SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17 número1O uso da narrativa da memória autobiográfica como recurso para o aumento da autoconsciênciaEmoções positivas e resiliência na perspectiva de adolescentes com câncer índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Brasileira de Terapias Cognitivas

versão impressa ISSN 1808-5687versão On-line ISSN 1982-3746

Rev. bras.ter. cogn. vol.17 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021

https://doi.org/10.5935/1808-5687.20210005 

RELATOS DE PESQUISAS

 

Burnout e Esquemas Iniciais Desadaptativos em estudantes de cursos de psicologia de Porto Alegre e região metropolitana

 

Burnout and Early Maladaptive Schemas in students of psychology courses from Porto Alegre and metropolitan area

 

 

Lucas Zanatta Berticelli; Rodrigo Trapp Gampe Vaz; Carolina Palmeiro Lima; Clarissa Marceli Trentini

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVOS: O presente estudo buscou verificar possíveis diferenças significativas nos Esquemas Iniciais Desadaptativos (EIDs) entre um grupo composto por participantes com Síndrome de Burnout em Estudantes (SBE) e outro sem a SBE. Além disso, objetivou-se identificar os EIDs predominantes na amostra.
MÉTODOS: A amostra foi constituída por 205 estudantes de graduação em psicologia. Os instrumentos utilizados foram: questionário sociodemográfico, Questionário de Esquemas de Young - Versão Breve (YSQ-S3) e Escala de Avaliação da Síndrome de Burnout em Estudantes Universitários.
RESULTADOS: Embora os EIDs que apresentaram maiores médias na amostra total tenham sido Autossacrifício, Padrões inflexíveis/postura crítica exagerada e Busca de aprovação/reconhecimento, os EIDs mais fortemente relacionados à presença da SBE, quando consideradas as diferenças entre os dois grupos, foram Autocontrole/autodisciplina insuficientes, Isolamento social/ alienação, Dependência/incompetência, Fracasso, Negativismo/pessimismo e Padrões inflexíveis/postura crítica exagerada.
CONCLUSÃO: Sugere-se que estudantes com esses EIDs experimentem de maneira mais intensa alguns estressores típicos da graduação, tais como a carga excessiva de atividades, a necessidade de assumir responsabilidades e a pressão social pelo alto desempenho acadêmico, além de demandas específicas do curso de psicologia, como a exigência emocional durante os estágios, levando-os ao esgotamento físico e mental.

Descritores: Esgotamento Psicológico; Estudantes de Ciências da Saúde; Terapia do Esquema.


ABSTRACT

OBJECTIVES: The present study intended to verify possible significant differences in the Early Maladaptive Schemas (EMSs) between a group composed of participants with Burnout Syndrome in Students (BSS) and another without BSS. In addition, the objective was to identify the predominant EMSs in the sample.
METHODS: The sample consisted of 205 psychology undergraduate students. The instruments used were: sociodemographic questionnaire, Young Scheme Questionnaire - Short Form (YSQ-S3) and Burnout Syndrome Assessment Scale in University Students.
RESULTS: Although the EMSs that showed the highest averages in the total sample were Self- sacrifice, Unrelenting standards/hypercriticalness and Approvalseeking/ recognition-seeking, the EMSs most strongly related to the presence of BSS, when considering the differences between groups, were Insufficient self- control/self-discipline, Social isolation/alienation, Dependency/incompetency, Failure, Negativism/pessimism and Unrelenting standards/hypercriticalness.
CONCLUSION: It is suggested that students with these EMSs experience more intensively some typical stressors of graduation, such as the excessive load of activities, the need to assume responsibilities and the social pressure for high academic performance, in addition to specific demands of the psychology course, such as the emotional demand during the internships, leading them to physical and mental exhaustion.

Headings: Burnout, Psychological; Students, Health Occupations; Schema Therapy.


 

 

INTRODUÇÃO

O termo burnout teve origem no estudo do esgotamento físico e emocional entre profissionais, sendo citado, por vezes, como síndrome de esgotamento profissional ou síndrome de burnout (Pêgo & Pêgo, 2016). Apesar de ainda não constar nos principais manuais diagnósticos, tal quadro de saúde foi recentemente reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e deverá ser incluído na versão final da 11ª versão da Classificação internacional de doenças (CID-11), em 2022.

Em decorrência de avanços na investigação e na produção científica relacionados ao burnout, a compreensão desse fenômeno foi expandida a fim de abarcar também a população acadêmica. Nesse âmbito, cunhou-se o termo síndrome de burnout em estudantes (SBE), que pode ser definida como uma resposta ao estresse crônico decorrente das atividades acadêmicas, afetando negativamente o compromisso e satisfação do indivíduo com a formação, além de produzir impactos em sua saúde geral (Caballero, 2012). Essa definição segue o modelo tridimensional do construto original proposto por Maslach et al. (1996), porém teve suas dimensões ajustadas ao contexto acadêmico. Dessa forma, a exaustão corresponde à sensação de esgotamento e de incapacidade de dar conta das tarefas referente aos estudos; a descrença refere-se a uma postura de distanciamento em relação ao significado e à utilidade dos estudos; a ineficácia profissional, por sua vez, compreende uma avaliação negativa como estudante, isto é, de que o ensino não fornece aprendizagem útil para a formação profissional (Carlotto & Câmara, 2020).

A competitividade e a pressão por alto desempenho típicas do ambiente acadêmico podem gerar conflitos entre os estudantes e entre os estudantes e os professores, podendo levar à exaustão emocional (Tarnowski & Carlotto, 2007). Pela natureza específica do estudo da psicologia, os graduandos desse curso tendem a estar mais diretamente conectados com o sofrimento psíquico alheio, por meio do contato com pacientes (Andrade et al., 2016). Além disso, o desejo de ajudar muitas vezes sobrepõe as necessidades individuais, o que pode estar relacionado à alta prevalência de manifestações fisiológicas e perturbações psicológicas nessa população (Gastaud et al., 2006; Magalhães et al., 2001). Outro fator que deve ser levado em consideração para o entendimento da SBE é o extenso período da graduação dos cursos de psicologia, que, no Brasil, têm carga horária mínima de 4000 horas e duração de 10 semestres (Lisboa & Barbosa, 2009).

Uma das maneiras pelas quais podemos entender e interpretar o desenvolvimento da SBE é a partir do modelo de esquemas de Jeffrey Young. A compreensão do sofrimento psicológico a partir de esquemas cognitivos teve origem nos estudos de Aaron Beck, e posteriormente foi ampliada por Young, que cunhou o termo esquemas iniciais desadaptativos (EIDs). Os EIDs podem ser definidos como conjuntos de crenças, regras e memórias que se formaram a partir de experiências precoces em que necessidades emocionais essenciais do indivíduo não foram devidamente supridas pelas figuras de referência (Wainer et al., 2015). Apesar de poderem ter sido adaptativos - e até funcionais - na infância e/ou parte da adolescência, os EIDs podem levar a respostas desadaptativas na vida adulta, causando sofrimento psicológico pela revivescência de experiências negativas remotas (Luz et al., 2012).

Young et al. (2008) identificaram 18 EIDs, agrupados em cinco domínios esquemáticos, de acordo com as necessidades emocionais não satisfeitas que os originaram (Tabela 1). Os domínios são: desconexão e rejeição (expectativa de que as necessidades de proteção, segurança, cuidado e aceitação não serão devidamente satisfeitos); autonomia e desempenho prejudicados (noções de incapacidade de se separar, sobreviver e funcionar de forma independente); limites prejudicados (dificuldade com limites internos, responsabilidade com os outros e objetivos de longo prazo); direcionamento para o outro (foco excessivo nos desejos e necessidades alheias à custa das próprias vontades para obter aprovação e/ou evitar rejeição); supervigilância e inibição (supressão dos próprios sentimentos, impulsos e escolhas espontâneas, ou ênfase no cumprimento de regras e expectativas elevadas).

Estudos encontraram correlações entre alguns EIDs e o desenvolvimento de burnout (Kaeding et al., 2017; Simpson et al., 2019), sugerindo que dificuldades vivenciadas no ambiente ocupacional podem ocasionar a ativação de EIDs, o que contribui para o estabelecimento de um mal-estar crônico (Picado et al., 2013). Esses achados chamam atenção para a importância da implementação de intervenções voltadas à prevenção do burnout ainda durante a graduação, em que uma série de sintomas característicos já pode ser verificada (Cushway, 1992; Schaufeli et al., 2002).

Tendo isso em vista, o principal objetivo deste estudo foi verificar se há diferenças significativas nos EIDs identificados entre estudantes de psicologia com e sem SBE. Além disso, objetivou-se identificar os EIDs predominantes em uma amostra composta por estudantes de psicologia.

 

MÉTODO

Delineamento

A presente pesquisa caracteriza-se por ser um estudo transversal, quantitativo, observacional e comparativo.

Participantes

Participaram do estudo 205 estudantes de graduação em psicologia de Porto Alegre e Região Metropolitana. Para fins de inclusão, o participante deveria estar cursando ativamente qualquer semestre da graduação em psicologia, ser maior de 18 anos e concordar em participar da pesquisa.

Instrumentos

Todos os participantes responderam aos instrumentos descritos a seguir.

Questionário de dados sociodemográficos

Questionário fechado, composto por 10 itens, utilizado com o objetivo de caracterizar a amostra em termos sociodemográficos e acadêmicos.

Questionário de esquemas de Young - versão breve

Neste estudo, foi utilizada a mais recente tradução e adaptação oficial para uso no

Brasil do Questionário de Esquemas de Young - Versão Breve (YSQ-S3) (Souza et al., 2020). Essa versão avalia os 18 EIDs propostos por Young et al. (2008) por meio de 90 itens. O participante fornece a cada item uma pontuação que varia de 1 (completamente falso sobre mim) a 6 (me descreve perfeitamente), de acordo com a intensidade com que se identifica com o enunciado. No que se refere à consistência interna global, considerando os 90 itens, o alfa de Cronbach foi de 0,965, considerado excelente. No presente estudo, o alfa de Cronbach total da escala foi de 0,964.

Escala de avaliação da síndrome de burnout em estudantes universitários

A Escala de Avaliação da Síndrome de Burnout em Estudantes Universitários (ESB- eu) é composta por 14 itens divididos em três domínios: Desgaste emocional e físico (sensação de exaustão e de incapacidade de lidar com as tarefas); Distanciamento (atitude de descrença e distanciamento em relação ao significado dos estudos); Ineficácia da formação (sensação de que o estudo é pouco ou nada útil para a formação profissional).

Os itens são respondidos por meio de escala Likert de 5 pontos, indo de 0 (nunca) até 4 (todos os dias), de acordo com a frequência que o participante considera verdadeira para ele. A ESB-eu foi construída tendo por base as principais escalas internacionais de avaliação do burnout e apresentou resultados satisfatórios quanto à sua consistência e confiabilidade (alfa de Cronbach = 0,88 e ômega de McDonald = 0,93) (Carlotto & Câmara, 2020). No presente estudo, os índices de consistência interna da escala (alfa de Cronbach) foram: 0,865 (escala total); 0,865 (domínio Desgaste emocional e físico); 0,870 (domínio Distanciamento); 0,847 (domínio Ineficácia da formação).

Procedimentos para coleta de dados

Este estudo foi submetido à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo sido aprovado sob o protocolo CAAE 37380620.3.0000.5334. Considerando o contexto da pandemia da covid-19, a coleta de dados foi realizada por meio de formulários on-line. A divulgação da pesquisa foi realizada por meio de publicações em grupos específicos do Facebook e do envio de e-mails a comissões de graduação e secretarias de cursos de psicologia de Porto Alegre e Região Metropolitana, apresentando o estudo e fornecendo o endereço eletrônico para acessar os formulários, bem como solicitando o encaminhamento da mensagem aos alunos. Ao acessar o endereço da pesquisa, os estudantes foram convidados a fazer a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Aqueles que concordaram em participar, declarando ciência dos objetivos da pesquisa e do destino dos dados coletados, tiveram, então, acesso aos instrumentos descritos. A coleta ocorreu durante os meses de dezembro de 2020 e janeiro de 2021.

Procedimentos para análise dos dados

Os dados coletados por meio dos formulários on-line foram armazenados e posteriormente analisados com a versão 18.0 do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS). Inicialmente foram verificados os valores de assimetria e curtose para as variáveis principais em estudo. A maioria das variáveis apresentou escores dentro dos parâmetros aceitáveis (entre +1 e -1), contudo, os testes de normalidade (Kolmogorov-Smirnov e Shapiro-Wilk) indicaram variáveis com distribuições anormais. Portanto, testes não paramétricos foram utilizados para este estudo. Foram realizadas análises de frequências relativas e absolutas, de médias e desvios-padrão para caracterizar a amostra. Para verificar relações entre as variáveis do estudo foram conduzidos testes de associação qui-quadrado (χ2). Para variáveis com menos de cinco respostas para cada célula, optou-se pela sua recodificação. Por exemplo, estado civil foi transformado em variável dicotômica (solteiro e outros estados civis).

Para divisão dos grupos considerando-se indicativos para burnout clinicamente significativo, foi utilizado o ponto de corte de > 1,5 descrito no instrumento (Carlotto & Câmara, 2020). O grupo denominado "Sem SBE" refere-se aos indivíduos que não apresentavam sintomas da condição. O grupo dois ("Com SBE"), por sua vez, incluiu os participantes com indicativos de burnout em nível clinicamente significativo. Para alcançar o objetivo principal do estudo - verificar diferenças nos escores de esquemas para aqueles com e sem SBE -, foram realizadas análises de diferenças de médias por meio do teste de Mann- Whitney. Uma medida de tamanho do efeito da diferença no teste Mann-Whitney foi calculada dividindo-se o escore-padrão do teste pela raiz quadrada do total da amostra (r = Z/√N). Somente foram reportados tamanhos de efeito para variáveis cujos resultados são estatisticamente significativos. Com vistas ao controle de erro do tipo I, a correção de Bonferroni para multiplicidade de testes foi considerada para essa amostra.

 

RESULTADOS

A amostra foi composta por 205 participantes com idades entre 18 e 65 anos (M = 28,1; DP = 9,95), sendo a maioria do sexo feminino e solteira. Com relação aos níveis de burnout, verificou-se uma média de 1,2 (DP = 0,62). Após a aplicação do ponto de corte da escala de burnout (>1,5; Carlotto & Câmara, 2020), observou-se que 56 (27,3%) estudantes apresentaram escores que indicam presença de SBE. Nesse sentido, os resultados foram descritos a partir da amostra total e dos dois grupos: "Sem SBE" (n = 149) e "Com SBE" (n = 56). Na Tabela 2 são listadas as médias, desviospadrão, frequências relativas e absolutas para as variáveis sociodemográficas e acadêmicas.

Na Tabela 3 estão descritas as médias e desvios-padrão dos EIDs e seus domínios para os grupos sem SBE, com SBE e amostra total

Análises de associação e diferenças de médias

Foram realizadas análises de associação entre as variáveis sociodemográficas dicotômicas e os grupos "Sem SBE" e "Com SBE" por meio de qui-quadrado. Sexo (feminino e masculino), estado civil (solteiro e outros), filhos (ter e não ter) e renda familiar (por estratos) não estavam associados aos grupos.Além disso, por meio do teste Mann- Whitney, verificou-se que os escores de idade não diferiam significativamente entre os grupos. Em relação às variáveis acadêmicas (semestre, se trabalha, se realiza estágio e se repetiu de ano na escola), não foram encontradas associações ou diferenças significativas. Contudo, observou-se tendência de associação para estágio χ2 (1, n = 205) = 3,379, p = 0,084.

Posteriormente, foram verificadas diferenças entre os grupos no que se refere aos EIDs.A maior diferença associa-se ao esquema Autocontrole/autodisciplina insuficientes. Nesse sentido, pessoas do grupo "Com SBE" reportaram maiores escores nesse esquema, em comparação ao grupo "Sem SBE". Resultados detalhados para todos os EIDs estão descritos na Tabela 4.

 

DISCUSSÃO

Em relação à caracterização da amostra a partir do modelo de esquemas de Young, praticamente todos os EIDs (com exceção de Inibição emocional) apresentaram médias mais altas no grupo com SBE, o que corrobora investigações anteriores (Bamber & McMahon, 2008). Essa diferença só foi significativa, porém, para os esquemas Autocontrole/autodisciplina insuficientes, Isolamento social/alienação, Dependência/ incompetência, Fracasso, Negativismo/pessimismo e Padrões inflexíveis/postura crítica exagerada. Tais achados estão parcialmente de acordo com estudos anteriores que utilizaram amostras e variáveis semelhantes. Kaeding et al. (2017) identificaram, em uma amostra composta por 1172 pós-graduandos em psicologia, que apenas o esquema Padrões inflexíveis/ postura crítica exagerada foi capaz de predizer altos níveis de burnout, enquanto os esquemas Dependência/incompetência, Padrões inflexíveis/postura crítica exagerada, Isolamento social e Autocontrole/autodisciplina insuficientes, em conjunto, mostraram-se preditores de algum nível de burnout. Simpson et al. (2019), em estudo realizado com 443 psicólogos formados, apontaram que os EIDs foram responsáveis por 18% da variação nas pontuações do domínio exaustão emocional (o único dos domínios do burnout mensurados nesse estudo), sendo os esquemas Defectividade/vergonha, Abandono e Desconfiança/ abuso preditores individuais significativos.

Uma hipótese para tais divergências nos resultados é a diferença nas populações abordadas nas pesquisas. Ambos os estudos citados incluíram em suas amostras apenas falantes nativos de língua inglesa e, adicionalmente, envolveram psicólogos já formados. Por esses motivos, entende-se que existam vieses culturais importantes que devem ser levados em consideração, como valores e traços específicos de cada população. Nesse sentido, o fato de os participantes estarem em outra etapa de suas carreiras implica demandas e responsabilidades distintas daquelas que fazem parte da rotina de um estudante de graduação em psicologia.

De acordo com a definição de Young et al. (2008), sujeitos com o esquema Autocontrole/autodisciplina insuficientes carecem da capacidade de dar os devidos limites às próprias emoções e impulsos, além de apresentarem déficits na capacidade de tolerar tédio e frustração por tempo suficiente para realizar tarefas. O EID Padrões inflexíveis/postura crítica exagerada, por sua vez, está ligado à crença de que se deve continuamente fazer um grande esforço para atingir padrões internalizados de comportamento e desempenho demasiado elevados. Desses padrões excessivamente altos, resultam sentimentos de pressão ou dificuldade de relaxar e posturas críticas exageradas com relação a si mesmo e a outros. Outra característica desse EID é a pressão temporal, ou seja, a percepção de que há muito para fazer em pouco tempo, levando à exaustão. Os traços pertinentes a esses dois EIDs relacionam-se principalmente com o domínio Desgaste emocional e físico da SBE, caracterizado como uma sensação de esgotamento e de incapacidade de dar conta das tarefas referente aos estudos (Carlotto & Câmara, 2020). Sugere-se, portanto, que estudantes com algum desses EIDs podem experimentar de maneira mais intensa os estressores típicos da graduação, tais como a carga excessiva de atividades, a pressão por alto desempenho e a exigência emocional durante os estágios. Seja pela dificuldade em manter a disciplina e tolerar o desconforto a fim de cumprir tarefas - no caso do Autocontrole/autodisciplina insuficientes -, seja pelo estabelecimento de expectativas altas demais, que dificilmente são alcançadas - no caso de Padrões inflexíveis/postura crítica exagerada -, esses estudantes tendem a sofrer maior desgaste, o que os leva às condições de exaustão física e emocional características da SBE (Martins, 2002).

Outro EID que apresentou diferenças significativas na comparação entre as médias dos grupos foi o Fracasso. Indivíduos com esse EID acreditam que fracassaram, que fracassarão invariavelmente ou que são inferiores aos colegas. Via de regra, sentem-se burros, ineptos, sem talentos e/ou inerentemente carecedores do que se necessita para obter êxito. Já aqueles com o EID Dependência/incompetência acreditam que não são capazes de dar conta das responsabilidades cotidianas de forma competente sem considerável ajuda alheia. Por exemplo, sentem-se incapazes de resolver problemas práticos e assumir novas tarefas, além de se considerarem inadequados para enfrentar os problemas (Young et al., 2008). Algumas dessas características sobrepõem-se ao domínio Ineficácia da formação da SBE, descrito como uma sensação de que o estudo é pouco ou nada útil para a formação, ou seja, que não fornece subsídios suficientes para a prática profissional (Carlotto & Câmara, 2020). Partindo dessa interpretação, entende-se que estudantes com esses EIDs podem apresentar sensações de impotência ou despreparo diante das demandas do ambiente acadêmico, como a necessidade de administrar as próprias escolhas e responsabilidades, ou de colocar em prática, durante os estágios, os conhecimentos teóricos adquiridos ao longo da graduação (Tarnowski & Carlotto, 2007). A insegurança decorrente dessas percepções e a falta de confiança nas próprias competências, por sua vez, podem causar desgaste e levar ao desenvolvimento da SBE (Cherniss, 1980).

Os outros dois EIDS que apresentaram diferenças significativas entre os grupos foram Isolamento social/alienação e Negativismo/pessimismo. O primeiro deles está relacionado ao sentimento de que se está isolado do resto do mundo, de que se é diferente das outras pessoas e/ou de não pertencer a qualquer grupo ou comunidade; já o segundo é caracterizado pelo foco generalizado nos aspectos negativos (sofrimento, morte, perda, conflito, culpa, etc.), ao passo que se minimiza ou negligencia os aspectos positivos ou otimistas. Costuma incluir um temor exagerado - em uma ampla variedade de contextos profissionais, financeiros ou interpessoais - de que algo vai acabar dando muito errado. Como exageram os resultados negativos potenciais, essas pessoas costumam se caracterizar por preocupação, vigilância, queixas ou indecisão crônicas (Young et al., 2008). Tendo em vista as definições desses EIDs, é de grande relevância reiterar que a coleta de dados do presente estudo foi realizada durante a pandemia da covid-19, o que pode ter influenciado os resultados. O contexto de pandemia demandou adaptações, trazendo consigo não somente mudanças nas dinâmicas de distribuição e acesso dos materiais didáticos, mas também impactos na saúde mental dos estudantes (Araújo et al., 2020). A intensa exposição a informações referentes à pandemia levou a um aumento no risco percebido pelos estudantes (Feng et al., 2020), além do aumento nos sintomas de depressão, ansiedade, estresse e solidão desde o início das medidas de isolamento social. Além disso, os estudantes reportaram menor interação social e diminuição no número de parceiros de estudos durante a quarentena (Elmer et al., 2020). Embora não seja possível mensurar a magnitude desses impactos nos resultados, é seguro afirmar que a sensação de isolamento social e a insegurança decorrente da iminência de uma catástrofe ou perda são fatores que colaboram para o desenvolvimento da SBE. Conjectura-se que esses aspectos se somem às demandas acadêmicas, agravando seu potencial estressor e levando à sensação de esgotamento por parte dos estudantes com esses EIDs.

Ainda em relação à caracterização da amostra, destaca-se que os dois EIDs que apresentaram maiores médias na amostra total (e também dentro de cada grupo) foram Autossacrifício e Padrões inflexíveis/postura crítica exagerada, corroborando achados anteriores (Kaeding et al., 2017; Simpson et al., 2019). O terceiro EID com maiores médias foi Busca de aprovação/reconhecimento. Esses esquemas estão ligados à tendência de psicólogos de sacrificar as próprias necessidades, buscar aprovação de colegas e supervisores, e definir elevados padrões internalizados de comportamento e desempenho (Rafaeli et al., 2011).

Apesar de ter sido aquele com médias mais altas, o domínio Direcionamento para o outro foi o único que não teve nenhum esquema significativamente relacionado ao burnout. Indivíduos com esquemas pertencentes a esse domínio enfatizam em excesso o atendimento às necessidades dos outros em lugar de suas próprias. Corroborando esses resultados, um estudo realizado com alunos do primeiro semestre do curso de psicologia indicou que o desejo de ajudar despontou como o principal motivo para a escolha da profissão (75% dos entrevistados). Além disso, a gratificação mais valorizada foi o feedback dos pacientes e o sentimento de ter ajudado (64,5%) (Magalhães et al., 2001). Embora os EIDs sejam, em sua concepção, desadaptativos, e estejam ligados a sofrimento psicológico (Young et al., 2008), presume-se que esses esquemas (em especial o Autossacrifício) possam ter um valor adaptativo quando em níveis moderados no âmbito da psicologia, facilitando o processo de empatia e vinculação com os pacientes.

Os dados da presença de burnout encontrados neste estudo corroboram achados anteriores que alertaram para índices altos de SBE entre acadêmicos, em especial quando considerados os estudantes de cursos da área da saúde (Pinto et al., 2018; Viana et al., 2014), uma vez que tendem a estar mais expostos a situações potencialmente estressoras de prestação direta de cuidados a outras pessoas (Gil-Monte, 2002). Portanto, reitera-se a importância de investigações voltadas à identificação e à discussão do burnout ainda durante a graduação, visto que dificuldades nessa etapa podem implicar dificuldades profissionais (Cushway, 1992; Schaufeli et al., 2002).

Entre as limitações deste estudo, pode-se destacar o fato de a amostra ter sido composta por estudantes de uma região específica do Rio Grande do Sul, o que demanda ressalvas diante da possibilidade de generalização dos resultados a nível nacional ou mesmo estadual. Também, aponta-se que as coletas de dados ocorreram por modalidade on-line, limitando o controle dos pesquisadores quanto à padronização do contexto. Além disso, deve-se considerar que a coleta foi realizada durante a pandemia da covid-19, cujos impactos sobre a saúde física e mental da população, que podem ter influenciado os resultados desta pesquisa, seguem sendo estudados.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluiu-se, neste estudo, que os EIDs mais fortemente relacionados à presença de SBE, quando comparados os dois grupos, foram Autocontrole/autodisciplina insuficientes, Isolamento social/alienação, Dependência/incompetência, Fracasso, Negativismo/pessimismo e Padrões inflexíveis/postura crítica exagerada. Adicionalmente, identificou-se que os esquemas predominantes em uma amostra de estudantes de psicologia foram Autossacrifício, Padrões inflexíveis/postura crítica exagerada e Busca de aprovação/reconhecimento.

Considera-se que os resultados do presente estudo sejam relevantes para a compreensão da SBE a partir do modelo de EIDs, sugerindo que padrões cognitivos desenvolvidos a partir de experiências precoces podem impactar na relação, satisfação e desgaste dos estudantes em relação à graduação. Aponta-se a importância do desenvolvimento de novos estudos replicando essas análises com outras amostras, tendo em vista a ampliação de conhecimentos relacionados à temática da SBE em estudantes de cursos da área da saúde, o que favorece a implementação de intervenções voltadas ao tratamento e à prevenção do burnout ainda durante a graduação.

 

REFERÊNCIAS

Andrade, A. S., Tiraboschi, G. A., Antunes, N. A., Viana, P. V. B. A., Zanoto, P. A., & Curilla, R. T. (2016). Vivências acadêmicas e sofrimento psíquico de estudantes de psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão, 36(4),831-846. https://doi.org/10.1590/1982-3703004142015        [ Links ]

Araújo, F. J. O., de Lima, L. S. A., Cidade, P. I. M., Nobre, C. B., & Neto, M. L. R. (2020). Impact of Sars-Cov-2 And its reverberation in global higher education and mental health. Psychiatry Research, 288, 112977. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2020.112977        [ Links ]

Bamber, M., & McMahon, R. (2008). Danger-early maladaptive schemas at work!: The role of early maladaptive schemas in career choice and the development of occupational stress in health workers. Clinical Psychology & Psychotherapy, 15(2),96-112. https://doi.org/10.1002/cpp.564        [ Links ]

Caballero, C. C. (2012). El burnout académico: Prevalencia y factores asociados en estudiantes universitarios del área de la salud de la ciudad de Barranquilla [tesis de doctorado]. Universidas del Norte. https://manglar.uninorte.edu.co/bitstream/handle/10584/7411/sindrome.pdf?sequence=1        [ Links ]

Carlotto, M. S., & Câmara, S. G. (2020). Escala de Avaliação da Síndrome de Burnout em estudantes universitários: Construção e evidências de validade. Research, Society and Development, 9(7),1-22. https://doi.org/10.33448/rsd-v9i7.4013        [ Links ]

Cherniss, C. (1980). Professional burnout in human service organizations. Praeger.         [ Links ]

Cushway, D. (1992). Stress in clinical psychology trainees. British Journal of Clinical Psychology, 31(2),169-179. https://doi.org/10.1111/j.2044-8260.1992.tb00981.x        [ Links ]

Elmer, T., Mepham, K., & Stadtfeld, C. (2020). Students under lockdown: Comparisons of students' social networks and mental health before and during the COVID-19 crisis in Switzerland. Plos One, 15(7),1-22. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0236337        [ Links ]

Feng, Y., Zong, M., Yang, Z., Gu, W., Dong, D., & Qiao, Z. (2020). When altruists cannot help: the influence of altruism on the mental health of university students during the COVID-19 pandemic. Globalization and Health, 16(61),1-8. https://doi.org/10.1186/s12992-02000587-y        [ Links ]

Gastaud, M. B., Souza, L. D. D. M., Braga, L., Horta, C. L., Oliveira, F. M. D., Sousa, P. L. R., & Silva, R. A. D. (2006). Bem-estar espiritual e transtornos psiquiátricos menores em estudantes de psicologia: Estudo transversal. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 28(1),12-18. https://doi.org/10.1590/S0101-81082006000100003        [ Links ]

Gil-Monte, P. R. (2002). Influencia del género sobre el proceso de desarrollo del síndrome de quemarse por el trabajo (Burnout), em profesionales de enfermería. Psicologia em Estudo, 7(1),3-10. https://doi.org/10.1590/S1413-73722002000100003        [ Links ]

Kaeding, A., Sougleris, C., Reid, C., van Vreeswijk, M. F., Hayes, C., Dorrian, J., & Simpson, S. (2017). Professional burnout, early maladaptive schemas, and physical health in clinical and counselling psychology trainees. Journal of Clinical Psychology, 73(12),1782-1796. https://doi.org/10.1002/jclp.22485        [ Links ]

Lisboa, F. S., & Barbosa, A. J. G. (2009). Formação em Psicologia no Brasil: Um perfil dos cursos de graduação. Psicologia: Ciência e Profissão, 29(4),718-737. https://doi.org/10.1590/S141498932009000400006        [ Links ]

Luz, F. Q., Santos, P. L., Cazassa, M. J., & Oliveira, M. S. (2012). Diferenças nos esquemas iniciais desadaptativos de homens e mulheres. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 8(2),85-92. DOI: 10.5935/18085687.20120013        [ Links ]

Magalhães, M., Straliotto, M., Keller, M., & Gomes, W. B. (2001). Eu quero ajudar as pessoas: A escolha vocacional da psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão, 21(2),10- 27. https://doi.org/10.1590/S141498932001000200003        [ Links ]

Martins, M. C. F. N. (2002). Humanização das relações assistenciais: A formação do profissional de saúde. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Maslach, C., Jackson, S. E., & Leiter, M. P. (1996). The Maslach Burnout Inventory: Test manual (3rd ed.). Consulting Psycologist Press.         [ Links ]

Pêgo, F. P. L., & Pêgo, D. R. (2016). Síndrome de burnout. Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, 14(2),171-176.         [ Links ]

Picado, L., Pinto, A. M., & Silva, A. L. (2013). O papel dos esquemas precoces mal adaptativos na explicação do burnout e do engagement. Boletim de Psicologia, 63(139),147-158.         [ Links ]

Pinto, P. S., Nunes, F. M. R., Campos, D. S., Freitas, R. H. B., Bonan, P. R. F., & Batista, A. U. D. (2018). Síndrome de Burnout em estudantes de Odontologia, Medicina e Enfermagem: Uma revisão da literatura. Revista Família, Ciclos de Vida e Saúde no Contexto Social, 6(2),238-248. https://doi.org/10.18554/refacs.v6i2.2822        [ Links ]

Rafaeli, E., Bernstein, D. P., & Young, J. (2011). Schema Therapy: Distinctive features.Routledge.         [ Links ]

Schaufeli, W. B., Martinez, I. M., Pinto, A. M., Salanova, M., & Bakker, A. B. (2002). Burnout and engagement in university students: A cross-national study. Journal of Cross- Cultural Psychology, 33(5),464-481. https://doi.org/10.1177%2F0022022102033005003        [ Links ]

Simpson, S., Simionato, G., Smout, M., van Vreeswijk, M. F., Hayes, C., Sougleris, C., & Reid, C. (2019). Burnout amongst clinical and counselling psychologist: The role of early maladaptive schemas and coping modes as vulnerability factors. Clinical Psychology & Psychotherapy, 26(1),35-46. https://doi.org/10.1002/cpp.2328        [ Links ]

Souza, L. H. D., Damasceno, E. S., Ferronatto, F. G., & Oliveira, M. D. S. (2020). Adaptação brasileira do Questionário de Esquemas de Young - Versão Breve (YSQ-S3). Avaliação Psicológica, 19(4),451-460.         [ Links ]

Tarnowski, M., & Carlotto, M. S. (2007). Síndrome de Burnout em estudantes de psicologia. Temas em Psicologia, 15(2),173-180.         [ Links ]

Viana, G. M., Silva, T. G., Oliveira, C. T., Castro, M. F. R., Carreiro, D. L., Coutinho, L. T. M., ... Coutinho, W. L. M. (2014). Relação entre síndrome de burnout, ansiedade e qualidade de vida entre estudantes de ciências da saúde. Revista da Universidade Vale do Rio Verde, 12(1),876-885. http://dx.doi.org/10.5892/ruvrd.v12i1.1471        [ Links ]

Wainer, R., Paim, K., Erdos, R., Erdos, R., & Andriola, R. (2015). Terapia cognitiva focada em esquemas: Integração em psicoterapia. Artmed.         [ Links ]

Young, J. E., Klosko, J. S., & Weishaar, M. E. (2008). Terapia do esquema: Guia de técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Artmed.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Lucas Zanatta Berticelli
E-mail: lzanattab_@hotmail.com

Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBTC em 25 de Abril de 2021. cod. 199
Artigo aceito em 01 de Setembro de 2021

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons