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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.4 São João del-Rei out./dez. 2021
Psicologia Social Comunitária e Agroecologia: uma experiência de formação no contexto amazônico
Community Social Psychology and Agroecology: A Training Experience in the Amazonian Context
Psicología Social Comunitaria y Agroecología: una experiencia de formación en el contexto amazónico
Marcelo CalegareI; Guilherme Vasconcelos TorresII; Jolorena de Paula TavaresIII; Pedro Xavier LanaIV; Quezia Amaral Silva TeixeiraV
IPrograma de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: mcalegare@ufam.edu.br
IIFaculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: guilhermevtorres98@gmail.com
IIIFaculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: jolorena_paula_tavares@hotmail.com
IVFaculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: xpedrolana@gmail.com
VFaculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: queh.teixeira@gmail.com
RESUMO
Neste artigo, temos por objetivo apresentar e discutir uma experiência da disciplina Psicologia Social Comunitária, no segundo semestre de 2018, com um grupo de agricultores de alimentos orgânicos da zona rural do município de Iranduba/AM, que segue os princípios agroecológicos. Descrevemos e discutimos a elaboração do Plano de Ação nas seguintes etapas: familiarização com os agricultores em seu cotidiano; levantamento dos problemas e necessidades; elaboração das estratégias de ação e sua colocação em prática; avaliação final. Concluímos que a aproximação com os agricultores nos trouxe valiosa bagagem para a atuação profissional por: atuarmos em um contexto rural; agirmos como parceiros, em vez de termos apenas uma escuta qualificada; ampliarmos nossas consciências sobre a realidade local amazônica, e não meramente a deles; percebermos que a alimentação e escolha de produtos orgânicos é um ato político; aproximarmo-nos da Agroecologia e de sua proposta de transformação da sociedade.
Palavras-chave: Ambientes rurais. Psicologia Comunitária. Agroecologia. Amazônia. Formação do psicólogo.
ABSTRACT
In this article we aim to present and discuss an experience of the discipline Community Social Psychology, during the second semester of 2018, along with a group of organic food farmers from the rural area of Iranduba/AM, that follows agroecological principles. We describe and discuss the elaboration of the Action Plan in the following steps: familiarization with farmers in their daily lives; survey of problems and needs; elaboration of action strategies and their implementation; final evaluation. We conclude that the approximation with the farmers brought us valuable baggage for professional performance by: acting in a rural context; act as partners, rather than just having qualified listening; broaden our awareness of the local Amazonian reality, not merely theirs; realize that eating and choice of organic products is a political act; bring us closer to Agroecology and its proposal to transform society.
Keywords: Rural environments. Community Psychology. Agroecology. Amazon region. Psychologist education.
RESUMEN
En este artículo tenemos por objetivo presentar y discutir una experiencia de la disciplina Psicología Social Comunitaria, durante el segundo semestre de 2018, con un grupo de agricultores de alimentos orgánicos de la zona rural de Iranduba/AM, que sigue principios agroecológicos. Describimos y discutimos la elaboración del Plan de Acción en los siguientes pasos: familiarización con los agricultores en su cotidiano; levantamiento de problemas y necesidades; elaboración de estrategias de acción y su implementación; evaluación final. Concluimos que la aproximación con los agricultores nos trajo valiosa experiencia para el desempeño profesional al: actuar en un contexto rural; actuar como compañeros, en lugar de simplemente tener una escucha calificada; ampliar nuestra conciencia de la realidad amazónica local, no solo la de ellos; darse cuenta de que la alimentación y la elección de productos orgánicos es un acto político; acercarnos a la Agroecología y su propuesta para transformar la sociedad.
Palabras clave: Ambiente rural. Psicología Comunitaria. Agroecología. Amazonia. Formación del psicólogo.
Introdução
Comunidade é um conceito muito utilizado na Psicologia Social Comunitária (PSC) em nossa perspectiva latino-americana, tendo múltiplas definições. De acordo com Góis (2005), todas elas apresentam elementos que são comuns: território, história e valores compartilhados; modos de vida e relações face a face; sentimento de pertença e identidade social; além de um mesmo sistema de representação social. Do ponto de vista da convivência, as relações estabelecidas em comunidade tendem a ser mais coesas devido às interações ocorrerem por meio de ajuda mútua, o que gera o estabelecimento de vínculos afetivos mais intensos. Assim, por meio da prática da PSC, buscamos fortalecer os laços entre os moradores da comunidade para ampliar o compromisso, engajamento e participação comunitária, de modo que eles tenham consciência crítica e sejam capazes de encontrar soluções para os problemas e exercer a liberdade para buscar o desenvolvimento comunitário, a emancipação e uma vida melhor (Freitas, 1998; 2014; 2015).
Por outro lado, a Agroecologia é uma prática agrícola que surgiu na década de 1930, mas somente depois de cinco décadas se estabeleceu como ciência, que se caracteriza como uma alternativa para as práticas de agricultura convencionais, por ser uma abordagem holística que leva em consideração o ser humano, o laço entre as pessoas e o ambiente. Ao buscar o desenvolvimento rural pelo equilíbrio entre os agrossistemas e a permanência das famílias nesses ambientes, a Agroecologia valoriza os saberes e desejos dos agricultores com base em técnicas ecológicas modernas e sustentáveis (Nodari & Guerra, 2015; Santos, Siqueira, Araújo, & Maia, 2014). No Brasil vigora a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, estabelecida pelo Decreto n. 7.794/2012, com definições do que é a produção de base agroecológica e de medidas para valorização da agrobiodiversidade (os produtos agrícolas tradicionais, especialmente os orgânicos) e sociobiodiversidade (os agricultores e seus modos de vida, sejam homens, mulheres, jovens, sejam idosos).
Em outras palavras, a partir de nossas lentes da PSC, podemos inferir que há na Agroecologia um princípio de busca de processos emancipatórios das comunidades rurais por meio da (re)valorização dos seus conhecimentos e da forma como relacionam-se com a natureza, aliando-se os saberes tradicionais aos princípios e utilização de técnicas que contribuem para uma produção agrícola sustentável. Trata-se de colocar em prática o "diálogo de saberes" entre os agricultores e os cientistas agronômicos, biológicos e florestais - mas também os cientistas das humanas e sociais. Do ponto de vista metodológico, a Agroecologia propõe trabalhar com processos participativos e com ferramentas amigáveis para os agricultores. Desse modo, se dá o devido reconhecimento e protagonismos aos sabedores das comunidades rurais, que, reafirmando que seus conhecimentos são válidos e importantes, se emancipam do lugar de "ignorantes" imposto dela visão epistemicida da ciência tradicional.
Além dessa maneira de fazer ciência por métodos colaborativos e participativos, que também são utilizados pela PSC, Nodari e Guerra (2015) explicaram que a Agroecologia visa trazer benefícios associados a aspectos sociais, culturais, ecológicos, de saúde, segurança alimentar, redução da pobreza, diminuição do comprometimento de renda e do endividamento familiar. Dessa feita, podemos argumentar que a transformação social visada pelos agroecólogos se centra na relação existente entre as pessoas com a terra na produção de alimentos, que está direta e indiretamente atrelada a esses outros aspectos recém-mencionados. Trata-se de uma pequena mudança que, após ganhar mais magnitude, pode gerar transformações maiores. Isso se assemelha bastante ao que defendeu Montero (2008, p. 9, tradução nossa), ao declarar que "a revolução que faz a Psicologia Comunitária é homeopática porque traz a mudança em pequenas doses". Para a autora, a PSC parte do desenvolvimento psicológico - a conscientização -, que permite controlar e obter o poder de poder transformar o contexto, o ambiente em que se vive e a sociedade, de forma paulatina.
Atualmente há um movimento crescente, nacional e internacional, agregando pessoas das mais diversas condições sociais que defendem a Agroecologia: agricultores, cientistas, educadores, filósofos, pessoas de casa, políticos, professores etc., de todas as idades, gêneros e classes sociais. Eles se contrapõem à "revolução verde" - o movimento, a partir dos anos 1960, de modernização do campo pela mecanização, insumos industriais, sementes modificadas e produção em massa de produtos homogêneos. Como vimos, o Decreto n. 7.794/2012 foi uma conquista de expressão política dos agroecologistas. Há o Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), que na quarta edição de 2018 reuniu dez mil pessoas. As instituições governamentais ligadas à produção agrícola, sejam brasileiras ou de muitos países no mundo, têm atualmente lidado com a transição entre o paradigma tradicional e o agroecológico (Landini et al., 2021). Assim, não podemos avaliar se o movimento agroecológico resultará numa profunda transformação social ou se é mais uma bandeira ilusória a que muitos se agarram. Somente com o tempo saberemos.
Por nossa leitura psicossocial da perspectiva agroecológica, podemos traçar paralelos entre a PSC e a Agroecologia: ambas prezam, acima de tudo, pela transformação social (um novo jeito de relações sociais, com a terra e de produção de alimentos), mesmo que não por uma revolução súbita, mas por mudanças paulatinas (Montero, 2003; 2008); isso é alcançável com o desenvolvimento da consciência crítica dos moradores (a valorização dos saberes tradicionais, o estabelecimento de diálogo no mesmo patamar com os cientistas, a crítica ao modelo agrícola convencional); fomenta-se o fortalecimento dos membros de uma comunidade como sujeitos históricos ativos das mudanças (Góis, 2005) - os agricultores são os protagonistas); objetiva-se a valorização e difusão dos ideais de uma vida melhor às pessoas em seus ambientes e comunidades (os agricultores poderem viver bem da produção).
Assim, podemos dizer que ambas idealizam o desenvolvimento comunitário, por meio do fortalecimento dos sujeitos pertencentes à comunidade e na trama de relações que estabelecem com outros atores sociais (Freitas, 2014). Para tanto, ambas buscam o fortalecimento comunitário, isto é, o processo pelo qual as pessoas alcançam o despertar de si mesmas e de sua importância para a vida coletiva (Câmara, 2008). Nesse processo, as duas trabalham, prioritariamente, sobre as redes comunitárias, que são as teias de relações entre as pessoas que constituem os laços sociais da comunidade, com circulação de informações e mediações, mobilização de afetos, convergências e divergências de ideias e mobilizações, solidariedade e ações coletivas para alcance dos objetivos comunitários (Araújo & Calegare, 2018).
Defendemos, portanto, que a teoria e prática da PSC encontra ressonância nos princípios da Agroecologia, pois vimos que esta busca resgatar e valorizar os modos de vida dos agricultores e os saberes tradicionais numa interação com técnicas ecológicas sustentáveis. Destacamos que, na região amazônica, os saberes tradicionais dos povos indígenas e das comunidades tradicionais a respeito das práticas agrícolas associadas a um modo de vida vêm sendo passados de geração para geração, havendo necessidade de reconhecer a ciência dos povos da floresta e seus padrões de sustentabilidade (Lira & Chaves, 2016).
Por outro lado, nem sempre os agricultores familiares têm facilidade de acesso a políticas públicas específicas para realizarem a transição do sistema convencional, com uso de agrotóxicos, para o sistema de produção agroecológica baseado nos saberes tradicionais (Assis, 2005). Assim, entendemos que, de acordo com o contexto sociopolítico em que se encontram os agricultores, pode haver falta de incentivos e impedimentos para que eles produzam, gerem renda e sejam valorizados. Apesar disso, há distintos grupos de agricultores que reagem a esse cenário não favorável, apresentando o que Câmara (2008) chamou de participação ativa dos membros de uma comunidade: resistem às dificuldades constantemente buscando meios que favoreçam melhorias para suas famílias e transformações da realidade em que se encontram inseridos.
Nesse aspecto, entendemos que o processo de conscientização pode nos ajudar a pensar sobre tais dificuldades dos agricultores, bem como superá-las. A nosso ver, o processo de conscientização se caracteriza quando o sujeito reflete criticamente sobre sua realidade objetiva e subjetiva, apossando-se daquilo que o torna ser humano: a capacidade de refletir e de agir coletivamente para transformar a si e o seu entorno, criando cultura e história, libertando-se das amarrar pessoais, sociais e políticas que lhe tolhem a liberdade (Freire, 1980). Para tanto, é fundamental o reconhecimento das questões histórico-culturais que os colocam em uma dada condição na sociedade. Após essa tomada de consciência, esse sujeito é capaz de reagir positivamente contra o fatalismo e superar discursos conformistas e de resignação (Martín-Baró, 2017).
Feitas essas considerações iniciais, neste relato de experiência temos por objetivo apresentar e discutir uma experiência vivenciada durante a parte prática da disciplina de Psicologia Social Comunitária, durante o segundo semestre de 2018, com um grupo de agricultores agroecológicos de alimentos orgânicos da zona rural do município de Iranduba/AM. Em nossa formação, a proposta da disciplina é ter metade da carga horária de parte teórica e a outra metade de parte prática, para termos a chance de colocar em uso os conhecimentos adquiridos em sala. Graças a essa atuação proporcionada pela disciplina, e que debateremos neste texto, pudemos reconhecer que a práxis do psicólogo não se restringe aos atendimentos clínicos ou à atuação em uma sala, pois pode acontecer em horizontes bem mais amplos, das maneiras mais diversas possíveis e em todos os ambientes em que existam relações humanas.
Atuamos num grupo de seis graduandos e o professor, mas para a escrita deste texto participaram apenas quatro de nós (graduandos). Como estratégia para nossa atuação, seguimos as indicações de Freitas (1998; 2014) de como construir um Plano de Ação (PA) em uma comunidade - que segue princípios muito similares à da pesquisa-ação participativa, como descreveu Góis (2005) ao tratar da ciência e prática da PSC. Está claro, portanto, que não estamos apresentando dados de uma pesquisa, e sim uma práxis psicossocial desenvolvida por nossa interação com os agricultores, que teve como norte a transformação social: talvez não uma grande revolução, mas uma pequena mudança (Montero, 2008).
Mesmo não se tratando de uma pesquisa, estávamos munidos de nossos caderninhos de campo para anotar os conhecimentos produzidos nas interações. As supervisões também eram momento de "produção de dados" (Calegare et al., 2013). Como problematizado por Freitas (2015), guiamos nossa prática comunitária pelas necessidades e interesses das pessoas, segundo os sentidos e significados que elas atribuíram às suas próprias condições de vida e que nós, por nossa leitura psicossocial, também pudemos atribuir. Das interações, geramos os encaminhamentos que foram decididos coletivamente e que geraram algumas mudanças, como veremos.
Dito isso, neste artigo apresentamos os passos que seguimos em nossa experiência na disciplina: a familiarização com os agricultores de alimentos orgânicos em seu cotidiano (com visitas semanais ao longo de um semestre); o levantamento dos problemas e necessidades vividas por eles (anotadas em caderno de campo, discutidas em reuniões nossas e validadas em novo encontro); a elaboração das estratégias de ação e sua colocação em prática (eleito coletivamente por reuniões); a avaliação final de toda atividade (em conversas com as pessoas envolvidas, algumas anotadas literalmente e com autorização verbal para reprodução das falas); e uma conclusão do que aprendemos e que levaremos para nossa futura atuação profissional. Deixamos codinomes para dar anonimato aos participantes, mas eles quiseram que os nomes dos projetos fossem mantidos para dar visibilidade. Traremos análises críticas da realidade vivenciada, que revelavam algumas contradições, dificuldades enfrentadas e acertos, o que podemos caracterizar como aspectos de sensibilidade cotidiana e histórica da prática comunitária (Freitas, 2015).
Familiarização e problematização com os agricultores de alimentos orgânicos
Nosso contato com os agricultores agroecológicos de produtos orgânicos, cujas propriedades localizam-se no Ramal do Pupunhal, na zona rural do município de Iranduba, nos entornos de Manaus/AM, aconteceu por intermédio do professor da disciplina Psicologia Social Comunitária. Ele nos convidou para realizar a parte prática da disciplina nas comunidades em contextos rurais/florestais - que apesar das semelhanças com outros contextos rurais têm peculiaridades subjacentes à região amazônica (Calegare, 2017).
Conforme explicou Freitas (1998), a inserção em uma comunidade se inicia pelos contatos prévios que alguém tem com pessoas desta. Com essa interação inicial, laços de confiança mútua e cooperação (a familiarização) vão sendo constituídos. A convivência entre os agentes internos (os comunitários) e os agentes externos (nós universitários) propicia a construção de conhecimento sobre a realidade local (a problematização) e elaboração de soluções. Seguindo esse princípio, nosso contato inicial aconteceu com os agricultores pertencentes à "Cesta Verde Dona Walda", que é um projeto de sistema de comercialização de produtos orgânicos direto da horta para o consumidor final, baseado na Agroecologia, na economia solidária e no mercado justo e responsável.
A Cesta Verde funciona por assinatura mensal e o consumidor recebe uma cesta de produtos hortifruti semanalmente, respeitando a diversidade e a sazonalidade natural da região amazônica e dos itens cultivados: folhas, raízes e tubérculos, flores e frutos (hortaliças), temperos e chás, Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) e frutas do pomar. A ideia é que o consumidor se sinta um coagricultor, compartilhando responsabilidades desde a produção, entendendo o processo produtivo, realizando visitas à horta, consumindo os produtos semanalmente e tendo uma relação de proximidade pessoal com seu agricultor(a). Por isso, o consumidor/coagricultor os chama de seu ou sua agricultora. Além disso, à produção agrícola não se subtrai a subjetividade do agricultor, o que constitui uma relação diferenciada entre consumidor e agricultor.
Assim, após o primeiro contato com a família da dona M (responsáveis pelo projeto citado) - que são os agricultores do professor -, fomos ao local onde ocorre a entrega das cestas aos consumidores, com o intuito de nos conhecermos. Fizemos os combinados de nossa interação: faríamos outras visitas nesse local aos sábados e conheceríamos também as hortas de outros agricultores de alimentos orgânicos. Dessa maneira, seria possível nos familiarizar com os agricultores e consumidores, para conhecer quais os potenciais e as dificuldades vivenciadas por eles.
Visitas às propriedades rurais
A partir das conversar introdutórias, imediatamente nos demos conta de que era necessário "ir a campo no campo", isto é, visitar as propriedades dos agricultores. Para tanto, aproveitamos um convite feito pela Rede Maniva de Agroecologia do Amazonas (Rema), da qual dona M faz parte, para participarmos de uma ação intitulada "Dia de Campo", da Semana Nacional do Alimento Orgânico, ocorrida em agosto de 2018, numa parceria com a Comissão de Produção Orgânica do Estado do Amazonas (CPOrg), cujo objetivo era aproximar consumidores e agricultores de produtos orgânicos.
Nesse dia, tivemos a oportunidade de visitar três propriedades em Iranduba. Durante essas visitas, aconteceram conversas informais, que propiciaram uma maior compreensão sobre a rede de relações da comunidade de agricultores. Entre as propriedades visitadas, estava a de dona M e uma outra do senhor J, que faz parte do projeto "Comunidade que Sustenta a Agricultura" (CSA), que é uma iniciativa mundial com um braço no Brasil e tem como meta fazer com que os agricultores de alimentos orgânicos e consumidores tenham relação de proximidade e estejam implicados mutuamente numa produção coletiva, por uma lógica diferente daquela do mercado tradicional, oferecendo assim uma alternativa de desenvolvimento agrário sustentável (CSA Brasil, 2019).
Desses contatos iniciais, e em outras ocasiões, pudemos perceber que essas e outras propriedades vêm fornecendo à sociedade manauara produtos provenientes de agricultura familiar com base agroecológica. Há grande diversidade naquilo que é produzido nesses locais, no entanto, a produção é considerada baixa quando comparada à produção da agricultura convencional. O plantio é feito com base no sistema agroecológico, o que visa otimizar e diversificar aquilo que é produzido na propriedade. Vale ressaltar que não há utilização de nenhum agrotóxico nas plantações, e sim de biofertilizantes e compostos orgânicos produzidos pelos próprios produtores, que aprenderam a produzi-los em cursos de capacitação oferecidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), a partir da articulação da Rema e CSA, como passo necessário para que pudessem iniciar o processo de transição da agricultura convencional para a agricultura orgânica.
Mediante a troca de informações, os agricultores revelaram que até pouco tempo atrás faziam uso de "veneno" - termo usado antigamente para designar o que hoje é conhecido como agrotóxico em suas plantações. Entretanto, compreendemos que a partir de uma tomada de consciência tornou-se possível redirecionar a atuação coletiva (Câmara, 2008) dos agricultores rumo a uma sociedade mais ligada ao ambiente e preocupada com a sua própria saúde. Algumas das falas do senhor J são bem significativas nesse sentido: "só pensava em vender, agora penso na qualidade de vida"; "sair da cultura do preço e ir para cultura do apreço"; "o consumidor deixa de ser só consumidor e passa a ser parceiro". Essas falas nos fizeram refletir que os agricultores vinham passando por um processo de conscientização (Freire, 1980; Martín-Baró, 2017) desencadeado pela interação com a Rema e CSA. Nós, os estudantes de Psicologia, é que estávamos nos conscientizando de todo esse movimento.
Ouvimos que os agricultores "convencionais" que habitam a região adjacente às propriedades visitadas acreditavam que, com a Agroecologia, os agricultores de orgânicos jamais iriam alcançar uma produção que fosse suficiente para o sustento de suas famílias e que passariam fome. Havia um certo conflito entre eles: o medo de perder o sustento com a agricultura convencional fazia com que esses agricultores criticassem aqueles que fizeram a transição para os orgânicos. Entretanto, pudemos verificar que as propriedades de orgânicos produziam grandes diversidades de folhas, tubérculos e frutos, sem a necessidade da utilização de agrotóxicos. Diante dessa constatação empírica, vimos que já existia um significativo número de agricultores que estavam em fase de transição, após observarem que é possível conviver em harmonia com o meio ambiente e ainda tirar o sustento para suas famílias. Esses agricultores nos contaram que faziam uso de "veneno" em suas plantações, mas a partir da ajuda da Rema e CSA, eles estavam conseguindo realizar a transição. Ou seja, nós pudemos ver que esse processo de tomada de consciência não é linear ou automático, e sim carregado de contradições, dúvidas e incertezas quanto ao futuro (Montero, 2003; Freitas, 2015).
Dessa feita, o número de agricultores orgânicos nessa região ainda se encontra em fase inicial de crescimento e adesão. Para facilitar o escoamento da produção, e assim incentivar a ampliação das famílias produzindo alimentos orgânicos, algumas iniciativas e estratégias de fortalecimento estão sendo desenvolvidas em Manaus. Além de cursos de capacitação e certificação de produção de orgânicos, atualmente na cidade há cinco feiras que são organizadas com produção integralmente orgânica. A necessidade de terem mais formas de escoamento da produção e venda foi uma das coisas apontadas pelos agricultores, mas nós, futuros psicólogos, percebemos que isso estava muito aquém de nossas possibilidades, pois havia profissionais de outras áreas que poderiam ajudar melhor nisso do que nós.
Também tomamos conhecimento da criação da Associação de Produtores Orgânicos de Iranduba (Apoi), que surgiu com o apoio da Rema e tem como objetivo agregar os agricultores de alimentos orgânicos e lutar pelos seus interesses. Uma das bandeiras de luta da Apoi é de estreitar as relações entre o agricultor e o consumidor final, transformando esse último em parceiro. Nesse processo, pode ocorrer o compartilhamento de algumas técnicas de plantio durante as visitas que os coprodutores podem realizar nas propriedades, transformando, assim, parte do processo de produção. Em decorrência disso, o consumidor deixa de ser mero cliente. Como percebemos ao longo de nossa interação, idealiza-se que todos os consumidores tenham proximidade pessoal com os agricultores, mas isso não acontecia da maneira esperada. Aliás, alguns consumidores ainda mantinham uma relação de clientelismo e distanciamento. Por isso, a estratégia da Rema e CSA era de aproximar consumidor e agricultor, o que nos pareceu bem pensado e provavelmente seria uma de nossas propostas de intervenção, mas outras coisas foram privilegiadas pelos agricultores. Para eles, a falta de entrosamento não era grande incômodo, sendo considerado satisfatório para todos os lados, então deixamos isso em segundo plano.
Conforme Calegare, Higuchi e Forsberg (2013) e Freitas (1998), é importante que os agentes externos (no caso, nós estudantes e professor) participem de atividades do cotidiano dos agentes internos (os agricultores) para o fortalecimento de laços entre eles, como também para que os primeiros conheçam melhor a realidade de vida dos segundos. Dessa feita, em uma das visitas participamos do plantio de uma horta juntamente com agricultores da Apoi e alguns consumidores da Cesta Verde e do CSA. O intuito da atividade, que seguia os princípios da Agroecologia, foi integrar os consumidores/coprodutores aos agricultores e aproximá-los, para conhecer a realidade e o trabalho do agricultor e sua família, criar laços, promover a convivência e fortalecer os vínculos entre a vida no mundo rural e o urbano. Para nosso grupo de discentes, havia também o intuito de fortalecer os laços já estabelecidos. Esse tipo de atuação colaborativa entre os diferentes atores sociais para obtenção de um objetivo comum, também, é algo que encontramos na PSC (Freitas, 2014), o que reforçou nossa certeza de que há grandes semelhanças entre nossa área e a Agroecologia.
Nessa ocasião, após tomarmos o café da manhã coletivo, feito com produtos da horta, realizamos a plantação de frutas, legumes e verduras, como abacaxi, alface e milho. Para isso, fomos guiados por um extensionista rural da Rema (senhor G) e pela família do senhor J, que nos indicaram os procedimentos: carregamos estrume para ajudar no roçado (a lavoura), no plantio e na cobertura da terra. Aplicamos também cinzas e capim. Em seguida, fomos plantando e criando uma horta coletiva. O plantio durou a manhã toda e foi muito importante para vivenciarmos na prática como é o trabalho do agricultor, com todo esforço necessário e detalhes técnicos. Mais do que meros intelectuais orgânicos, essa experiência braçal nos mostrou o que de fato é compartilhar o cotidiano suado da agricultura orgânica.
A partir do trabalho em conjunto entre a Apoi, a CSA, a Rema e todos os agricultores envolvidos, percebemos que a forma como estreitam a relação produtor-consumidor acaba por fortalecê-los. Isso acontece porque se insere o consumidor na rede comunitária, o que o leva a ser um ator social, com os demais já existentes na trama social (Araújo & Calegare, 2018). Além disso, o consumidor passa a compreender os processos necessários para que a comida chegue a sua mesa. E aqui reitera-se a ideia de que comer não é apenas uma necessidade, mas torna-se um ato político. Ademais, o agricultor passa a ser percebido como um profissional capacitado e qualificado, como seria com um médico, por exemplo, saindo da situação de invisibilidade social por parte do consumidor. Seu trabalho é mais valorizado e ele sente o impacto positivo de sua profissão. Então, vemos com bons olhos essas propostas de integração entre consumidores e agricultores, pois trazem conscientização aos primeiros.
Além disso, durante as vivências compartilhadas com a comunidade de agricultores, pudemos perceber o engajamento entre eles e o compromisso social para com seus consumidores. Esses são aspectos muito importantes na atividade comunitária, que faz com que uma comunidade seja unida para superar suas problemáticas (Câmara, 2008; Freitas, 2014). Em suma, essas atividades de integração poderiam ter sido propostas na atuação pela PSC e, com certeza, passaram a compor nosso repertório de futuras ações em nossa prática profissional.
Visitas ao ponto de encontro com os consumidores
As visitas ao ponto físico de distribuição da Cesta Verde aconteciam aos sábados pela manhã, entre 10h e 13h, na casa da filha da dona M. Ao longo de vários sábados durante o segundo semestre de 2018, estivemos presentes naquele local. Julgamos que era de suma importância conhecer a trama de relações dos agricultores e seus consumidores para que pudéssemos ter um olhar panorâmico e crítico sobre essa rede intercomunitária. Assim, os encontros nos permitiram compreender como se dava a dinâmica das relações e a integração entre consumidores e agricultores no momento de buscar a cesta.
O primeiro aspecto que observamos foi a relação comercial diferenciada, estabelecida de forma amigável, respeitosa, descontraída e afetuosa. Muitos consumidores aproveitam o momento para conversar com dona M e sua família, tanto a respeito de assuntos ligados à alimentação quanto a respeito de assuntos gerais e de suas próprias vidas. Na maioria das vezes, dona M estava com o livro de Kinupp e Lorenzi (2014) em cima da mesa e demonstrava, lia e explicava aos consumidores quais receitas poderiam ser feitas com as PANCs que estavam nas cestas daquela semana. Por outro lado, ouvimos que alguns consumidores reclamavam que alguns produtos vinham "feios" ou com alguns "bichinhos", sentindo-se a necessidade de conscientizar esses consumidores sobre os prós e contras da agricultura orgânica. Anotamos isso como uma das possíveis necessidades a serem trabalhadas.
Um outro aspecto percebido foi que a família de dona M tinha bastante consciência de suas vidas e contextos de suas atividades agrícolas. Isso foi uma lição importante para nós, pois vimos que, mais do que estimular a conscientização do público-alvo, quem mais precisava ganhar consciências éramos nós do grupo de discentes e professor. Nesse sentido, Calegare et al. (2013) lembram que nos trabalhos comunitários não devemos partir da premissa de que os participantes precisam ganhar consciência, pois não é raro eles demonstrarem o contrário: já têm bom grau de conscientização e nós, os agentes externos, é quem devemos ampliar nossa consciência a partir da interação com a realidade da comunidade. Nesse sentido, em algumas ocasiões, pudemos ouvir da família de dona M, com clareza e simplicidade, o que estava descrito teoricamente por Freire (1980) e Martín-Baró (2017).
Dessa feita, nosso papel como grupo de agentes externos foi no sentido de demonstrar aos consumidores e agricultores nosso respeito pelas vivências deles, pelos seus saberes e, com isso, potencializar o sentimento de fortalecimento pessoal e grupal. Ou seja, confirmar pelo nosso lugar de acadêmicos, visto socialmente como de "especialistas", que todas aquelas experiências de vida eram valiosas. Isso foi conferido, especialmente, por meio de troca de saberes da vida cotidiana durante nosso "papear". Pode parecer algo simples, mas foi esse processo que garantiu o desenvolvimento de nosso plano de ação na sequência. Portanto, foi a partir do saber popular e experiência de vida dos membros da comunidade de agricultores, articulado com o conhecimento da academia, que se tornou possível a identificação dos processos que dificultavam o alcance de algumas metas e objetivos dos agricultores.
O problema eleito para ser trabalhado
Diante do exposto, a partir de todos os encontros nas propriedades rurais e no ponto de distribuição da Cesta Verde, chegamos a uma visão mais clara sobre os problemas vividos pelos agricultores de alimentos orgânicos. E uma percepção a respeito dos problemas que nós, grupo de estudantes e professor de PSC, poderíamos lidar e ajudar na busca de soluções.
Entre as muitas questões levantadas, pudemos elencar: agricultores de outras propriedades que não queriam aderir à produção orgânica por temor; necessidade de fortalecimento da Apoi; ampliação da produção e seu escoamento; dificuldade na lida com alguns consumidores muito exigentes com os alimentos orgânicos, que não eram tão bonitos ou grandes como os da agricultura convencional; não cumprimento de pagamentos pelo poder público, nos prazos estipulados, de convênios estabelecidos com os agricultores para fornecimento de alimentos orgânicos nas escolas da rede pública.
Montero (2004) recomenda que elejamos um dos problemas para se trabalhar com a comunidade e, levando isso em conta, decidimos trabalhar com o último problema citado no parágrafo anterior. Os agricultores reclamavam bastante que eles não tinham a quem recorrer quando um convênio era firmado com o governo e seus termos não eram cumpridos. Ficou claro para nós que os processos de interações da rede de agricultores com o poder público e demais autoridades não proporcionavam aos primeiros o devido reconhecimento e respeito. Pelo contrário, perpetuavam mecanismos de opressão que mantêm essas pessoas na situação de oprimido e de invisibilidade. Por que escolhemos esse problema? Porque contávamos com a colaboração de uma pessoa ligada ao Ministério Público Estatual (MPE), como explicaremos mais adiante na elaboração do Plano de Ação (PA).
Plano de ação
Feita a familiarização e a problematização, é desejável na atuação pela PSC que consigamos chegar a um PA elaborado em parceria com a comunidade (Calegare et al., 2013; Freitas, 1998 2014; Montero, 2004). Dessa feita, decidimos coletivamente (nós estudantes, professor e agricultores) que nosso PA buscaria aproximar agricultores e pessoas ligadas ao poder público, mais especificamente do MPE, para que os primeiros pudessem expor suas queixas e demandas, e os segundos pudessem proporcionar auxílio para resolução de alguns dos problemas apresentados. Essa ideia surgiu devido à participação de uma pessoa do MPE em nossa rede de agentes externos, que abriu essa possibilidade ao grupo. Isso nos ensinou que em nossa atuação profissional devemos atuar de corpo inteiro, utilizando todo nosso potencial, nossas habilidades e nossas redes de relações.
Começamos então a pensar junto com os agricultores como fazer essa aproximação. Depois de debatermos algumas ideias, resolvemos que a melhor maneira seria por meio da realização de uma palestra no MPE, para fins de aproximar os representantes jurídicos dos agricultores agroecológicos familiares orgânicos, ressaltando a importância desse movimento em nosso estado e gerando visibilidade para iniciativas como a Cesta Verde, a CSA e demais citados.
Nosso membro do MPE, então, disponibilizou o contato de um promotor de um município do interior do Amazonas, o dr. R, que vinha batalhando pela promoção do desenvolvimento socioeconômico de produtores de vários segmentos naquela região. Em uma vinda a Manaus, ele se dispôs a conhecer nosso grupo de alunos e professor da Ufam, numa primeira reunião em meados de novembro de 2018 na universidade. O intuito desse encontro foi que ele conhecesse nossa iniciativa, enquanto nós conheceríamos o projeto social de geração de renda e de emprego que ele vinha desenvolvendo, chamado Amazônia Viva. Durante a reunião, nosso PA foi acrescido com a ideia de articularmos, juntamente com o promotor, um evento com vistas a proporcionar visibilidade tanto ao projeto desenvolvido por ele quanto aos coletivos Rema, CSA e Cesta Verde. Nesse evento, haveria a possibilidade de aproximação dos agricultores e de produtores do interior com representantes dos interesses coletivos do estado do Amazonas.
Discutimos a ideia com os agricultores de realizarmos um evento no MPE, em vez de apenas uma palestra. Eles concordaram e pensamos em fazer uma exposição de produtos nesse dia, com os alimentos dos agricultores orgânicos e produtos das organizações sociais do interior do estado, do Amazônia Viva. Essa ideia foi amadurecida numa reunião no próprio MPE, que contou com a presença de um membro da Rema; da família da dona M; nós, da Ufam; e o promotor dr. R e sua equipe de apoio. Nessa ocasião, dr. R nos avisou que os eventos no MPE são diferentes daqueles da academia: os membros do magistrado gostam mais de articulação e conversas articulatórias num espaço informal, enquanto os acadêmicos preferem palestras demoradas. Só entenderíamos a profundidade desse conhecimento, que era também um aviso, no dia do evento. Ele sugeriu então que os agricultores fizessem vídeos sobre seus projetos, que seriam exibidos em tela de fundo enquanto todos os presentes interagissem no salão do MPE. Todos os presentes na reunião acataram e gravaram os vídeos, que foram editados pela equipe do dr. R.
Em três semanas produzimos o evento, que foi intitulado "Agroecologia e Amazônia viva: fortalecendo as redes na Amazônia", realizado no início de dezembro de 2018, no período da manhã, no auditório do MPE. Havia aproximadamente 100 pessoas presentes, quase todas do magistrado. Inicialmente, houve a abertura da mesa de cerimônia pela presidente do MPE, com poucas palavras. Em seguida, as breves falas do dr. R inaugurando o projeto Amazônia Viva e da presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) do Amazonas, dando apoio à iniciativa. Ambas as falas foram de curtíssima duração. Após a fala dos magistrados, o salão esvaziou-se. Ficou evidente o desinteresse dos presentes nas falas dos representantes da Rema, CSA e Cesta Verde Dona Walda, que traziam suas queixas e pedidos de ajuda. Parte dos vídeos não foram exibidos, pois a equipe de edição alegou que as gravações por celular não tinham a mesma qualidade de uma gravação em câmera profissional. Em tese, nossa intervenção tinha fracassado, pois o magistrado não ficou para ouvir as falas dos agricultores em suas respectivas palestras.
Do lado de fora, no salão, um farto lanche era servido enquanto todos os presentes conversavam, articulavam e compravam os produtos expostos. Nesses espaços informais, houve algumas vendas de produtos e muitas articulações com os agricultores, incluindo a adesão de novos clientes. Nesse sentido, a intervenção tinha gerado alguma movimentação nas redes de relações; por outro lado, ficou evidente para nós que o promotor, dr. R, tinha razão em seus avisos: a lógica de reuniões e eventos do magistrado era bem diferente daquela dos acadêmicos ou dos movimentos sociais. Essa foi mais uma lição importante que tivemos nessa experiência: é preciso saber lidar com os diferentes públicos, pois têm linguagens e maneiras de agir diferentes.
Avaliação
Posteriormente ao evento, realizamos algumas reuniões de avaliação de nossa atividade com os diferentes atores sociais envolvidos em nossa ação - e que serve também como desligamento entre os agentes externos e agentes internos (Freitas, 2014; Góis, 2005). Para cada um dos atores envolvidos, a mudança social foi vista de um ângulo diferente. Para o dr. R, o evento foi um sucesso, pois ele veio do interior, realizou o lançamento de seu projeto no MPE e, ainda, viabilizou bons contatos para vendas de seus produtores.
Para nós alunos e professor da Ufam, todo movimento de conhecer os agricultores de alimentos orgânicos, de articulação e realização de uma ação foi exitosa, no sentido de cumprimento dos objetivos da disciplina PSC. Foi um grande ganho para nós conhecermos essa realidade e sabermos que a alimentação também é um ato político. Apenas temos a ressalva de que a finalidade almejada p PA não ter sido alcançada em sua plenitude: o magistrado do Amazonas se sensibilizar e solidarizar com a causa dos agricultores. Nesse sentido, não podemos falar de uma grande transformação ou emancipação social propiciada aos agricultores, mas uma pequena dose, como apontou Montero (2008): foi possível se apresentarem no MPE e estabelecer algumas conversas, mas sem ter as demandas atendidas.
Do ponto de vista dos agricultores, temos dois feedbacks: da atuação do grupo de PSC e do evento no MPE. A respeito da primeira, temos:
Eu achei muito interessante, bacana. Acho que vocês interagem. A gente tem um conhecimento, aí vocês têm o conhecimento. Nós que somos os agricultores, né, que a gente mexe com a terra, mexe com a natureza, com a hortaliça. E, vocês, é, trabalham a parte teórica que são os estudantes, né, e isso é muito bacana. (dona M, comunicação pessoal, 15 de dezembro de 2019).
Foi muito boa, né, essa interação que os alunos tiveram de entender o que que é uma horta, né, uma horta orgânica, compreender toda a parte do plantio [...] Tem todo esse desafio, né, e entender o que que é um produto orgânico, né [...] que vem desde lá da produção, da família, como a família se organiza até a comercialização e também ver que um produto orgânico, ele é um pouco diferente dos produtos hoje que estão no supermercado. (dona L, comunicação pessoal, 15 de dezembro de 2019).
Por essas falas coletadas um ano depois da atuação, podemos notar que as agricultoras ressaltaram a interação (aspecto importante à PSC) e o diálogo de saberes (importante à Agroecologia). Conhecermos as condições de vida delas foi de grande valia para elas. Ou seja, nós termos nos conscientizado de suas vidas foi uma pequena (talvez grande?) transformação social para elas. Quanto à avaliação do evento no MPE, elas disseram:
Achei, assim, que a gente, nós nos expressamos. Nós demos o nosso recado lá, como agricultor. Da gente ser reconhecido, né, como agricultor orgânico, que a gente realmente, a gente fala que hoje as políticas públicas ainda não tão muito interessada com a questão da agricultura orgânica, né, os interesses do governo [...] Repercutiu muita coisa boa, naquele dia, lá naquela, naquele evento [...] Consegui alguns clientes também. (dona M, comunicação pessoal, 15 de dezembro de 2019).
Eu acho que o evento teve uma proposta inicial muito boa [...] de levar a agricultura familiar [...] pro Ministério Público, pra ouvidoria, pra pessoas ali que tão, né, que tenham algumas tomadas de decisões importantes, né. Então eles entenderem também como funciona a agricultura familiar é interessante. Eu só tenho uma ressalva em relação ao processo, de como que o processo foi conduzido, e isso eu acho que falta um pouco mais de sensibilidade e percepção de quem tá realizando o evento, sabe? Pra fazer essa integração com o agricultor. Porque o agricultor, ele tem limitação, ele tem limitação de várias coisas que se a gente não consegue... não souber como ele vai se inserir na participação de um evento ele pode muitas vezes nem ser escutado, né. E isso aconteceu um pouco lá no Ministério Público [...]. Então isso acho que ficou a desejar. (dona L, comunicação pessoal, 15 de dezembro de 2019).
Apesar de termos ficado frustrados com o resultado do evento no MPE, as agricultoras tiveram outra percepção: uma disse que lhe trouxe boas repercussões; a outra avaliou que a ideia era boa, mas a execução deveria ter sido diferente. Portanto, a atuação conosco foi boa, entretanto, o ápice do evento no MPE não saiu como esperado, mas propiciou alguns benefícios. E elas também observaram que com o magistrado é preciso agir por um código diferente daquele acadêmico ou dos movimentos sociais, ou até mesmo que os magistrados pudessem ter mais sensibilidade ao promover a agricultura familiar - se isso lhes coubesse. Em suma, podemos considerar que nossa atuação esteve longe de ser perfeita, sem grandes logros ou transformações sociais de grande porte; por outro lado, houve pequenas mudanças em todos nós.
Considerações finais
Essa experiência com os agricultores de alimentos orgânicos dos arredores de Manaus/AM, que trabalham na perspectiva da Agroecologia, trouxe ganhos valiosos à nossa bagagem de futuros profissionais em Psicologia de base comunitária. Primeiramente, tivemos a oportunidade de romper com a formação clássica da Psicologia e partir rumo a uma práxis ativa com públicos diferenciados num novo "campo" - literalmente - de atuação: as comunidades rurais/florestais amazônicas. Não estivemos ali apenas para observar ou ter uma escuta qualificada, como se costuma esperar de uma Psicologia tradicional num setting clínico - e no máximo num setting ampliado. Aprendemos que a participação ativa junto com os agentes internos da comunidade nos transformou em parceiros, possibilitando o entendimento de suas demandas e busca de superação de seus problemas para chegar a uma vida melhor. Pudemos ser sujeitos atuantes, seja num espaço de participação ativa durante o trabalho dos agricultores, seja na realização de um grande evento.
Entretanto, temos clareza de que nós não geramos uma grande transformação social e emancipação plena dos agricultores, mas pudemos vislumbrar que algumas pequenas mudanças aconteceram: nós nos conscientizamos de suas condições de vida e isso foi-lhes um logro; eles puderam estabelecer algumas redes de contatos com o MPE e obter mais clientes. Outras mudanças já estavam em andamento para os agricultores, independentemente de nossa atuação: adesão de mais agricultores ao paradigma agroecológico e produção de alimentos orgânicos; mais consumidores, e em relação interpessoal direta com eles; ampliação da visibilidade da vida do agricultor; e disponibilidade de produtos orgânicos na sociedade local.
Assim, a grande transformação que podemos afirmar foi a ampliação de nossa própria consciência, mais a que dos agricultores. Com isso, conscientizamo-nos que a alimentação pode representar um ato político. Há muitos aspectos agregados ao ato da alimentação. Comer está imbricado na realidade política de todos nós na sociedade. É preciso, portanto, ganharmos consciência de como as decisões da sociedade, na hora de escolher o que vai estar na sua mesa, tem implicações diretas na vida dessas comunidades de agricultores. E entender como essa decisão gera maior demanda na produção orgânica familiar, priorizando-a em detrimento das demais. Temos, assim, uma tarefa urgente: trazer à consciência dos consumidores que a escolha de um alimento produzido pela agricultura familiar, que não utiliza agrotóxicos, é um grande ato de mudança de nossa sociedade.
Destacamos também a aprendizagem adquirida pelo grupo por meio da aproximação entre PSC e Agroecologia, que têm princípios afins, estratégias e metas de atuação plenamente compatíveis. Sabemos que a perspectiva agroecológica não é mágica para mudar a realidade social, mas boas propostas estão sendo desenvolvidas. Constatamos que projetos como a Cesta Verde e CSA são iniciativas pioneiras de produção orgânica, capazes de aproximar o consumidor da terra e de quem a cultiva, transpondo o ato de comer para além de uma necessidade básica, tornando-o um ato político. Além disso, trata-se de uma forma de sensibilizar o olhar do consumidor em relação ao "seu" agricultor como um parceiro que propicia um movimento de transformação social. Essas estratégias de aproximação entre os atores de uma rede comunitária foi algo que nos trouxe impacto positivo, que com certeza tomamos como exemplo para a nossa futura atuação, em busca de uma sociedade com laços de proximidade mais autênticos, genuínos e cordiais.
Referências
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Recebido em: 6/4/2020
Aceito em: 11/11/2021