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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.13 no.3 Juiz de Fora set./dez. 2019
https://doi.org/10.34019/1982-1247.2019.v13.25781
ARTIGOS
Práticas de cuidado de crianças com bebês em instituição de acolhimento
Care practices of children with babies in a foster institution
Prácticas de cuidado de bebés por los niños en instituciones de acogida
Cíntia CarvalhoI; Gabriella Garcia MouraII; Kátia de Souza AmorimIII
IUniversidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Email: cintiacarvalhoufms@gmail.com
IIUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES). Email: gabigmoura@yahoo.com.br
IIIUniversidade de São Paulo (USP). Email: katiamorim@ffclrp.usp.br
RESUMO
Buscando investigar práticas de cuidados de crianças com bebês em acolhimento institucional, conduziu-se estudo de caso exploratório e longitudinal acompanhando Ana, bebê com idade entre 10-12 meses. Por meio de videogravações semanais, em ambiente naturalístico, foram categorizados episódios de cuidado. Três categorias finais foram descritas: cuidados orientados por atenção; cuidados orientados por solicitude (criança atendeu à necessidade expressa do bebê) e; cuidados orientados por tensão (criança agiu frente a um risco ao bebê). Discutiu-se o caráter empático e pró-social destas práticas e seu potencial para promoção do desenvolvimento e aprendizagem das crianças acolhidas e formação da sua rede socioafetiva. Destacou-se, também, o papel mediador do adulto no planejamento do ambiente, da supervisão e da significação das ações das crianças nestes encontros.
Palavras-chave: Cuidado da criança; Criança acolhida; Interação social.
ABSTRACT
Aiming to investigate care practices of children with babies in institutional care, an exploratory and longitudinal case study was conducted accompanying Ana, a baby aged between 10-12 months. Based on weekly video recordings made in a naturalistic environment, episodes of care were categorized. Three final categories were described: attention-oriented care; request-oriented care (the child met the infants' expressed needs); stress-oriented care (the child acted upon a risk to the baby). The empathic and pro-social character of those practices, their potential to promote foster children's development and learning, and the formation of their social-affective network were discussed. The mediating role of the adult in planning the environment, the supervision and the signification of the children's actions in these encounters was also highlighted.
Keywords: Child care; Foster child; Social interaction.
RESUMEN
Buscando investigar las prácticas de cuidado de bebés por los niños en instituciones de acogida, se realizó un estudio de caso exploratorio y longitudinal acompañando a Ana, una bebé de entre 10-12 meses de edad. Por medio de videograbaciones semanales, en un ambiente natural, se categorizaron los episodios de cuidado. Se describieron tres categorías finales: cuidados orientados por atención; cuidados orientados por solicitud (el niño atendió a la necesidad expresada por el bebé) y; cuidados orientados por tensión (el niño reaccionó frente a un riesgo para el bebé). Se discutió el carácter empático y pro social de estas prácticas y su potencial para la promoción del desarrollo y aprendizaje de los niños acogidos y la formación de su red socio afectiva. Se destacó también, el papel mediador del adulto en la planificación del ambiente, de la supervisión y significación de las acciones de los niños en estos encuentros.
Palabras clave: Cuidado del niño; Niño acogido; Interacción social.
Dentre todas as espécies, bebês humanos estão entre aquelas com maior período de dependência do outro para sobreviver. Sua imperícia, fragilidade e incompletude resultam na necessidade de assistência constante. O cuidado prolongado e a relação com o outro social são condições inerentes não só para sua sobrevivência como para sua inserção cultural (Rossetti-Ferreira, Amorim & Silva, 2004). Considerando a relevância desse tema, sucessivas revisões de literatura apontam que o cuidado de bebês tem sido tradicionalmente estudado na interação com a mãe (Amorim, Anjos & Rossetti-Ferreira, 2012; Carvalho, 2019; Moura, 2017).
Contudo, como destacam Amorim et al. (2012), nas últimas décadas do século XX, com o crescente ingresso da mulher no mercado de trabalho e maior demanda por cuidados de crianças em creches e pré-escolas, cresceu também o interesse dos pesquisadores pelas formas de sociabilidade de bebês em ambientes de cuidados coletivos - onde há uma menor proporção de adultos por criança, favorecendo uma maior relação entre os pares de crianças. Com o deslocamento do foco da relação diádica adulto-criança, pesquisas passaram a refletir e investigar sobre implicações do compartilhar do bebê com seus coetâneos, abrindo espaço para se discutir a importância das interações de pares nos processos desenvolvimentais, inclusive na oferta e promoção de cuidados (Lordelo & Carvalho, 1998) e ocupando o papel educativo e mediador (Amorim, 2012).
Nesse sentido, diversos estudos vêm apontando que crianças são capazes de oferecer a outras crianças (coetâneos ou não; com grau de parentesco ou não), cuidados básicos, ajuda e conforto (Cavalcante, 2008; Cavalcante, Costa & Magalhães, 2012; Cruz, Pedroso & Costa, 2018). Lordelo e Carvalho (1998) caracterizam esse comportamento de cuidado entre crianças pré-escolares como "ações complexas de acompanhamento e provisão às necessidades atribuídas ao outro" (p. 7). As autoras ainda destacam, a partir de ampla revisão de literatura, que o comportamento de cuidado entre crianças tem sido caracterizado através da oferta de alimentos; de proporcionar cuidados físicos; transportar; estabelecer contato afetivo; oferecer apoio emocional; proteger de perigos; oferecer objetos; entreter; disciplinar; ensinar; brincar de cuidar; oferecer aprovação; conferir privilégios (Lordelo & Carvalho, 1998; Carvalho, 2000).
Entretanto, considerando que grande parte destes conhecimentos produzidos acerca das interações de crianças são desenvolvidos em contextos (pré-)escolares (do tipo creche), interrogou-se: como se dariam as interações de crianças e bebês em instituições de acolhimento? De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990), tais instituições acolhem provisoriamente crianças e adolescentes afastados do convívio familiar por motivos relacionados à violação de direitos, enquanto aguardam processo de reintegração familiar (seja pelo retorno à família de origem ou a uma família substituta - adoção). Assim como as creches, as instituições de acolhimento configuram-se como contextos de cuidado coletivo onde há menor proporção adulto-criança, de modo que os pares costumam ser os parceiros mais disponíveis (Carvalho, 2019; Fernandes & Monteiro, 2017; Moura, 2017). Frente a este cenário, questiona-se se ocorrem e, em caso afirmativo, como se dão as interações envolvendo cuidados entre crianças nesses contextos.
Em busca de ponderar sobre estas questões, realizou-se uma revisão de literatura por meio das bases: BVS, Periódicos Capes e PsycInfo. Os descritores utilizados nas buscas foram "Asilo", "Abrigo", "Orfanato", "Orphanages", "Abrigo" ou "Instituição de acolhimento", sem limite de tempo das publicações. Como critério de inclusão, considerou-se apenas artigos científicos em português, inglês e espanhol e, ainda, que abordassem bebês, crianças e adolescentes. Como critério de exclusão, considerou-se artigos que tratavam de outros assuntos e contextos, além de capítulos, relatórios, livros eletrônicos e resumos de congresso. Foram encontrados e analisados na íntegra, 75 artigos que enfocavam o campo nos termos pretendidos.
Como principais resultados desta revisão, destaca-se que os estudos sobre interações de crianças pequenas foram conduzidos, em sua maioria, em contextos de creches (Amorim et al., 2012) e; que, dentre os diversos temas e objetos de pesquisas acerca do acolhimento institucional, não foram encontrados estudos sobre interações de bebês com outras crianças acolhidas, sendo as interações com os adultos cuidadores as centralmente enfatizadas (Lemos, Gechele & Andrade, 2017; Medeiros e Martins, 2018; Tomás & Vectore, 2012). Alguns estudos enfocaram as interações de pares em contextos de acolhimento, porém todos com crianças mais velhas e/ou adolescentes, não sendo consideradas as relações envolvendo crianças pequenas. Nesta temática, destacaram-se estudos com enfoque no desenvolvimento de relações afetivas, padrões empáticos e vínculos entre irmãos (Cavalcante et al., 2012; Golin, Benetti & Donelli, 2011; Hidalgo et al., 2016; Lo et al., 2015).
Portanto, em consonância com a revisão de literatura realizada por Moura e Amorim (2018), observa-se que as pesquisas sobre experiências e vivências de bebês em acolhimento têm sido escassas, de modo que os desafios e as necessidades específicas dessa faixa etária ainda permanecem pouco visibilizadas. Diante dessa lacuna e considerando a importância das interações de pares nos processos constitutivos, as questões permanecem em aberto: como ocorrem as relações de cuidado entre crianças acolhidas, em especial aquelas envolvendo bebês? Ainda, por se tratar de um contexto recorrentemente marcado por baixos índices de interação e responsividade dos adultos cuidadores (Carvalho & Vectore, 2008; Golin et al., 2011; Moura & Amorim, 2018), quais são as particularidades das relações de cuidado entre crianças construídas nestes contextos? Partindo dessas questões, o objetivo do presente estudo foi investigar e apreender as ocorrências de práticas de cuidado de crianças com bebês em situação de acolhimento institucional.
Método
Com natureza exploratória e abordagem qualitativa, foi conduzido Estudo de Caso em ambiente naturalístico, que permite investigar empiricamente "um fenômeno contemporâneo dentro do seu contexto de vida real" (Yin, 2001, p. 32).
Contexto e participantes
O presente trabalho representa um recorte de uma pesquisa de Doutorado realizada em uma instituição de acolhimento do Estado do Mato Grosso do Sul. Tratava-se de uma entidade pública municipal que funcionava há cerca de 17 anos e tinha capacidade para acolher até vinte crianças e adolescentes, de ambos os sexos, com faixa etária de zero a dezoito anos. No decorrer da pesquisa, de março a outubro de 2016, 14 crianças/adolescentes foram acolhidas, sendo: quatro bebês de 2 a 12 meses de idade (3 meninas e 1 menino); quatro crianças de até cinco anos de idade (3 meninas e 1 menino); e seis crianças/jovens com idade entre sete e quatorze anos de idade (3 meninas e 3 meninos). Dentre os funcionários, oito cuidadoras trabalhavam em duplas, em regime de turnos de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso.
Considerando a meta de acompanhar longitudinalmente as possíveis relações de cuidado entre crianças acolhidas, para a seleção dos bebês focais, analisou-se o histórico e os protocolos de cada bebê. A meta era identificar aqueles bebês que tenderiam a ficar mais tempo na instituição, em função da tramitação dos seus processos judiciais de suspensão/destituição do poder familiar, guarda e/ou adoção. Outro critério de seleção referiu-se à faixa etária: o bebê focal deveria ter preferencialmente mais de seis meses, já que, a partir desta idade, amplia-se o repertório neuromotor e comunicativo do bebê, permitindo que ele se expresse, se direcione, (re)aja e corresponda às expressões e comportamentos dos seus parceiros (Mendes & Seidl-Moura, 2009). A partir de tais critérios, dois bebês focais foram selecionados para participar do estudo original, cujos nomes fictícios são: Ana (acompanhada dos 10 aos 12 meses); e, Caio (7-9 meses). No presente trabalho, será dado destaque ao -estudo de -caso de Ana. Além de Ana, também foram consideradas participantes as demais crianças presentes na instituição que se envolveram em cuidados com o bebê focal.
Instrumentos e Procedimentos de coleta de dados
Para a busca de compreensão dos processos interativos das crianças acolhidas, a presente pesquisa tomou como base a perspectiva teórico-metodológica da Rede de Significações (RedSig) (Rossetti-Ferreira, et al., 2004). Ancorada em pressupostos histórico-culturais, a RedSig destaca o caráter relacional e contextual do desenvolvimento humano e a complexidade que envolve as mútuas transformações, pessoais e sociais, em seus aspectos subjetivos, materiais, históricos.
A partir desta perspectiva, para a coleta de dados, optou-se pela utilização de videogravações e registros observacionais em diários de campo. As videogravações foram realizadas semanalmente, com duração de trinta minutos com cada bebê. No caso específico de Ana, o acompanhamento foi realizado no período de março a junho de 2016, totalizando 13 semanas de videogravações. A coleta ocorreu em dias alternados da semana, em horários predefinidos pela instituição. Já o diário de campo possibilitou uma descrição do cotidiano institucional por meio do registro de situações e informações que situavam e extrapolavam o enquadre da câmera (como data, idade, informações sobre as histórias das crianças ou de outros participantes, dentre outros).
Procedimentos de análise dos dados
Com base nos estudos de Lordelo e Carvalho (1998) e Cavalcante (2008), cada uma das videogravações foi analisada buscando mapear a ocorrência de episódios interativos envolvendo práticas de cuidados entre as crianças. A noção de interação aqui utilizada é a de uma interação que englobe mais do que simplesmente fazer algo juntos. A interação é compreendida enquanto potencial de regulação entre componentes de um sistema (no caso, formado pelos bebês e pelas crianças), contemplando uma regulação não necessariamente intencional entre parceiros (Carvalho, Império-Hamburguer, & Pedrosa, 1996). De acordo com as autoras, no campo interativo, há interesses pelo outro, orientação de comportamentos dirigidos a e derivados pelo outro, além da regulação de suas ações pela própria ação e pela do outro. Dessa maneira, os movimentos ou mudanças de comportamento de um dos componentes não podem ser compreendidos sem que se considere a existência, os movimentos ou o comportamento de outros componentes, mesmo que entre eles não haja uma troca explícita. O comportamento é regulado, ainda que um dos parceiros não saiba que está regulando o comportamento do outro. A ação de regular também pode assumir a forma de regulação recíproca (ou corregulação), na qual as ações individuais se ajustam de forma a compor atividades compartilhadas, conjuntas, implicando em reciprocidade e mutualidade.
Com base nesse referencial, conduziu-se o mapeamento de onde ocorriam, quem participava e como se configuravam as interações de Ana com seus parceiros sociais. Identificados os episódios, passou-se à análise minuciosa dos tipos de práticas de cuidado. Para o presente estudo, além da apresentação geral dos resultados, selecionou-se três episódios interativos, sobre diferentes tipos de práticas de cuidado, os quais possibilitam discutir aspectos psicossociais envolvidos na sociabilidade infantil, destacando as particularidades destes processos em um contexto de acolhimento institucional marcado por circunscritores sócio-historicamente dados (Rossetti-Ferreira et al., 2004).
Procedimentos éticos
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o número 49131215.7.0000.5407, em 26/02/2016. Uma vez consentida sua realização, em conformidade com a Resolução nº466/2012, procedeu-se com o Processo de Consentimento Livre e Esclarecido de modo que, a todos os participantes (incluindo crianças mais velhas, adolescentes e responsáveis pelos bebês), foram apresentados os objetivos, métodos e justificativas da pesquisa, além da natureza voluntária de participação. Ressalta-se a preocupação com a não violação dos direitos dos participantes, em especial a proteção de sua identidade, autonomia e dignidade, indicando aos mesmos a possibilidade de recusar a qualquer momento a continuidade no estudo. Em resguardo à sua privacidade e da própria instituição, todos os nomes expostos no estudo são fictícios e as imagens foram tratadas tecnologicamente para impedir a identificação.
Resultados
Os registros observacionais permitiram verificar que os locais onde mais ocorriam interações das crianças com Ana (bebê focal, 10 a 12 meses de idade) eram a varanda e duas salas, onde ela era colocada no chão e podia se deslocar. De tal modo, o maior número de interações de Ana com outras crianças ocorreu quando ela estava no chão (em especial, na varanda) - à altura e ao alcance das demais. O local onde era colocada mostrou, assim, ter papel significativo na promoção (ou não) das interações do bebê. Quando ela se encontrava em espaços facilitadores das interações, ou seja, quando colocada em cômodos onde havia outras crianças, ou quando retirada de berços e carrinhos que impediam sua livre locomoção para ser colocada no chão, aumentavam as ações de cuidados, já que estas condições privilegiavam o contato e o encontro com as outras crianças. Apesar disso, o estudo também mostrou que as demais crianças eram parceiras disponíveis para interação, mesmo quando o bebê se encontrava no berço.
Nas interações das crianças com Ana, ocorriam inúmeras interações co-reguladas, sendo estas o tipo de interação mais frequente de Ana com as outras crianças. Tratavam-se de interações que, em sua maioria, eram breves (com duração de até um minuto), mas recíprocas, mutuamente orientadas, implicando engajamento social. Por exemplo, em uma das gravações, Ana estava sozinha no chão da sala quando olhou para um brinquedo na estante. Olhou também para Joana (oito anos), que passava na sala naquele instante. Percebendo o interesse de Ana, Joana pegou-a no colo, fez carinhos e a colocou no alto, ao alcance do brinquedo (um carrinho), permitindo-lhe tocá-lo. Da mesma forma, em outros episódios, observou-se trocas de olhares e de sorrisos, o direcionamento mútuo de gestos, de vocalizações e de movimentos entre crianças e bebê focal.
Contudo, Ana e as crianças não interagiam apenas de forma co-regulada. Ana também regulava seus comportamentos em função de outras crianças mesmo que não houvesse ou não implicasse em reciprocidade. Por exemplo: Ana engatinhava em direção a outra criança, mantinha-se próxima, oferecia os braços para ir ao colo, direcionava expressões emocionais e comunicativas com gestos, movimentos e posicionamento corporal. Além disso, Ana também regulava o comportamento das crianças mesmo sem perceber ou sem responder a elas. Por exemplo: as crianças sorriam de algo que Ana fazia, observavam-na, falavam sobre ela, tudo isto enquanto ela estava focada em outra ação. Portanto, de modo geral, o estudo apontou que o bebê acolhido não apenas se interessava por outras crianças, como interagia com elas e buscava essa interação. Além disso, as crianças não eram indiferentes à Ana: dirigiam-lhe comportamentos de diversas ordens, em especial de natureza afetiva e lúdica.
No bojo destas interações, chamou a atenção o papel ativo de Ana diante do parceiro. Usualmente, por meio de expressões corporais e faciais, de vocalizações, movimentos e deslocamentos, Ana demonstrava (re)ações de contestação, negação, afastamentos e recusa. Por meio de seus recursos expressivos, demonstrava preferências e impunha limites. Mesmo quando estava no berço, que limitava seu deslocamento, Ana interagia com as outras crianças por meio de gestos, expressões ou comportamentos: levantava-se, andava de um lado para o outro, apontava o dedo, vocalizava, pendurava as pernas para fora do berço. Nessas ocasiões, chamava a atenção a responsividade das crianças, que se engajavam em interações com Ana, inclusive através das grades do berço, ou subindo e entrando nele.
As expressões emocionais de Ana, como, por exemplo, o choro e os choramingos, atraíam a atenção das crianças. Usualmente, essas interpretavam ou atribuíam significados a tais expressões: "você não tá legal" ou "você não tá feliz? mas vai ficaaaar!", passando a realizar ações diversas de cuidado, como oferecer mais atenção, dirigir-se ao berço, pegá-la no colo, tocar-lhe a face, conversar e brincar com ela. Quando estavam com Ana no colo ou em intenso contato corporal e ela se mostrava irritada, quase sempre a soltavam e ainda a interpretavam: "O que você quer? Quer ficar quietinha? Fica quietinha então!". Em situações envolvendo a queda do bebê ou quando Ana tentava se levantar, mas se desequilibrava e caía, as crianças a encorajavam por meio de falas: "Vamos!", "Vem, Ana!", ou, ainda, ofereciam as mãos para dar apoio. Em outras ocasiões, a depender da idade e da habilidade da criança parceira, esta apenas dirigia o olhar e/ou se aproximava do bebê, ainda que nada fizesse, como no caso das crianças bem pequenas (entre dois e cinco meses de idade). A própria Ana teve seus comportamentos regulados pelos choramingos do bebê Caio (cinco meses). As expressões emocionais de Caio atraíam a atenção de Ana, que o olhava e vocalizava, deslocava-se em sua direção, sorria-lhe, tocava em seus pés e a barriga.
Os parceiros de interação que mais dirigiam comportamentos de cuidados a Ana eram as crianças mais velhas (em torno de cinco e oito anos de idade), de ambos os sexos, sem nenhum grau de parentesco. Sobre as diferentes práticas de cuidados, observou-se uma amplitude de ações, reações e comportamentos que variavam entre assistência, auxílio, preocupação, ocupação, dedicação e atenção. Por exemplo: as crianças davam atenção a Ana quando ela esta estava sozinha, tiravam-na do berço e a pegavam no colo, consolavam-na, ofereciam-lhe a mamadeira, faziam-lhe carinhos, interpretavam o que ela queria a partir do seu olhar ou expressões como choros e choramingos. Também a protegiam de objetos pequenos ou de situações que pudessem machucá-la, como possíveis quedas. Diante dessas múltiplas facetas do cuidado, destacaram-se: os cuidados orientados por atenção; os cuidados orientados por solicitude e; os cuidados orientados por tensão. De modo geral, tais cuidados ocorreram sem a mediação direta do adulto e sem que se tratassem de imitações imediatas de comportamentos dos adultos, já que estes estavam predominantemente envolvidos e sobrecarregados com as tarefas da casa.
Considerou-se "cuidado orientado por atenção" aquele feito nas situações em que uma criança percebia que Ana estava sozinha em determinado lugar e lhe dirigia sorrisos, olhares, falas, cantos, gestos, movimentos (como danças) ou tentava se engajar em brincadeiras, dentre outros comportamentos. Assim, o cuidado viabilizado pela atenção envolvia o colocar-se em contato com o bebê (ou o estar com o bebê) na tentativa de incluí-lo em uma interação. No caso de Ana, o cuidado orientado por atenção foi registrado nas situações em que ela estava sozinha e algumas crianças aproximavam-se, conversando, cantando, chamando-a pelo nome, muitas vezes usando o manhês (fala com entonação exagerada, com ritmos diferenciados e mais afetivos). O cuidado orientado por atenção também se estabelecia nas interações face-a-face, ao nivelarem o corpo na altura de Ana. Também dançavam para ela, pegavam-na no colo, balançavam-na, imitavam-na. Em termos afetivos, as crianças sorriam para Ana, faziam-lhe carinhos no rosto, tocavam-lhe as bochechas, davam pequenas mordiscadas, davam ou lhe solicitavam abraços e beijos; ou, nivelavam o próprio corpo para abraçá-la, deitavam suavemente sobre o colo dela. As crianças mais velhas (entre 3 e 14 anos) iniciavam brincadeiras com Ana e chamavam outras crianças para brincar com ela. Simulavam leituras; ofereciam objetos, nomeavam situações e objetos; incentivavam, elogiavam. As crianças mais velhas também ofereciam a Ana apoio para andar; cediam-lhe cadeira para sentar; sentavam no chão ao lado dela ou engatinhavam junto com ela; ainda, substituíam algum brinquedo quando percebiam que Ana manipulava algo que lhe oferecia riscos. Sem que nenhum adulto solicitasse a execução de todas estas ações e comportamentos, as crianças se dirigiam ou respondiam a Ana, significando as situações ao redor e mediando o encontro com os outros sociais, com os espaços e objetos.
No que se refere ao "cuidado orientado por solicitude", este foi considerado nas situações em que o bebê expressava uma demanda (por meio de choros, choramingos, gestos, reações corporais, vocalizações etc.), a qual as crianças interpretavam e respondiam, buscando atender à necessidade do bebê de maneira imediata. No caso de Ana, o cuidado orientado por solicitude foi registrado em circunstâncias tais como: Ana olhava demoradamente para uma criança e alternava o olhar para algum objeto ou alimento, ou Ana olhava e fazia um gesto, situações usualmente interpretadas pela outra criança como um desejo/intenção, resultando na oferta do objeto/alimento. Da mesma forma, as ações se deram em momentos em que - frente à dificuldade de Ana caminhar bípede -, a outra criança dava-lhe a mão como apoio. Houve situações, ainda, em que Ana estava choramingando e a criança foi ao seu encontro, retirou-lhe do berço, fez carinhos diversos, sorriu para e com ela. Em outros momentos, as crianças interpretavam suas expressões e até a soltavam do contato corporal, quando entendiam o choramingo como um sinal de irritação, respondendo em manhês: "Quer descer? O que você quer? Ficar quietinha? Fica quietinha, então...". Eram comportamentos orientados por solicitude, conforme interpretavam que o bebê solicitava, sem mediação direta do adulto.
Já no que tange ao "cuidado orientado por tensão", este foi considerado nas situações em que alguma criança demonstrava intensa e abrupta preocupação diante da interpretação de um risco ao qual o bebê estava exposto, como que antecipando ou reagindo a algum perigo. Por exemplo: ao ouvir o choro alto de Ana, após ela ter caído de uma cadeira, uma criança se aproximou rapidamente tentando acalmá-la. Em outros momentos, as crianças falavam até de forma enérgica com Ana ("Não pode!"), por exemplo quando Ana levava objetos pequenos à boca. A tensão se expressava através do tom de voz da criança ao explicar ao bebê o que este podia ou não fazer. As crianças também interviam entre si, uma chamando a atenção da outra, quando percebiam que, no contato com outra criança, Ana se mostrava desconfortável ou em perigo, por exemplo dizendo: "Você tá doido? machuca! Ela não é boneca, não!", ou "solta ela", "deixa ela no chão, ela é pesada!". As crianças também demonstravam preocupações de objetos caírem em cima de Ana ou de Ana cair em desníveis do chão ou da mesa. Nessas situações, tentavam retirá-la, espontaneamente, da situação interpretada como perigosa.
Uma forma pouco frequente de cuidado foi aquela orientada por uma solicitação dos adultos. Ou seja, pouco se observou funcionários da instituição solicitando às crianças determinada tarefa envolvendo o cuidado do bebê, por exemplo, pedindo para pegarem Ana e levá-la a outro lugar, ou pedindo para darem algum alimento a ela, ou para verificarem se Ana havia colocado algo na boca.
Portanto, de modo geral, a análise dos dados evidenciou práticas de cuidados das crianças em sua maioria moduladas por preocupação, implicando em atenção, solicitude e/ou tensão. Em função desses tipos de ações, a seguir, serão apresentados episódios envolvendo as diferentes nuances nesses cuidados, para melhor elucidação.
Transcrição de Episódio "Vem, vamos lá!"
Situação: Era entre 17:30 e 18:30 horas. Ana (12 meses) e Luna (5 anos) estavam na varanda, Ana estando apoiada no sofá. Luna estava próxima a Ana, andando de velocípede e, a certo ponto, Luna dirige sua atenção a Ana.
Descrição: Ana estava com as mãos apoiadas no sofá, Luna falou com ela, a que Ana olhou e vocalizou "Ah!". Luna se aproximou, apoiou as mãos nas costas de Ana (Fig. 1A) e, em seguida, colocou a mão no braço de Ana. Ana pegou uma boneca e colocou a boneca no rosto de Luna. Esta balançou a cabeça para direita e para a esquerda, parecendo brincar com Ana, a que Ana vocalizou "Ah"! Elas tocaram as mãos uma da outra e se olharam face a face (Fig. 1B). Ana sorriu. Ana olhou para o chão e imediatamente olhou para Luna. Ana soltou a mão de Luna e olhou novamente para o chão, abaixando um pouco seu corpo. Luna olhou para o chão, viu a boneca que havia caído (Fig. 1C). Luna pegou a boneca do chão e entregou-a para Ana. Ana largou a boneca e começou a caminhar em outra direção. Caio, o irmão de Luna, estava naquela direção e Luna disse: "Vai lá no nenê!" Ana olhou na direção de Luna e sorriu. Luna disse novamente "Vai lá!", Ana vocalizando "lá lá". Apoiada no sofá, Ana ficou olhando para frente (Fig. 1D). Luna então disse, "Vem! Vamo lá!". Ana começou a caminhar apoiada no sofá, olhou e balançou a mão três vezes na direção de Luna. Deu mais alguns passos, mas caiu. Olhou para Luna vocalizando, a que Luna disse: Vem, Ana! Luna estende, então, a mão para Ana (Fig. 1E), que consegue dar dois passos com apoio. Ana se esforça para ficar em pé, porém cai sentada (Fig. 1F). Luna ri e Ana vocalizou "bá"! Ana balança as pernas no chão e sorri. Luna continua de mãos dadas com Ana e diz "Vai, levanta!" Ana tenta se levantar, apoiando-se em Luna (Fig. 1G). Ana segura nas mãos de Luna e se esforça para levantar (Fig. 1H). Luna disse: "Vem, Ana!", sem soltar da mão do bebê (Fig. 1I). Ana tenta dar um impulso para se levantar A que Luna diz: "Neneê, vem!" Ana finalmente solta das mãos de Luna e chega até Caio engatinhando. Luna a acompanhou no trajeto (Fig. 1J).
Transcrição de Episódio "Alguém me tira daqui?"
Situação: A gravação foi feita entre as 18:00 e 18:30 horas, na sala 01. Ana (10 meses) estava no berço há cerca de 20 minutos da videogravação. Ana choramingava e ninguém se aproximava. Em determinado momento, Henrique (8 anos) se aproximou e a retirou de lá.
Descrição: Ana estava sozinha no berço. A TV estava ligada e ela estava de pé, dentro do berço, com as mãos apoiadas sobre as grades. Olhava na direção da cozinha, onde ocorria certa movimentação das educadoras e crianças. Às vezes, choramingava (Fig. 2A), mas ninguém se aproximava. Ela esteve assim durante algum tempo (Fig. 2B), até que Henrique, entrou na sala e caminhou em sua direção (Fig. 2C). Henrique colocou as mãos no rosto dela e lhe fez cócegas nas bochechas, conversando em manhês. Ana imediatamente sorriu (Fig. 2D), balançou suas pernas e Henrique a pegou nos braços. Em seu colo, ele a sacodiu um pouquinho para cima e para baixo (Fig. 2E), brincando com ela, enquanto dizia: "Nenêm, nenêm!", Levantando-a e sorrindo para ela. Ele se sentou com ela no chão (Fig. 2F). Logo ela fez movimentos como querendo se deslocar (Fig. 2G). Henrique a segurou cuidadosamente e estendeu seu corpo para frente de modo a pegar um brinquedo, entregando-o para Ana, dizendo "Aqui ó", "Aqui ó" ("tititi"). Mostrou ao mesmo tempo em que balançou o brinquedo à frente dela. Eles trocaram um olhar face a face. Ana tinha uma expressão que parecia demonstrar satisfação. Ana pegou o brinquedo das mãos de Henrique e o segurou com as duas mãos. Mas, ela parecia ainda querer se deslocar. Simultaneamente, Henrique se levantou e se afastou por ter visto sua irmã passar, saindo do campo de visão de Ana. Ela, então, seguiu engatinhando na direção dele (Fig. 2H).
Transcrição de Episódio "Não, meu bebê!"
Situação: O episodio ocorreu na varanda. Ana (11 meses) estava engatinhando de um lado para o outro pelo chão e vocalizava bastante, até que caiu, chorando muito.
Descrição: Ana adentrou a varanda em direção a Henrique (8 anos). Ele comia um pedaço de rosca enquanto relatava sua história para a pesquisadora. Ana chegou por trás dele, ele a viu, sem lhe dar atenção. Ana ficou em pé e tentou caminhar, apoiando-se em uma das cadeiras que tinha por ali (Fig. 3A). A cadeira se mexeu e Ana caiu com ela, de costas no chão (Fig. 3B e C). Henrique deu um pequeno grito. Lucas (7 anos), que estava fora da sala, apareceu imediatamente e já pegou-a nos braços (Fig. 3D, E e F), abrançando-a e falando em manhês: "na na na na na na não, nã meu bebezim" "Não meu bebezinho". Tentou levantá-la, enquanto ela chorava forte (Fig. 3G). Ele a levantou com dificuldades e a sentou sobre a mesa, preparando-se para pegá-la de melhor jeito. Ela continuava chorando, mas apoiava-se nele. Ele a levantou novamente, pegou novo impulso e saiu com ela no colo, rumo onde as educadoras conversavam, no pátio. Lucas falou às educadoras: "Ela caiu da cadeira! Ela caiu da cadeira! Ela caiu da cadeira! Ela caiu!", a que a educadora veio em sua direção, mediada pelos gritos de Lucas (Fig. 3H). Ele entregou Ana para a educadora, com um semblante assustado e a educadora pegou. Imediatamente, a educadora colocou Ana chorando no chão (Fig. 3I). Ana chorou mais forte, enquanto Lucas se aproximou novamente e disse para ela, meio aflito: "Vamos brincar de amarelinha?" (Havia um jogo de amarelinha, desenhada no chão, onde eles estavam). A educadora se aproxima e pega a Ana novamente, saindo com ela do pátio (Fig. 3J).
Discussões
Com o mapeamento dos episódios interativos de Ana (bebê focal) com as outras crianças, os resultados do presente estudo permitem discutir diferentes aspectos envolvidos nas práticas de cuidado de crianças com bebês em acolhimento institucional, compreendendo que, nestes encontros, importantes funções psicológicas se desenvolvem.
Nesse sentido, os resultados evidenciaram as diversas formas com as quais as crianças interagiam. Um amplo repertório de comportamentos, emoções, reações, expressões, gestos, movimentos e deslocamentos constituíram seus enredos interativos. Estudos que exploram as inter-relações entre interações sociais e desenvolvimento cognitivo mostram que uma série de competências sociais, afetivas e cognitivas se (trans)formam nas interações dos pares (Amorim et al., 2012; Bussab, 1997). Tais interações promovem experiências de ensino-aprendizagem como, por exemplo, por meio de interações triádicas (criança-criança-objetos), nas quais os bebês se envolvem em um conjunto de atividades que estimulam ações coordenadas e sintonizadas, viabilizando também o estabelecimento da atenção conjunta (Costa & Amorim, 2018); ou com a possibilidade de imitar seu parceiro social, os repertórios comportamentais das crianças se expandem (Pedrosa & Carvalho, 2009). Todos estes processos são fundamentais para o desenvolvimento de habilidades comunicativas, de autonomia e compreensão das intenções e estado afetivo do outro (Liddle, Bradley & McGrath, 2015). De acordo com Arezes e Colaço (2014), nas interações com outras crianças, os bebês têm a possibilidade de desenvolver a habilidade de coordenar a atenção com outra pessoa, além de desenvolver competências sociais cada vez mais complexas, que se refletem na complexificação das próprias interações com os pares. Nesse sentido, os autores afirmam que "[...] é fundamental proporcionar, desde cedo, oportunidades à criança para interagir com seus pares, construindo ativamente as suas aprendizagens". (p. 114)
Assim como houve uma amplitude nas formas de interagir entre as crianças, também foram observadas diversas nuances em suas práticas de cuidado, envolvendo principalmente orientação da atenção, atendimento às solicitudes do bebê focal e certa tensão/apreensão decorrente de possíveis perigos e riscos. Chamou atenção que, na maioria das vezes, as práticas de cuidado foram decorrentes da interpretação ou da reação de uma criança frente às diversas expressividades do bebê. Dessa forma, o cuidado nas interações das crianças acolhidas implicou no estabelecimento de um campo interativo no qual se incluía o bebê, fazia-se algo por ele, promovia-se seu bem-estar, dimensionando o cuidado nesse estar com, no fazer para e com o outro. Todas estas formas de cuidado estiveram acompanhadas por gestos, expressões e comportamentos indicativos de preocupação, dados estes que remetem à questão dos padrões empáticos e pró-sociais na sociabilidade infantil.
Conforme apontam Liddle et al. (2015), a capacidade de preocupação e de ajudar os outros é um traço humano essencial, requisito necessário para a vida social, e está relacionada com o desenvolvimento das competências socioemocionais. Comportamentos pró-sociais e empáticos envolvem uma resposta socioafetiva mediante a compreensão do estado emocional do parceiro; uma avaliação de suas expressões emocionais, usualmente acompanhadas por tristeza e/ou preocupação, que regula o comportamento no sentido de cooperar, atender, ajudar ou apenas compartilhar (vivenciar conjuntamente) a experiência emocional do outro. De acordo com Bussab (1997), a empatia possibilita que a criança se coloque no lugar do seu par ou sinta o que o outro sente.
Com base nessas considerações, verifica-se que os comportamentos pró-sociais e empáticos, observados nos cuidados das crianças com os bebês, promovem o desenvolvimento de competências socioemocionais e afetivas das próprias crianças que prestavam cuidados, além de também promover bem-estar aos bebês e experiências interativas responsivas. Nesse mesmo sentido, Costa e Cavalcante (2012), em estudo que analisa aspectos do ambiente que concorrem para a manifestação do comportamento de cuidado entre crianças (de quatro a seis anos de idade), afirmam que não são apenas os bebês que se beneficiam destes cuidados. Interações dessa natureza também são importantes para o desenvolvimento das crianças que prestam os cuidados, de modo a promover o refinamento da habilidade empática e um sentimento de bem-estar e valorização, implicado no processo de oferecer apoio emocional, proteção e afeto ao outro.
No presente estudo, as manifestações de afeto por meio do cuidado físico também foram uma forma de cuidado muito frequente entre as crianças acolhidas, semelhante ao que mostrou o estudo de Cavalcante (2008), que investigou comportamentos de cuidado entre crianças de dois a quatro anos em uma instituição de acolhimento. De acordo com a autora, crianças que mantém com outra criança um contato mais prolongado e diário, envolvendo inclusive oferta/partilha de alimentos, acolhimentos, afetos e outros, têm a possibilidade de construir vínculos e relações afetivas diferenciadas, amplamente correlacionadas com o desenvolvimento adaptativo, com conforto e segurança emocional (Cavalcante, 2008). Como afirmam Mendes e Kappler (2018), este envolvimento socioafetivo se relaciona com o processo de construção de vínculos. Encontrar no par uma figura de referência, que promove conforto e segurança, é relevante tanto para o desenvolvimento cognitivo das crianças como para processos de socialização, quanto para a integração em uma rede de apoio social e afetivo (Bussab, 1997; Carvalho, 2000).
Ainda sobre aspectos socioafetivos do cuidado, Lordelo e Carvalho (1998) apontam o baby-talk ou manhês como sendo um jeito especial de falar, com entonações geralmente exageradas e cheias de afeto, tal como se observou com frequência nos resultados do presente estudo. Mas, enquanto no estudo de Lordelo e Carvalho (1998), esse registro peculiar da fala tenha sido mais usualmente observado em meninas nas interações com as crianças mais novas; no presente estudo, foi o fato de que os meninos também se mostravam afetuosos e usavam o baby-talk, tal como as meninas, que chamou a atenção. Essas práticas viabilizadas por meninos tinham ainda características semelhantes às das meninas em termos de qualidade afetiva das interações com os bebês.
Outro dado evidenciado se refere ao modo como o posicionamento do bebê focal em determinados espaços (como estar no chão da sala ou davaranda ou no berço, entre as grades) repercutiu na frequência de ocorrência e, principalmente, no tipo de cuidado recebido de outras crianças, indicando como os aspectos do ambiente físico e o arranjo espacial refletiam nas variações de comportamento. Assim, por exemplo, os bebês, quando colocados na varanda, tinham mais acesso às demais crianças, compartilhando o espaço mesmo que estivessem presos no carrinho; porém, quando colocados no chão, observou-se maior movimentação, deslocamento e acesso a outros parceiros e espaços.
Em consonância, Choi (2015) mostra como a localização e a dimensão do espaço interativo, bem como a materialidade que o constitui (móveis, objetos, brinquedos, colchonetes etc.) estimulam ou desencorajam as interações das crianças. Conforme apontam Carvalho (2000) e Costa e Carvalho (2012), as características físicas do ambiente e a organização espacial regulam as interações infantis e influenciam diretamente na ocorrência do comportamento de cuidado. Ao compararem a frequência de ocorrência de comportamentos de cuidado em contexto escolar e em instituição de acolhimento, as autoras observaram maior número de interações envolvendo cuidado entre crianças no ambiente escolar, uma vez que nesse contexto o contato criança-criança era promovido pelos educadores. Por outro lado, na instituição de acolhimento, não havia atividades programadas pelos adultos que estimulassem as crianças a se engajarem em comportamentos pró-sociais, levantando a discussão acerca do papel do adulto na estimulação desses comportamentos, o que entre outras coisas também poderia afetar o desenvolvimento das ações de cuidado entre os pares, no sentido de desenvolver habilidades sociais e prevenir conflitos e agressões entre as crianças.
Semelhante ao observado por Costa e Cavalcante (2012), no presente estudo, pouco se observou a participação direta do adulto nas interações das crianças. Como já apontado, tais interações usualmente decorriam da responsividade e da sensibilidade das próprias crianças diante da presença e expressividades umas das outras. Apesar disso, a participação do adulto se dava pela forma como organizava o ambiente, nos materiais que (não) ficavam disponíveis, pelo local onde (não) permitiam a presença das crianças. Como afirma Costa e Amorim (2018), enquanto prática pedagógica, esta mediação tem implicações nas (re)(inter)ações das crianças. No estudo de Moura (2017), que investigou interações de bebês em acolhimento familiar e institucional, observou-se que cuidadores de diferentes programas de acolhimento inclusive desencorajavam, impediam ou até proibiam as interações dos pares, principalmente aquelas envolvendo bebês e crianças maiores, sob o argumento de que ofereciam risco aos bebês, podendo machucá-los ou transmitir-lhes piolhos e doenças.
Portanto, observa-se que, por trás de um comportamento empático e cuidadoso de uma criança direcionada a outra e dos seus benefícios, há ainda um adulto responsável pelo cuidado de ambas, o qual regula esses (des)encontros de diferentes formas. Para que as interações das crianças se estabeleçam de maneira que favoreça o desenvolvimento, o papel do(s) adulto(s) cuidador(es) se faz presente desde o planejamento do ambiente de acolhimento, desde a organização dos espaços e mobiliários, até a supervisão que "acompanha e ajuda a significar a situação de um encontro que se efetiva pela própria ação das crianças" (Amorim et al., 2012, p. 382).
Diante de todo este panorama, o conjunto de resultados do presente estudo indica a importância de um trabalho institucional que priorize e incentive as interações e relações entre as crianças, compreendendo-as como um fator promotor do desenvolvimento afetivo, cognitivo e social, que viabilizam a construção de vínculos e fortalecem a rede sócio-afetiva das crianças acolhidas, em especial no que se refere ao desenvolvimento de bebês.
É válido ressaltar que, embora o cuidado oferecido por crianças seja acolhedor e promotor de desenvolvimento, ele não substitui o cuidado do adulto. A criança que cuida também precisa de cuidados, de supervisão, de suporte. Assim, ainda que os serviços de acolhimento institucional devam garantir a ocorrência das interações das crianças, isto não tira do(s) adulto(s) a responsabilidade e a necessidade de promover cuidados, e nem deve se transformar em subterfúgio para a ausência de interação com o cuidador. O propósito de se promover os encontros dos pares não deve ser o de aliviar a carga de trabalho do adulto, ou de tirar do adulto a responsabilidade do cuidado, mas deve ser uma prática pedagogicamente orientada, com o objetivo de fortalecer e encorajar diferentes formas de sociabilidade infantil.
Como afirmam Arezes e Colaço (2014), "as experiências sociais moldam a compreensão social da criança e suas expectativas" (p. 114). A partir das situações que vivencia, a criança constrói significados. Por isso, o modo como o outro (re)age diante das expressividades do bebê (configurando um campo interativo em que o bebê é incluído ou excluído, correspondido ou invisibilizado, cuidado ou silenciado) vai sendo percebido e significado, co-construindo habilidades, competências e também uma rede de significações acerca de si mesmo, do outro e de suas posições no mundo (Amorim, 2012).
Considerações finais
De acordo com Carvalho (2000), Cavalcante (2008), Costa e Cavalcante (2012), Carvalho (2019), ainda são escassos, no Brasil, estudos que investigam práticas de cuidado entre crianças. Buscando contribuir nesse sentido, o presente estudo apresenta dados empíricos acerca das interações de crianças em serviços de acolhimento institucional, com foco nos cuidados de crianças com bebês. Discutiu-se sua relevância para o desenvolvimento das crianças acolhidas e as implicações dessas experiências no processo de socialização. Em contraponto, o estudo também apresentou limitações, pois se baseou em um estudo de caso, em um único contexto de acolhimento institucional, recorte este que, embora esteja atravessado pelo social, impede generalização quantitativa e comparações. Por isso, novos estudos, de preferência com mais participantes e em contextos variados, devem ser realizados a fim de se explorar as diversas formas de sociabilidade infantil presentes nos contextos de acolhimento.
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Endereço para correspondência:
Gabriella G. Moura
gabigmoura@yahoo.com.br
Recebido em: 01/03/2019
Aceito em: 22/04/2019