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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.3 São João del-Rei jul./set. 2017
ARTIGOS
Um corpo maculado na infância: a necessidade de intervenção precoce dos profissionais de saúde
A body sullied in childhood: the need for early intervention of health professionals
Un cuerpo inmaculado en la infancia: la necesidad de intervención precoz de los profesionales de la salud
Cassandra Pereira França
Professora doutora do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, desenvolvendo pesquisas sobre violência sexual infanto-juvenil e temas ligados à teoria e clínica psicanalítica. Membro da ANPEPP (GT: Psicanálise e Clínica Ampliada). Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. E-mail: cassandrapfranca@gmail.com
RESUMO
A criança vítima de abuso sexual é responsável pela produção da prova da violência a que foi submetida, o que implica reviver a situação traumática por que passou e enfrentar nova situação sem apresentar ainda condições de maturação. No entanto, a urgência com que tais crianças precisam de apoio dos profissionais de saúde se depara com o despreparo desses profissionais para identificar um caso de abuso sexual, principalmente quando é intrafamiliar - situação que colocará em xeque um conjunto de valorações, ideias e sentimentos a respeito da família, da sexualidade, da infância e dos tabus culturais. O presente artigo pretende fazer uma descrição sucinta e panorâmica de alguns desafios da análise como medida profilática ao desenvolvimento de atuações que revelem as principais consequências do abuso sexual infantil: a coisificação do corpo e o entorpecimento dos afetos.
Palavras-chave: Psicanálise; abuso sexual infanto-juvenil; incesto.
ABSTRACT
The child victim of sexual abuse is responsible for producing proof of the violence to which he was subjected, which implies reliving the traumatic situation he or she has gone through and facing a new situation, without presenting maturation conditions. However, the urgency with which such children need the support of health professionals is faced with the unpreparedness of these professionals to identify a case of sexual abuse, especially when it is intra familiar - a situation that will put in check a set of valuations, ideas and feelings about family, sexuality, childhood and cultural taboos. The present article intends to give a brief and panoramic description of some of the challenges of the analysis as a prophylactic measure to the development of actions that reveal the main consequences of the sexual abuse of infantile: the reification of the body and the numbness of affections.
Keywords: Psychoanalysis; child sexual abuse; incest.
RESUMEN
El niño víctima de abuso sexual es responsable de presentar pruebas de la violencia a la que fue sometido, lo que implica revivir la situación traumática por la que ha atravesado y enfrentar una nueva situación, sin presentar condiciones de maduración. Sin embargo, la urgencia con la que dichos niños necesitan el apoyo de los profesionales de la salud se enfrenta a la falta de preparación de estos profesionales para identificar un caso de abuso sexual, especialmente cuando es intrafamiliar, una situación que pondrá a prueba un conjunto de valoraciones, ideas y sentimientos sobre la familia, la sexualidad, la infancia y los tabúes culturales. El presente artículo pretende dar una descripción breve y panorámica de algunos de los desafíos del análisis como medida profiláctica para el desarrollo de acciones que revelen las principales consecuencias del abuso sexual infantil: la reificación del cuerpo y el entumecimiento de los afectos.
Palabras-clave: Psicoanálisis; abuso sexual infantil; incesto.
"Flores envenenadas na jarra. Roxas, azuis, encarnadas, atapetam o ar (…)
Nunca vi mais belas e mais perigosas. É assim então o teu segredo."
(Clarice Lispector, 2008)
As dificuldades sociais enfrentadas pela sociedade brasileira não são poucas. Uma das principais refere-se ao descuido com a proteção das crianças e adolescentes, principalmente no que diz respeito aos maus-tratos e à violência sexual infantil - um dos problemas mais graves que o governo e a sociedade têm combatido com atenção crescente. Apesar de a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, esclarecer que é obrigação do Estado, da família e da sociedade manter a infância e a adolescência a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, as tentativas de reforçar o aparato legal para a luta contra a violência sexual somente se concretizaram em 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (1990), que determinava a adoção legal de mecanismos específicos de proteção. Dentre tais mecanismos, destaca-se a função dos Conselhos Tutelares, que passaram a ser responsáveis por receber, averiguar e encaminhar às autoridades judiciárias denúncias de violação aos direitos da criança e do adolescente. Nos Juizados da Infância e Juventude, após o estudo de cada caso por psicólogos e assistentes sociais e a averiguação da situação de risco a que a criança está exposta, os juízes determinam medidas protetivas: o afastamento do agressor da moradia comum ou a perda familiar da guarda da criança com seu respectivo encaminhamento para os abrigos sociais.
Apesar de que, desde 1989, a aprovação da Convenção sobre os direitos da criança, na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU, 1989), tenha feito com que meninas e meninos irrompessem na história como sujeitos jurídicos, ainda hoje, tantos anos depois desse acontecimento, vê-se que a aprovação de uma lei não tem efeitos imediatos. Assim, é muitas vezes desconsiderado, no âmbito jurídico, o fato de que estruturas de pensamento durante a infância e a adolescência são completamente distintas das que se consolidam ao se chegar à idade adulta (fato que é evidente para a psicologia e a pedagogia), o que leva crianças a serem novamente vítimas durante os processos judiciais. Afinal, juridicamente, a criança vítima é responsável pela produção da prova da violência a que foi submetida, o que implica que ela não só reviva a situação traumática pela qual passou como também enfrente uma nova situação para a qual não apresenta condições de maturação, como, por exemplo, a necessidade de enfrentar o calvário de repetições da narrativa verbal dos abusos sofridos (para o delegado, os conselheiros tutelares, os psicólogos do juizado da infância, da promotoria etc.). Bem sabemos que, em meio a tantas reedições do assunto, o aparato psíquico da criança trata de colocar seus mecanismos de defesa em ação, alterando a versão que está sendo narrada - produzindo, assim, contradições que vão gerar confusão e aumentar a incredulidade dos ouvintes.
A situação é mais complicada quando o abuso é cometido no seio da própria família, permitindo que a confiabilidade no relato infantil seja afetada tanto pelas relações vinculares do grupo familiar, quanto pela suposição de que os abusos narrados são desdobramentos imaginários da criança a partir das relações de cuidado com a sua higiene pessoal. A revelação da violência sexual causa forte impacto não só na criança como na família e nos profissionais. Tais casos, inclusive, abarcam situações de difícil manejo para os Conselheiros Tutelares, uma vez que os dois polos da ação - o agressor e a vítima - pertencem ao mesmo grupo familiar. Quando inexistem vestígios físicos do abuso que poderiam ser constatados pelos peritos do Instituto Médico Legal, fica mais difícil ainda se chegar a uma conclusão sobre a realidade dos fatos.
O abuso sexual infantil é visto, na atualidade, como um problema complexo e incômodo, atravessado por questões psicossociais, legais e de saúde. Os profissionais de saúde são, frequentemente, chamados a operar alguma transformação nessa realidade por meio de seu trabalho. Apesar de serem mais demandados no sentido curativo, realizam também intervenções a partir de outros tipos de propostas tanto no contexto do atendimento clínico propriamente dito quanto no âmbito das ações interinstitucionais e de formulação de políticas de atenção à infância.
A revelação de um caso de abuso pode provocar reações emocionais, defensivas e contratransferenciais nos profissionais intervenientes, incidindo sobre um conjunto de valorações, ideias e sentimentos a respeito da família, da sexualidade, da infância e dos tabus culturais. Além da problemática do reconhecimento do abuso, os profissionais também podem experimentar conflitos de opiniões sobre responsabilidades e culpas dos adultos envolvidos, dúvidas sobre a definição do que é prioritário nas intervenções a serem feitas, impasses no compartilhamento de informações etc.
De modo geral, a presença dessas contradições e ambiguidades para reconhecer e lidar com os casos de abuso sexual infantil desencadeia diferentes formas de reação nos profissionais da saúde: eles podem sequer suspeitar apesar das fortes evidências; podem identificar um quadro de abuso sexual, mas não conseguir intervir ou, ainda, fazer uma intervenção completamente ineficaz; podem até mesmo contribuir para ocultar, aderindo ao "pacto de silêncio" ao negar que o abuso tenha de fato ocorrido.
Mas, por detrás da invisibilidade e incredulidade do abuso sexual intrafamiliar, está a força do imaginário social que idealiza as relações entre pais e filhos, criando uma resistência enorme (muitas vezes velada) em reconhecer que a família "ideal" (monogâmica, biparental, estável e perfeitamente funcional) é a exceção, e não a regra. É inquietante pensar nessa realidade, mas negá-la só aumenta a condição de vulnerabilidade de nossas crianças.
A realidade brasileira
Nas últimas duas décadas, os profissionais de saúde do Brasil foram chamados por diferentes instâncias governamentais e não governamentais para trabalhar em redes que fazem frente à violência sexual contra crianças e adolescentes. Os psicólogos participam de diversos dispositivos, intervindo com as famílias e realizando entrevistas e avaliações judiciais, psicodiagnósticos e tratamentos psicoterapêuticos. Dada a complexidade dos casos seguidos e dos escassos desenvolvimentos teórico-práticos, fez-se necessário aprofundar os estudos teóricos para contribuir com a formação das equipes interdisciplinares: psicólogos, trabalhadores sociais, pediatras, advogados e professores.
No Brasil, o ano de 2000 foi marcado pela implantação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil (Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, 2000), seguido, em 2001, pelo Programa Sentinela (Portaria n. 878, 2001), que passou a oferecer assistência social às vítimas de abuso sexual. Já o Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil (PAIR) (Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, 2002) foi criado para estabelecer uma estratégia de articulação e integração entre os projetos de prevenção e atendimento a essa população.
Para acolher as denúncias, o Governo Federal disponibilizou um serviço de Disque-Denúncia gratuito para todo o país, o qual acabou trazendo dados significativos acerca da gravidade da situação nacional, como, por exemplo, o dado de que, entre 2003 e 2005, esse serviço recebeu 120 mil ligações, das quais 17 mil resultaram em denúncias efetivas de abuso e exploração sexual, sendo que, em 62% dos casos, as vítimas eram do sexo feminino (RS Press, 2016).
Em 2005, as pesquisas da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos revelaram que, do número total de denúncias, 56,5 % das vítimas eram crianças de até seis anos de idade - estatística agravada pelas conclusões extraídas de pesquisas realizadas por outras ONGs, que evidenciaram ser a imensa maioria dos abusadores composta por pais, padrastos e avós. Cinco anos depois (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [CONANDA], 2010), a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República realizou consulta pública por meio do documento Construindo a Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e o Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 2011 - 2020.
Entre 2015 e 2016, mais de 37 mil denúncias de violência sexual foram recebidas, das quais 76% se referiam a casos de abuso sexual, sendo que, em 67,69% dos casos, as vítimas eram do sexo feminino. Em 2016, as pesquisas da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos revelaram que, do número total de denúncias, 40% das vítimas eram crianças de até 11 anos de idade.
A temática do abuso sexual infantil tem conseguido, cada vez mais, despertar na sociedade a consciência da importância da denúncia dos casos de violência contra crianças. Para receber as queixas, o Governo Federal, por meio da Secretaria de Direitos Humanos, tem proporcionado um serviço de linha direta gratuita (Disque 100) para todo o país. Somente para ilustrar a gravidade da situação nacional, podemos citar as seguintes estatísticas: no primeiro trimestre de 2016, foram registradas 4.953 denúncias de violência sexual contra as crianças e, em 23,24% dos casos, os principais suspeitos eram o pai ou a mãe e em 11,2%, o padrasto. Dentre esses 4.953 registros, a maioria das vítimas eram meninas, sendo 31% adolescentes de 12 a 14 anos e 5,8% de zero a três anos (Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, 2016).
Em razão dessas estatísticas, temos concentrado muitos de nossos estudos sobre as repercussões na construção identitária das crianças quando elas passam, durante as vivências edipianas, por abuso sexual pela figura paterna. Diante da complexidade desse problema que, inclusive, facilita a ocorrência de estratégias perversas de exploração comercial dos corpos e órgãos das crianças expostas à vulnerabilidade social, todas as organizações sociais que atuam no campo infanto-juvenil no Brasil têm tentado agregar a estratégia de organização das Redes de Proteção como formas de articular, mobilizar e prestar atendimento qualificado, ampliado e legitimado às crianças, aos adolescentes e aos familiares.
O projeto CAVAS/UFMG
Em 2005, o Projeto CAVAS/UFMG (Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual) foi instituído pela Dra. Cassandra Pereira França no Departamento de Psicologia da UFMG (Brasil) como um projeto de investigação e extensão que opera no extremo da Rede de Proteção, cuidando das sequelas psicológicas das vítimas da violência sexual. O principal objetivo do projeto é o tratamento psicoterápico de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual e a capacitação dos estudantes para atuarem, futuramente, nos mais diversos pontos das redes de enfrentamento à violência sexual. O CAVAS tem como propósito estabelecer um espaço de elaboração da situação traumática vivida, evitando um possível processo de identificação com o agressor, o que, geralmente, conduz à multiplicação da incidência da violência e à configuração do flagelo por meio de sucessivas gerações familiares.
Nos 12 anos de implantação do projeto, têm sido desenvolvidas dissertações (Mello, 2016; Mendes, 2011; Oliveira, 2017; Rodrigues, 2012), que se fundamentam por completo na Psicanálise e que investigam problemáticas extraídas da clínica psicoterápica infantil. Citemos alguns dos principais enfoques conceituais que temos investigado: a identificação com o agressor, o traumatismo psíquico, a identificação projetiva na relação analítica, os distúrbios da construção da identidade sexual, as consequências da consumação do Édipo, os segredos patológicos e as relações fraternas incestuosas. Dessa maneira, conseguimos implementar uma linha contínua de investigações produzidas a partir de problemáticas extraídas do manejo da técnica psicanalítica com esse público, desenvolvidas mediante projetos de Iniciação Científica e de Pesquisas nos níveis do Mestrado e do Doutorado. Dessa maneira, tem-se, também, conseguido ampliar a equipe de técnicos capacitados para supervisionar o tratamento psicanalítico de vítimas de abuso sexual e que estão multiplicando as frentes de atendimento psicoterápico em diversas instituições.
Incesto e culpa pelas fantasias edipianas
Sabemos que, durante o complexo de Édipo, é possível localizar, no psiquismo da criança, fantasias que expressam claramente o desejo incestuoso e as rivalidades parentais em que as crianças se lançam na disputa pelo ser amado. Esse complexo fantasmático é uma fase estruturante da vida de todo sujeito, na qual ele colocará à prova o seu poderio desejante e terá de elaborar os limites que lhe darão contorno. Para tanto, precisará que seus pais, a um só tempo, lhe permitam ensaios de sedução e apaixonamento e façam marcações que evidenciem a interdição desse desejo. No entanto, nas famílias incestuosas, o que a criança não pode prever é que o objeto sobre o qual incide tão fortemente seu amor é alguém que opera dentro das raias da patologia da recusa e não aceita os limites impostos pela cultura: nesse caso, o de respeitar a fragilidade do psiquismo e do corpo de uma criança. O pai ou padrasto, mergulhado na sexualidade perverso-polimorfa, sem pudores éticos, irá preparar uma armadilha sedutora e transformará o pequeno corpo em objeto a ser usado a bel prazer. Entretanto, ao proceder dessa maneira, destrói a sua função paterna, pois, além de não interditar os anseios edípicos da criança, não funciona como para-excitações e nem garante o interdito cultural do tabu do incesto. Esse encontro entre as fantasias edipianas de uma criança e as fantasias pedófilas de um pai sedutor e perverso vão deixar sequelas irreversíveis, principalmente porque a criança, mergulhada na onipotência, terá certeza de que os seus desejos edipianos foram, de fato, os responsáveis por tudo aquilo que aconteceu. Essa culpa terá o potencial devastador de estancar o fluxo das fantasias na infância ao impedir a criança de liberar sua alegria de viver e de sonhar um futuro; e, na adolescência, irá dificultar a iniciação sexual do jovem de modo a poder estar vinculada à paixão e/ou ao amor.
De modo geral, podemos afirmar que o abuso sexual nos tempos do Édipo, por sua força e precocidade, funciona como desarticulador dos traços identitários básicos constituintes do psiquismo. Assim, possui a especificidade típica dos grandes traumatismos, que, em termos do modelo econômico freudiano, é caracterizada exatamente pela afluência excessiva de excitações em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de controlar e elaborar, psiquicamente, essas excitações. Estamos tratando de traumatofilia, como nos diz Laplanche, pois o corpo sente coisas que o sujeito não reconhece, o que será suficiente para provocar ideias dissociativas. No abuso, o gozo não é algo que o sujeito queira, é algo que o corpo impõe, mas que o sujeito não tem como representar. Assim, a incidência inesperada dessa vivência poderá dilacerar as fronteiras intrapsíquicas construídas até aquele momento, esfacelando as diversas instâncias e subsistemas no interior do aparelho psíquico, e desmanchando as defesas do Ego, responsáveis por inibir o processo primário. Ou seja, a desarticulação egoica promoverá a soberania dos modos de funcionamento psíquico do processo primário, fazendo com que "a energia psíquica escoe livremente, passando sem barreiras de uma representação para outra, segundo os mecanismos de deslocamento e condensação, tendendo a reinvestir plenamente as representações ligadas às vivências de satisfação constitutivas do desejo" (Laplanche & Pontalis, 2001, p. 371).
Portanto, esse reinado do processo primário que desarticula e boicota, por completo, a relação do sujeito consigo mesmo e com a realidade que o atravessa, com certeza, também comprometerá todas as funções mentais responsáveis pelos processos secundários: o pensamento de vigília, a atenção, o juízo, o raciocínio e a ação controlada. Rastros que nos permitem encontrar, dentre as vítimas de abuso sexual, algumas pessoas que parecem estar, como diria a gíria psicanalítica, "com o inconsciente a céu aberto" e outras que mais parecem viver como autômatos, sujeitos ocos (se é que, com esse adjetivo pejorativo, podemos descrever a ausência de uma atividade mental requintada como o pensamento), que só podem atender às exigências pulsionais diretas, exatamente aquelas que não precisam da mediação das representações, como é o caso da masturbação compulsiva.
Os desafios da análise enquanto medida profilática
Sabemos muito bem que a análise infantil pode ser uma medida profilática poderosa com grandes chances de ajudar a liberar os níveis exacerbados de angústia e sadismo que encontramos no psiquismo das crianças expostas a violências cotidianas ou a situações traumáticas. A estrutura técnica principal da análise com crianças está edificada no brincar, que, como dizia Freud, é a única resposta à disposição da criança para elaborar, simbolicamente, a exigência de trabalho imposta pelas pulsões ao psiquismo. Portanto, quanto mais cedo se iniciar uma intervenção psicoterápica, maiores serão as chances de que o tratamento consiga ajudar na elaboração do traumatismo sofrido. Tarefa árdua e que vai requerer um longo tempo de investimento. Na experiência clínica do Projeto CAVAS/UFMG, as crianças costumam vir para a clínica social um ano depois de ocorrido o traumatismo sexual e ficam no processo psicoterápico psicanalítico, em média, por um período de dois anos.
O primeiro desafio enfrentado pelo tratamento é ajudar a criança violentada e que está com sua capacidade lúdica embotada (por causa da culpa por seus impulsos edipianos) a experienciar de modo ativo a violência sofrida passivamente dando vazão à culpa que sente pela vivência incestuosa. Somente após ter transcorrido um bom tempo dessa expurgação do sadismo é que a criança poderá voltar a ser livre para fantasiar e desejar. Essa é a âncora que dará sustentação ao planejamento do tratamento, pois sabemos que a fantasia pode recuperar uma parte do traumático que, apesar de estar inscrito no inconsciente, não está fixado lá e nem está ligado a uma rede que o sustente. O trauma encontra-se fora da dinâmica do recalque, na ordem da não representação, o que impõe uma impossibilidade de estabelecer ligações psíquicas. Este será, exatamente, o grande impasse no tratamento: criar condições para que o traumatismo possa encontrar vias de representação que permitam sua conexão com a linguagem e com a trama simbólica daquele aparelho psíquico.
Em alguns casos, quando finalmente a cena traumática surge com toda sua crueza, caberá ao profissional pinçar elementos que permitam, aos poucos, que sejam criados símbolos associados à cena e que articulem associações que possam trazê-la novamente à luz do dia. Ou seja, após a primeira aparição, assistiremos, infinitas vezes, às suas metamorfoses, que permitirão à criança em análise a colocação em ato de todo o seu sadismo, exercitando a inversão da passividade em atividade. Rotação que, se bem acompanhada e interpretada, evitará um encaminhamento perverso, como o que costuma acontecer quando a genitalização precoce ocorreu de modo patológico.
Uma vez elaborada a cena traumática, a criança dará prosseguimento ao seu complexo edípico. Mas se o Édipo é o momento em que, pela primeira vez, o objeto escolhido é amado e desejado, ou seja, é o momento em que irá se inaugurar a ligação entre sexualidade e amor, como nos diz Bleichmar (2007), como a criança abusada fará isso? De suas fantasias sexuais, ela tem medo, pois julga que, por sua culpa, não foi amada como filha, e sim desejada como pedaço de carne. E, justamente, por não ter sido possível configurar um Complexo de Édipo com aquele par parental que deixou a realidade invadir todo o campo fantasmático da criança é que a Psicanálise terá uma tarefa profilática a oferecer a seu pequeno paciente: deixar a criança experienciar um novo roteiro edipiano, reinstalando, graças à predeterminação à que obedece, essa trama.
Nessa segunda onda edipiana, a criança, engajada num processo de análise, não terá dúvidas: criará um novo par parental, elegerá o seu analista como objeto de desejo e amor, e a vivência edipiana ocupará, então, seu espaço na relação transferencial - situação puramente imaginária em que a criança irá criar outro triângulo amoroso: ela, o analista e seu possível companheiro ou alguma outra pessoa que ela vislumbre como objeto de interesse do analista (por exemplo, outro cliente mesmo que seja criança). Só que, dessa vez, a reedição do desejo edipiano encontrará a interdição do adulto, o que reorganizará a angústia da criança e selará a lei da castração, criando, assim, uma via de esperança que poderá alterar o destino de se ter um corpo maculado pelo incesto e que deixará de ser tratado (pela própria criança) como um pedaço de carne que precisará ficar anestesiada, constantemente, para não provocar um curto-circuito psíquico.
Mas, em muitas outras vezes, durante a análise na infância, encontramos poucos indícios da cena traumática e somente podemos observar a clivagem do Ego, defesa sempre operante nesses casos, acompanhada por movimentos psíquicos de negação do que foi vivenciado. Entretanto, se, por um lado, a clivagem do Ego é uma defesa radical para proteger o psiquismo da realidade do abuso sexual, por outro, ela impede os processos de integração e de elaboração psíquica da violência sofrida. Infelizmente, se o episódio traumático não foi ainda ressignificado, o material psíquico ficará à mercê da "compulsão à repetição". Com isso, queremos dizer , em alguns casos, a pressão compulsiva poderá produzir uma coisificação dos corpos: na infância, por meio de uma masturbação direta e alienante e, na adolescência, pela busca de caminhos de experiências, tais como a droga e/ou a prostituição que entorpece(m) os afetos.
Diante desse cenário sombrio, é preciso avançar a discussão acerca das intervenções clínicas que poderiam, de fato, ajudar as crianças na elaboração psíquica da violência sexual sofrida na infância. Esse tem sido um dos principais objetivos do Projeto CAVAS/UFMG: instrumentalizar teórica e tecnicamente profissionais da rede de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil do estado de Minas Gerais. Apesar de sabermos quão ínfimo é o número de crianças que têm oportunidade de ter acesso a um tratamento psicoterápico, acreditamos que essa é uma das grandes frentes de pesquisa e de compromisso social da Psicanálise, uma vez que as estatísticas apontam a exploração sexual infantil como uma das grandes tragédias morais do Brasil.
Referências
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Recebido em 09/06/2016
Aprovado em 27/11/2017