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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.6 no.1 Campo Grande jun. 2014

 

ARTIGOS

 

A razão e a loucura na literatura: um estudo sobre o alienista, de Machado de Assis

 

Reason and madness in literature: a study on "O Alienista" (The Alienist), of Machado de Assis

 

La razón y la locura en la literatura: un estudio sobre el alienista, de Machado de Assis

 

 

Maria Vanesse AndradeI; Aluísio Ferreira de LimaI; Maria Elisalene Alves dos SantosII

IUniversidade Federal do Ceará - UFC
IIUniversidade Estadual Vale do Acaraú - UVA

 

 


RESUMO

Este artigo constitui-se de um estudo sobre a temática da loucura na Literatura, tendo como eixo de análise o conto "O Alienista", de Machado de Assis. Para tanto foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre o tema, através da leitura de livros, monografias e artigos científicos que versaram sobre o assunto tratado. O presente artigo se divide em duas partes: na primeira é feito um preâmbulo histórico sobre os possíveis encontros e desencontros entre Literatura e loucura, tendo como ponto de partida o ato criativo. Em seguida, são analisados os aspectos da narrativa, em especial, a figura do protagonista Simão Bacamarte, personagem que encerra os princípios científicos, sobre os quais é feita a crítica machadiana. As considerações finais apontam que a obra apresenta-se como questionadora das aparências sócio-políticas de sua época e produtora de uma crítica audaciosa à ciência e ao alienismo embasados pelos ideais positivistas.

Palavras-chave: Literatura; Loucura; O Alienista; Machado de Assis; Psicologia Social.


ABSTRACT

This paper consists on a study about madness in literature, analyzing the short story "O Alienista" by Machado de Assis. For this purpose, a bibliographical research was performed on the topic by reading books, monographs and scientific papers that approached the subject. This paper is divided into two parts: at the first a historical preamble on the possible proximities and distances between literature and madness is made, taking as its starting point the creative act. In the following, aspects of the narrative are analyzed, in particular the figure of the protagonist "Simão Bacamarte", character who represents the scientific principles about which Machado de Assis's criticism is made. The conclusions indicate that Machado's works presents itself as questioning the socio-political appearances of his time and producing a bold critique of science and alienism based on the positivist ideals.

Key-words: Literature; Madness; The Alienist; Machado de Assis; Social Psychology.


RESUMEN

En este artículo se hace un estudio acerca de la locura en la literatura, sobretodo en el cuento "El alienista", de Machado de Assis. Para ello, se realizó una búsqueda bibliográfica sobre el tema, la lectura de libros, monografías y artículos de revistas sobre el tema. Este artículo se divide en dos partes: la primera es un preámbulo a la historia de las posibles similitudes y diferencias entre la literatura y la locura, tomando como punto de partida el acto creativo. A continuación, se analizan los aspectos de la narrativa, sobre todo la figura del protagonista Simon Bacamarte, persona que representa los principios científicos criticados por Machado de Assis. Las conclusiones señalan que el trabajo se presenta como un cuestionamiento de aspectos socio-políticos de su tiempo y produciendo una crítica audaz a la ciencia y el extranjerismo provenientes de los ideales positivistas.

Palabras-clave: Literatura; Locura; El Alienista; Machado de Assis; Psicología Social.


 

 

Introdução

O presente trabalho procurou investigar o encontro entre loucura e Literatura, a partir da análise do conto O Alienista, de Machado de Assis. Conto inicialmente publicado em forma de folhetim no periódico A Estação em 1881, sendo incluído em Papéis Avulsos no ano seguinte. Para tanto foi realizada uma pesquisa bibliográfica sobre o tema, com base na leitura de livros, monografias e artigos científicos que versaram sobre o assunto tratado, sendo que em pesquisas online, as buscas foram feitas a partir das seguintes palavras: Literatura e loucura e a loucura em O Alienista.

Objetivando entender a maneira como o discurso literário se apropria da figura do louco e da loucura, o conto O Alienista foi selecionado, pois o mesmo constitui-se como uma obra importante para se pensar questões relativas à loucura. A escolha também se deu em função da temática da loucura está presente em outras obras do autor, o que faz de Machado de Assis uma referência para o estudo do tema em diversas áreas, tendo mobilizado vários saberes. Pode-se dizer com base em Bernd (1992) e Cândido (1995) que o texto literário amplia o debate acerca da loucura, na medida em que se apresenta como texto privilegiado, capaz de comportar interpretações de outros campos (científico, histórico, filosófico, sociológico, político, religioso e etc.), bem como dizer mais do que está expresso (Cândido, 1995).

A noção colocada a partir de Machado de Assis neste trabalho é baseada no olhar diferenciado do autor sobre a loucura estabelecida a partir do prisma médico-alienista, no momento em que se iniciara uma forte efusão de ideias cientificistas que acabaram por fundamentar o prematuro discurso. A questão da loucura é tratada no conto sob uma perspectiva crítica. Esta se debruça sobre os discursos de poder, retirando o foco do que seria a alienação mental para discutir a produção da loucura e suas tipificações. O conto abre margem para refletir a forma como o discurso cientificista do século XIX foi elevado pela sociedade brasileira, em especial, a carioca, a condição de horizonte na busca por respostas, e as consequências dessa mudança de paradigma. Dentre os principais teóricos que serviram de base para a elaboração do trabalho estão Gomes (1993) e Souza (2004) apresentando uma leitura crítica do conto; Maria (2005), com a análise histórica da loucura na Literatura no Brasil e Moisés (1982; 1999; 2006), com a noção de "neurose artificial", a definição do gênero conto e perspectiva de análise literária.

O artigo se divide em duas partes. Na primeira é realiza-se um preâmbulo histórico sobre os possíveis encontros e desencontros entre Literatura e loucura, tendo como ponto de partida o ato criativo. Neste momento também é feito um recorte de algumas obras machadianas que de alguma forma trataram da temática da loucura. No segundo momento é realizada a análise do conto O Alienista, partindo do pressuposto de que a obra pode ser lida como uma alegoria sobre o discurso alienista no Brasil, possibilitada pelo recurso da ironia. Também são analisados aspectos da narrativa, em especial, a figura do protagonista, Simão Bacamarte, personagem que encerra os princípios científicos sobre os quais é feita a crítica machadiana. O estudo se justifica pela necessidade de reflexão sobre os critérios de cientificidade, tão pertinentes hoje quanto na época de publicação da obra em questão.

 

A alegoria da Loucura na Literatura

Literatura e Loucura: Encontros

De diferentes maneiras, a Literatura tem retratado a loucura ao longo da história. A diversidade na forma de apresentação da temática dá-se pelo modo como a loucura, enquanto fenômeno humano tem sido conceituada e entendida em cada tempo e em cada contexto. Desde a Antiguidade clássica as noções de normalidade e anormalidade têm sofrido alterações e essas alterações serviram de base para expressões da loucura na Literatura.

O movimento de aproximação da temática na Literatura foi dessa forma parecido com os movimentos histórico-sociais de tratamento da loucura. Na era Clássica greco-romana, a exclusão dos loucos, praticada socialmente, também foi praticada literariamente. Uma das poucas referências à loucura aparece no mito de Dionísio (Baco), em que a loucura era manifesta de duas formas: em Dionísio pela intervenção vingativa de Hera ou pelo consumo de vinho por seus devotos durante rituais em sua homenagem (Marques, 2010).

A atenção dada ao louco durante a Idade Média foi baseada na noção de loucura da época que, vista como castigo de Deus ou uma forma de redenção, era explicada, inclusive, a partir do discurso religioso. A obra de maior expressão nesse período é Dom Quixote de la Mancha (1605-1615) de Cervantes em que o protagonista, em idade já avançada, lê romances de cavalaria e acreditando na veracidade dos romances perde o juízo e decide tornar-se também um cavaleiro (Souza, 2012).

Na Renascença a figura do louco aparece como objeto poético, neste período à loucura é dada uma visão trágica pela Literatura. Outro importante encontro ocorrera no início da Idade Moderna, quando a loucura, considerada uma doença mental, ganha uma instituição específica - o hospital psiquiátrico - para o estudo e reclusão dos loucos. Esse evento marca a volta da loucura como temática literária e a alegoria do louco ora é vista pelo prisma científico ora pela crítica a este prisma.

A atividade de criação literária é entendida por alguns autores também como um ponto de íntima relação entre Literatura e loucura, uma vez que esta nutre-se essencialmente da imaginação. Através do imaginar, são construídos, de forma arbitrária, seres irreais e, pelo encadeamento de situações fantasiosas, mundos ilusórios. Dessa forma, por passar boa parte da existência mergulhado em uma esfera de fantasia e na invenção de mundos imaginários, o escritor "[...] acaba sendo visto, no panorama social, como um ser extravagante e excêntrico, e isso é evocado desde a Antigüidade grega. Provavelmente daí tiveram origem as diferentes associações entre loucura e literatura" (Barral, 2011, p. 13). Entretanto, o imaginar que configura a criação literária e o imaginar classificado segundo o rótulo do devaneio e da loucura são fenômenos diferentes.

Moisés (1982) refere-se a esse momento, no qual se manifesta o ato de criação do artista, como "transe criativo" ou "neurose artificial", em que o escritor mergulha em um estado de "neurose" distanciando-se da realidade de forma deliberada. Apesar desse distanciamento, o escritor não se afasta da realidade por completo, ele extrai do contexto circundante inspiração para a sua estética. E por esta razão ascende na cena literária a configuração do universo ficcional com verossimilhança atemporal.

Na criação desse mundo imaginário o escritor se deixa levar, aliena-se da realidade ao seu redor como recurso imperativo da criação. "Essa necessidade de crer no universo construído e guiar-se pelas regras de uma lógica ficcional é que imprime à criação a condição da verossimilhança" (Barral, 2011, p. 14).

Entretanto, apesar de existirem semelhanças entre o processo criativo literário e os devaneios dos sujeitos vistos pela sociedade como loucos, esse paralelo não é suficiente para que existam nexos de casualidade ou relações de contiguidade entre a loucura e a Literatura. Socialmente a Literatura é considerada um exercício da razão, diferente do discurso psicótico, quase sempre tomado apenas no plano do ilógico, do infundado. Para Barral (2011, p. 15) tomar a Literatura como predicativo da loucura seria atribuir-lhe "[...] um estatuto de um sistema ou instituição, quando a loucura é exatamente a negação de qualquer organização, coerência ou ordem". Assim, embora o escritor seja do ponto de vista racional, aquele que se inscreve entre a normalidade e a insanidade, é problemático querer identificar, na obra escrita, índices do estado psicológico do autor, ou mesmo ler a obra sobre esse prisma reducionista.

É preciso considerar mais um ponto de contato entre Literatura e loucura: a linguagem, assim entendida como toda forma de expressão. Como linguagens, os dois fenômenos regem-se por uma lógica própria e comportam, em seu código, elementos que não revelam uma significação literal. O sentido de suas enunciações ultrapassa o imediato e tem implicações profundas uma vez que, de modos distintos, ambas as formas discursivas se utilizam de metáforas, símbolos e imagens possuidoras de significados próprios. Entretanto, os usos feitos na Literatura lhe conferem status de arte, enquanto os usos na loucura são interpretados muitas vezes com base em discursos racionalistas sobre a loucura.

A Literatura como manifestação artística rompe com os dogmas que a sociedade lhe impõe. Ao tematizar sobre os fatos humanos, sociais e históricos, ela busca conferindo-lhes um trato estético e verossímil para experimentação do mundo. Assim, quando o texto literário se debruça sobre a loucura procura fazer dela uma caricatura, não visando riso ou deboche, mas procurando, a partir desta caricatura, fazer da loucura uma dúvida, para então fazer dela crítica e reflexão.

As sutilezas da escrita literária e as caricaturas e referências que são atribuídas ao louco tornam o encontro entre a Literatura e a loucura ainda mais mágico. Em várias obras em que o tema é abordado (A Doida, de Carlos Drummond de Andrade, Só vim telefonar, de Manoel Garcia Marques, Diário do Hospício - O Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto, O Alienista, de Machado de Assis) o leitor se depara com a dúvida e com a incerteza diante da loucura, percebe o incômodo, o preconceito e função desse fenômeno ao longo da história.

Em se tratando especificamente do conto machadiano, O Alienista, e sobre a loucura encenada por Simão Bacamarte, esta obra não é apenas uma paródia do alienismo ou das casas manicomiais. Ela vai além, autoriza o leitor a duvidar sobre as verdades acerca da razão e da insensatez, afinal, o alienista, aquele que deveria apontar e curar a loucura, acaba sendo levado no decorrer do enredo a questionar-se sobre a verdadeira racionalidade.

A Loucura na Literatura de Machado de Assis

A vasta produção literária de Machado de Assis coloca este autor no topo do cânone nacional. Não é demagogo este reconhecimento já que o Bruxo de Cosme Velho soube mesclar muito bem os conteúdos em suas obras, abordando temas dilacerantes de seu tempo com conhecimento digno de pesquisador da complexa consciência da linguagem literária, o que, obviamente, também se articula com seu primor estético bastante original (Bernd, 1992). Nessa perspectiva, o modus operandi da escrita machadiana acaba por revelar aspectos particulares da construção da loucura, num estar-sendo-feito que escapa às verdades da sua época, ascendendo novos debates na contemporaneidade.

Dentre as temáticas sobre as quais Machado de Assis se debruçou, a loucura teve ênfase, tanto pela profundidade da sua discussão quanto pelo enfoque atribuído a este fenômeno: ora destacando o louco, ora destacando a loucura, ora destacando o cientificismo em voga. Por esses aspectos, Machado de Assis é considerado por Lima (2010), como um intelectual a frente de seu tempo, uma vez que consegue perceber no discurso hegemônico as ideologias e interesses que extrapolavam a pretensa neutralidade científica.

No conto O Alienista percebe-se uma crítica indireta tanto aos primeiros alienistas (Philippe Pinel, Jean-Martin Charcot, Pierre Janet etc., autores de referência na época de Machado de Assis) como também aos psiquiatras (Emil Kraepelin, Eugen Bleuler, Karl Jaspers, entre outros), que se esforçaram em elaborar manuais nosológicos cada vez mais organizados. Os manuais definidores de comportamentos normais e patológicos, ao pressupor uma intervenção voltada para o restabelecimento da autonomia dos sujeitos concretizaram-se como verdadeiros mecanismos de justificação da aniquilação se não psicológica, ao menos física, dos indivíduos indesejáveis (Szasz, 1977; Goffman, 1974). Tornaram-se a referência discursiva sobre quem deve ser considerado "anormal" ou não, criando por sua vez a identidade pressuposta do doente mental (Lima, 2010).

De acordo com Barros & Filho (2011), principalmente a partir de 1880, a loucura tem destaque na obra machadiana. O lugar da loucura na sociedade da época e as tênues fronteiras que a separam da razão tornaram-se preocupação constante do autor, que já nas primeiras décadas do século XX, foi referido inúmeras vezes em estudos psiquiátricos interessados na investigação das relações entre arte e loucura. As obras Anjo Rafael (1869), O Alienista (1882) e Quincas Borba (1891) fazem referência à loucura de três formas distintas.

No primeiro exemplo, o conto Anjo Rafael, publicado originalmente no Jornal das Famílias, em 1869, temos a história de Major Tomás, um homem que acreditava ser o próprio Anjo Rafael e que foi enviado por Deus à terra. O conto tem como protagonista Dr. Antero, que no momento de seu suicídio recebe um bilhete lhe prometendo uma fortuna. Ele desiste do plano, segue o estranho que entregara o bilhete e conhece Major Tomás. Este se diz velho amigo do falecido pai de Antero e oferece sua fortuna em troca deste casar-se com sua filha, Celestina. Contrariado, porém ambicioso acaba aceitando. No decorrer do enredo, Dr. Antero descobre que o futuro sogro sofre de uma espécie "megalomania celestial", ao apresentar-se como o Anjo Rafael, enviado por Deus à terra para salvar as boas almas. Descobre em seguida que Celestina sofre dos mesmos problemas do pai. Antero pensa em desistir do casamento, mas ao entender a verdadeira história daquela família resolve ajudar a noiva e desposá-la. Quando o pai morre, Celestina é levada para a cidade e, após três meses de tratamento, esquece os delírios apreendidos.

O segundo trata-se do romance Quincas Borba, publicado inicialmente na revista A Estação, integra a chamada segunda fase de ficção de Machado de Assis. Prata (2009) levanta a hipótese de que neste romance há influencias da obra de Miguel de Cervantes - Dom Quixote - atualizadas em Quincas Borba através de alguns personagens.

A história gira em torno da vida de Rubião, ex-professor primário, que se torna enfermeiro e discípulo do filósofo Quincas Borba. Este falece no Rio de Janeiro, na casa de Brás Cubas. Com isso, Rubião é nomeado herdeiro universal do filósofo, herdando o dinheiro, o cachorro e também os "germes" da loucura de Quincas Borba. Assim Rubião é retratado antes, durante e depois de ter perdido toda a fortuna em decorrência da sua extrema ingenuidade perante os planos ambiciosos das personagens Palha e Sofia, que fazem de Rubião a escada para sua ascensão social. A degradação e o triste fim de Rubião mostram que ele não conseguiu assimilar a filosofia de Quincas Borba, segundo a qual, os mais fortes se sobressaem aos mais fracos. O romance se encerra com a falência de Rubião, repetindo várias vezes o aforismo que jamais entendera: "Ao vencedor, as batatas" (Assis, 2009, p.189), fechando o ciclo: professor-capitalista-alienado. Rubião vira chacota entre os conterrâneos e morre em situação de miséria.

O terceiro exemplo, o conto O Alienista, publicado inicialmente em A Estação, em 1881 até1882, e neste mesmo ano incluído em Papéis Avulsos, possui lugar de destaque neste trabalho ao passo que situa um importante e novo encontro na Literatura com a loucura. Nesta obra, em que até o senso comum tem mais validade que o positivismo científico, o autor procura por em cheque o saber até então incoerente da ciência sobre a loucura, e, conforme assinalou Lima (2010, p. 70), "demonstrou sua preocupação com o crescimento desmedido dos asilos e das intervenções dos alienistas".

A história narra o percurso de Simão Bacamarte, um ilustre médico conceituado em Portugal e na Espanha, que deixa a corte e muda-se para uma pequena cidade do interior do Rio de Janeiro, Itaguaí. "A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo" (Assis, 1994, p. 01). Nesta cidade, ele ambiciona virar lenda. O universo no qual a sua sabedoria iria sentar raízes e se prolongar pela eternidade.

Curiosamente a história é publicada durante os dois anos de administração de Nuno de Andrade, diretor do Hospício Dom Pedro II entre 1881 e 1882. Ele argumentava que sua autoridade de médico era tolhida pelas atribuições conferidas às irmãs de caridade e propôs a separação do hospício da Santa Casa de Misericórdia, deixando os internos do manicômio aos cuidados do Estado (Andrade, 1882, p. 7). Apoiado pelo Visconde de Jaguari que assinalava ser o hospício o produto de "judiciosas disposições ditadas pela experiência", Andrade (1882, p. 9) defenderá que o "médico é, sem a menor contestação, o único competente para determinar o gênero de trabalho que pode convir ao alienado".

Após ser demitido em maio de 1882, Andrade torna-se, por meio de nomeação, o primeiro alienista a ocupar a cátedra de Clínica Psiquiátrica e de Moléstias Mentais da Faculdade de Medicina, sendo substituído em seguida por Souza Lima e Teixeira Brandão respectivamente. Este último se autodenominava o "Pinel brasileiro" e possuía um currículo muito parecido ao de Simão Bacamarte, de Machado de Assis.

Em 1883, Souza Lima é sucedido nessa cátedra por um jovem medico de 29 anos, João Carlos Teixeira Brandão, alienista, membro associado da Sociedade Medico-Psicológica de Paris e polemista da imprensa, que se tornaria assim o primeiro titular da cátedra aprovado por concurso público, conforme a determinação da Lei n. 3141, de 1882 (Teixeira, 2005, p. 48).

No conto O Alienista, em uma missão que beirava o heroísmo, Simão Bacamarte ambicionava desvendar os mistérios da "mente" humana, descobrindo a fronteira entre a razão e a loucura, classificar os seus tipos e graus e, a partir deste mapeamento, investigar a cura dos anormais. Pensou nos loucos de uma forma racionalista. Era preciso estudá-los, compreendê-los, desvendar-lhes os delírios e manias para então curá-los. E para tal era necessária à criação de um manicômio como lócus de investigação.

E se no início a cidade aplaudiu os feitos do ilustre cientista da Casa Verde, com o tempo, passou a perceber o exagero de sua atuação. Cada patologia descrita e internação passaram a representar para a cidade uma afronta e a revolta se agravou com a lotação do asilo. Uma rebelião é presidida contra o alienista pelo barbeiro Porfírio. Este sai vitorioso em seu intento de fechar a Casa, mas acaba aliando-se a Bacamarte, pois percebe a necessidade de manter o local funcionando. Após esse evento, o médico recupera seu prestígio e devolve todos os rebelados-insanos ao hospício. Tais momentos da narrativa demarcam o quanto os discursos operam como espaços de poder, espaços onde a verdade é produzida e disseminada e dissimulada, tal como demonstrou Foucault (2007).

Depois de quatro teses não confirmadas, o alienista percebe que o germe da loucura prospera porque já habita em todos, sendo ele o único exemplar são da humanidade. E como último paradigma clínico, resolve internar-se fazendo de si próprio objeto na busca da cura para a loucura. Mas o médico morreu sem concluir a sua tese célebre.

Percebe-se no encontro entre a loucura e Literatura proposto em O Alienista, uma diferença em relação a outros encontros na literatura internacional e brasileira e mesmo na machadiana. Na história de Simão Bacamarte, o autor afasta-se da figura do louco, seja daquele acometido por delírios de ordem religiosa (Major Tomás - Anjo Rafael); seja daquele acometido por delírios decorrentes da pressão imposta por uma situação sobre a qual se perde a noção de realidade (Rubião - Quincas Borba) e se aproxima da ciência, representada na figura do alienista.

Nesse deslocamento, Machado de Assis se aproxima do Outro relacionado à imagem do louco na dimensão razão-loucura: o cientista, o alienista. Este é caracterizado como o criador de critérios e parâmetros que definem o normal e o patológico, sendo, portanto quem melhor pode cuidar da loucura. De forma bastante pertinente, Machado desloca o questionamento sobre "o que seria a loucura" para "o que é válido no discurso sobre a loucura", e questiona, em última instância, o poder médico.

O Alienista não retrata apenas como o cientificismo foi absorvido na sociedade brasileira, a carioca em particular. O conto também fala sobre a disputa de poder entre o discurso científico representado por Simão Bacamarte e o discurso religioso personificado em Padre Lopes. Enquanto o alienista ambiciona conhecer as fronteiras entre a razão e a loucura, com o intuito de alcançar glória, através de um estudo da patologia cerebral, Padre Lopes objetiva escandalizar as teses bacamartianas sobre a loucura, desautorizando suas pesquisas e mantendo a cidade sob o julgo do discurso teológico. Nesse sentido, o conto em estudo configura-se como uma fonte indiscutível de pesquisa para a compreensão da prática psiquiátrica da época e seu prolongamento nos dias atuais.

Uma irônica produção da Loucura

Aspectos da narrativa e a construção do protagonista

A obra O Alienista, publicada em 1881 contextualmente é identificada como uma obra realista, movimento literário cuja referência cultural e histórica foi à ciência, saber que que se iniciara dominante e inquestionável na segunda metade do século XIX (Moisés, 1971 ). As principais ideias deste período eram embasadas pelo positivismo de Augusto Comte, o evolucionismo de Charles Darwin, o psicologismo de Wilhelm Wundt, o determinismo de Hippolyte Taine. A sociedade brasileira do século XIX, especialmente a carioca, palco de grandes acontecimentos, que diretamente se ligava a forma como a sociedade passou a comportar-se influenciada pelo pensamento científico reinante, foi a inspiração para da obra que tem exatamente a ciência como alvo de crítica, sobretudo porque ela se misturava indistintamente com a política.

O texto segue uma narrativa simples, marcada pela presença da ironia, característica estética do autor, considerado por Souza (2004, p. 85), "[...] um homem ligado às questões fundamentais de seu tempo, com preocupações e questionamentos sintonizados com a vanguarda intelectual de sua época, inclusive antecipando reflexões que só em décadas posteriores tomariam corpo". A crítica do autor sobreviveu ao tempo e a análise da obra se faz instigante até hoje.

Privilegiando a análise da loucura como momento de eclosão do pensamento de uma época, Machado realiza dela um desvelamento que incide sobre um ângulo decisivo da questão: sua face política. Ou seja: interessa a Machado o jogo de forças que se defrontam em torno da normatização (toda a tragédia de Bacamarte oscila entre os diversos critérios de normalidade que busca colocar em prática) posta em andamento pela ciência, que se imaginava tão nobre e imparcial (Gomes, 1993, p. 147).

Os aspectos da narrativa presentes no conto de Machado de Assis constituem-se como um importante recurso para o entendimento das particularidades da obra que, por possuir especificidades de criação artística, necessita ser considerada em seus aspectos literários. Moisés (1999) aponta como aspectos essenciais da narrativa: a ação, o tempo, o espaço e as personagens, além das considerações a respeito do foco narrativo.

O conto em questão tem a ação dita externa, marcada pela linearidade. Machado narra uma história que poderia ter perfeitamente ocorrido (e que de certo modo ocorreu nos anos que se passaram e onde presenciamos o aumento indiscriminado dos manicômios em todo território brasileiro e um conjunto de obras que trataram de diagnosticar e prever tratamentos para questões de ordem social1), portanto trata-se de uma história dotada de verossimilhança. Essa característica contribui para a construção irônica de O Alienista acentuando os traços caricaturescos da obra, especialmente em relação às suas personagens.

Em relação ao tempo este também é linear, porém o narrador trata de um fato que provavelmente ocorrera no passado de Itaguaí, cidade do Rio de Janeiro, local que marca o espaço onde o enredo se desenrola. A marca temporal é dada pelo uso constate da expressão: "As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos [...]" (Assis, 1994, p. 01), localizando a narrativa em um momento do passado. O tempo a que se referem tais crônicas, pelas indicações dadas, se passa na primeira metade do século XVIII, durante o reinado de D. João V.

Narrado em 3ª pessoa, por um narrador onisciente, o conto investiga a postura das personagens. A intencionalidade crítica do narrador se reflete também quanto à postura do cientista e do extremo cientificismo do final do século XIX. Consequentemente, o narrador termina por criticar a Escola Naturalista.

O aspecto plano e caricatural das personagens é bastante explorado no decorrer de toda a obra. Esse recurso acrescentado à ironia sugere as intenções de Machado na sua ficção sobre a loucura. Em momento algum Simão Bacamarte, o alienista, o homem de razão, duvida da sua sapiência, da cientificidade, seja em encontrar a loucura nos outros, seja em encontrar a lucidez plena apenas em si próprio. O personagem encerra bem os princípios positivistas da época e se mantém categórico em suas teses sobre a insanidade.

O conto tem início com as informações advindas das crônicas da cidade, referindo-se há um tempo em que "[...] vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas" (Assis, 1994, p. 01). Em seguida, é resumida a história do protagonista, sua vinda de Portugal e fatos relacionados ao seu casamento. São apresentados ao leitor os reais interesses do alienista que, recém-chegado da corte, ambicionava atingir a glória e a admiração da pequena cidade:

Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,-o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", - expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores (Assis, 1994, p. 01).

O médico não vislumbrava com isso apenas prestar um nobre serviço à humanidade, como declarava no alto de sua falsa modéstia. De fato, o serviço que tinha a oferecer se constituía de algo novo na redondeza. Ser o médico que trata e cura a loucura lhe traria reconhecimento, prestígio e renda. Entretanto, essa nova visão ia de encontro a outras já enraizadas no lugar, sobretudo, a religiosa, representada por Padre Lopes, e a política, representada pelo Barbeiro Porfírio. O choque de interesses narrado no conto denota a disputa ideológica que ocorria no contexto de produção da obra, em que a ciência ganhava cada vez mais espaço na explicação de fenômenos antes elucidados apenas pela Igreja.

Em relação aos demais moradores, um dos mais presentes na obra é o boticário Crispim Soares, amigo e admirador do alienista, apesar de ter se posto contra ele na revolução encabeçada por Porfírio. O fragmento a seguir denota bem a diferença de perspectivas entre o boticário e o médico:

E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras (Assis, 1994, p. 06).

Segundo Gomes (1993), a cena faz uma alusão à imagem vivaz do alienista naquele espaço comum. Este aparece como um moderno cavaleiro andante da ciência. Simão Bacamarte é representa o oposto de Crispim Soares, homem provinciano, boticário, descrito como retrógrado e sem horizontes, desprovido do verdadeiro saber, portanto ignorante da própria realidade. Mesclam-se em tom de estranhamento o "presente e o futuro. A besta e o gênio. O sábio e o vulgo. A razão e o sentimento" (Gomes, 1993, p. 146).

Assim, o homem cujo universo era a ciência, serve de caricatura ao despotismo cientificista do século XIX, representando as ideias positivistas reinantes na época. A forma como o alienista estuda a loucura difere-se completamente da ótica como Machado de Assis investigava e estudava as temáticas sobre as quais se debruçava. Simão Bacamarte, em sua frieza analítica, assumirá um tom tão rígido que acabará se tornando caricaturesco, falho, absurdo e polêmico. Caricaturesco pelo exagero empregado à figura do cientista da época, em ligeira analogia com autores do movimento Naturalista, interessados em atestar, via Literatura, teses científicas. Falho porque não foi possível consolidar-se na história da ciência lançando mão de apenas uma teoria explicativa da loucura. Absurdo por empregar seu método a todos os âmbitos de sua vida seja social ou pessoal. Por fim, polêmico por se sobrepor a toda e qualquer autoridade ou discurso, sendo incapaz de discutir assuntos julgados por ele como extremamente complexos com pessoas de baixo intelecto.

Há na construção de Simão Bacamarte, uma crítica ao rigor analítico do determinismo cientificista em voga na literatura da época de Machado de Assis, principalmente assumida pela corrente Naturalista. O autor quis assertivamente mostrar que o método científico não se constituía como um postulado fechado e absoluto na explicação dos fatos, assim como a produção naturalista não se constituía como uma fotografia da realidade humana.

Simão Bacamarte enquanto protagonista representa, ao mesmo tempo, o rigor e a dúvida, a coerência e a disparidade. É visto, a princípio, pelo povo da cidade como um deus, sendo clamado e venerado, até porque os primeiros casos de internamento no hospício foram considerados casos notórios e perfeitamente aceitos. Mas, começa a haver uma sequência de escolhas, argumentos e internações que surpreendem os cidadãos da pequena cidade. O eminente médico de aclamado passou a odiado.

Após a arbitrária internação de Costa, personagem admirado entre os citadinos, a população de Itaguaí notou o exagero das ações do médico. Porém, a manifestação contrária das pessoas não foi suficiente para impedir novas internações, igualmente absurdas, por parte do alienista, que ancorado pela retórica científica, tornara-se irredutível em suas observações clínicas e diagnósticas. O alienista foi assim se moldando como uma fig ura repressora, imponente e inflexível, analogamente a ciência da época.

Com base em Duarte (2006), a ironia machadiana, dentro da complexa consciência narrativa, pode ser considerada, em seu sentido clássico, eironéia em grego, cuja função maiêutica possibilita levar o interlocutor a ter uma visão crítica do mundo, quer pela interrogação de natureza socrática (autocrítica), quer seja pelo elogio que denuncia o avesso do expresso no texto literário (Platão, 1972).

Simão Bacamarte: da traição à alienação científica

Visando encontrar a cura para a loucura, Simão Bacamarte não media esforços em diagnosticar, descrever e prescrever os "cuidados" de internação na Casa Verde. E antevendo a prática alienista conhecida nos dias atuais, embasada pela observação, a descrição de "sintomas" e a classificação, Machado de Assis constrói no conto as personagens insanas e loucas segundo a perspectiva do alienista. Simão Bacamarte concentra a autoridade de definir os critérios sobre o que é a conduta normal e aquela que indica estágio de loucura. Seu discurso imperativo, baseado na ciência, lhe dá status de um homem de poder, que detém a verdade absoluta (Couto & Paixão, 2009).

O protagonista aplica suas teses e argumentos científicos inclusive para a escolha da esposa que, apesar de não reunir os traços de uma mulher bonita e elegante, possui, em contrapartida, condições biológicas para a perpetuação da família Bacamarte. A justificativa do médico também se embasa no fato de que não lhe seria conveniente uma mulher por demais atraente, já que esta apenas desviaria sua atenção dos seus estudos clínicos, tão importantes. À observação e a crítica de um tio sobre a escolha, o médico ponderou que a esposa "reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes". (Assis, 1994, p. 01).

Porém o processo por ele utilizado para a escolha da esposa, calcado nos prognósticos da ciência, apostando nas condições fisiológicas e anatômicas de D. Evarista como imperativas para seus planos fraternais, não foram suficientes para que esta viesse a lhe dar filhos visto que "D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos" (Assis, 1994, p. 01).

De acordo com Maria (2005, p. 150), este é um primeiro indício, e da maior importância, para a composição do perfil de protagonista: "E este detalhe se reveste de jocosidade e ironia - orientadas não apenas na direção da figura do médico, mas servindo também como farpas a provocar ranhuras na face inviolável da ciência, no momento em que tais cuidados mostraram-se completamente ineficazes".

D. Evarista não lhe deu filhos de nenhum tipo, mas esse fato não abalou as convicções científicas de Simão Bacamarte. Com base em Maria (2005) não apenas ao nível narrado fica evidente a zombaria em relação ao saber científico. O mesmo se constata no comentário irreverente do narrador em relação à reação do médico diante do fato de não ter tido herdeiros: "Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina" (Maria, 2005, p. 150).

A traição na convicção de que seus herdeiros levariam seu nome adiante não abalou os projetos de Bacamarte, ao contrário, lhe serviu de impulso, um "mergulho" por inteiro em um recanto mal explorado pelos cientistas da colônia: o terreno da patologia cerebral (Maria, 2005). A construção de um abrigo para os que padecem do mal da loucura, bem com o estudo e finalmente a cura desse mal, aparece como uma grande oportunidade de deleite para o alienista, já que se tratava de um empreendimento novo no local e exclusivo de sua alçada. Isto o restituiria de toda a segurança e status que só a ciência poderia lhe proporcionar.

Apesar da ideia de criação de um asilo que abrigue todos os loucos da cidade parecer absurda à maioria política do local, Bacamarte se sobressai em seus argumentos e consegue fundar a Casa Verde. Esse fato foi um dos acontecimentos mais importantes, acompanhado pela comemoração e bajulação típicas de cidade pequena:

Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. (Assis, 1994, p. 02).

A fundação da Casa Verde pode ser relacionada ao movimento higienista, datado no Brasil no final do século XIX e início do XX. O discurso higienista representava uma nova perspectiva que se propunha a cuidar da população, educando-a e ensinando-lhe novos hábitos. De acordo com Góis (2001, p. 49) "como todo movimento social amplo" o higienismo "aglutinava meios teóricos e práticos diversos para chegar à mesma finalidade, ou seja, melhorar a saúde da população - esta era a finalidade que aglutinava". De forma semelhante, Bacamarte objetivava retirar os loucos das ruas e fazer reinar na cidade a pureza da sanidade .

Passando então para o plano de demarcação dos territórios entre a razão e loucura, o médico se dedica com todo o esmero ao seu labor. Estudará a loucura, classificará e diagnosticará seus tipos, graus e, confiante em seu método, acredita que descobrirá as causas e o remédio universal. "Funda seu continente: a loucura" (Gomes, 1993). A noção topográfica da loucura, ou seja, a ideia de que esta teria um lugar na "mente", ao qual o método científico o conduziria, produz no discurso do alienista o uso recorrente de metáforas geográficas (universo, continente, limites, ilha, oceano) delimita seu campo de luta e sua obsessão que seria desvendar o último segredo da perturbação humana (Gomes, 1993).

Implicado no processo de desbravamento do "território mental", Bacamarte aliena-se nos preceitos do método e em suas próprias teorias:

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor (Assis, 1994, p.04).

A nomenclatura operada pela ótica de ciência do alienista não parece ser de toda diferente a que é produzida ainda hoje no contexto dos manuais de psiquiatria. Temos na atualidade o largo uso do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM). O texto é referência na área da saúde mental e lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios diagnósticos, de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association - APA).

O texto é amparado por muitos grupos como uma enciclopédia, por mais que a princípio devesse servir apenas de base para o entendimento dos transtornos mentais e desse modo acaba algumas vezes sendo a única fonte de pesquisa de profissionais da área da saúde mental (Burcle, 2009). Desde sua primeira publicação em 1952 o DSM já foi reeditado em cinco revisões. Além do manual, há também a Classificação Internacional de Doenças-CID-10, que chegou a décima edição e que descreve, além dos transtornos mentais, doenças de ordens diversas.

Machado de Assis procura evidenciar no conto que a ciência não se manifesta apenas como um conhecimento superior e definitivo daquilo que se pode provar, mas que ela é feita também por meio daquilo que se pode persuadir. O autor procura assinalar que quando a explicação científica se volta para a categorização indiscriminada de pessoas, essa prática pode ser extremamente prejudicial. Pois, como apontam Gonçalves Neto & Lima (2012), o ato de nomear pessoas como aptas, inaptas, geniais, idiotas, ajustadas, desajustadas, imprescindíveis ou descartáveis tem implicações muito distintas frente ao fato de classificar os diferentes tipos de animais e discriminá-los em filos, famílias e espécies.

Se descrever, classificar e nomear as coisas nos permite conhecer e obter domínio sobre elas, então é preciso ficar atento que "uma coisa é ganhar controle sobre os animais, por exemplo, aprender a domesticar o gado; outra é ganhar controle sobre seres humanos, por exemplo, aprender a escravizar o negro" (Szasz, 1977, p. 186). Logo, classificar aspectos humanos e sociais não serve apenas para conhecê-los, mas também para determiná-los e controlá-los (Gonçalves Neto & Lima, 2012, p. 44).

Imerso nos seus estudos terapêuticos, o alienista acabou por afastar-se da vida social e do convívio afetivo com a esposa. O reconhecimento inicial por parte da cidade de seus feitos alimenta-o e o insere cada vez mais em sua investigação. Nem mesmo as necessidades fisiológicas primárias são satisfeitas perante o incessante desejo de estudar e encontrar a cura da enfermidade dos loucos.

E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista (Assis, 1994, p. 04).

Imerso na sua lógica de estudo, Bacamarte é incapaz de reconhecer a falha em suas percepções entre o normal e o patológico e funda, do início ao fim do conto quatro teorias explicativas da loucura. A primeira tipificação da loucura, a mais simplista, determinava como louco aquele com comportamento anormal em relação à maioria. A segunda teoria, mais ampla e determinista, parte do princípio de que a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades, "[...] fora daí, insânia, insânia e só insânia (Assis, 1994, p 08)". A terceira teoria qualificava a loucura em tipologias que se restringem a quatro categorias: os leais, os justos, os honestos, os imparciais. O equilíbrio dessas qualidades implicaria em lucidez, sendo o desequilíbrio o contrário.

Em virtude desta teoria, ocorreu a internação da própria esposa do médico que foi incapaz de se decidir a respeito de qual acessório usaria em uma festa. E ele, um homem de ciência, não hesitaria em trancafiar a própria mulher na Casa Verde. A resignação pela demência da esposa vinha com o fato de este estar lhe fazendo um grande bem, além de condizer com sua postura em desempenhar o papel de psiquiatra de forma imparcial e segura.

Entretanto, o ocorrido com a esposa e os dados estatísticos de internações, indicativos de que quatro quintos da população se encontravam recolhidas à Casa Verde, não poderiam passar despercebidos para um homem de tamanha sagacidade. E assim, lhe a ele chega a uma nova possibilidade explicativa "[...] considerando que havia falhas em suas concepções anteriores, decreta o inverso do que pregara até então - o que não abala sua fé na ciência, antes a reforça, pois ela é investigação constante" (Gomes, 1993, p.146):

De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: - 1º que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2º que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3º que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4º que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5º que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação (Assis, 1994, p. 24).

A quarta teoria foi de todas a mais controversa, mas sem dúvida a que mais evidenciou a prepotência e a falsa modéstia do alienista. Após investigação metódica, convence-se de ser ele próprio, o único perfeito, não possuindo sequer um resquício de desequilíbrio, portanto, apto ao interesse do seu estudo.

Assim ele consubstanciou-se, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto da sua pesquisa para compreensão da lucidez. Afinal, o que ele tem que o torna o único são do juízo? E, mais ainda, porque apenas ele? Tomado pelo desprendimento e interesse científico que conduziu seu trabalho até então, coloca-se a disposição da ciência, por ser ele o único exemplar sobre o qual se aplica sua nova teoria.

 

Considerações Finais

Diante do exposto, pode-se dizer que os encontros entre loucura e Literatura ocorreram em função de contextos em que a loucura foi de alguma forma questionada, no sentido de se querer saber mais sobre ela. Vista como algo reconhecível e ao mesmo tempo misterioso ou sobre a pessoa considerada louca e por isso incapaz de falar por si própria.

Nesse aspecto se inscreve O Alienista, obra que trata principalmente da produção discursiva da loucura, das consequências da nomeação técnica e os perigos do diagnóstico. Pode-se entender o conto como uma obra questionadora das aparências que, por meio da escrita, produz uma crítica audaciosa ao alienismo e a ciência praticada na época, embasados nos ideais positivistas. A pertinência da obra se mantém ainda como referência a estudos críticos da prática psiquiátrica. Afinal, a posição ocupada no passado pelo alienista hoje é socialmente aceita pelo psiquiatra, Itaguaí enquanto espaço funciona como metonímia.

A retórica foi um meio seguro e eficaz de fundamento para as explicações de Simão Bacamarte, em seu exercício de produção da loucura. É este aspecto que tem lugar de destaque na obra. Simão Bacamarte cria os loucos, antes inexistentes em Itaguaí, determina graus, tipos, tratamentos e dessa forma sentencia os limites da razão, que acaba por determinar quem fica dentro ou fora da Casa Verde - local que funcionara como analogia perfeita para a metáfora da loucura como continente.

O médico torna-se uma espécie de mártir ao sacrificar-se em nome da ciência para o estudo da loucura. Entretanto, esse deslocamento feito em virtude da última teoria sobre a loucura, que leva o alienista à reclusão na casa verde, é também um ardil, na medida em que sendo o próprio alienista sujeito e objeto da ciência, é sobre ele que a ciência fala e por sua teorização que a ciência consequentemente falhará. Ao se considerar o único ser lúcido, ele se autodenomina referência não mais para o estudo da loucura, mas para o estudo da perfeição das faculdades mentais. Bacamarte confiando unicamente em sua lucidez e conhecimento científico delira, desconhecendo sofrer ele próprio uma psicopatologia.

A mudança de foco - do louco ou da loucura - para aquele que o identifica e determina, proporciona ao leitor enxergar a loucura por outro ângulo e assim entender como os discursos são produzidos, como são revestidos de verdade e poder que melhor sustentam o aparente status natural de convicções e opiniões inalteráveis. Esse é o ponto de tensão da obra, uma vez que as teses bacamartianas não conseguem ser sustentadas, sendo retificada uma após outra, da forma mais controversa.

O conto é, portanto, uma leitura importante ainda nos dias atuais, pois serve não apenas para questionar a concepção racionalista e positivista de ciência, como também para discutir todo e qualquer saber que pretenda ser dogmático e intransponível.

Assim, a crítica machadiana sobre a higienização social na época de publicação da obra em relação aos considerados loucos e marginalizados persiste até hoje, quando mais uma vez, o discurso médico de certa forma fundamenta a reclusão e internação de moradores de rua e usuários de drogas em grandes cidades. Observa-se ainda a atualidade da crítica presente na obra quando deparamo-nos com discursos em prol da volta da estrutura manicomial, as justificativas para a internação compulsória, a produção massiva de diagnósticos, a psicopatologização da vida cotidiana e o aumento do tratamento farmacológico para os considerados distúrbios psiquiátricos.

 

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Maria Vanesse Andrade
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Recebido: 18/09/2012
Última revisão: 25/09/2013
Aceite final: 17/10/2013

 

 

Sobre os autores:
Maria Vanesse Andrade - Bolsista de Iniciação Científica da FUNCAP. Estudante do Curso de Psicologia da universidade Federal do Ceará (UFC) e do curso de Letras pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). E-mail: vane021p@yahoo.com.br

Aluísio Ferreira de Lima - Doutor em Psicologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará - UFC. Líder do Paralaxe: Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica - UFC. E-mail: aluisiolima@hotmail.com

Maria Elisalene Alves dos Santos - Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Professora de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). E-mail: elisalene@ig.com.br

 

 

1 Os discursos sobre a modelação e adaptação social dos sujeitos pelas vias da higiene e educação foram temas centrais entre os anos de 1920 e 1930 no Brasil, nos trabalhos de Leonídio Ribeiro, Ulysses Pernambucano, Helena Antipoff, Julio Porto-Carreiro, Artur Ramos entre outros.