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Psicologia em Pesquisa

versão On-line ISSN 1982-1247

Psicol. pesq. vol.9 no.2 Juiz de Fora dez. 2015

https://doi.org/10.5327/Z1982-1247201500020009 

ARTIGOS

 

Consumo de álcool e drogas e o trabalho do psicólogo no núcleo de apoio à saúde da família

 

Alcohol and drugs consumption and psychologist's work in health family support nucleus

 

 

Ana Izabel Oliveira LimaI; Magda DimensteinI; João Paulo MacedoII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN, Brasil
IIUniversidade Federal do Piauí (UFPI), Parnaíba, PI, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivou-se discutir os desafios para a prática do psicólogo no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) diante de demandas relacionadas ao consumo de substâncias psicoativas e às possibilidades de atuação. Como desafios, aponta-se a falta de atualização e manejo profissional; a crença dos profissionais de que nada pode ser feito em relação a problemas com álcool e drogas; o encaminhamento como única ação de cuidado; e a formação dos psicólogos ainda baseada no modelo de clínica liberal, privada, curativa. É preciso criar práticas de acordo com o contexto dos indivíduos, resgatar as múltiplas dimensões de saúde e incorporar outros saberes para compor a produção do cuidado com a saúde, como a Redução de Danos, que reconhece cada usuário em sua singularidade e traça estratégias de promoção da saúde.

Palavras-chave: psicologia; drogas; cuidado; saúde da família.


ABSTRACT

This study aimed at discussing the challenges faced by the psychologist in the Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) regarding the demands arising from consumption of psychoactive substances and the possibilities for action. With respect to challenges, it was pointed out the lack of professional updating and management; the professional belief that nothing can be done when it comes to alcohol and drugs; the referral as the only care action performed; and the education of psychologists still based on the liberal, private, curative and individual clinic model. We must create practices in accordance with the individual's context, as well as rescuing the multiple dimensions of health and incorporating other forms of knowledge so as to compose the production of health care, such as Harm Reduction, that recognizes each user in their uniqueness and devises strategies to promote health.

Keywords: psychology; drugs; care; family health.


 

 

Introdução

De acordo com a Organização Pan Americana de Saúde/OPAS (2009), cerca de 10% das populações dos centros urbanos de todo o mundo consomem de forma abusiva substâncias psicoativas, independentemente de idade, sexo, nível de instrução e poder aquisitivo. No Brasil, pesquisas indicam que 6,8% da população brasileira é dependente de álcool; 3% disseram já ter consumido maconha alguma vez na vida; e 4% da população adulta e 3% dos adolescentes já consumiram cocaína/crack — representando uma parcela significativa da população atingida por essa problemática (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas – INPAD, 2012).

As consequências do consumo de álcool e outras drogas constituem um dos mais graves problemas de saúde, exigindo a criação e manutenção de programas e políticas de prevenção e assistência articulados, além da formação permanente de profissionais de saúde (Claro, Oliveira, Almeida, Vargas & Plaglione, 2011). Tal fato impõe aos diversos campos de conhecimento científico a necessidade de desenvolver estratégias para abordar adequadamente a problemática do uso abusivo de tais substâncias, sobretudo em termos de seu impacto na saúde pública e na Atenção Primária (AP).

De acordo com Barros e Pillon (2007), as experiências de atendimento e acolhimento das demandas de saúde mental são constatadas por 56% das equipes de Saúde da Família, e os dados epidemiológicos apontam que de 6 a 8% da população necessita de algum cuidado decorrente do uso prejudicial do álcool e outras drogas. Diante disso, percebemos que é essencial a inserção de práticas de saúde mental na AP destinadas à problemática do consumo de álcool e drogas. A adoção de tais procedimentos redirecionaria o cuidado, numa perspectiva de atenção integral e humanizada, em articulação com os profissionais e os serviços já inseridos nos territórios (Arce, Sousa & Lima, 2011).

Todavia, Silveira (2009) ressalta que o despreparo dos profissionais, da família e da comunidade para lidar com o sofrimento psíquico tem se tornado cada vez mais evidente, e a medicalização dos sintomas foi muitas vezes percebida como incapacidade em atender os problemas psíquicos, tudo isso somado à ausência ou inefiiência dos serviços de referência. Isso revela as dificuldades das equipes de AP para trabalhar de forma efiaz com as demandas relacionadas à saúde mental. Como consequência, é cada vez mais evidente o excesso de demanda dos serviços e a falta de conhecimento das equipes para acolher essa população.

Algumas medidas foram propostas para lidar com essas questões no Brasil. Eleito pelo Ministério da Saúde como a estratégia oficial para guiar as ações de saúde mental na AP, o apoio matricial é uma delas (Brasil, 2003). Ele pode ser entendido como um suporte técnico especializado ofertado a uma equipe de saúde com a finalidade de ampliar seu campo de atuação e qualificar suas ações. O matriciamento deve proporcionar retaguarda especializada de assistência, assim como suporte técnico-pedagógico, vínculo interpessoal e apoio institucional no processo de construção coletiva de projetos terapêuticos voltados à população (Chiaverini, 2011).

Nessa perspectiva, o Ministério da Saúde criou, em 2008, o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) como estratégia de ampliação da diversidade e da abrangência das ações realizadas pela Estratégia Saúde da Família. Outra função do NASF é proporcionar a melhoria do atendimento à população, promovendo a produção de novos saberes e a ampliação da clínica (Brasil, 2008). Com nove áreas estratégicas (saúde da criança/do adolescente e do jovem; saúde mental; reabilitação/saúde integral da pessoa idosa; alimentação e nutrição; serviço social; saúde da mulher; assistência farmacêutica; atividade física/ atividades corporais; práticas integrativas e complementares), o NASF se configura como a principal ferramenta brasileira para a implantação de ações em saúde mental na AP

Segundo as orientações do Ministério da Saúde (Brasil, 2009), a equipe do NASF deve ser formada por profissionais de diferentes áreas do conhecimento, atuando em conjunto com os profissionais das equipes de Saúde da Família e compartilhando e apoiando as práticas em saúde nos territórios atendidos por essas equipes. Seus integrantes devem trabalhar com o matriciamento como lógica de atuação, apoiando as equipes de Saúde da Família na discussão dos casos, no atendimento compartilhado e na construção conjunta de projetos terapêuticos singulares, visando a coordenação e a continuidade do cuidado, bem como a proposição de projetos de saúde do território com foco no fortalecimento do tecido comunitário e na promoção da saúde.

Hoje, existem três modalidades de NASF:

  • NASF 1: composto por no mínimo cinco profissionais, deve desenvolver ações com pelo menos oito equipes de Saúde da Família.
  • NASF 2: voltado a municípios com menos de dez habitantes por quilômetro quadrado, deve incluir no mínimo três profissionais de nível superior de ocupações não-coincidentes, desenvolvendo ações com pelo menos três equipes de Saúde da Família.
  • NASF 3: é voltado ao desenvolvimento de ações de atenção integral a usuários de crack, álcool e outras drogas em municípios com menos de 20.000 habitantes. (Essa modalidade foi criada somente em dezembro de 2012, por meio da Portaria nº 3.124).

De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2009), diante da grande demanda por serviços de saúde mental à AP, é aconselhável que cada equipe do NASF conte com pelo menos um profissional de saúde mental, incluindo o psicólogo. Tal categoria tem participado do processo de implementação dos NASFs desde as primeiras experiências de matriciamento, especialmente no apoio e na discussão com as equipes de Saúde da Família sobre os cuidados aos usuários com sofrimento mental e seus familiares. Hoje, seu papel se ampliou, incluindo a atenção a idosos, jovens, mulheres vítimas de violência, usuários de álcool e outras drogas e outros grupos vulneráveis, buscando compartilhar seu saber com o de outros profissionais e com o da própria população (Conselho Federal de Psicologia – CFP, 2013).

A responsabilização compartilhada pelos casos permite regular o flxo de usuários nos serviços, tornando possível distinguir situações que poderiam ser acolhidas pelas próprias equipes de Estratégia de Saúde da Família, com apoio do NASF, e por outros recursos sociais do entorno — as redes de cuidado —, contribuindo para evitar práticas de "psiquiatrização" e, "ao mesmo tempo, promovendo a equidade e o acesso, garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário." (Figueiredo & Campos, 2009, p. 130).

As políticas voltadas ao tratamento de usuários de álcool e outras drogas englobam diversos setores da política pública, seja na área da segurança pública, seja nas áreas da saúde, assistência social e educação. O grande desafico dessa integração é atuar na perspectiva da garantia de direitos e, dessa maneira, enfrentar a lógica que trata a questão das drogas pelo viés exclusivo da doença e do crime. Essa lógica reducionista criminaliza e "patologiza" os usuários, que passam a ser objeto de discriminação, preconceito, exclusão, recolhimento e internação compulsória (CFP, 2013).

De acordo com o CFP (2013), o lugar do psicólogo nesse contexto deve ser construído por meio da prática e da posição por ele ocupada na abordagem aos usuários, devendo seu posicionamento explicitar o propósito de sua presença. Desse modo, não cabe aos profissionais de psicologia da equipe julgar de forma alguma ou censurar moralmente o comportamento dos indivíduos, seja em relação ao uso de substâncias psicoativas ilícitas, seja em termos de condutas antagônicas à moral e aos costumes tidos como aceitáveis. O papel dos profissionais é acessar um segmento que muitas vezes está à margem da rede de saúde e social por temer o estigma e a rejeição. A aceitação desses usuários como sujeitos possibilita a construção de um vínculo de confinça, base sobre a qual se desenvolverá o trabalho.

Dessa forma, a consolidação da psicologia como profissão da saúde pública representa uma aposta em sua potencialidade para transformar e reconhecer os fatores subjetivos, emocionais, históricos e das condições de vida dos usuários como determinantes para os quadros de saúde e doença da população. O psicólogo deve ampliar seus conhecimentos e intervenções com as famílias, permitindo que sua conduta profissional tenha um caráter coletivo, integrando as equipes multiprofissionais (Paulin & Luzio, 2009).

Apesar do grande número de usuários de substâncias psicoativas e da gravidade das questões que chegam aos serviços de saúde, poucas pesquisas abordam o modo como os profissionais da AP, em especial os psicólogos, lidam com questões relacionadas ao consumo abusivo e à dependência de álcool e drogas (Barros & Pillon, 2007). Nesse sentido, o presente estudo teve como objetivo discutir os desafios e as possibilidades para a prática do psicólogo no NASF diante de demandas que envolvem o consumo de substâncias psicoativas. Para tanto, recorreu-se à literatura disponível sobre o tema na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), a partir dos seguintes descritores: "psicólogo/psicologia", "atenção primária à saúde", "substâncias psicoativas" e "NASF". Foram localizados artigos, monografis, dissertações, teses e capítulos de livros. Porém, não foram identificadas publicações quando combinamos os descritores "psicólogo/psicologia", "NASF" e "substâncias psicoativas (álcool/drogas)", fato que reforça a necessidade de estudos sobre o tema. Apresentaremos a seguir as principais reflexões desenvolvidas com base no material identificado, articulando-o com os documentos ofiiais do Ministério da Saúde para a construção de argumentos e análises que fortaleçam a atuação do psicólogo na AP frente às demandas relacionadas ao uso abusivo de álcool e drogas.

 

Desafios para o psicólogo na atenção ao usuário de álcool e outras drogas

A saúde pública emprega muitos profissionais de psicologia, os quais atuam em diversas instituições, desde Unidades Básicas de Saúde (nível primário de atenção) até hospitais (nível terciário). Desde sua regulamentação como profissão no Brasil, a psicologia tem conquistado e ampliado seu espaço na saúde pública, sobretudo após a reforma sanitária e a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), um marco para o estabelecimento de um novo olhar sobre o processo saúde-doença. Antes vista somente como ausência de doença física, a saúde passa a ser contextualizada nas condições sociais e culturais do indivíduo (Meira & Silva, 2011). No entanto, apesar de a saúde pública abranger um considerável percentual de psicólogos, já que atualmente 49.402 profissionais são vinculados ao SUS (Brasil, 2015), observa-se grande dificuldade de atuação nessa área em virtude da formação ainda inadequada oferecida pela maior parte dos cursos no país (Paulin & Luzio, 2009).

Em pesquisa sobre a atuação de psicólogos na AP, Meira e Silva (2011) constataram que, em virtude da formação tradicional, a atuação profissional é predominantemente pautada por questões teórico-práticas limitadas às teorias terapêutico-curativas, o que leva a um reducionismo da compreensão do processo saúde-doença ou a uma "psicologização" desse fenômeno. Tal representação e perfil predominantes dos profissionais levam muitas vezes à simplifiação e ao não reconhecimento da psicologia como disciplina de relevância social e área de conhecimento importante para a promoção da saúde coletiva (Ronzani & Rodrigues, 2006).

De acordo com Romagnoli (2006), um obstáculo para a atuação dos psicólogos com as famílias é o desconhecimento da realidade das mesmas. Os membros das equipes do NASF geralmente pertencem a camadas mais favorecidas e, assim, têm a tendência de julgar as famílias atendidas — em geral de classes econômicas desfavorecidas — a partir do modelo dominante de família nuclear. Isso acaba desqualifiando as famílias que frequentam os serviços públicos. É necessário ter em vista que cada família possui uma organização própria, regida por lógicas diferentes, o que não as tornam superiores ou inferiores umas às outras. Portanto, para a realização de um trabalho efiaz, é necessário respeitar as particularidades de cada família.

Se trabalhar no âmbito da AP já representa um grande desafico para o psicólogo, quando o assunto é o consumo de substâncias psicoativas esse desafico se intensifia. Em pesquisa sobre como a AP responde às demandas relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas, Lima (2014) aponta que os profissionais entrevistados — incluindo o psicólogo da equipe do NASF — relatam que a única ação a ser feita é o encaminhamento a um serviço especializado. Para justificar os constantes encaminhamentos, os profissionais dizem não saber o que fazer com usuários de álcool e drogas.

De acordo com a autora, os relatos dos profissionais apontam um caráter prescritivo, ou seja, eles pensam saber o que é melhor para o outro. Muitas vezes, as conversas com os usuários se resumem a orientações do que a pessoa deveria fazer, isto é, que o correto seria ela não usar drogas. É possível observar uma compreensão subjacente de que o tratamento deve ter como meta a abstinência, pois as drogas seriam, a priori, algo ruim. Outro ponto exposto pela autora é a clara dificuldade de compreensão dos fatores que levam uma pessoa a usar drogas. No decorrer da pesquisa, quando levantada essa questão, muitos profissionais disseram não compreender por que alguém consome drogas, enquanto outros atribuíram essa "culpa" às condições de vida, à pobreza e aos problemas na família (Lima, 2014).

De acordo com Machado (2013), tais dificuldades têm uma dimensão técnica, mas também ética. Muitos se perguntam como acolher, o que fazer, o que propor às pessoas usuárias de drogas que chegam aos serviços e nem sempre estão dispostas a receber cuidado em saúde ou iniciar um tratamento. A abordagem dessas situações precisa estar associada a uma ampla compreensão tanto do fenômeno do uso/dependência de drogas quanto do alcance e da finalidade das práticas de atenção em saúde.

Nesse sentido, alguns complicadores se apresentam. A compreensão dos profissionais de saúde sobre o uso de substâncias psicoativas não é muito diferente da concepção hegemônica da sociedade. Usuários de álcool e outras drogas são muitas vezes vistos como cidadãos desprovidos de direitos, inclusive do direito à saúde e aos serviços de boa qualidade. A situação ideal, para muitos profissionais, é que eles interrompam o consumo de drogas antes mesmo de chegar aos serviços de saúde. No entanto, na maioria das vezes, não é isso que acontece (Machado, 2013). É possível identificar ainda problemas de infraestrutura, falta de financiamento para a implantação de unidades adequadas para receber os usuários e articular as ações possíveis e ausência de investimento na capacitação de profissionais da rede de saúde (Ribeiro, 2012).

Nesse sentido, a AP se mostra despreparada para enfrentar a complexidade da questão das drogas, que se coloca como um constante desafio. A própria relação dos profissionais com a comunidade é permeada por dificuldades objetivas (acesso, aceitação, comunicação) e subjetivas (medo, preconceito, desafetos) frequentemente relacionadas ao problema do consumo de drogas: tráfico, violência, desestruturação familiar — questões complexas que não podem ser tratadas isoladamente (Gonçalves, 2002).

No entanto, a saúde pública é um campo que exige novas metodologias de seus profissionais, e isso não exclui os psicólogos. Para uma atuação consistente, é preciso romper com o modelo tradicional e criar novas práticas de acordo com o contexto em que os indivíduos estão inseridos. É necessário também resgatar as múltiplas dimensões de saúde e reformular a postura de intervenção profissional, além de incorporar outros saberes para compor a produção do cuidado com a saúde (Paulin & Luzio, 2009).

A necessidade de superação desses entraves tem gerado novos campos de saber, ampliando a inserção da psicologia no âmbito da saúde. Com isso, é necessário repensar o modelo de fazer psicologia nessa área e expandir suas práticas e formas de atuação para que a intervenção aconteça de forma contextualizada.

 

Possibilidades de atuação do psicólogo na atenção ao usuário de álcool e outras drogas

Uma das saídas possíveis para tantos entraves no cuidado ao usuário de álcool e drogas na AP é o constante engajamento de todos os profissionais para o trabalho em equipe e em rede com outros serviços e equipamentos do território, de modo a buscar ajuda quando seus recursos não forem suficientes. Dessa forma, torna-se importante investir na articulação entre equipes de NASF, Centros de Atenção Psicossocial e diversos componentes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) a fim de promover atividades relacionadas ao uso de substâncias psicoativas, desde ações de prevenção até intervenções mais complexas e que exijam maior preparação do profissional acerca da temática (Araújo, 2013).

O NASF desempenha papel central nessas iniciativas, uma vez que cabe a ele as ações de matriciamento para que se tornem importantes estratégias de educação e de troca de saberes, atuando com os profissionais dos serviços de Saúde da Família de maneira a proporcionar o conhecimento necessário para que estejam aptos a receber essa demanda e acolhê -la de maneira adequada e humanizada. Percebemos também o matriciamento realizado pelas equipes do NASF como um importante articulador da rede de serviços de saúde, aumentando o leque de possibilidades e a circulação dos usuários pelos diversos domínios da rede de cuidado.

Araújo (2013) defende que é por meio de pequenas e graduais mudanças que o trabalho em equipe pode lançar um novo olhar sobre o consumo de substâncias psicoativas. Essas mudanças devem tomar lugar em todos os espaços, desde a graduação até os diversos serviços de saúde, apontando para a necessidade de repensar a formação dos diversos cursos da área da saúde para o âmbito da saúde mental e do consumo abusivo de substâncias psicoativas.

Algumas possibilidades e linhas de intervenção do psicólogo, enquanto membro de uma equipe do NASF — seja no âmbito preventivo, de promoção e proteção, seja no contexto terapêutico e de reabilitação psicossocial, a partir dos serviços ou em articulação com eles —, como ações baseadas nos pressupostos da Redução de Danos (RD), a estratégia da Triagem e Intervenção Breve (TIB) e alternativas de cuidado em rede considerando os diferentes tipos de consumo de substâncias psicoativas, podem ser efetivadas.

De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2013), a inclusão da RD como uma das ações de saúde da política de AP pressupõe sua utilização como abordagem possível para lidar com diversos agravos e condições de saúde. Atuar nessa perspectiva pressupõe a utilização de tecnologias relacionais centradas no acolhimento empático, no vínculo e na confinça. Considerando-se especificamente a atenção aos problemas de álcool e outras drogas, a estratégia de RD visa minimizar as consequências adversas criadas pelo consumo de drogas, tanto na saúde quanto na vida econômica e social dos usuários e seus familiares. Nessa perspectiva, a RD postula intervenções singulares que podem envolver o uso protegido, a diminuição ou mudança nos padrões de uso, a substituição por substâncias que causem menos problemas e até a abstinência (Brasil, 2013).

Outra ação necessária é trabalhar as crenças e representações sociais que a população, os trabalhadores de saúde e os próprios usuários de drogas têm sobre essa condição, de maneira a superar as barreiras que agravam sua vulnerabilidade e dificultam a busca por tratamento. Lidar com os próprios preconceitos sobre o que desperta o consumo de drogas é fundamental para poder cuidar das pessoas que precisam de ajuda por esse motivo.

Percebemos então que a abordagem da RD oferece um caminho promissor por reconhecer cada usuário em sua singularidade e traçar com ele estratégias para promover a saúde e garantir seus direitos enquanto cidadão. No entanto, é de fundamental importância o desenvolvimento de ações de educação permanente a fim de que os trabalhadores da saúde aperfeiçoem o diálogo para que possam transmitir não só medidas de segurança à saúde, mas também confinça, respeito e aceitação. Não podemos nos esquecer de que a questão do preconceito ainda representa um empecilho ao desenvolvimento de algumas estratégias de RD (Fonsêca, 2012).

Destacamos também, dentre as estratégias que podem ser pensadas no campo da prevenção ao uso abusivo de álcool e outras drogas, a TIB para o uso abusivo de substâncias, que está sendo avaliada para populações específicas, principalmente no contexto da AP, em todo o mundo (Ronzani, 2008), devido à possibilidade de vínculo entre os usuários e a equipe de saúde e à efetividade do monitoramento do tratamento. De forma geral, a TIB apresenta um enfoque educativo e motivacional, no qual o principal objetivo é desencadear a decisão e o comprometimento com a mudança dos pacientes, com a finalidade de reduzir o risco de danos ocasionados pelo consumo exagerado de substâncias psicoativas.

A TIB foi proposta como abordagem terapêutica para usuários de álcool em 1972, por SanchezCraig e colaboradores, no Canadá (Neumann, 1992). Trata-se de uma estratégia baseada na abordagem motivacional para prevenção com foco na mudança de comportamento do usuário por meio do atendimento com tempo limitado, a ser realizado por profissionais de diferentes formações, desde que devidamente treinados. A TIB, no entanto, não serve apenas para tratar problemas relacionados ao álcool, mas também para ajudar na mudança de uma série de comportamentos, como modificar a dieta, parar de fumar, perder peso, entre outros.

A TIB possui baixo custo e se mostra efetiva para questões relacionadas ao uso de risco de substâncias psicoativas, sendo uma ferramenta destinada a reforçar a autonomia nas escolhas do usuário, assim como sua capacidade de gerir seus problemas. Desse modo, ela tem sido usada para prevenir ou reduzir o consumo de álcool e outras drogas, bem como problemas associados, e orientar de modo focal e objetivo sobre os efeitos e as consequências relacionados ao consumo de risco, constituindo-se também como um meio adequado para referenciar casos de dependência para tratamentos especializados (Ronzani, 2008).

Ronzani, Mota e Souza (2009) apontam que os estudos sobre a TIB se concentram em duas direções principais: sua efetividade na redução de padrões de uso da substância e as condições em que tem sido implementada, tendo como foco o preparo dos profissionais envolvidos. Os autores afirmam que a utilização de apenas cinco a dez minutos de consulta de rotina para aconselhamento dos usuários de risco de álcool por profissionais de saúde consegue reduzir o consumo em 20 a 30%. Uma vez que, a depender da região, durante o período de um ano, entre 60 e 75% da população procura algum tipo de atendimento em serviços de AP, a implantação de estratégias de TIB para usuários de risco, nesses serviços, permitiria detectar pessoas com tal tipo de uso e intervir precocemente (Ronzani, Mota & Souza, 2009).

Quando associados à TIB, os instrumentos de rastreamento/triagem — como, por exemplo, o questionário CAGE, o AUDIT e o ASSIST, que são ferramentas de identificação de padrões de uso do álcool, do tabaco e de outras drogas — facilitam a aproximação inicial e permitem um retorno objetivo para o paciente, possibilitando assim a introdução dos procedimentos de TIB e de motivação para a mudança de comportamento em relação à substância. Por essa razão, a Organização Mundial da Saúde (OMS) vem desenvolvendo, há alguns anos, estudos multicêntricos em diversos países com o objetivo de avaliar a implementação de rotinas de TIB para o uso de álcool e outras drogas em serviços de AP. A ênfase de tais estudos tem sido na avaliação do impacto do treinamento de profissionais de saúde e da supervisão continuada na mudança de atitudes dos profissionais e na incorporação da TIB na rotina dos serviços (Ronzani, Mota & Souza, 2009).

Segundo a OMS (2011), uma vez que a promoção da saúde e a prevenção de doenças faz parte do dia a dia de trabalho das equipes de AP, tendo em vista as ações de prevenção e detecção de doenças rotineiras nas Unidades de Saúde (tais como aquelas relacionadas à imunização, à pressão arterial, à obesidade, ao consumo de tabaco, entre outras), os usuários confim nas informações que recebem dos profissionais de cuidados primários sobre os riscos à saúde, particularmente aquelas relacionadas ao uso de substâncias. A OMS diz ainda que, nos países desenvolvidos, 85% da população acessa um profissional de cuidados primários de saúde pelo menos uma vez por ano, e é provável que usuários com problemas relacionados ao consumo de álcool e outras drogas façam parte dessa população (OMS, 2011). Isso significa que os profissionais da AP têm a oportunidade de intervir numa fase inicial, antes que o usuário desenvolva sérios problemas pelo uso de drogas e pela dependência.

Nesse sentido, pode-se agir a partir da identificação do tipo de consumo da substância psicoativa pelo usuário para pensar em possíveis planos de ação. Diante de um caso de uso recreativo, por exemplo, o psicólogo, em parceria com as equipes de Saúde da Família, pode: considerar o padrão cultural do uso de álcool e outras drogas pela comunidade, como, por exemplo, seu consumo em atividades festivas ou por determinados grupos sociais (uso experimental e ocasional), ou ainda como "remédio" (uso circunstancial ou situacional) para lidar com o sofrimento ou suportar viver, sempre relacionando essas questões com as condições de trabalho e de vida; pensar em estratégias de orientação, educação e prevenção voltadas a usuários, familiares, à comunidade em geral e à população específica, considerando-se o quadro epidemiológico local e nacional por substâncias, para o conhecimento dos danos e das vulnerabilidades decorrentes, ações de cuidado e proteção oferecidas pela rede de serviços e grupos de apoio comunitário; realizar visitas domiciliares periódicas com o objetivo de estreitar o vínculo e motivar o usuário e a família a procurarem ajuda e acompanhamento dos riscos com foco na RD, para não evoluírem para padrões de uso comprometedores; e participar de ações preventivas e educativas em conjunto com outros equipamentos do território (escolas, Centros de Referência da Assistência Social/CRAS e grupos comunitários) para promover ações que incentivem a diminuição da disponibilidade de substâncias psicoativas na comunidade, além de oferecer orientações com o intuito de evitar o uso experimental e ocasional entre jovens e adolescentes e intervenções para que estes não se associem a grupos ou manifestações que usam ou valorizam o uso de substâncias, bem como o acompanhamento dos casos em que o uso recreativo é presente em famílias em situação de vulnerabilidade e fragilidade dos vínculos afetivos e sociocomunitários.

Diante de casos de consumo abusivo de álcool e drogas, o psicólogo pode: acompanhar mais intensivamente os casos identificados pela equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) com padrão de uso regular e abusivo e com prejuízos à funcionalidade, exposição a riscos, danos e vulnerabilidades; trabalhar a partir do manejo do vínculo, da escuta qualificada e do acolhimento do sujeito em suas necessidades e singularidade permanece imprescindível para minimizar as resistências e oferecer abordagem direta e assertiva que motive o indivíduo e a família a procurarem ajuda, além de construir ações para o cuidado em parceria com outros serviços; recuperar ações de avaliação clínica e abordagem terapêutica inicial em usuários com padrão de uso abusivo recorrente e que apresentam agravos físicos, comportamentais e sociais; intensificar ações de RD, como orientações e intervenções breves para minimizar as situações de vulnerabilidade e exposição a riscos físicos e sociais; oferecer assistência psicológica e orientação com o serviço social para ampliar as ações de cuidado na rede de saúde e assistência social e no território; e apoiar a equipe ESF, inclusive com matriciamento, nas ações de orientação, educação, prevenção e proteção quanto aos riscos do uso abusivo: policonsumo, acidentes de trânsito, violência, comportamento sexual de risco, intoxicação, dependência, comportamentos impulsivos e disruptivos, comportamento suicida e evolução no padrão de uso para dependência, bem como transição para outros tipos de droga, considerados "mais pesados"; e esclarecimento sobre os direitos no caso de conflitos com a Justiça e com aparelhos de segurança pública.

As equipes de AP, incluindo o psicólogo, também podem atuar em casos de uso dependente. Suas ações podem se basear em: intensificar a atuação em casos de usuários que vivem em territórios com grande disponibilidade de substâncias; o manejo do vínculo, a escuta qualificada e o acolhimento do sujeito em suas necessidades e singularidade são ferramentas fundamentais para tratar esse padrão de uso; priorizar intervenções que considerem as necessidades individuais, a relação com a substância, o padrão de uso do indivíduo e sua prontidão para aceitar qualquer tipo de acompanhamento, conforme seu estágio para mudança (pré-contemplação, contemplação, ação, manutenção e recaída), além do contexto familiar e da rede de suporte e apoio; considerar e se articular com outros serviços de suporte para cuidar das complicações clínicas, dos possíveis prejuízos sociais, das comorbidades psiquiátricas (transtornos de ansiedade e humor, psicose e transtorno de personalidade), das vulnerabilidades, dos fatores sociais e de pobreza, acompanhada de senso de desesperança e sofrimento psicossocial, além dos níveis de tolerância e do quadro de abstinência; oferecer ação de RD, como orientações e intervenções breves para minimizar as situações de vulnerabilidade e a exposição a riscos físicos e sociais; esclarecer e motivar o tratamento ambulatorial e psicossocial na rede CAPS com modalidade de atendimentos individuais e/ou grupais, com foco na reabilitação psicossocial, com apoio e proteção para modificar padrões de uso dependente e compulsivo e seus riscos. Para os casos que envolvam situação de violência e/ou negligência em relação a crianças, idosos e demais perfil sociais em situação de fragilidade, articular-se com os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Ademais, pode-se articular com equipes de consultório de rua ações em conjunto para ampliar o acesso e identificar novos casos para o cuidado da população de rua; propor ações de caráter preventivo e protetivo aos Centros de Convivência e Cooperativa (Cecco) para ampliar as ações de cuidado e fortalecer o acesso aos demais serviços; articular ações de profissionalização e projetos de geração de renda para o fortalecimento de projetos de futuro; esclarecer e orientar sobre os direitos no caso de conflitos com a Justiça; motivar usuários e familiares a se inserirem em grupos de apoio e ajuda-mútua e grupos de fortalecimento de vínculos, além de outras ações de suporte e acompanhamento nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) para diminuir a resistência e o fracasso de sua participação nesses grupos.

Essas são apenas algumas ações que podem ser realizadas com o objetivo central de ampliar o acesso e a qualidade da assistência a indivíduos e famílias com problemas relacionados a álcool e drogas. Tais iniciativas devem partir do estabelecimento de linhas de cuidado para cada padrão de uso, com ações clínicas e de gestão para cada serviço, bem como entre eles, para avançarmos no trabalho em rede.

Dessa forma, torna-se necessário que intervenções desenvolvidas no âmbito da saúde mental busquem fortalecer o modo de atenção psicossocial, apostando no resgate da singularidade de cada usuário, investindo no comprometimento com seus sintomas e seu tratamento e incentivando seu protagonismo. Tais movimentos são capazes de incitar a ruptura com a lógica da identificação dos sujeitos com a doença e com a concepção de cura restrita à solução medicamentosa, além de auxiliar na construção de outros laços sociais, para além do grupo, apostando na força do território e da cidade como alternativas para a reabilitação psicossocial.

 

Considerações finais

A partir das análises aqui apresentadas, é possível identificar alguns desafios que marcam a atuação do psicólogo no NASF diante do consumo de substâncias psicoativas, tais como: a falta de formação contínua e de manejo profissional, a crença dos profissionais de que nada pode ser feito em relação a problemas com álcool e drogas, gerando o encaminhamento como única ação de cuidado, e a formação dos psicólogos ainda baseada no modelo de clínica liberal, privada, curativa. No entanto, mesmo diante de tais entraves, é possível construir práticas sintonizadas com o contexto dos indivíduos, resgatar as múltiplas dimensões de saúde e incorporar outros saberes para compor a produção do cuidado integral, como é a perspectiva da RD — por reconhecer cada usuário em sua singularidade e traçar estratégias de promoção da saúde.

É inegável que há muito a ser feito em termos de práticas inovadoras em psicologia no SUS, em especial na AP. Tornou-se, no entanto, expresso o movimento de mudanças que, pouco a pouco, vem buscando e alcançando modos mais efetivos de participar das transformações necessárias ao desenvolvimento do SUS.

Trata-se de pensar em uma política de atenção ao usuário de álcool e drogas na qual as alternativas sejam construídas por meio do diálogo entre os diversos setores da população (Paulin & Luzio, 2009). O trabalho deve ser encaminhado sob a égide da potencialização dos laços sociais, devendo fornecer respostas para as diferentes situações e necessidades dos usuários, acolhendo e cuidando deles desde a urgência até o acompanhamento psicossocial e, além disso, intervindo nas cenas de uso, criando vínculo e garantindo acesso sem preconceitos e compulsoriedade.

Dessa forma, torna-se imprescindível o investimento na contínua formação dos profissionais que fazem parte dos diversos componentes da RAPS a partir dos princípios da educação permanente — incorporando criativamente os avanços técnico-científios às bases teóricas já existentes, problematizando as demandas sociais emergentes e considerando as condições socioeconômicas e estruturais dos profissionais e da população. Nesse sentido, ressalta-se a necessidade de os avanços científios repercutirem nas pessoas não exclusivamente pela atuação dos profissionais de saúde, mas também pelo impacto positivo que têm nos conhecimentos, valores e comportamentos das comunidades e dos sistemas sociais (Costa, Mota, Cruvinel, Paiva, & Ronzani, 2013).

Campos e Guarido (2010) afirmam que viver o contraditório na prática psi da AP e percorrer o caminho do consultório para esse amplo espaço social é abrir mão do trabalho protegido, de paradigmas técnicos estabelecidos e se lançar num pensar psicológico que se torne possível sempre que as relações se construam.

Este estudo chegou a algumas indicações que podem contribuir para pesquisas futuras também interessadas em investigar a atuação do psicólogo na AP frente às demandas relacionadas ao uso abusivo de álcool e drogas. Os problemas apontados atravessam as práticas desse profissional em nível nacional, e muito pouco se tem avançado no sentido de ampliar o acesso dos profissionais de saúde a informações sobre as habilidades específicas para detectar precocemente problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas e intervir de forma efiaz. Contudo, algumas estratégias foram traçadas neste trabalho no intuito de fornecer ferramentas para uma abordagem territorial de cuidado em saúde mental.

 

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Endereço para correspondência
Ana Izabel Oliveira Lima
Universidade Potiguar – Laureate International Universities
Departamento de Psicologia
Av. Engenheiro Roberto Freire, 2184 – Capim Macio
CEP: 59082-175 – Natal/RN
E-mail: izabel.lima@unp.br
, anaizabel.psi@gmail.com

Recebido em 21/06/2015
Revisto em 04/09/2015
Aceito em 19/10/2015

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