da escala de detectar as variáveis do estudo em um curto espaço de tempo, podendo ter gerado o efeito de treino.

Por fim, é importante salientar que as mensurações embasadas em medidas estatísticas inferenciais geralmente não agregam segurança quanto à confiabilidade da variabilidade de respostas à intervenção e de mudanças clínicas significativas dentro da amostragem (Jacobson & Truax, 1991). Tal aspecto pode indicar uma interpretação geral de que a intervenção não foi bem-sucedida. Entretanto, nesse entremeio, o método JT permitiu avaliar o quanto os resultados podem ter sido atribuídos aos procedimentos utilizados e o impacto da mudança clínica no nível idiográfico, ou seja, comparar o participante com ele mesmo em diferentes períodos.

Os resultados encontrados mostraram que o método utilizado possibilitou operacionalizar e analisar de maneira objetiva e imparcial. Também permitiu evidenciar os progressos do grupo clínico, bem como a evolução de cada indivíduo desse grupo. Observou- se, com isso, mudança positiva e confiável na maioria dos participantes do grupo clínico. Ou seja, ao longo da coleta das narrativas autobiográficas, houve, por parte dos participantes, uma compreensão maior da sua história de vida, sobretudo em relação à autorreflexão, tanto na avaliação realizada pelos pesquisadores, por meio do instrumento EAI, como na observação dos relatos dos participantes.

Conclui-se, assim, que a NLT é uma ferramenta que auxilia a promoção do aumento na dimensão Autorreflexão, mas não apresenta indicadores para a dimensão Insight. Já a devolutiva apresenta um padrão de resultados que devem ser analisados individualmente para melhor compreender sua significância, uma vez que 24, dos 25 participantes, tiveram resultados acima da média no construto Autorreflexão, e 22 apresentaram resultados acima da média no construto Insight, já no período pré-intervenção.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente estudo foi testar se a narrativa das MAs e a devolutiva da história de vida promovem o aumento na medida da autoconsciência privada nas suas dimensões de Autorreflexão e Insight. Os resultados sinalizam para mudanças de medida mais clinicamente significativas na dimensão da Autorreflexão ao comparar as diferenças entre os grupos clínico e ativo. Por sua vez, não foram observadas, nas análises estatísticas, diferenças significativas no construto Insight. Além disso, optou-se por verificar o efeito da devolutiva da história de vida no nível de mudanças individuais observadas na EAI, por meio do método JT, na qual foi observado que a maioria dos participantes apresentou mudanças clinicamente significativas, tanto positivas quanto negativas, após as intervenções. Com esses resultados em vista, as hipóteses propostas neste estudo foram confirmadas parcialmente.

Cabe ressaltar algumas limitações deste estudo. Um dos principais pontos observados se refere à discrepância na análise entre grupos, uma vez que as análises apontavam para uma pontuação alta nas dimensões Autorreflexão e Insight na fase de pré-intervenção, antes da coleta das narrativas das MAs, o que impactou no resultado das intervenções pós em comparação ao grupo clínico. Além desses aspectos da amostra, é importante apontar a limitação da aplicação do próprio instrumento de medida, a EAI, realizada em um curto período, o que pode ter interferido na capacidade de detectar as variáveis do estudo.

Por fim, com relação às contribuições teórico-técnicas, ressalta-se a importância de se estudar as mudanças que intervenções clínicas promovem a nível individual e não grupal. Novas técnicas que investiguem tais mudanças são fundamentais para que se possa compreender o comportamento dos indivíduos e como eles respondem às intervenções terapêuticas. Esperamos que este artigo incentive os pesquisadores da área clínica a investigarem mudanças a nível individual, pois por meio delas é possível conhecer as variáveis que afetam os comportamentos dos sujeitos e, assim, propor intervenções mais adequadas para as demandas e queixas clínicas (Liu & Meng, 2016). Nesse sentido, a NLT se mostrou uma importante ferramenta clínica na medida em que oferece ao cliente o acesso do percurso linear da sua história de vida. Já para os psicoterapeutas, ela pode ser utilizada, independentemente da abordagem teórica, para investigação dos eventos significativos e posterior planejamento de intervenções individuais, servindo como um modelo sistematizado que orienta, no âmbito clínico, a evocação, o manejo e o registro da história de vida dos clientes.

 

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Correspondência:
Edi Cristina Manfroi
E-mail: edicristinam@gmail.com

Número do comitê de ética:
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Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBTC em 19 de Setembro de 2021. cod. 138
Artigo aceito em 19 de Setembro de 2021

 

 

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