INTRODUÇÃO
Opressão refere-se a relações entre grupos sociais nas quais um tem mais acesso a poder e privilégio do que outro, utilizando tais vantagens para manutenção do status quo (David & Derthick, 2014). Negros, indígenas, pessoas LGBTQIAP+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, queer, pessoas intersexo, assexuais e pansexuais), mulheres e pessoas com deficiência são exemplos de grupos em posição de opressão social e desvantagem ao longo da história, com dados indicando menores salários, maior risco de morte violenta e episódios de discriminação, a depender do grupo ao qual se pertença (Cerqueira et al., 2019; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019). Dessa forma, a maior presença de estressores biológicos, psicológicos e sociais é percebida em populações de minorias (Faro & Pereira, 2011).
David (2009) define opressão internalizada como uma condição na qual um indivíduo ou grupo oprimido acreditam ser inferiores àqueles que estão no poder na sociedade. Autores como Fanon (2008) e Freire (2019) apontaram para a experiência histórica de internalização do discurso do opressor por parte de indivíduos sociais oprimidos. Na experiência de racismo internalizado, por exemplo, o sujeito aceita os estereótipos negativos socialmente associados à sua raça e a superioridade associada ao grupo branco (Williams & Williams-Morris, 2000; Steele, 2020). Outras opressões passíveis de internalização são a homofobia internalizada, referente à aceitação de estereótipos negativos associados à população LGBT e vergonha da própria orientação sexual (Shidlo, 1994), e o sexismo internalizado, fenômeno no qual mulheres acreditam serem inferiores, não merecedoras de direitos iguais e tratam outras mulheres como se o valor destas fosse baseado apenas na atração sexual (Bearman & Amrhein, 2014). Efeitos da opressão internalizada avaliados em estudos incluem maior presença de problemas internalizantes, como sintomatologia depressiva em grupos LGB com homofobia internalizada (Newcomb & Mustanski, 2010), maior nível de sofrimento psicológico em mulheres heterossexuais com misoginia internalizada (Szymanski et al., 2009), assim como ansiedade, baixa autoestima e desesperança em sujeitos com racismo internalizado (David et al., 2019).
O conceito de interseccionalidade foi desenvolvido pela advogada e feminista negra Crenshaw (1989) para descrever as experiências sociais de mulheres negras, sujeitas simultaneamente às opressões do sexismo e do racismo. Em anos recentes ocorreu a expansão da utilização do termo, sendo incorporado em pesquisas na área da saúde mental e contemplado como dimensão a ser analisada pelo psicólogo em edição atual das diretrizes multiculturais da American Psychological Association (APA), que incorporou contexto, identidade e interseccionalidade ao título do documento (American Psychological Association, 2017). As diretrizes atuais da APA enfatizam a necessidade de os psicólogos compreenderem a interseccionalidade como fator formado pela multiplicidade dos contextos sociais dos indivíduos e reconhecerem e entenderem experiências históricas e contemporâneas com poder, privilégio e opressão (American Psychological Association [APA], 2017). Nos últimos anos, a interação entre múltiplas opressões vem sendo objeto de pesquisa, com estudos investigando mulheres negras de minorias sexuais (Vu et al., 2019), mulheres gordas (Smith, 2019) e homens gays e bissexuais negros (Anderson & McCormack, 2010). Recente revisão da literatura associou a experiência de múltiplos tipos de discriminação a maior risco de sintomas depressivos, apontando a experiência interseccional como fator de risco em saúde mental (Vargas et al., 2020).
Dada a escassez de literatura científica a respeito de intervenções em psicologia clínica, o objetivo deste artigo é apresentar, por meio de estudo de caso, uma proposta de intervenção em psicoterapia para o manejo de opressões internalizadas que se interseccionam. O trabalho foi realizado por meio da TE, abordagem teórica do campo das terapias cognitivo-comportamentais (Young et al., 2008).
TERAPIA DO ESQUEMA
A TE, desenvolvida por Jeffrey Young, é uma abordagem terapêutica proposta como uma ampliação da terapia cognitivo-comportamental (TCC) (Young et al., 2008). O modelo teórico propõe o conceito de EIDs, temas estáveis e duradouros desenvolvidos durante a infância e que servem como modelos para o processamento de experiências posteriores (Young, 2003). Os esquemas desenvolvem-se a partir da união do temperamento inato do indivíduo com experiências nas quais as necessidades emocionais da infância não são atendidas pelo ambiente remoto (Young et al., 2008). Por meio de estratégias cognitivas, vivenciais e comportamentais, objetiva-se enfraquecer a intensidade da ativação dos esquemas, reduzindo a força das memórias conectadas, das sensações corporais e dos enfrentamentos desadaptativos que os mantêm em funcionamento (Young et al., 2008).
QUEIXA INICIAL
A paciente Ana (nome fictício), cisgênero, bissexual e do gênero feminino, 22 anos, buscou psicoterapia com queixas relacionadas a procrastinação acadêmica e baixa assertividade nas relações interpessoais. A avaliação não detectou transtorno psiquiátrico. A TCC tradicional, de abordagem beckiana, foi utilizada como principal linha de psicoterapia, tendo Ana apresentado melhora nas queixas por meio das estratégias de reestruturação cognitiva, ativação comportamental, programação de atividades, resolução de problemas e treino de assertividade. A intervenção teve duração de 1 ano e 3 meses, sendo encerrada após melhora significativa das queixas, reestruturação das crenças centrais apresentadas e finalização do processo de prevenção de recaídas.
Ana retomou a terapia um ano após a alta, com queixas a respeito dos relacionamentos interpessoais, referindo-se não se sentir importante para os amigos e relatando raiva dos seus grupos sociais. Tinha dificuldades para explicar os pontos específicos de incômodo nas relações de amizade, apenas reafirmando não se “sentir” parte. Devido ao seu perfil caracterizado por alta inibição emocional e por ter expressado maior ativação emocional ao ser questionada sobre experiências de infância e adolescência, a TE foi escolhida como nova estratégia psicoterápica.
AVALIAÇÃO
A avaliação foi realizada por meio de entrevista semidirigida, Questionário de Esquemas de Young (Young Schema Questionnaire [YSQ]) e Inventário de Estilos Parentais de Young (Young Parenting Inventory [YPI]). Os itens com escores mais altos foram investigados com Ana para melhor compreensão da história de vida e confirmação da presença de cada esquema, pois a correção dos instrumentos deve ser qualitativa (Paim & Copetti, 2016).
A partir da avaliação, foram identificados os EIDs de desconfiança/abuso, fracasso, inibição emocional, defectividade/ vergonha e isolamento social. As intervenções aqui descritas tiveram como foco os esquemas de defectividade/vergonha e isolamento social/alienação.
CONCEITUALIZAÇÃO DE ESQUEMAS: UMA VISÃO SOCIOCULTURAL
O perfil sociodemográfico de Ana é de uma mulher pertencente à classe B, negra de pele clara/parda, em um relacionamento monogâmico heterossexual e universitária. A partir da coleta de dados sobre a história de vida, foram identificadas as experiências que deram origem aos esquemas de Ana. O esquema de isolamento social/alienação refere-se ao sentimento de estar isolado do resto do mundo, de que se é diferente das outras pessoas e/ou de não pertencer a qualquer grupo ou comunidade (Young et al., 2008). No histórico de vida de Ana, a sensação de não fazer parte passou a existir após a mudança de residência de um estado da região Nordeste para o Rio de Janeiro aos 10 anos. A mudança fez com que saísse de uma escola onde se considerava igual às outras crianças para outra em que os colegas de classe zombavam de seu sotaque e não faziam questão da sua presença em nenhum grupo específico, levando-a a circular entre os diversos grupos da turma durante toda a infância e adolescência. As experiências de Ana adequam-se à construção de imagens sociais relacionadas à região Nordeste, representadas na cultura popular em personagens alegóricos, estereotipados e exóticos, por meio de elementos como falta de instrução e má educação, em um processo de preconceito regional ou xenofobia territorial (Alves, 2018). Cavalcanti (1993) aponta para uma atitude preconceituosa e viciada em estereótipos do eixo Sul-Sudeste do Brasil em relação aos habitantes da região Nordeste, observada por meio de estereótipos e apelidos pejorativos. Esse mecanismo de opressão social pode ser visto como possível origem para o esquema de isolamento social fora do círculo familiar.
O esquema de defectividade refere-se ao sentimento de ser defectivo, falho, mau, indesejado ou não merecedor de ser amado (Young et al., 2008). As origens do esquema em Ana também remetiam à mudança de estado. Ao mudar-se para um bairro de elite no Rio de Janeiro e ser matriculada em uma escola particular, pela primeira vez ela esteve em um ambiente no qual era fisicamente diferente das colegas de turma. Elas foram descritas como brancas, magras e com cabelos lisos, enquanto Ana relatava ter cor de pele mais escura, curvas e cabelos ondulados. A percepção dela sobre a diferença de cor em relação aos colegas não surgiu até a idade adulta. A hipótese da terapeuta para o atraso no reconhecimento da diferença racial relaciona-se ao fato de debates raciais não estarem presentes de forma explícita nos ambientes de desenvolvimento de Ana, como escola e família. Na adolescência, Ana tinha consciência sobre sua diferença corporal, avaliando negativamente o fato de se ver como gorda, em um processo de insatisfação subjetiva global com a própria aparência (Grabe & Hyde, 2006).
Ainda durante a adolescência, Ana observou suas colegas sendo alvo de interesse amoroso e recebendo pedidos de namoro. No seu caso, os rapazes tinham interesse em relações breves, com foco estritamente sexual e sem assumi-la em público como namorada. Ana não identificou nada em seu comportamento que produzisse esse tipo de relação, porém, durante a adolescência, aceitou que aquele era seu lugar social, sendo as relações puramente sexuais sua única oportunidade de receber afeto. Sua vivência no ambiente escolar assemelha-se ao fenômeno social de solidão afetiva entre mulheres negras, atestado por dados censitários que informam que as mulheres negras e pardas no Brasil são mais preteridas como candidatas nupciais, sendo as que têm maior período de celibato e se casam mais tardiamente na comparação com mulheres brancas, homens brancos e homens negros (Alves, 2010; Pacheco, 2013). Ana não se identificava como negra, pois era lida socialmente como branca em grupos exclusivamente negros, além de obter acesso a determinados espaços brancos devido ao seu status socioeconômico. Entretanto, suas experiências, em especial as afetivas, em espaços exclusivamente brancos denunciavam diferenciação entre ela e pessoas mais claras, em especial em bairros de elite.
Dessa forma, as experiências socioculturais relacionadas com o desenvolvimento de esquemas de Ana foram organizadas em três eixos: racismo, sexismo (por meio de pressão estética) e preconceito regional. Na Tabela 1 estão organizadas as hipóteses sobre os esquemas e suas origens socioculturais, representando a experiência interseccional de Ana.
Esquema | Origem sociocultural | Grupo social | Experiências | Necessidade não atendida | |
---|---|---|---|---|---|
Defectividade/vergonha | Sexismo Racismo |
Mulher Não branca | Comparação entre corpos, hiperssexualização e preterimento afetivo | Aceitação incondicional | |
Isolamento social/ alienação | Preconceito regional | Nordestina | Piadas com seu sotaque e exclusão de grupos brancos e negros | Pertencimento |
RELAÇÃO TERAPÊUTICA
A relação terapêutica é um dos principais elementos de mudança em TE (Young et al., 2008). Na relação, o terapeuta fica atento a sinais de ativação esquemática do paciente, ajudando-o a testar a realidade das crenças no momento em que surgem na interação (Young, 2003). Segundo Gouveia e Zanello (2019), a raça é fator que afeta o estabelecimento da relação terapêutica, impactando no desdobramento do processo terapêutico com psicoterapeutas negros e não negros. No caso relatado, a autoclassificação racial da psicóloga é como mulher preta (Petruccelli & Saboia, 2013).
Ana mantinha um relacionamento longo com um homem negro e fazia parte de grupos de militância social centrados no feminismo. Isso levou-a a discutir com mais facilidade temas relacionados à pressão estética sobre o seu corpo, porém, ser rotulada como branca pelos colegas negros fez com que não falasse sobre o tema racial.
O fato de a psicóloga ser negra e Ana conhecer seu foco no estudo de questões raciais e de minorias facilitou a abertura para a discussão racial. Foram adaptados princípios orientadores para o trabalho cognitivo-comportamental para a população negra sugeridos por Kelly (2006) para que Ana entendesse que todos os assuntos poderiam ser discutidos no espaço terapêutico. A terapeuta falou abertamente sobre sua própria identidade racial como mulher negra e questionou se Ana identificava experiências raciais ou culturais marcantes em sua história de vida (Kelly, 2006). A psicóloga também verbalizou para Ana a sensibilidade do tópico discutido para pessoas cuja definição racial não é tão evidente, estimulando-a a falar sem ter medo de errar ou ser julgada. Essa abertura proporcionou visível mudança na postura de Ana, que se mostrou, a partir de então, mais ativa e motivada em sessão, trazendo vários eventos passados e atuais sobre os temas de cor e preconceito regional. A psicóloga esforçou-se para demonstrar especial interesse conforme Ana abria-se emocionalmente, sendo utilizados o aumento de verbalizações empáticas, demonstrações de interesse e audiência não punitiva (Tavares & Kuratani, 2019).
INTERVENÇÕES
Intervenções cognitivas
As intervenções cognitivas têm como objetivo o questionamento do esquema pelo sujeito, que construirá uma base de argumentação lógica contra ele (Young et al., 2008). Até o momento da psicoterapia, o indivíduo sente e aceita o esquema como uma verdade incontestável, sendo as estratégias cognitivas úteis para auxiliar no processo de distanciar-se do esquema (Young et al., 2008).
Durante o processo, a terapeuta e Ana discutiram abertamente questões raciais e de miscigenação na sociedade brasileira. O histórico racial da família foi resgatado por meio de fotografias da infância e adolescência de Ana, sendo identificados os integrantes negros e brancos do grupo e debatidas as relações raciais intrafamiliares, como o racismo internalizado em seu avô paterno, negro de pele retinta. A partir do exame das fotos, também foi possível identificar que Ana fez parte de um grupo racialmente homogêneo quando criança e que a mudança de estado fez sua diferença de cor ser ressaltada entre os colegas brancos durante a adolescência, contribuindo para a formação do esquema de isolamento social.
O histórico de Ana durante a adolescência foi revisto por ela à luz das questões sociais relacionadas a raça, gênero e territorialidade, de forma a separar as mensagens transmitidas pela sociedade e por seus esquemas, como “Não faço parte”/“Não sou boa o suficiente”/“Só querem usar o meu corpo”, de quem ela verdadeiramente era. Nesse momento terapêutico, o objetivo foi localizar a origem social das mensagens inferiorizantes internalizadas (David, 2009).
A terapeuta e Ana debruçaram-se cuidadosamente sobre a questão racial, avaliando que em relação ao acesso a privilégios materiais/sociais e como era lida socialmente em seus grupos atuais, ela era vista como branca na maioria das vezes, porém, em algumas situações e locais, era descrita como parda ou apenas não branca. Munanga (2019) aponta para a ambiguidade e indefinição na constituição do mestiço brasileiro, ficando este na fronteira entre o pertencimento e o não pertencimento. Dessa forma, foi trabalhada a tolerância ao desconforto da indefinição racial, pois em uma sociedade com alto grau de miscigenação e desigualdade social como a brasileira, não seria realista esperar uniformidade em relação a como seria vista racialmente em diferentes grupos sociais.
Munanga (2019) também propõe a identidade como processo que não se constitui no vazio, sendo esta elaborada no social. Por sua vez, Patricia Hill-Collins (2019) aponta para o poder da autodefinição e falar por si mesmo no caminho do empoderamento dos indivíduos e grupos. A partir dessas reflexões, foi explorada a forma como Ana gostaria de se autodefinir, tendo ela optado por nomear a si mesma como parda ou mestiça, termos que poderiam ser contestados em discussões sociais. Ana assumiu responsabilidade por sua autodefinição, aceitando que poderia vir a ser alvo de debate por outros, porém, ela estaria segura de sua identidade e não mais permitiria que a hostilizassem. Foi discutida a necessidade de ter uma postura de abertura em relação a possíveis mudanças em sua autodefinição, conforme novos dados sobre suas experiências pessoais fossem sendo adicionados. Piza e Rosemberg (2017) pontuam que o pertencimento racial não é um dado imutável na vida dos sujeitos, sendo possível haver mudanças na autoclassificação de cor ao longo da vida.
Intervenções vivenciais
Imagens mentais têm como objetivo a ressignificação de memórias autobiográficas e o processamento emocional de memórias dolorosas, atendendo às necessidades emocionais que não foram satisfeitas durante o desenvolvimento do indivíduo (Petry & Basso, 2016). Espera-se que o sujeito perceba que o erro estava presente na situação vivida, e não em si mesmo (Arntz & Van Genderen, 2011). Elas podem ser úteis no manejo de opressões internalizadas para facilitar a compreensão de sua origem mais ampla, identificando de onde vêm as mensagens de auto-ódio e deslocando-as de dentro do indivíduo para o ambiente social (David, 2009).
Foram conduzidas imagens mentais em cenas da infância de Ana relacionadas aos seus esquemas de defectividade e isolamento social. O objetivo foi a reparentalização limitada, processo no qual a relação terapêutica é utilizada para identificar e atender, dentro dos limites da relação, às necessidades emocionais do indivíduo em psicoterapia (Young et al., 2008).
Inicialmente, a terapeuta entrou nas imagens como adulto saudável para defender a criança nas cenas de isolamento na escola e reparentalizá-la, atendendo às suas necessidades emocionais de aceitação incondicional e pertencimento social. Posteriormente, Ana tornou-se o próprio adulto saudável nas imagens, dando voz e atendendo às necessidades emocionais da criança. Em uma das principais cenas de sua época escolar, Ana foi excluída de uma brincadeira com outras meninas, todas brancas e com sotaque diferente do seu. Seu modo adulto saudável entrou em cena e reparentalizou a pequena Ana, perguntando sobre seus sentimentos e do que precisava. Após ouvir a criança vulnerável, o modo adulto saudável de Ana repreendeu as colegas que a excluíram e reassegurou que ela não precisava mudar seu corpo, trejeitos e sotaque para ser aceita e amada, afirmando que muitas pessoas gostariam dela exatamente do jeito que era. O modo adulto saudável também auxiliou a criança a se aproximar dos colegas e a se impor quando fosse motivo de zombaria.
No caso de Ana, as experiências de rejeição e exclusão social ocorreram majoritariamente no ambiente escolar, não sendo compreendidas pela paciente na época em que ocorreram. Os cuidadores e a escola não perceberam ou a auxiliaram nos desafios da inclusão social após a mudança de estado.
O uso da técnica da cadeira vazia também é feito no trabalho com os EIDs (Young et al., 2008). Representa um conjunto de técnicas psicoterapêuticas experienciais que incorporam cadeiras, o posicionamento de cadeiras e o movimento do indivíduo entre elas (Bell et al., 2020). Em terapias cognitivo-comportamentais, sua utilização permite o trabalho com objetivos cognitivos e comportamentais, além do manejo de questões relacionadas a apego e emoções (Pugh, 2017).
No processo psicoterápico de Ana, inicialmente as cadeiras foram utilizadas como técnica cognitiva, com um lado representado um esquema e o outro representando o polo saudável. Ambos são representados em diferentes cadeiras, entre as quais Ana alterna enquanto levanta as vantagens e as desvantagens de manter cada esquema.
Como estratégia vivencial, Kellogg (2015) propõe a utilização de cadeiras para o trabalho com opressões internalizadas e interseccionalidade, sugerindo que diferentes cadeiras sejam utilizadas para cada opressão social vivenciada pelo sujeito e que uma última cadeira funcione como a integração entre todos esses lados e vivências. No caso apresentado, Ana representou em cadeiras separadas a questão racial, a pressão estética sobre o corpo e o preconceito regional. Ao alternar entre as cadeiras, passou a dar voz a cada um desses lados, expressando as dificuldades vivenciadas na infância e as mensagens sobre si mesma que cada uma dessas opressões alimentava. A cadeira de integração entre as interseccionalidades funcionou como representação do adulto saudável, respondendo aos outros lados a partir de uma perspectiva adulta e compassiva consigo mesma.
Intervenções comportamentais
As estratégias comportamentais objetivam romper padrões comportamentais de funcionamento que atuam de forma a perpetuar os esquemas, alterando os estilos de enfrentamento (Young et al., 2008). Ana utilizava primordialmente respostas de enfrentamento de resignação e evitação para manejar os esquemas trabalhados. A resignação a um esquema corresponde a aceitar o esquema e suas mensagens como reais, adaptando sentimentos e pensamentos de acordo com isso. Por sua vez, a evitação relaciona-se a não entrar em contato com atividades e cognições que possam ativar o esquema e suas emoções associadas, impossibilitando a ocorrência de experiências corretivas (van Genderen et al., 2012; Young, 2003).
Ana utilizou as habilidades aprendidas no momento anterior da terapia, quando foi utilizada a abordagem cognitivo-comportamental padrão, para alterar seus padrões comportamentais, sendo o treino de assertividade útil para conseguir expor seu desconforto com momentos de exclusão social para pessoas próximas. Para alteração do esquema de isolamento social, passou a buscar ativamente pontos em comum com as pessoas em reuniões sociais das quais fizesse parte e aumentou o contato com pessoas também em processo de autodescoberta racial. Em relação à defectividade, foram empregadas estratégias como seguir pessoas parecidas consigo mesma em redes sociais e propor a si mesma diariamente o exercício de enxergar pontos positivos em mulheres fisicamente semelhantes a ela.
RESULTADOS DAS INTERVENÇÕES
O YSQ e o YPI não puderam ser readministrados devido à mudança de cidade de Ana. Portanto, a avaliação dos benefícios da intervenção ocorreu a partir da observação de novos padrões comportamentais e autorrelato da paciente. Após 35 sessões, Ana relatou maior conforto ao discutir em público questões delicadas como raça e privilégio social, aumento da assertividade no grupo de amigas, no qual, por vezes, era excluída e ampliação do círculo social. A maior parte do tratamento ocorreu quinzenalmente devido a dificuldades financeiras da paciente. Nos últimos meses de psicoterapia, a frequência passou a ser mensal, com objetivo de acompanhar o funcionamento autônomo de Ana no atendimento das próprias necessidades emocionais. A psicóloga identificou que Ana estava utilizando as habilidades desenvolvidas na terapia, conectando-se com sua criança de forma a aceitá-la e inseri-la em grupos sociais nos quais fosse bem recebida.
Young (2003) aponta que alguns pacientes crônicos compreendem racionalmente o que o terapeuta demonstra em terapia cognitiva, porém os sentimentos, os comportamentos e as crenças permanecem imutáveis. Apesar de Ana não apresentar quadro psicopatológico crônico, as dificuldades que a fizeram retornar à terapia relacionavam-se à manutenção de aspectos que o trabalho prioritariamente cognitivo-comportamental não tinha tido sucesso em modificar. Dessa forma, feedbacks finais relativos a finalmente sentir-se fazendo parte, ver a si mesma como “mais que um corpo” e frases como “Não era eu que tinha algo errado, era a sociedade” foram avaliados como indicativo de sucesso na intervenção.
DISCUSSÃO
O modelo bioecológico do desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1994) mostra a influência dos mais variados tipos de ambiente sobre o desenvolvimento humano. A pessoa em desenvolvimento está presente em contextos, mais ou menos remotos, e se desenvolverá em um determinado tempo que levará em conta acontecimentos individuais e históricos (Bronfenbrenner, 1996; Poletto & Koller, 2008). Segundo Poletto e Koller (2008), a compreensão ecológica do desenvolvimento humano permite que a atenção investigativa seja ampliada da pessoa e seu ambiente imediato para abarcar também os contextos mais amplos. No trabalho realizado, constatou-se a possibilidade do aumento dos ganhos terapêuticos em uma proposta de terapia que reconhecesse e manejasse a força de opressões sociais, aqui representadas pelo sexismo, racismo e preconceito regional.
Dados de pesquisa têm ressaltado a importância do conhecimento a respeito de questões socioculturais na formação em psicologia e em serviços de saúde mental. Em revisão sistemática conduzida por Oliveira et al. (2017), foram identificadas evidências para a relação entre aspectos sociocognitivos relacionados a racismo, discriminação e preconceito e prejuízos na saúde de pessoas de minorias étnico-raciais. Se, por um lado, os dados mostram que há vulnerabilidade na saúde mental de grupos expostos a racismo, por outro, a produção de conhecimento e formação de profissionais em psicologia clínica ainda carece de orientações para a prática psicoterápica com indivíduos de minorias sociais. A revisão sistemática de Sacco et al. (2016) evidenciou a restrita produção acadêmica brasileira no tema do preconceito racial, sendo a maior parte dos estudos das áreas de psicologia social e da psicanálise, tendo como sujeitos universitários, em sua maioria brancos.
A TCC brasileira não apresentava propostas de intervenção para questões relacionadas ao preconceito racial até o momento da revisão de Sacco et al. (2016), sendo a primeira publicação científica com orientações para manejo de repercussões do racismo em psicoterapia analítico funcional (FAP), terapia de aceitação e compromisso e TCC datada apenas de 2019 (Tavares & Kuratani, 2019).
Em referência à população LGB, Vezzosi et al. (2019) apresentaram o alarmante dado de que 29,48% dos psicólogos de sua amostra brasileira exibem atitudes corretivas (com objetivo de mudança da orientação sexual) em relação a pacientes lésbicas, gays e bissexuais. A maior parte desse tipo de atitude foi encontrada em psicólogos da abordagem cognitivo-comportamental, que também são os que mais apresentam atitudes corretivas sem solicitação do paciente. Em TE, especificamente, não há referências nas literaturas nacional e internacional de estudos a respeito do manejo de racismo, homofobia, sexismo ou quaisquer outras opressões sociais. Esses dados revelam a urgência da atualização da formação de pesquisa e clínica de terapeutas cognitivo-comportamentais e terapeutas do esquema, com a inclusão do aprendizado de diferentes questões socioculturais nos programas de formação de psicólogos.
O modelo da TE reconhece a importância da interação entre o temperamento inato da criança e o ambiente para a formação dos EIDs (Young et al., 2008). Da mesma forma, espera-se que a TCC seja adaptada aos níveis social, cultural e econômico do paciente (Weinrach, 1988). Entretanto, a compreensão aprofundada do ambiente social e dos vários aspectos da cultura ainda é escassa para os psicoterapeutas brasileiros. A TE tem em sua gênese a integração teórica, sendo originada a partir da união de conhecimentos da TCC, dos modelos psicodinâmicos e da teoria do apego (Young et al., 2008). Sua natureza integrativa permite a incorporação de novos modelos teóricos que estejam em consonância com as suas bases teóricas à compreensão das origens dos EIDs. No atual modelo de conceitualização de esquema (International Society of Schema Therapy [ISST], 2018) foi incluída a seção de aspectos socioculturais do paciente, porém, ainda não há descrição específica de cada fator sociocultural e suas possíveis relações com a formação e a manutenção dos EIDs. Neste artigo, apontamos para a importância de uma conceitualização e intervenção que identifiquem as diferentes identidades de minoria dos pacientes, assim como sua interação na experiência de uma identidade interseccional, que acumula diferentes status identitários. Em modelos de tratamento futuros, novas propostas de conceitualização e intervenção podem ser utilizadas, como no trabalho com outros esquemas além dos aqui trabalhados, na intervenção com modos esquemáticos e na pesquisa a respeito da interação entre identidades de minorias, EIDs, modos e transtornos específicos.
O modelo do estresse de minorias é atualmente o melhor modelo com base em evidências a propor a união entre fatores socioculturais e saúde mental, sugerindo que estressores sociais causam impacto na vida de pessoas pertencentes a categorias sociais estigmatizadas (Brooks, 1981; Meyer, 2003). Esse modelo ainda é majoritariamente utilizado para a compreensão das experiências de minorias sexuais e de gênero, com crescente expansão da aplicabilidade para pessoas que vivenciam simultaneamente experiências interseccionais de cor e gênero ou orientação sexual (Balsam et al., 2011). A inclusão do modelo de estresse de minorias em cursos universitários e cursos de formação pode, portanto, auxiliar na formação de psicólogos para o manejo clínico de sujeitos de minorias.
O código de ética profissional do psicólogo (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2005) informa que contribuir para a eliminação da quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão é uma das obrigações profissionais do psicólogo. Esse princípio implica uma atuação pautada em movimentação ativa e intencional para promover transformação social. Almeida (2019) afirma que, apesar de o silêncio diante do racismo não tornar o sujeito moral ou juridicamente responsável por uma situação de racismo, certamente o torna ética e politicamente responsável pela sua manutenção, sendo possível expandir essa reflexão para nossas posturas diante de todas as opressões sociais. O presente artigo buscou contribuir para o campo de conhecimento da psicologia clínica, em especial a TCC e a TE, por meio de uma proposta clínica de comprometimento ativo, ético e político com as transformações sociais necessárias em uma sociedade desigual.