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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. v.2 n.1 Juiz de Fora jun. 2008

 

REVISÃO DE LITERATURA & ENSAIOS TEÓRICOS

 

O Conceito de Mente em Wilhelm Wundt *

 

Wilhelm Wundt’s concept of mind

 

 

Thiago Constâncio Ribeiro Pereira**

 

 


RESUMO

O presente trabalho, inserido no campo da História da Psicologia, tem como objetivo apresentar a fundamentação do conceito de mente na fase de maturidade do pensamento psicológico de Wilhelm Wundt, considerando suas obras traduzidas para a língua inglesa. Pretende-se, com isso, compreender uma parte significativa das bases fundamentais de seu sistema maduro de psicologia, cuja apreciação entre os psicólogos encontra-se bastante prejudicada. Reconhece-se ali o valioso material fornecido para as discussões acerca da investigação dos fenômenos mentais. Além disso, no que refere à psicologia em geral, pretende-se demonstrar sua dependência em relação à atividade filosófica, apontando a relevância da reflexão teórico-conceitual para o estabelecimento de sua cientificidade e legitimidade.

Palavras-chave: História da psicologia, Ciência, Mente.


ABSTRACT

This work, which belongs to the field of History of Psychology, intends to present the foundations of Wilhelm Wundt’s concept of mind in his mature phase of psychological thought, taking into consideration his works translated to the English language. So it is hoped to comprehend a significant part of the fundamental basis of Wundt’s mature system of psychology, which has been poorly appreciated among psychologists, and to recognize its great value to debates about the investigation of mental phenomena. Furthermore, in what concerns psychology in general, it is also intended to demonstrate its dependence on philosophical activity, showing the relevance of theoretical reflection to the establishment of its legitimacy and scientific validity.

Keywords: History of psychology, Science, Mind.


 

 

Dentre as atividades às quais se propõe uma ciência, está aquela de investigar a si própria, isto é, respeitar a constante necessidade de solidificação de suas bases e sistematização de seus achados pela rigorosa reflexão sobre seus fundamentos. Ora, não seria possível ignorar que no domínio da Psicologia jamais encontrou-se qualquer estado de consenso universal, nem sequer local (dadas as disputas internas de cada um de seus sistemas), que justificasse o abandono das reflexões teórico-conceituais que lhe são exigidas. O preço de tal atitude é entregar qualquer esperança de uma psicologia científica, cujas aspirações figuram entre as mais gerais e necessárias ao homem em seu intuito cognoscitivo e vida prática, ao sabor da especulação infundada ou da técnica irrefletida. É neste contexto que desempenha uma função decisiva aquele campo de investigação denominado História da Psicologia.

A exposição a seguir tem como objetivo apresentar a fundamentação do conceito de mente no sistema maduro de psicologia1 de Wilhelm Wundt (1832-1920), cujo trabalho, apesar de representar um monumento ao fundamento das ciências e da filosofia, é sobremaneira ignorado na historiografia da psicologia, ou, quando muito, apresentado de forma caricaturada (Araujo, 2007). Com a compreensão do conceito wundtiano de mente, pretende-se alcançar um duplo benefício: reconhecer o valioso material que ali se encontra para as discussões acerca da investigação dos fenômenos mentais, e fornecer um conteúdo, ainda que modesto, que provoque a tomada de consciência da necessidade da reflexão teórico-conceitual para a psicologia.

Antes de mais nada, não podemos aqui deixar de apresentar algumas considerações metodológicas que não são de menor importância no que se refere a um trabalho teórico. Como parte da problemática apreensão do trabalho de Wundt pela comunidade de psicólogos, acontece que somente uma parte muito pequena de suas obras foi traduzida do original alemão. Aqui utilizamos todas aquelas traduzidas para a língua inglesa que contém material significativo para este estudo2Principles of Physiological Psychology (1904/1910); Outlines of Psychology (1896/1902); Lectures on Human and Animal Psychology (1894/1912), e An Introduction to Psychology (1924). Em que pese, esta escassez de fontes, todas as presentes obras inserem-se na fase de maturidade do pensamento psicológico de Wundt, implicando a sua continuidade teórico-conceitual, o que representa a presença ali de um material que, apesar de pequeno em relação a esta fase do autor, em sua totalidade nos será por ora suficiente. Cabe assinalar que não se pretende aqui esgotar o assunto tratado, mas tão somente apresentar-lhe o quadro geral. Portanto, não nos aprofundaremos nas discussões específicas presentes na literatura secundária ou no próprio Wundt, limitando-nos à intenção de tornar inteligível seu sofisticado pensamento ao leitor não familiarizado.

 

1. As Psicologias da tradição: as disputas presentes nas considerações de Wundt

A atividade inicial da ciência consiste em dar aos conceitos que ela utiliza seu sentido adequado, o que para a psicologia possui importância central, dadas as diversas fontes de seus conceitos que confusamente lhe restam como herança (Wundt, 1910). Não é com economia de esforços que Wundt busca para seu sistema de psicologia um terreno conceitual que lhe garanta a validade científica ao lado das ciências da natureza3. Sua busca retoma as origens mitológicas e filosóficas da idéia de alma, cuja presença se pode constatar tanto na linguagem do senso comum, quanto nas Sciências (Wundt, 1912, 1924). Evitando aqui um regresso exagerado, nos serviremos da esquematização estabelecida por Wundt (1902) para as formas gerais de psicologia desenvolvidas na tradição moderna, que constituem as maiores referências para o quadro geral desta disciplina: a primeira das formas, também a mais antiga, classifica-se como psicologia metafísica, e a segunda, como psicologia empírica.

1.1– Psicologia metafísica: a psicologia entre o espiritualismo e o materialismo

As diversas psicologias que se podem dispor sob a denominação comum de psicologia metafísica caracterizam-se, em geral, a partir de uma definição da natureza da mente (alma) adequada ao sistema metafísico ao qual pertencem, por determinar dedutivamente os atributos reais da experiência psíquica, não valorizando a análise empírica e as interpretações causais. Tais deduções são feitas a partir de um substrato estranho aos próprios processos psíquicos, seja ele uma substância mental ou material, ou ainda uma propriedade da matéria. Assim duas direções para a psicologia metafísica surgem: a espiritualista e a materialista. A primeira considera os processos psíquicos como produtos de uma substância específica, que não pode ser confundida com a matéria. A segunda direção considera a mente como produto da mesma substância que as ciências da natureza utilizam para suas explicações hipotéticas dos eventos naturais – a saber, a matéria (Wundt, 1912). Surgem assim, no seio dessas tendências, ao menos dois problemas fundamentais que parecem impedir qualquer possibilidade de avanço do conhecimento da psicologia em comparação com as ciências da natureza: de um lado, o problema de se conhecer a forma pela qual se relacionam propriedades de substâncias heterogêneas, e de outro, o problema de adequar leis físicas à esfera mental.

1.2– Psicologia empírica: uma ciência da experiência interna

Das disputas travadas entre espiritualistas e materialistas, que pouco contribuíram para o estabelecimento de um terreno seguro para a investigação da vida psíquica, surge uma direção para a psicologia que busca, na realidade própria da experiência psíquica, e não em algum substrato metafísico que lhe é heterogêneo, o seu fundamento: a psicologia empírica (Wundt, 1902). Encontram-se reunidas sob este rótulo diversas formas de psicologia, que podem ser separadas em duas tendências, admitidas as suas bases mais gerais: uma concebe-se como ciência da experiência imediata, enquanto a outra da experiência interna. Esta última considera como seu objeto de investigação os conteúdos de uma experiência absolutamente diversa da que contém os conteúdos investigados pelas ciências da natureza, isto é, da experiência externa. Tal distinção ontológica resulta na necessidade do estabelecimento de métodos distintos para o conhecimento de cada experiência: assim, enquanto nas ciências da natureza se recorre ao método experimental, na psicologia assume o papel de método a introspecção. Aqui se estabelece um definitivo impasse a esta psicologia: de que maneira poderá almejar produzir um conhecimento seguro sobre seu objeto, na medida em que, não havendo distinção entre observador e objeto observado, seu método implica que, a cada tentativa de apreensão deste, se lhe imponha imediatamente uma alteração daquelas suas propriedades que se pretendia conhecer? 4 A psicologia constitui, portanto, um terreno de disputas de tão irreconhecível resolução, que seu lugar entre as ciências encontra-se ameaçado.

 

2. A fundamentação da ciência da experiência imediata

A outra tendência da psicologia empírica, que a reconhece como ciência da experiência imediata, é propriamente a resposta sistemática de Wundt aos problemas originados no interior daquelas psicologias. Para que possamos compreender essa resposta e suas consequências para a constituição da psicologia como um campo autônomo e abrangente de investigação científica, vamos fazer, ainda que brevemente, uma incursão em sua filosofia, sendo esse o único caminho possível para a contemplação de nossos fins – caso contrário, cairíamos na replicação de sua reduzida imagem de “fundador da psicologia experimental”, como em Boring (1950).

2.1- A gênese do conhecimento: da experiência à filosofia5

Um pressuposto fundamental da filosofia wundtiana é que sujeito e objeto formam um todo unitário, cuja separação ocorre simplesmente no plano abstrato em consequência da função analítica natural do pensamento. Assim, um postulado necessário ainda que ininvestigável, é que em um estágio originário de nossa condição epistêmica haveria um estado de unidade perfeita entre objeto e representação (objeto-representação), e assim entre pensamento e ser que, após ser cindido pela atividade do pensamento, será buscado, sem sucesso, por todo o conhecimento posterior. Segundo Araujo (2007): “surge uma necessidade interna – comandada sobretudo pelo princípio de razão enquanto princípio máximo do conhecimento – de relacionar todos os conhecimentos particulares em uma totalidade coerente” (pp. 175-176). Nessa busca, o conhecimento evoluirá em três fases: “1) o conhecimento perceptivo (Wahrnehmungserkenntnis), relacionado à vida cotidiana; 2) o conhecimento intelectual (Verstandeserkenntnis), ligado à atividade científica; 3) o conhecimento racional (Vernunfterkenntnis), concernente à reflexão filosófica.” (Araujo, 2007, p. 172).

Na primeira das fases, a atividade do pensamento conduzirá a um processo de fundamental importância no que refere à constituição das ciências: a separação entre experiência imediata e mediata. Isso se dá porque, na vida cotidiana, a análise das percepções determina a idéia de que existem objetos fora de nós e representações em nós que lhes correspondem (estando ambos em dependência mútua), além de sentimentos e vontades relacionados aos objetos que somente ocorrem em nós. Isso, acrescido da possibilidade de que a estas representações não correspondam quaisquer objetos reais, mas somente inferidos a partir de características especiais, produz a cisão entre experiência imediata e mediata. Em outras palavras, “somos naturalmente levados a este ponto de vista, pois toda experiência concreta imediatamente divide-se em dois fatores: um conteúdo apresentado a nós, e nossa apreensão deste. Denominamos o primeiro destes fatores objetos da experiência, e o segundo, sujeito da experiência. ” (Wundt, 1902, p. 3 – ênfase no original). Chama-se mediata, ou conceitual, aquela face da experiência na qual, após perdida a identidade entre representação e objeto, só por conceitos se determinam seus conteúdos, ao passo que na experiência imediata todos os conteúdos se apresentam imediatamente na consciência do sujeito. Segue-se, pois, “que as expressões experiência externa e interna não indicam diferentes objetos, mas diferentes pontos de vista dos quais tomamos as considerações e tratamentos científicos de uma experiência unitária” (Wundt, 1902, pp. 2-3 – ênfase no original).

Ainda segundo Araujo (2007), a separação entre experiência imediata e mediata conduz ao processo que culmina no surgimento da atividade científica, cujo propósito é sistematizar os tratamentos dados pelo entendimento aos eventos externos e internos em conhecimento intelectual. A Matemática, nesse sentido, ocupar-se-á da investigação das formas possíveis de conhecimento; as Ciências da Natureza, da constituição de um sistema de conhecimento objetivo, ou seja, das representações objetivas que constituem os conteúdos da experiência abstraindo-se das propriedades pertencentes ao sujeito cognoscente; e a Psicologia, da constituição de um sistema de conhecimento subjetivo, isto é, dos conteúdos da experiência dados imediatamente na consciência deste sujeito. A sistematização científica dos conteúdos da experiência, segundo o mesmo processo que até aqui trouxe o conhecimento, constituirá a base para a sua definitiva unificação no campo da filosofia (metafísica).

2.2- A Psicologia no sistema de Wundt: seu escopo e suas relações

Vimos nas considerações acima como está fundamentado no desenvolvimento lógico do conhecimento o campo das ciências e da filosofia. Evidencia-se, assim, a tarefa atribuída às ciências particulares: fornecer bases para a elaboração de uma metafísica unificadora. Wundt (1912) assim esclareceu a tomada dessa tarefa pela psicologia:

Ela preferencialmente reverte a relação entre psicologia e filosofia, assim como a ciência empírica da natureza no passado reverteu sua relação com a filosofia natural – isto é, na medida em que rejeitou toda especulação filosófica não baseada na experiência. Ao invés de uma psicologia fundada sob pressuposições filosóficas, nós exigimos uma filosofia cujo valor de suas especulações será atribuído na medida em que prestarem respeito, a cada passo, aos fatos da experiência psicológica e científica. (p. 2)

Com isso, temos o ponto fundamental da solução apresentada por Wundt aos impasses relativos à legitimidade científica da psicologia: por um lado, ao restringir a metafísica à esfera da filosofia e condicioná-la ao desenvolvimento das ciências (e não o contrário), elimina-se a psicologia metafísica, limitando toda psicologia no nível empírico; por outro, ao estabelecer, em contraposição à tradicional concepção dualista de experiência, uma concepção ontologicamente monista e epistemologicamente dualista, se lhe garante um lugar definitivo entre as demais ciências empíricas. A esse novo lugar da psicologia, como veremos, será atribuído ainda maior destaque.

Se qualquer fato particular pode ser entendido em sua completa significância somente após ter sido submetido à análise, tanto das ciências da natureza quanto da psicologia, e se, por um lado, esta última investiga as formas gerais da experiência imediata e, por outro, ocupa-se das condições objetivas e subjetivas e de suas interrelações subjacentes ao conhecimento teórico e às atividades práticas, tem-se que “a psicologia é, em relação às ciências da natureza, a ciência complementar; em relação às ciências do espírito é a ciência fundamental; e em relação à filosofia é a ciência empírica propedêutica” (Wundt, 1902, p. 18 – ênfase no original).

Cabe a nós ainda, no que diz respeito ao escopo dessa psicologia científica, esclarecer de que maneira ela contemplará todas essas incumbências. Ora, como ciência empírica ela não poderá recorrer a outros métodos que não aqueles comuns a todas as ciências: o método experimental e a observação (Araujo, 2005). Enquanto ocupar-se tão somente daquelas investigações estritamente complementares às ciências da natureza, ou seja, buscar nos mesmos conteúdos da experiência abordados por tais ciências as suas propriedades subjetivas, adotará o método experimental, constituindo assim a área da Psicologia Fisiológica, ou Experimental. Em contrapartida, quando ocupar-se dos produtos mais gerais da vida mental coletiva (linguagem, mitos e costumes), para os quais não há nenhum paralelo fisiológico, adotará a observação, constituindo a área da Psicologia dos Povos (Völkerpsychologie) 6.

Por fim, vale notar que na investigação dos processos psíquicos, ao contrário do que ocorre nas ciências da experiência mediata, todos os conteúdos apreendem-se imediatamente (na consciência do sujeito). Segundo Wundt (1902):

enquanto as ciências da natureza e a psicologia são ambas ciências empíricas, no sentido de que pretendem explicar os conteúdos da experiência, contemplada de diferentes pontos de vista, é óbvio que, em consequência do caráter especial deste problema, a psicologia é a mais estritamente empírica. (p. 6 – ênfase no original)

2.3- O conceito wundtiano de mente: a atualidade psíquica

A exposição acima nos encaminha naturalmente à compreensão da fundamentação do conceito wundtiano de mente. Seguindo Haeberlin (1980), notamos que

É da própria natureza das ciências da natureza que seus objetos sejam pensados como existentes em um mundo objetivo distinto do sujeito. Eles existem como se não houvesse sujeito. Essa concepção do mundo puramente objetivo dos fenômenos naturais se torna possível através de uma abstração do sujeito observador correlacionado. Essa abstração envolve a postulação de um substrato físico ao qual todos os fenômenos naturais devem se referir como seu princípio subjacente. O substrato hipotético assim postulado toma a forma tanto de matéria quanto de energia. Nesse sentido, as ciências da natureza veem seus fenômenos através da mediação de um conceito auxiliar, ou seja, o da substancialidade de seus objetos. Para além e contra isso, a psicologia não se aproxima de seus objetos através de uma abstração do sujeito. Ela os vê “imediatamente”, na medida em que são dados na consciência do próprio sujeito. (p. 232 – ênfase no original)

Está aqui apresentado o golpe à idéia de substancialidade da mente. Este substrato hipotético necessariamente postulado na consideração dos conteúdos objetivos da experiência “deixa de ter qualquer sentido quando aplicado à apreensão do sujeito pensante por ele mesmo”.(Wundt, 1912, p. 452). Ao excluir-se da vida psíquica a idéia de substancialidade, impõe-se ali um novo conceito, esclarecido por Wundt (1902):

o conceito de atualidade da mente não requer nenhum determinante hipotético para definir seus conteúdos particulares, como o conceito de matéria requer, muito pelo contrário, ele exclui tais elementos hipotéticos desde o início definindo a natureza da mente como a realidade imediata dos processos em si mesmos. (p. 357)

Se não há na esfera psíquica qualquer permanência de seus conteúdos, conclui-se que somente para fins científicos estes podem ser “cristalizados” e isolados, sem que no fluxo da experiência imediata se dê in concreto qualquer objeto (Rappard, 1980). Segue-se necessariamente que “os conteúdos da experiência psíquica são aqui considerados como uma interconexão de processos. Fatos psíquicos são ocorrências, não objetos; tomam lugar, como todas as ocorrências, no tempo e nunca são as mesmas num dado ponto como foram no momento anterior.” (Wundt, 1902, p. 15 – ênfase no original). O mundo da experiência, se considerada a abstração do sujeito cognoscente, apresenta-se como uma multiplicidade de substâncias em interação, mas se, pelo contrário, inclui-se ali este sujeito, apresenta-se como uma multiplicidade de ocorrências inter-relacionadas.

Enfim, se à idéia geral inicialmente dada por Wundt (1912) ao conceito de mente, segundo a qual “nossa mente não é nada mais que a totalidade de nossas experiências internas, ou seja, nossa ideação, afetividade e volição reunidas em uma unidade na consciência” (p. 451), acrescenta-se o predicado processual, constitui-se o conceito de mente como a conexão dinâmica dos processos mentais. Tal conceito de atualidade/processualidade psíquica está na base das noções de paralelismo psicofísico, causalidade psíquica e leis fundamentais da vida psíquica (leis da relação e do desenvolvimento) que compõem o quadro conceitual da psicologia de Wundt, e constitui o fundamento norteador de sua investigação e o alicerce de sua legitimidade.

 

Conclusão:

Se levarmos em conta o conjunto de elementos presentes na configuração do campo da psicologia em nosso tempo, que compreendem desde um significativo aumento da atenção e incentivos dados às pesquisas empíricas e atuação prática em detrimento das pesquisas teóricas – fato em parte determinado pela urgente e justificada necessidade de atendimento a demandas sociais (da saúde, educação, trabalho, etc.), assim como pela crescente exigência de produtividade dos pesquisadores (reduzindo-lhes o tempo necessário para estudos detidos dos aspectos teóricos de suas pesquisas) – até o crescimento de certas correntes das neurociências que pretendem subtrair da psicologia a sua legitimidade científica (reafirmando princípios dos materialismos dos séculos XVIII e XIX), notamos que a ausência de uma tomada de consciência da importância das reflexões fundamentais em psicologia representa uma ameaça a sua própria autonomia. Nesse contexto, o reconhecimento da importância do pensamento de Wundt na história da psicologia, longe de ser uma simples apreciação do passado, assume grande relevância, pois vemos ali o monumental trabalho de constituição de um sistema de psicologia cuja legitimidade é garantida em sua fundamentação conceitual, anterior a qualquer aspecto empírico – igualmente notável é a necessária relação entre psicologia (e ciências em geral) e filosofia ali estabelecida, indicando que suas autonomias relativas não se deveriam confundir com separação real. Por fim, na medida em que pudemos com esta contemplação do pensamento de Wundt, ainda que de forma reconhecidamente muito modesta, lançar alguma luz sobre a importância da consciência reflexiva no campo da psicologia, damos como alcançados nossos objetivos.

 

 

Referências:

Araujo, S. F. (2003). A obra inicial de Wundt: um capítulo esquecido na historiografia da Psicologia. Revista do Departamento de Psicologia da UFF, 15 (2), 63-76.         [ Links ]

Araujo, S. F. (2005). Wilhelm Wundt e o estudo da experiência imediata. Em A. M. Jacó-Vilela, A. A. L. Ferreira & F. T. Portugal (Orgs.), História da Psicologia: rumos e percursos (pp. 92-104). Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

Araujo, S. F. (2007). A fundamentação filosófica do projeto de uma psicologia científica em Wilhelm Wundt. Tese de Doutorado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.         [ Links ]

Boring, E. (1950). A history of experimental psychology (2nd ed.). New York: Appleton-Century-Crofts.         [ Links ]

Haeberlin, H. K. (1980). The theoretical Foundations of Wundt’s Folk Psychology. Em R. W. Rieber (org.), Wilhelm Wundt and the making of a scientific psychology (pp. 229-249). New York: Plenum Press.         [ Links ]

Rappard, H. (1980). A monistic interpretation of Wundt’s psychology. Psychological Research, 42 (1-2), 123-134.         [ Links ]

Wundt, W. (1902). Outlines of Psychology (2nd rev. ed.). Translated from the fourth German edition by C. H. Judd. Leipzig: Wilhelm Engelmann.         [ Links ]

Wundt, W. (1910). Principles of physiological psychology. vol. 1 (2nd ed.). Translated from the fifth German edition by E. B. Titchener. London: Swan Sonnenschein & Co.         [ Links ]

Wundt, W. (1912). Lectures on human and animal Psychology (5th ed.). Translated from the second German edition by J. E. Creighton & E. B. Titchener. London: George Allen & Co.         [ Links ]

Wundt, W. (1924). An Introduction to Psychology. Translated from the second German edition by M. A. R. Pintner. London: George Allen & Unwin.         [ Links ]

 

 

1 Figura na literatura secundária o debate acerca da continuidade/ruptura do pensamento psicológico de Wundt. Aqui seguiremos Araujo (2007) tanto em sua defesa da existência de uma ruptura fundamental em seu pensamento psicológico – fundamentada em uma reorientação de natureza filosófica –, quanto em seu quadro de referências para a interpretação do pensamento psicológico de Wundt. Assim, concentraremos nossos esforços na fase de maturidade de seu pensamento (1890-1920), limitando-nos a indicar algumas referências para estudo de seu projeto inicial: Araujo (2003, 2007).
2 A tradução para o português das passagens dos textos de Wundt aqui apresentadas foi realizada sobre as suas respectivas traduções inglesas.
3 Toma-se aqui a distinção estabelecida por Wilhelm Dilthey (1833-1911) entre Ciências da Natureza (Naturwissenschaften) e Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften) presente na tradição alemã a partir da segunda metade do século XIX, indicando a tentativa de se estabelecer para o estudo da experiência humana em relação ao estudo da natureza uma autonomia metodológica (Araujo, 2005).
4 Wundt (1910) ocupa-se especificamente desta questão ao tratar a clássica crítica de Immanuel Kant (1724-1804), determinante para todas as tentativas seguintes de elaboração de uma psicologia científica, segundo a qual a psicologia jamais poderia elevar-se ao grau de ciência genuína na medida em que: 1- a matemática não se lhe pode aplicar, pois seus fenômenos somente se apresentam no tempo, não havendo qualquer intuição do espaço, necessária à matemática; e, 2- não se pode submeter o sujeito pensante ao método experimental, restringindo-se seu método à introspecção pura.
5 Nesta seção, fora os momentos em que se recorre ao próprio Wundt, acompanha-se integralmente a sistematização fornecida por Araujo (2007), sendo, contudo, de minha responsabilidade quaisquer equívocos aqui cometidos acerca da gnosiologia wundtiana.
6 Para uma revisão mais detalhada dessa subdivisão da psicologia ver Araujo (2005, 2007).
* Gostaria de agradecer o Prof. Saulo de Freitas Araujo e o colega Leonardo Fernandes Martins pelas observações e sugestões à versão preliminar deste trabalho. No entanto, todos os eventuais equívocos presentes na versão final são de minha inteira responsabilidade.
** Endereço para correspondência com o leitor: Rua Aristóteles Braga, 300 B; São Pedro; Juiz de Fora; MG; Cep.: 36037-010. Endereço Eletrônico: thiagocrpereira@gmail.com. Telefone: (32) 8404-4512

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