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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

Conhecer, intervir, partilhar: pistas para a pesquisa psicossocial na construção de outros mundos possíveis

 

Knowing, Intervening, Sharing: Clues for Psychosocial Research in the Construction of Other Possible Worlds

 

Conocer, intervenir, compartir: claves para la investigación psicosocial en la construcción de otros mundos posibles

 

 

Rosa Maria Leite Ribeiro PedroI; Mariana de Castro MoreiraII

IProfessora Titular do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Áreas de interesse: tecnologias, produção de subjetividade e processos de construção de conhecimento, estudos CTS, cidades inteligentes. Psicóloga. Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). E-mail: rosapedro@globo.com
IIProfessora adjunta no Curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF/Rio das Ostras). Áreas de interesse: Psicologia, Educação e processos de construção de conhecimentos. Movimentos Sociais, Organizações da Sociedade Civil e Políticas Públicas. Doutora e mestra em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/IP/Eicos). E-mail: marianacastromoreira@id.uff.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1989-8936

 

 


RESUMO

Partindo das interpelações impostas pelo atual cenário atravessado por uma pandemia sem precedentes, o presente artigo busca refletir sobre a construção de conhecimento desde uma perspectiva psicossocial. Para tanto, dialoga tanto com as heranças que renovaram o campo a partir da chamada "crise da Psicologia Social" nas pesquisas realizadas na América Latina e no Brasil - que se expressam em autores tais como Sílvia Lane, Paulo Freire, Inacio Martín-Baró, Maria Inácia d'Ávila - quanto com autores do campo ciência-tecnologia-sociedade (CTS) que têm problematizado os modos de fazer pesquisa e de fazer pesquisa nas ciências sociais - dentre os quais destacamos Bruno Latour, Donna Haraway, Vincianne Despret, Isabelle Stengers. Propomos, inicialmente, dessubstancializar a noção de psicossocial e, a partir daí, avançar na proposição de uma pesquisa situada, aterrada, tecida com aqueles com quem pesquisamos, tendo como balizamento a proposição cosmopolítica, entendida como possibilidade de composição de um mundo comum, articulado e heterogêneo.

Palavras-chave: Pesquisa psicossocial. Conhecimento situado. Cosmopolítica.


ABSTRACT

Starting from the challenges imposed by the current scenario, crossed by an unprecedented pandemic, this article seeks to reflect on the construction of knowledge from a psychosocial perspective. Therefore, dialoguing so much with the heritages that renewed the field from the so-called "crisis of Social Psychology and the incorporation of French Psychosociology in research carried out in Latin America and Brazil" - which are expressed in authors such as Sílvia Lane, Paulo Freire, Inacio Martín-Baró, Maria Inácia D'Ávila -, as with authors from the field STS (science-technology-society), who have problematized the ways of doing research and research in the social sciences - among which we highlight Bruno Latour, Donna Haraway, Vincianne Despret, Isabelle Stengers. We propose, initially, to desubstantialize the notion of psychosocial and, from there, to advance in the proposition of a situated, grounded research, woven with those we research, based on the cosmopolitical proposition, understood as the possibility of composing a common, articulated and heterogeneous world.

Keywords: Psychosocial research. Situated knowledge. Cosmopolitics.


RESUMEN

A partir de los desafíos que impone el escenario actual, atravesado por una pandemia sin precedentes, este artículo busca reflexionar sobre la construcción del conocimiento desde una perspectiva psicosocial. Por tanto, dialogando tanto con las herencias que renovaron el campo desde la llamada "crisis de la Psicología Social y la incorporación de la Psicosociología francesa en las investigaciones realizadas en América Latina y Brasil" - que se expresan en autores como Sílvia Lane, Paulo Freire , Inacio Martín-Baró, Maria Inácia D'Ávila -, al igual que con autores del campo CTS (ciencia-tecnología-sociedad), que han problematizado las formas de hacer investigación e investigación en las ciencias sociales - entre los que destacamos a Bruno Latour, Donna Haraway, Vincianne Despret, Isabelle Stengers. Proponemos, inicialmente, desustancializar la noción de psicosocial y, a partir de ahí, avanzar en la proposición de una investigación situada, fundamentada, tejida con los que investigamos, teniendo como faro la proposición cosmopolítica, entendida como la posibilidad de componer un mondo común , articulado y heterogéneo.

Palabras clave: Investigación psicosocial. Conocimiento situado. Cosmopolítica.


 

 

Considerações iniciais

Este artigo foi escrito em junho de 2021, na cidade do Rio de Janeiro. Nem em nossas projeções mais improváveis imaginaríamos que o mundo estivesse, há mais de um ano, transtornado pela presença e circulação de uma entidade invisível. O vírus Sarscov 2, identificado em Wuhan, na China, avança para além das fronteiras provincianas e se faz sentir nos diferentes cantos do planeta, desafiando, com o seu faz-fazer,1 nossos conhecimentos e nossos modos de ser.

Por se tratar de um vírus novo, para ele não temos defesas "naturais", nem tampouco medicamentos de eficácia comprovada.2 Seus efeitos no organismo humano surpreendem, desde os assintomáticos, passando pelos que têm sintomas leves, até os que experimentam condições mais graves, capazes de matar. Na tentativa de compreender o modo de ação do vírus, cientistas se articulam em redes de pesquisa, constatando que as vulnerabilidades acentuam a gravidade dos sintomas, bem como sua letalidade. Mas não apenas as vulnerabilidades fisiológicas, que acometem cardiopatas, portadores de doenças respiratórias, pessoas imunodeprimidas, obesos mórbidos. Também as vulnerabilidades sociais - que incidem sobre a parcela da população que vive em condições bastante desfavoráveis, e que depende dos sistemas públicos de saúde, já tão precarizados em nosso país - podem matar.

As diferenças na capacidade de enfrentamento dessa situação - intensas, sobretudo em um país que comporta tantas desigualdades como o nosso - proliferam por todos os lados. Como seguir as recomendações de lavagem frequente das mãos em localidades que mal dispõem de água encanada? Como manter as pessoas em casa, quando muitos não têm emprego formal e não conseguem prover seu sustento? Como manter as pessoas em casa, com distanciamento, quando famílias numerosas habitam domicílios com um único cômodo? Como saber se o indivíduo que vive em situação de vulnerabilidade social também porta alguma doença que agravaria a contaminação quando os programas de saúde da família encontram-se igualmente precarizados?

Não nos surpreende, portanto, que a cartografia dessa paisagem devastadora, para além de desafiar os cientistas no campo biomédico, também coloca questões aos estudos psicossociais. Somos convocados a "dar respostas" para a crise, mas será que sabemos formular as perguntas? É Bruno Latour quem nos alerta para a falácia da ideia de crise que, com seu caráter passageiro, impede que nos demos conta de que estamos experimentando uma mutação sem precedentes, uma mutação ecológica, duradoura e irreversível: "Temos boa probabilidade de sair da primeira, mas não temos nenhuma chance de 'sair' da segunda" (Latour, 2020, p. 108). Segundo Latour, o novo coronavírus promove uma espécie de "globalização" mais poderosa do que aquela promovida pelas grandes corporações: "se o objetivo é conectar bilhões de humanos, os micróbios estão aí para isso mesmo!" (Latour, 2020, p. 109).

Paradoxalmente, no entanto, a globalização posta em cena pelo vírus tem o poder de desafiar os sistemas econômicos neoliberais, com a necessidade de oferecer programas de apoio que fazem ecoar o fantasma do estado de bem-estar social, pois a desproteção dos mais vulneráveis pode vulnerabilizar a todos. É justamente nessa pequena fresta que Latour nos convoca a pensar e agir, a nos tornarmos interruptores da globalização, o que implica "aprender a selecionar cada segmento deste sistema pretensamente irreversível, a questionar cada uma das conexões supostamente indispensáveis e a experimentar, pouco a pouco, o que é desejável e o que deixou de sê-lo" (Latour, 2020, pp. 111-112).

Fazer essa reflexão, desde o lugar da construção de conhecimento na dimensão psicossocial, é o convite que dirigimos ao leitor com o presente artigo. Temos como companheiros nesse percurso autoras e autores que configuraram um campo psicossocial para a pesquisa na América Latina e, "desde o sul", tomando-os como heranças, a partir das quais nos conectamos com pesquisadoras e pesquisadores do campo CTS - ciência-tecnologia-sociedade -, que interrogam a naturalidade com que nos apoderamos de um social como substância evidente por si, defendendo perspectivas localizadas, situadas, as quais podemos e devemos aterrar.

 

Em busca de construir outros olhos de ver e modos de conhecer-intervir: reconhecendo as heranças

Uma paisagem turbulenta e incerta nos impele a reconstruir olhos de ver e modos de conhecer-intervir. É como se as categorias anteriormente utilizadas não mais dessem conta dos desafios e dos cenários que nos interpelam, materializados em novos territórios, novas corporalidades e processos de subjetivação outros.

Já nos anos 1990, o sociólogo Boaventura Sousa Santos (1995, p. 322) parecia antever o que estaria por vir, ao proclamar que

a verdade é que, depois de séculos de modernidade, o vazio do futuro não pode ser preenchido nem pelo passado nem pelo presente. O vazio do futuro é um tão-só futuro vazio. Penso, pois, que, perante isso, só há uma saída: reinventar o futuro, abrir um novo horizonte de possibilidades, cartografado por alternativas radicais às que deixaram de o ser.

Suas proposições fazem ressonância com as ideias de Latour (2020), ao desfazer a clássica contraposição entre tempos de crise e tempos de normalidade. Em livro recente sobre a pandemia e suas imposições pedagógicas, Santos aponta que o próprio modo de produção capitalista, em seu acirramento neoliberal, faz com que vivamos em um constante estado de crise (Santos, 2020). A ideia de crise pressuporia algo de momentâneo, ou um período a ser superado, recompondo certa estabilização em seguida. No entanto, paradoxalmente, a crise em que estamos metidos hoje parece se colocar como a causa evocada para explicar o emaranhado de desigualdades e disrupções que nos perpassam.

Assim é que, em muitos países da América Latina e, especialmente, no Brasil, torna-se cada vez mais comum encontrarmos narrativas que buscam justificar, por exemplo, o desmonte dos serviços públicos, e notadamente das políticas públicas de saúde, educação e assistência social, além da própria precarização das condições de trabalho, como originárias de uma crise financeira. Uma vez mais, Santos (2020) nos ajuda a compreender que o verdadeiro objetivo de disseminar uma ideia de crise permanente é não enfrentar o problema da concentração de riquezas e a iminente catástrofe ecológica a que estamos assujeitados. Para o autor, a pandemia seria uma alegoria e marcaria o fim de um ciclo e, simultaneamente, o início do século XXI. Logo após lançar "A cruel pedagogia do vírus", Boaventura (2021, p. 15) nos chama a conhecer "O futuro começa agora" e diz:

Este livro foi escrito entre o medo e a esperança, tal como um e outra nos confrontam no início do século XXI. O presente acabou sem nos darmos conta. Como nos ensinou Eric Hobsbawm, os séculos nunca começam no dia 1º de janeiro do primeiro ano de cada novo século. Começam quando imprimem a sua marca no mundo, ou seja, quando inscrevem a sua aura ou o seu trauma específico nos corpos de vastas camadas da população em diferentes partes do mundo. [...] O novo século começa agora, em 2020, com a pandemia, e aconteça o que acontecer. E, no entanto, um começo diferente dos anteriores. Se for apenas o começo de um século de pandemia intermitente, haverá nele algo de fúnebre e crepuscular, o início de um fim. Por outro lado, pode ser também o começo de uma nova época, de um novo modelo civilizacional.

O que restaria ou o que caberia a nós, professoras e pesquisadoras situadas no campo psi e, mais especificamente, na interface entre a Psicologia Social e a Psicossociologia? A partir do reconhecimento de certos esgotamentos e radicais rupturas, temos sido interpeladas pela premência de nos constituirmos outramente, tecendo novos possíveis no campo das intervenções e nos modos de conhecer. Ao mesmo tempo, temos buscado aprender com a ideia de que construir um presente-futuro outro também nos faz olhar as práticas que experimentamos, no passado, reconhecendo aí algumas de nossas heranças. Esse exercício inspira-se não pelo compromisso com a repetição dos mesmos caminhos, mas, sobretudo, pela possibilidade de levar adiante diferentemente o que se herdou, o que envolve necessariamente certos deslocamentos.

Nesse reconhecimento de nossas histórias e heranças aí engendradas, tomamos como ponto de partida o período que ficou conhecido como "crise da Psicologia Social"3 e também as contribuições da Psicossociologia francesa, que, ao se hibridizar com as perspectivas latino-americanas, contribuíram para modelar perspectivas mais engajadas no campo social. Tomamos esses dois "acontecimentos" como analisadores do tempo presente, ao gerar fraturas e rupturas e, simultaneamente, potencializar novas análises, novos possíveis, novos fluxos e ciclos de vida.

Emergindo de modo peculiar na América Latina, nas décadas de 1970 e 1980, o que chamamos de período de crise da Psicologia Social aponta a premência de repensarmos e de recriarmos modos de produção de conhecimentos a partir de pesquisas e de intervenções situadas e implicadas. Como aponta Fonseca (1998, p. 39), a crise da Psicologia Social, "longe de constituir um fenômeno localizado, conjuntural e específico, tem suas raízes em uma problemática muito mais geral que atinge a própria concepção da racionalidade científica".

Nesse período, o campo psi se viu convocado pelas demandas e transformações sócio-históricas que emergiam no Brasil e em outros territórios da América Latina. O cenário político desses países, nos anos 1960 e 1970, é marcado pela ditadura militar, sendo caracterizado pela forte repressão que atinge diferentes camadas da sociedade civil, sobretudo os intelectuais, artistas e políticos de oposição. Movimentos populares - operários, estudantis, de classe, urbanos e rurais, entre outros - começam a se organizar, denunciando não só o sistema político, como também as desigualdades e injustiças sociais. Paralelamente, algumas das "contradições existentes na realidade social vão criando situações concretas na vida das pessoas, sobre as quais vários profissionais passam a atuar" (Freitas, 1996, p. 59).

Silvia Lane (1994, pp. 67-68), importante referência desse movimento, aponta que

Na América Latina esta crise assumiu também um caráter político. As ditaduras militares, com seu poder repressivo, as injustiças sociais, a opressão sob a qual a maioria dos povos vivia nas décadas de 60 e 70, faziam-nos questionar não só o nosso papel de pesquisadores como a própria Psicologia Social. Ela, que se apresentava na década de 50 como o ramo da Psicologia que contribuiria para resolver os grandes problemas da humanidade, parecia a nós, neste período, que apenas subsidiava a opressão, a manipulação política, a manutenção do status quo.

Além de Sílvia Lane - que introduz no Brasil a Psicologia Social com base no materialismo histórico-dialético, contribuindo para que passemos a compreender o sujeito como produto e produtor de nossa história -, é fundamental lembrar o trabalho de Martín-Baró (1980/2017), psicólogo social e jesuíta de El Salvador, que tomou as relações de opressão como ponto de partida para sistematizar a Psicologia da Libertação e reafirmar uma práxis comprometida com a transformação da ordem social. Nas palavras do autor,

não é uma questão de intencionalidade: colocar uma ciência fundamentada em termos individualistas e viciados a serviço da comunidade, só resultaria na reintrodução ou manutenção das necessidades e vivências do homem "capitalista". A questão é transformar os próprios esquemas de compreensão e de trabalho a partir da perspectiva do povo salvadorenho. Dito de outra maneira, devemos redefinir os próprios fundamentos da ciência psicológica. (Martín-Baró, 1980/2017, pp. 28, 29).

Falar da luta contra os modos de opressão nos leva necessariamente a reencontrar Paulo Freire e reconhecer que, a partir de sua perspectiva dialógica, crítica e problematizadora, começamos a aprender uma nova forma de pensar e fazer pesquisa, reconhecendo e situando o outro como sujeito de sua história. Muitos psicólogos sociais vão se inspirar na experiência de Paulo Freire para realizar trabalhos institucionais e comunitários em uma perspectiva crítica e implicada. Maria Inácia D'Ávila, por exemplo, reconhece em Paulo Freire uma inspiração para o desenvolvimento de suas pesquisas participativas de caráter emancipatório (D'Ávila, 2000). Para Freire (1996, p. 70),

O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.

É dessa forma que a Psicologia Social das décadas de 1970 e 1980 será marcada pelo surgimento de inúmeras e diversificadas práticas voltadas aos "urgentes problemas das sociedades latino-americanas, para os quais uma prática centrada na adoção acrítica de modelos importados não tinha respostas adequadas nem eficientes" (Montero, 1994, p. 27).

Esse panorama levou ao questionamento da importação acrítica de modelos e referenciais e, ao mesmo tempo, à construção de saberes e práticas coerentes com nossas realidades. Isso refletiu, inclusive, no aumento de referências a autores "nossos". Conforme aponta Bernardes (1998, p. 31), "contextualizada, histórica, preocupada com a cultura, valores, mitos e rituais, brasileiros e latino-americanos em geral, já não veem mais necessidade de importação desenfreada de teorias e métodos cientificistas".

Outro acontecimento transformador da Psicologia Social se deu a partir das contribuições da Psicossociologia francesa que, embora "nascida" em terras outras, foi aqui "traduzida", tensionando o modo tradicional de se produzir conhecimento no campo social, sobretudo ao reafirmar a realidade em sua complexidade, suplantando a dicotomia indivíduo/sociedade e descortinando novas abordagens metodológicas, interdisciplinares, participativas e contra-hegemônicas. A despeito de ser definida por Maisonneuve (1977) como um campo autônomo, uma espécie de "ciência charneira" - por se expressar no plano das interações entre os processos sociais e psíquicos -, a Psicossociologia figura para grande parte dos pesquisadores do campo social como uma "ciência em construção e em movimento" (D'Ávila & Pedro, 2003, p. 7), cujas bases conceituais, métodos e campos de atuação não se restringem à junção da Psicologia com a Sociologia. Ao recusar o psicologismo de uma visão excessivamente individualista do sujeito psicológico e também os excessos do sociologismo, no qual o indivíduo seria o reflexo das estruturas sociais dominantes (Farr, 2013), os estudos psicossociais abrem um campo de investigação em que as condições concretas da existência não podem ser desconsideradas. Colocava-se em questão, sobretudo, o modo de lidar com os pesquisados, tradicionalmente tratados como material inerte, sem levar em conta o sentido que os atores davam às suas vidas e às suas ações. É assim que os diferentes matizes da Psicossociologia vão contribuir para aproximar a Psicologia Social da vida cotidiana, buscando articular pesquisa e intervenção, "[...] com vistas a ações transformadoras das relações institucionais, comunitárias e interpessoal" (Irving, 2018, p. 141).

Como afirma Maria Inácia D'Ávila (2000), o chamamento inter/transdisplinar provocado pela Psicossociologia interpela aquilo que deveria ser uma "vocação natural" da Psicologia Social, aproximando-a do conhecimento comum, do vivido, implicando o pesquisador na sua prática. Uma Psicologia crítica e sensível aos problemas comunitários e às situações de exclusão. Essa Psicossociologia conectada com as questões "do sul" é desenvolvida, sobretudo, nas comunidades desfavorecidas (D'Ávila, 2000), ocupando-se dos problemas ligados à sustentabilidade (Maciel & Souza, 2018; Irving, 2018), criando estratégias metodológicas participativas inovadoras, como é o caso do uso do vídeo e da imagem na pesquisa, destacando-se a contribuição de Maria Inácia D'Ávila (Jodelet, 2018).

Reunir, mesmo que brevemente, essas marcas recentes de nossa história parece ser promissor para compreender - e tornar um pouco mais possível - os dias atuais, reinventando nossos entendimentos sobre o que chamamos de psicossocial e, em decorrência, ressituar nossas intervenções e modos de conhecer. A partir desses dois movimentos, buscamos afirmar o processo de construção de conhecimentos como potência de criação de mundos, como modo de composição que envolve o estar junto com aqueles que pesquisamos.

 

Dessubstancializando o psicossocial: associações e controvérsias

Em uma obra de extrema beleza, Vinciane Despret e Isabelle Stengers (2011) recorrem a uma fábula para tentar responder à pergunta: como cuidar das nossas vivas e intensas heranças? Para as autoras - que se autodenominam "filhas infiéis de Virginia Woolf" -, a fábula ajuda a dar sentido aos caminhos que percorreram ao longo de suas trajetórias acadêmicas e àquilo que têm produzido desde o lugar de pesquisadoras que fazem ciência no feminino. Honrar essas heranças, para elas, não significa fazer as mesmas coisas que suas antecessoras fizeram, mas antes levá-las adiante, transformando os problemas a partir de outras conexões.

É nesse sentido que propomos desdobrar alguns dos acontecimentos que transformaram a Psicologia Social e a Psicossociologia. Nosso primeiro movimento consiste, então, em problematizar o próprio sentido de "psicossocial", tomando-o como um problema que buscaremos explorar com outras conexões, de modo a honrar - portanto, renovar - as questões por ele abertas.

Comumente, a palavra "social" - quando associada à Psicologia - é utilizada para designar uma espécie de "social-substância", no qual os humanos, eles mesmos, se organizam e têm suas condutas determinadas. Os fenômenos são ditos sociais; as questões, sociais. Do mesmo modo, dizemos que determinado problema é social, e certas ações são empreendidas como efeitos de sua influência. Assim, diz-se social para qualificar, justificar e explicar uma realidade estável e pronta, sem que se problematize muitas vezes que elementos estão aí atuando.

Para abordar o social de outro modo, trazemos algumas noções inspiradas na Teoria Ator-Rede, formulada pelo sociólogo Bruno Latour, no âmbito dos Estudos CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade). Afirma Latour (2008) que o social não deveria ser tomado como o que explica ou qualifica alguma coisa, mas o que deve ser explicado. Uma espécie de jogo de forças em constante disputa que, vez por outra, se estabiliza em uma forma cujos contornos conseguimos discernir. Antes um movimento de reagrupamento e reassociação dos mais variados atores do que um contexto no qual a vida acontece. Isso parece decisivo para transformar um problema - sustentarmos uma definição naturalizada de social - em fonte de problematização e pesquisa: de que é feito o social? Como somos feitos no social? Acrescenta ainda Latour que esse social não é feito apenas dos humanos e suas interações, mas emerge como um coletivo heterogêneo, em que é permitido também aos não humanos desempenhar o papel de atores (ou "actantes"),4 pois, assim como os ditos "atores sociais", estes estabelecem associações e participam do curso da ação, ou seja, também possuem "agência". Assim, pensar como o sujeito é feito envolve levar em conta os coletivos sociotécnicos que fazem o social.

Inspiradas pelos trabalhos de Bruno Latour e de outros sociólogos da linhagem CTS, sustentamos a pertinência e fertilidade da perspectiva sociotécnica para a pesquisa psicossocial, partindo da consideração de que o que convencionamos chamar de "campo psicossocial" não pode ser explicado apenas por suas influências, contradições, interesses e tensões internas - os humanos entre si -, mas seria um efeito heterogêneo de agenciamentos entre humanos e não humanos. Nesse cenário, os objetos técnicos e os outros não humanos que permeiam nosso cotidiano emergem como agentes/atores capazes de produzir (em nós e conosco) transformações, configurando processos que designamos como sociotécnicos. Mais do que investigar o papel de cada agente isoladamente, somos convidados a rastrear os efeitos que os agenciamentos de diferentes atores (humanos e não humanos) podem produzir. Um foco, portanto, menos nas identidades e mais nas redes ou nos coletivos.

Se admitirmos com Latour que o social não é um adjetivo ou um "material" de que somos feitos, mas um efeito de conexões, nunca dado de antemão, torna-se necessário rastreá-lo para compreender sua composição. Assim, social não seria nosso ponto de partida capaz de qualificar algo - a Psicologia, por exemplo -, mas um ponto ao qual se chega, e nem sempre pelos mesmos caminhos. Seguindo essa linha de raciocínio, sustentamos que também "o psicossocial" poderia ser submetido a essa mesma problematização, tornando instigante rastrear, a cada novo arranjo, como a dimensão psicossocial se compõe, local e materialmente. Isso porque há muitas maneiras de as entidades se agregarem, portanto, não há apenas um, mas múltiplos agregados psicossociais. E para apreender essa composição parcial e variável, privilegiamos um "ver de perto", um olhar que se deixa afetar, que segue as práticas e aposta no que os atores/actantes têm a dizer.

O termo rastrear que usamos aqui não é casual. A sigla para Teoria Ator-Rede em inglês (ANT - Actor-Network Theory) também significa "formiga", e serve bem para designar esse pesquisador como "um viajante cego, míope, viciado em trabalho, farejador de pistas e cooperativo" (Latour, 2008, p. 24). Em vez de mirar do alto de panoramas, o pesquisador-ANT se arrasta como uma formiga, "[...] seguindo por caminhos obscuros e pequenos [...] buscando as mínimas pistas de associações, sem pegar carona em uma 'ordem social' pré-existente" (David, 2018, p. 18). Assim como um detetive que rastreia as ruelas enigmáticas de seu caso investigativo, devemos seguir as pistas que aparecem a cada momento, os mediadores que nos convocam a desviar, construir caminhos, costurar circuitos, atentando para o que nos ensina Latour (2008, p. 86): "registrar, não filtrar; descrever, não disciplinar". Desse modo, devemos seguir tais indícios, aplainando um terreno ruidoso, seguindo apenas o terreno sinuoso dos deslocamentos, sem antecipar qualquer explicação que "economize" a tarefa das descrições detalhadas. E sem desconsiderar que toda essa tessitura psicossocial não é feita apenas dos humanos e suas interações, mas emerge como um coletivo heterogêneo em que também não humanos estabelecem associações e participam do curso da ação. Cabe, assim, levar em conta os coletivos sociotécnicos que performam o psicossocial.

Evidentemente que esse modo de conceber o tecido psicossocial demanda um método capaz de rastrear as conexões e as processualidades, recurso que encontramos na Cartografia de Controvérsias (Pedro, 2010). Sustenta Latour que a Cartografia de Controvérsias é uma "ferramenta" para o estudo prático das redes, que tem como principal diretriz metodológica "seguir os atores em ação", o que possibilita apreender a rede "tal como ela se faz" (Latour, 2005). Seu foco não são as regularidades ou o que se repete, podendo ser, de antemão, categorizável; mas o que está em disputa, os argumentos e jogos de forças por meio dos quais alguns enunciados e algumas práticas vão se estabilizando, de modo que, muitas vezes, passamos a tomá-los como "naturais".

Quando tomamos o psicossocial como um campo de controvérsias, de certo modo, interrogamos as naturalizações, voltando nosso foco para as incertezas que podem nos indicar o caminho percorrido para que cheguemos a experimentar algo como "estável". A metáfora do magma (dos vulcões) é bastante interessante para ilustrar o que entendemos como controvérsias (Venturini, 2010). O magma é um estado da matéria que não se reduz a uma consistência líquida, completamente fluidificada e efêmera, nem tampouco pode ser assimilado a um estado completamente solidificado e estabilizado. Assim como o magma, tomamos nossos campos de investigação na constante transformação e afetação dos seus estados, ora se solidificando e encontrando consensos para as controvérsias, ora se liquefazendo, dissolvendo seus acordos e entrando em disputas e embates.

Cartografar as controvérsias é, portanto, ir na contramão das naturalizações, dos determinismos. Com elas aprendemos que, se chegamos aqui, é porque houve embates, disputas, houve vencedores e vencidos, que somos o efeito de outras redes cujas conexões podemos rastrear. Aprendemos também que as redes que buscamos cartografar tampouco estão lá, dadas de antemão, mas se produzem a partir dos nossos movimentos como pesquisadores. Contornos vão se delineando na justa medida de nossos movimentos. É nesse sentido que a cartografia de controvérsias implica na dimensão política do trabalho de pesquisa e no papel estratégico do pesquisador na tarefa de ampliar a gama de associações, de articulações (Pedro, 2010). Configura-se ainda em uma oportunidade de nos engajarmos em perspectivas localizadas, situadas, responsáveis, que explicitam quem participa de sua produção.

 

Política Ontológica e Cosmopolítica como pistas para a composição do comum

Para levarmos adiante essa proposta de dessubstancialização do psicossocial, é preciso igualmente, conforme apontamos, enfrentar o desafio de articular novos modos de construir conhecimentos e intervir, apostando em proposições situadas e partilhadas. Também aqui nos fazemos acompanhar dos autores do campo CTS, além de autoras do campo da epistemologia política.5 Em trabalhos anteriores,6 apontamos mais uma vez as ideias de Santos (2006, p. 18), ao analisar que a ciência moderna "propôs-se não apenas compreender o mundo ou explicá-lo, mas também transformá-lo. Contudo, paradoxalmente, para maximizar a sua capacidade de transformar o mundo, pretendeu-se imune às transformações do mundo". Assim, completa o autor, a ciência moderna pressuporia que, ao mesmo tempo em que ela é feita no mundo, não seria feita de mundo. O trabalho da ciência seria, nessa perspectiva, o de descrever ou retratar uma realidade "lá fora" que existiria independentemente de nossa vontade, pesquisa ou ação. O ideal dessa forma de pensar o conhecimento científico é aproximar-se, o máximo possível, da verdadeira e fiel representação da realidade. Nas palavras de Albuquerque Junior (2007, p. 22),

Bruno Latour e Michel Foucault nos falam que esta separação ou distinção radical entre o mundo das coisas e o mundo das representações, entre a natureza e a cultura, entre o que seria material e objetivo e o que seria simbólico e subjetivo, entre a coisa em si e a construção social do conhecimento, entre o objeto e o sujeito é um produto da sociedade moderna e um dos seus pressupostos fundamentais [...] O procedimento científico no ocidente moderno se caracterizaria por esta prática de purificação, pela rejeição de aceitar as misturas, as relações, as superposições, as mestiçagens.

Assim, "em nome da ciência", desde o século XIX, temos buscado submeter o mundo a uma ordem simples, estável, racional e linear, alerta Isabelle Stengers (1990). E, para isso, o pesquisador e seu trabalho ficam silenciados ou invisíveis. Também John Law (2004), em seu After the method: mess in social science research, reflete sobre o que temos feito quando, em nossos campos de pesquisa, lidamos com realidades múltiplas, híbridas e heterogêneas. O autor afirma que faz parte do próprio realismo euro-americano - como denomina o paradigma moderno - excluir tudo que se coloca como confuso, inesperado ou fora da ordem. Marcia Moraes (2010, pp. 33-34), analisando a obra do autor, explica que

Presença diz respeito ao que comparece em nossos relatos de pesquisa. Ausência é aquilo que, mesmo não estando de fato presente, é um pano de fundo, uma copresença. E alteridade, ou alterização, é o que é tornado outro, excluído, deixado de fora. O manejo da presença, da ausência e da alterização faz toda a diferença. O que deixamos de fora dos nossos relatos? Por que o fazemos? O que incluímos? Por que incluímos em nossos textos estes e não aqueles relatos? Para Law (2004), tais perguntas são capitais nos debates sobre método.

Problematizar a construção do conhecimento aproxima-nos, especialmente, do debate metodológico, não com vistas ao estabelecimento de um "como fazer", mas como possibilidade de colocar em questão "como as coisas são feitas". Nesse processo, queremos nos afastar de olhares e de modos de intervenção pretensamente isentos e universais, marcas do ideário eurocentrado, que acabaram por produzir subjetividades subalternizadas e desumanizantes (Moreira, 2021). Na contramão, os cenários atuais exigem que nos situemos nos territórios, aterrando nossas práticas e explicitando nossos enquadramentos, escolhas e intencionalidades. Seguimos aqui, também, as pistas deixadas por Donna Haraway (1995), para quem a recusa da neutralidade não significa abrir mão da objetividade. Muito ao contrário, para a autora, a objetividade emerge de sua corporificação específica e particular, de tal modo que a dicotomia sujeito-objeto se desfaz em prol das conexões heterogêneas que mesclam diferentes atores envolvidos na dinâmica da pesquisa.

Saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo do senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em sua autoridade de conhecimento "objetivo". (Haraway, 1995, p. 36).

Para Haraway (1995, 1995, p. 21), a localização do conhecimento, a perspectiva parcial, situada, além de objetiva, é a única capaz de nos precaver contra posicionamentos irresponsáveis.

A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva. Esta é uma visão objetiva que abre, e não fecha, a questão da responsabilidade pela geração de todas as práticas visuais. A perspectiva parcial pode ser responsabilizada tanto pelas suas promessas quanto por seus monstros destrutivos. [...]. Desse modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver.

Sustentar a pesquisa a partir de perspectivas parciais implica igualmente no reconhecimento da realidade não como algo dado, mas como performação a partir de relações heterogêneas. Ou seja, a realidade que comparece em nossas pesquisas não seria um "decalque" do mundo que o representa de forma fiel, mas efeito das conexões que entretemos localmente, fruto de articulações e escolhas que, como já apontamos anteriormente, envolve um jogo de ausência, presença e alterização (Law, 2004). Reconhecemos, assim, que nossas pesquisas produzem versões da realidade que, no dizer de Vinciane Despret, não se definem no registro da verdade ou da mentira, mas no registro do devir. Diz Despret que a versão não desvela o mundo nem o vela, ela o faz existir num modo possível. A versão não é o feito de um homem sozinho, ela é fonte e fruto da relação, ela é negociação que se desvia, se transforma, se traduz (Despret, 1999).

Com essa perspectiva, conhecer não significa representar uma realidade "lá fora", mas antes acompanhar percursos, elos e conexões, entendendo que, ao mesmo tempo em que pesquisamos e narramos nossos campos de pesquisa, problematizamos e produzimos realidades e subjetividades.Com Rosa Pedro (2003, p. 15), insistimos que

O conhecimento não deveria ser entendido apenas como o que busca apreender o que o mundo é, mas, sobretudo, o que produz o mundo [...]. Assim, redes devem ser tomadas como ferramentas estratégicas, nas quais se buscam não apenas os movimentos já constituídos, mas antes, os fluxos em constituição, em que nossas próprias ações criam conhecimento, criam redes, criam mundo.

Assim, o fazer pesquisa constitui-se em um modo de compor COM os nossos pesquisados um mundo comum e, nesse sentido, encerra uma Política Ontológica (Mol, 2008), ao reconhecer que "a atividade do pesquisador é simultaneamente epistemológica, política e ética" (Pedro, 2010, p. 93). Também Moraes (2014, p. 132) enfatiza a dimensão política do pesquisar, destacando seu caráter performativo: "[...] pesquisar e intervir são inseparáveis, de modo que representar o mundo é uma ação de produzi-lo, ou seja, pesquisar é performar certos mundos, é delinear fronteiras, fazer movê-las, alargá-las, problematizá-las" (Moraes, 2014, p. 132).

A noção de cosmopolítica, proposta por Isabelle Stengers (2018), nos ajuda a avançar um pouco mais, no entendimento dessa inescapável tarefa política do pesquisador. Para a autora, a cosmopolítica encontra seu sentido nas situações concretas, nas práticas, indicando que precisamos estar atentos para o que se produz localmente sem nos precipitarmos imaginando-nos detentores de um saber universal capaz de sobredeterminar todos os outros. Ao mesmo tempo, o cosmos da cosmopolítica não visa produzir qualquer unificação - outra armadilha que poderia nos levar a "calar" os demais saberes em uma pseudopacificação. Conferir uma dimensão cosmopolítica aos problemas implica em agenciar mundos múltiplos e, por vezes, divergentes.

Com a perspectiva cosmopolítica, Stengers (2018) aposta na possibilidade de abrirmos um espaço de hesitação que faça reverberar nossas inquietudes e incertezas diante da ideia de um mundo comum, convergente e transcendente. Questiona-se o próprio entendimento de que a ciência, e só ela, produziria regimes de verdade, silenciando outros modos de conhecer. Não se trata de simplesmente tolerar, condescendentemente, outros modos de ser e de viver, mas de multiplicar vozes e versões, não raro divergentes entre si, assim como em relação às nossas certezas. Reside aí a utopia da perspectiva cosmopolítica: ao afastar-se de um ideal homogêneo e consensual, exige-se que se reconheça a construção de conhecimentos como embate, luta, disputa, e não como silêncio, silenciamento ou paz. Nas palavras da autora,

a utopia não autoriza, portanto, a denunciar este mundo em nome de um ideal, mas ela propõe uma leitura dele indicando por onde poderia passar uma transformação que não deixe ninguém intacto, isto é, que coloque em questão todos os "teríamos apenas que..." que designam a simplista vitória dos bons contra os maus. E a proposição cosmopolítica reitera esse tipo de utopia, carregada pela memória de que vivemos em um mundo perigoso, onde nada é óbvio. (Stengers, 2018, p. 453).

A proposta cosmopolítica de Stengers nos lembra de que não estamos sozinhos no mundo e, ao escolhermos seguir com ela, nos vemos diante do desafio de hesitar diante das nossas certezas para fazer ressoar na arena política as vozes que não podem ou não querem responder às nossas exigências, mas têm muito a propor. Como Haraway (2016) muito bem pontua, é a busca irrefreada pelo consenso que mata as possibilidades de nos colocarmos uns na presença dos outros, abertos a negociar os interesses envolvidos, na medida em que o mundo não é aquilo que garantirá uma convergência de pontos de vista, mas o que produz a operação política de composição e de articulação nos modos de ação (Stengers, 2002). Nesses termos, a adoção de uma atitude cosmopolítica exige que as decisões aconteçam de alguma forma na presença daqueles que sofrerão suas consequências. No entanto, "Tornar concreto esse 'de alguma forma' é o trabalho de praticar combinações engenhosas. [...] Chegar 'na presença de requer trabalho, invenção especulativa e riscos ontológicos. Ninguém sabe como fazer isso antes de se juntar em composição" (Stengers, 2002, p. 46).

É nesse sentido que Donna Haraway (1995) nos convoca a pensar na importância política da produção de conhecimento situado em lugar de postulados de conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis. Quando Haraway afirma que "nada vem sem o seu mundo" (1995, p. 137), ela quer dizer que não há conhecimento sem mediação, isto é, sem ser tecido em um conjunto de relações, confluentes e controversas, de conexões heterogêneas, feitas de humanos e não humanos. Entender que todo conhecimento é situado implica em engajamento; logo, fazer pesquisa é engajar-se sistematicamente em uma política de posicionamentos.

Nesses termos, em vez de amortecer, tolerar ou encerrar as disputas e posições, situar o conhecimento é apostar que essas diferenças possam se arriscar, transformar, recombinar e descobrir um comum possível nas novas alianças. Um comum que não está dado de antemão, que precisa ser composto a partir dos diferentes posicionamentos. Posicionar-se exige muito menos separação e muito mais conexão, negociação, mobilização de actantes diversos e heterogêneos, cujos movimentos reconfiguram o mundo. Nesse sentido, o mundo comum é um multiverso feito pela articulação de diferenças. Abrir mão das diferenças para habitar um mundo único significaria perder toda e qualquer possibilidade de composições.

 

Considerações finais

Neste ponto, evocamos algumas das perguntas que mobilizam este dossiê e que tomamos como interpelações durante a nossa escrita: em um cenário de incertezas, quais as possibilidades para o presente e para o futuro? De que modo podemos interrogar a Psicossociologia e o que podemos produzir nela e a partir dela, hoje? Como ressituar nossas intervenções e processos de construção de conhecimentos de modo a fazer valer nossa formação e uma atuação profissional comprometida com nossos territórios?

Iniciamos reconhecendo o cenário devastador que nos é apresentado em meio a uma pandemia, que se desdobra em múltiplas dimensões como uma rede complexa tecida por atravessamentos biomédicos e psicossociais. Olhamos para essas tramas não como realidades dadas ou naturais, mas como uma justaposição de elementos heterogêneos que se reconfiguram o tempo todo, de modo local e situado, nas práticas. Tampouco olhamos para essas tramas buscando trazer o psicossocial como substância que qualifica ou que pode ser evocada para explicar o real, mas em suas controvérsias e agenciamentos.

Seguindo as recomendações de autores ligados aos Estudos CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade), buscamos exercitar o olhar míope e farejador de pistas, seguindo alguns rastros deixados nas histórias das práticas da Psicologia Social e da Psicossociologia. Nesse movimento perscrutador, encontramos a chamada crise da Psicologia Social e a "tradução" dos referenciais da Psicossociologia francesa como importantes analisadores que marcam o questionamento da importação acrítica de modelos norte-americanos e eurocentrados, fortemente marcados pelo paradigma moderno, e a busca por construir intervenções com os sujeitos, grupos, comunidades e instituições com os quais íamos trabalhar, assumindo a transformação social como compromisso para pautar nossas ações.

Tomando esses analisadores como heranças, buscamos desdobrá-los, na direção de algumas pistas capazes de ressoar os problemas e as demandas contemporâneas. A partir da dessubstancialização do psicossocial, avançamos em nossas reflexões, encontrando a Política Ontológica e a Cosmopolítica como caminhos potentes, engendrados por outras marcas epistemológicas, ontológicas e éticas que tornam o fazer pesquisa mais interessante e interessado.

Assim, assumindo as não obviedades, as incertezas e as recalcitrâncias das paisagens atuais, acreditamos que é preciso seguir inventando o presente-futuro possível, reconstruindo cotidianamente nossas utopias e reafirmando nossas lutas em busca de psicologias aterradas, de saberes situados e de processos de construção de conhecimentos, capazes de gerar abordagens psicossociais "interruptoras" das desigualdades próprias do nosso tempo.

 

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Recebido em: 11/6/2021
Aceito em: 21/6/2021

 

 

1 Latour (2008; 2015), a partir da noção de redes sociotécnicas, considera que não apenas os humanos, mas também os não humanos estabelecem associações e participam do curso da ação, desviando as ações humanas e introduzindo uma dimensão de incerteza na construção dos fenômenos. Esse faz-fazer diz respeito justamente à incerteza do vetor da ação quanto à ideia de que, quando um atua, muitos outros passam a ação.
2 Desde o início deste ano, temos vacinas, mas ainda em quantidade insuficiente para imunizar de forma eficiente o coletivo das populações.
3 Algumas das ideias aqui presentes estão inspiradas na pesquisa de mestrado Tecendo redes de saberes e práticas: a Psicologia Social na contemporaneidade, orientada pela Professora Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro (Moreira, 2000).
4 Com o termo "actante", Bruno Latour nos convida a considerar que também os não humanos, assim como os ditos "atores sociais", podem estabelecer associações e participar do curso da ação, ou seja, também possuem "agência" (Pedro et. al., 2014).
5 Cabe aqui ressaltar que existe uma vasta contribuição latino-americana sobre produção de conhecimento e que problematizam o saber euro-centrado (Ver, a esse respeito, a coletânea organizada por Edgardo Lander, "A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas"). Nossa opção por trazermos autores do campo CTS reflete nossa trajetória nesse campo, na qual temos buscado "traduzir" e incorporar esses referenciais em estudos locais (Pedro, 2010; Pedro & Moreira, 2015; Moreira, 2014).
6 Referimo-nos aqui à pesquisa de tese de doutoramento O que foi feito, amigo, de tudo que a gente sonhou?: uma cartografia da atuação de Organizações da Sociedade Civil no fortalecimento da democracia, orientada pela Professora Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro (Moreira, 2014).

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