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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.5 no.3 Porto Alegre dez. 2015
ARTIGOS
Silêncios em Liberdade Assistida: encontros entre artes de governar
Silences on Probation: encounters within the arts of governing
Silencios en la Libertad Asistida: encuentros entre artes de gobernar
Livia Pignaton CaserI, Ana Paula Figueiredo LouzadaII e Maria Izabel Costa da SilvaIII
I Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.
II Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.
III Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.
RESUMO
Este artigo procura problematizar silêncios que, por vezes, atravessam encontros entre técnicos do Centro de Referência Especializada da Assistência Social (Creas) de Vitória - ES, com adolescentes e famílias, em seus processos de cumprimento de medida socioeducativa em Liberdade Assistida. Busca situar como a LA se encontra numa encruzilhada de práticas históricas constituídas em relação à infância e a adolescência no Brasil, que se caracteriza pela luta pelo reconhecimento como sujeitos de direitos e, ao mesmo tempo, esbarra em práticas de proteção, criminalização e repressão. Com Foucault, se percorre o conceito de governamentalidade a fim de analisar a relação entre artes de governar a população, como jogo de conduzir a conduta dos outros, de agir sobre a ação dos outros. Debate-se também a relação de produção de informação pelos técnicos e seus silêncios ao acompanhar os adolescentes e suas famílias no cumprimento da Liberdade Assistida.
Palavras-chave: Medida Socioeducativa; Liberdade Assistida; Governamentalidade.
ABSTRACT
This article problematizes silences that sometimes arise during probation rehabilitation compliance hearings between technicians of the Centro de Referência Especializada da Assistência Social [social assistance centre] in Vitória in the state of Espírito Santo, Brazil, and adolescents and their families. We seek to locate probation within the crossroads of Brazilian historical practices related to childhood and adolescence in terms of a struggle for the recognition of subjects having rights, an effort hampered by protection, criminalization and prosecution. We invoke Foucault’s concept of governmentality to analyze the relation between the art of governing a population as a game between directing the conduct of others and acting on the actions of others. In addition, we analyze the relation of silence and the production of information by technicians while following their charges’ compliance with rehabilitation during probation.
Keywords: Social-Educational Measure; Probation; Governmentality.
RESUMEN
Ese artículo es sobre la problematización de silencios que atraviesan encuentros entre técnicos del Centro de Referencia Especializada de la Asistencia Social (Creas) de Vitoria, ES, con adolescentes y familias, en sus procesos de cumplimento de la Libertad Asistida. Busca situar como la LA se encuentra en la encrucijada de prácticas históricas constituidas en relación a niñez y adolescencia en Brasil, que se caracteriza pela luta por reconocimiento como personas de directos y, por el enfoque de la protección, criminalidad y represión. Con Foucault, se transcurre el concepto de gobernamentalidad, a fin de evaluar la relación entre artes de gobernar a populación como el juego de conducir la conducta de los otros, de actuar sobre la acción de los otros. Se debate la relación de producción de informaciones por los técnicos y sus silencios al acompañar los adolescentes y sus familiares en el cumplimento de la Libertad Asistida.
Palabras-clave: Medida Socioeducativa; Liberdad Asistida; Gobernamentalidad.
Introdução
Este artigo trata da problematização de silêncios que, por vezes, atravessam encontros de atendimento de técnicos do Centro de Referência Especializada da Assistência Social (Creas) de Vitória- ES, com adolescentes e famílias em seus processos de cumprimento de Liberdade Assistida.
A Liberdade Assistida, segundo as legislações atuais de infância e adolescência, é uma medida socioeducativa em meio aberto, passível de ser aplicada a jovens que tenham praticado algum ato infracional,1 cumprida através de um acompanhamento psicossocial.
A primeira medida nomeada Liberdade Assistida foi implementada com a promulgação do Código de Menores, em 1979, dando lugar ao que anteriormente era denominado Liberdade Vigiada, vigente no Código de Menores Mello de Matos de 1927. Ainda que a LA já existisse como possibilidade, a internação em instituições específicas continuou como uma política prioritária de condução dos adolescentes durante a década de 80.
Com a Constituição Federal de 88 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad), a LA teve seu caráter alterado: se antes era prioritariamente o de vigiar e tratar (marcadamente presente no Código de Menores de 1979), as medidas passaram a acompanhar, assistir e orientar. Tal alteração, todavia, não lhe retirou a marca punitiva, mas a complexificou.
Como medida socioeducativa, a LA encontra-se na encruzilhada entre práticas históricas constituídas em relação à infância e adolescência no Brasil, marcadamente pelo viés da proteção, criminalização e repressão e, ao mesmo tempo, a luta pelo reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. (Almeida; Souza; 2010).
Com o processo de municipalização do SUAS (Sistema Único da Assistência Social) (Souza, 2008), as medidas socioeducativas, principalmente em meio aberto, são executadas por equipamentos das Secretarias de Assistência Social. Em Vitória, ES, esta pesquisa foi realizada em um dos Creas, por meio de conversas com os profissionais – tanto individuais como em grupo – sobre o tema da Liberdade Assistida. Para essas conversas, foi elaborado um roteiro de entrevistas semiestruturadas e foram escolhidos profissionais que atuam diretamente no atendimento aos adolescentes em cumprimento de Liberdade Assistida de diferentes escolaridades, cargos e profissões.
Essa opção deu-se pela percepção de que tais profissionais se encontram em posições específicas: ao mesmo tempo em que lidam com o que se prescreve como execução dos programas (metodologias, discursos, especialismos, articulações), também trabalham com as demandas dos adolescentes e famílias em cumprimento de Liberdade Assistida em seus reais contextos de vida. As conversas foram feitas considerando tanto os aspectos prescritos para a execução das funções, como as questões com as quais os profissionais se deparam cotidianamente, e o que pensam a respeito do que vivem.
Além disso, foi realizado um encontro de discussão em grupo que intencionou levantar problemas mais amplos da atuação da área, incluindo as relações da esfera governamental municipal, problemas que se intensificam no contexto presente, assim como validar algumas das informações que emergiram das conversas individuais. Numa lógica de “tempestade de ideias”, pediu-se que escrevessem em conjunto, num papel grande, com canetas da cor que preferissem, “o que viesse à cabeça naquele momento quando se fala no trabalho com Liberdade Assistida” ou “o que acham relevante em Liberdade Assistida hoje” ou “o que ferve nessa questão? ”.
As falas registradas trouxeram um universo amplo de questões, das quais foram destacadas e traçadas as problematizações desta pesquisa. Notadamente neste artigo, destacam-se os silêncios.
Silêncios como entraves a uma lógica dialogística
O Acompanhamento psico-sócio-pedagógico, numa proposta de fortalecimento de vínculos familiares e sociais, faz parte do trabalho com adolescentes em medidas de LA. Nesse sentido, busca-se problematizar uma questão que surgiu em repetidas falas dos técnicos do Creas como impeditivo, ou ao menos limitador, desse trabalho: o silêncio.
Ao escutar o que o educador social diz do que percebe ao acolher adolescentes e famílias após as audiências, surge uma pista:
Na vara, eu observo algumas dificuldades, principalmente na questão do acolhimento, muitas vezes ele vai para audiência... Eu falo assim, que é mais um número a ser numa audiência, porque normalmente não é levada em consideração a história de vida desse adolescente. (Entrevista, novembro de 2013)
Depois da definição da medida, o adolescente e responsável são acolhidos pelo equipamento em que serão acompanhados Creas, o qual é parte da “atenção social especial”2. Esta busca atender crianças e adolescentes que já se encontram em situação de violação de direitos. Portanto, se o adolescente chega à LA, considera-se que o que está previsto no ECRIAD, ou seja, a proteção básica dos direitos do adolescente, não foi devidamente garantido pelo Estado.
Quando chegam aos atendimentos, os adolescentes precisam passar por questionamentos burocráticos. Os quais exigem que se apresentem, isso revela aos técnicos o desafio para o cumprimento da medida, para a garantia de seus direitos.
Aí, no dia a dia, a gente vem acompanhando esse adolescente, a gente tem um momento que é da questão da burocracia, que é preencher os formulários, porque aquilo ali também te permite conhecer um pouco mais do histórico de vida do adolescente, compreender essa realidade que ele vive. Nesse momento ele vai soltando, de pouquinho em pouquinho, que geralmente eles sempre são acompanhados do responsável, nesse primeiro atendimento, que é onde você pergunta o histórico, a configuração familiar, você percebe de onde esse adolescente veio, você começa a compreender um pouco o motivo pelo qual ele se inseriu num ato infracional. (Entrevista, novembro de 2013)
No processo de execução previsto por lei para Liberdade Assistida e demais medidas socioeducativas, deve ser feito (num prazo de 15 dias), o Plano Individual de Atendimento (PIA), documento elaborado por equipes junto às famílias ou responsáveis, estabelecendo metas como encaminhamentos e atividades semanais obrigatórias, durante um período mínimo de 6 meses e máximo de 2 anos que, posteriormente, serão relatados para o processo judicial do adolescente. Tudo isso se inicia pelos atendimentos psicossociais. Dentre as dificuldades que surgem, o técnico do Creas aponta:
Não te responde, você pergunta até o nome e ele te olha: [pausa com a expressão facial fechada] “João.” “Sim, mas João de quê? Sua data de nascimento?” Ele olha para mãe: “responde aí”. Aí, “não, mas eu queria conversar com você, ouvir sua voz, tem como você falar sua data de aniversário para mim? ” [Ela mostra que o adolescente fica em silêncio, olha para outro lado e cruza os braços] e fica lá com os braços cruzados. Eu nem sei se a palavra é hostil mesmo, mas essa questão de não estabelecer isso [diálogo], para mim, é a maior dificuldade (Entrevista, novembro de 2013).
Aqui se evidencia a existência de toda uma equipe (psicólogo, assistente social, oficineiro, educador social) capacitada para operar escutas, produzir falas, textos. A lógica dialogística é a principal ferramenta de trabalho para a equipe que se propõe acompanhar aqueles que cumprem medidas de Liberdade Assistida.
Se o trabalho se afirma como aquele que vai ao encontro do que os adolescentes e suas famílias têm a dizer, os silêncios e respostas curtas inquietam quem os recebe. Se diálogos são uma incumbência laboral, logo, deparar-se com silêncios é recebido como impedimento ao próprio exercício do trabalho. Mas o que implica esse impedimento? O que se passa entre técnicos, adolescentes e suas famílias? O que consiste a recusa em não dizer, em cruzar os braços? O que dispara a recusa ao diálogo? Ou melhor, que perspectiva de diálogo se encontra em jogo, que os silêncios dos adolescentes denunciam? Seguindo essa pista, caminha este artigo. Que atravessamentos comparecem na cena entre “João” e o técnico? Que lugares marcados entre artes de governar, correções, acompanhamentos, adolescências, famílias e normas? Este artigo pretende acompanhar os sentidos dos silêncios, traçando alguns desses atravessamentos.
Gestão dos vulneráveis: população e as artes de governar
Ora, não se trata de uma conversa qualquer. Entre adolescentes em LA e técnicos em Assistência Social emaranha-se uma trama composta por fios de políticas sociais em uma relação entre governo e população. Para análise da gestão de políticas sociais, em suas relações com a criminalização, condução pedagógica e fortalecimento de vínculos, tríade presente nas medidas socioeducativas de LA, traz-se aqui, ainda que brevemente, as contribuições de Foucault no que tange às artes de governar.
Foucault desenvolveu o conceito de governamentalidade nos cursos Segurança, Território e População e Nascimento da Biopolítica nos anos de 1977-1979 no Collège de France, quando investigou mudanças ocorridas no exercício da soberania política nos Estados Ocidentais. O interesse de Foucault não foi estudar o Estado ou o poder “em si mesmo”. O objetivo do autor era compreender os modos pelos quais nos tornamos sujeitos. Com esse intuito, ele investigou as relações de saber e de poder, pois elas medeiam os processos de subjetivação, os processos pelos quais nos tornamos o que somos. Foi assim que o filósofo chegou ao tema do Estado, pois, na modernidade, as relações de poder e saber constituídas nas instituições estatais passaram a ter lugar privilegiado em tais processos. Assim, ele se interessou por pesquisar os “tipos de racionalidade que são postos em ação nos procedimentos pelos quais a conduta dos homens é conduzida por meio de uma administração estatal” (Foucault, 2008a, p. 437).
Para o autor, o que possibilitou ao Estado chegar à sua forma atual, tal qual a conhecemos, foi que ao longo da constituição dos Estados ocidentais as relações de poder foram sendo, pouco a pouco, racionalizadas, exercidas, cruzadas, atravessadas, pelas instituições do Estado.
Foucault (1995) se refere às relações de poder como exercícios de poder:
de fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes. Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro pólo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que ''o outro" (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis (Foucault, 1995, p. 243).
Só se pode exercer poder, ou seja, conduzir a conduta dos outros, agir sobre a ação dos outros, justamente porque esse outro tem um certo espaço de decisão de sua própria condução, a condução de si. Relações de poder entendidas, portanto, como criação de diferentes formas de conduzir, induzir, estimular, influenciar a condução da vida e as decisões de sujeitos “livres”, individuais ou coletivos, que por sua vez, “têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer” (Foucault, 1995, p. 244).
Essa análise das relações de poder como ação sobre a ação dos outros evoca claramente a relação entre técnicos atuando na Assistência Social sobre as vidas dos adolescentes em cumprimento da LA: não se trata de encarcerar os adolescentes, confiná-los, mas buscar fazê-los operar sobre a virtualidade de suas ações, sobre o que pode conduzi-los em relação aos atos infracionais. Mais que os corrigir trata-se de trazê-los, englobá-los (psico-sócio-pedagogicamente) em uma trama que produz ações:
Porque eu acho também que a medida em meio aberto, ela fica também muito nessa questão do pedagógico, do socioeducativo, mas eu acho que também a gente tem que frisar na questão da responsabilização. Ele tem que entender que ele está aqui, por todo um contexto familiar, sociocultural, tudo isso. Mas também porque ele transgrediu uma lei. Cometeu um ato infracional. (Entrevista, novembro de 2013)
Entre técnicos e adolescentes em LA há uma regulação entre artes de governar e população. A estatização, ou a apropriação pelo Estado, das relações de poder, estas entendidas como a arte ou o jogo de conduzir a conduta dos outros, de agir sobre a ação dos outros, não apenas sobre os corpos individuais, mas também como população, é o que caracteriza o fenômeno que o autor chama de governamentalização dos Estados modernos.
Foucault afirma que na modernidade, o Estado passou a ser um espaço muito visível de efetivação das relações de poder quando passou a agir deliberadamente sobre a conduta da população, passando a ter por meio e fim agir não apenas sobre os corpos dos indivíduos por meio da violência ou da disciplina, mas sobre a ação das pessoas, quando passou a governar esses sujeitos. O sentido das palavras “governo” ou “governar”, no século XVI, não se referia estritamente ao governo do Estado, mas designava toda uma
[...] maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes. Ele não recobria apenas formas instituídas e legítimas de sujeição política e econômica, mas modos de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de ação dos outros indivíduos. Governar, nesse sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros (Foucault, 1995, p. 244).
Desse modo, o poder exercido pelo Estado, pautado em racionalidades capitalistas, “assujeita na justa medida em que subjetiva. Assujeitar e subjetivar são, portanto, ações distintas, porém inseparáveis no exercício do poder na modernidade” (BENEVIDES; PASSOS, 2005, p. 565). Assim, a ação do Estado sobre as ações da população por intermédio de suas políticas, equipamentos e outras táticas, não apenas operam para mantê-las capturadas em suas redes forçosamente, mas as subjetivam de modo que desejem estar nessas redes. Produção de subjetividades moduladas aos seus princípios.
... o objetivo nosso é acolher ele e tentar orientar e trazer outras possibilidades para o cotidiano. Para que ele rompa com aquele ato infracional e não faça mais algo ilícito. A gente trabalha muito nessa perspectiva mesmo, de fazer essa reflexão, para que ele encontre no Creas possibilidades para não cometer outro ato infracional. Acho que o objetivo da medida socioeducativa é esse. ” (Entrevista, novembro de 2013)
Imperativos que aparecem em incumbência aos técnicos, mas que tratam de relações entre Estado e público alvo da LA. Apontam para modos de se colocar a população como objeto das tecnologias políticas de poder. A finalidade do governo, sua preocupação, é de conduzir a população através de instrumentos de indução diretos ou indiretos, pois:
[...] a população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que como força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas mãos do governo; como consciente, ante o governo, daquilo que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. O interesse individual – como consciência de cada indivíduo constituinte da população – e o interesse geral – como interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e as aspirações individuais daqueles que a compõem – constituem o alvo e o instrumento fundamental do governo da população (Foucault, 2013, p. 425;426).
É no âmbito da preocupação com os fenômenos próprios da população que Foucault (2008b) vai falar da emergência de um biopoder sobre a vida, agregando-se aos dispositivos de disciplina sobre os corpos individuais, técnicas de condução da mesma. Nomeiam-se fatores, comportamentos, fenômenos considerados perigosos à “boa” conservação da população e, em nome da segurança e da defesa dela, criam-se diversas biopolíticas, ou seja, procedimentos não apenas legislativos, de gestão e de controle direto sobre a vida, em especial a vida biológica. Nessa lógica, justificam-se práticas governamentais sobre determinadas pessoas ou grupos de pessoas, caso, na análise do governo, elas representem risco a si mesmas, ao restante da população ou à espécie.
Assim nos diz o autor:
Governamentalização do Estado, que é um fenômeno astucioso, pois se efetivamente os problemas da governamentalidade, as técnicas de governo se tornaram a questão política fundamental e o espaço real da luta política, a governamentalização do Estado foi o fenômeno que permitiu ao Estado sobreviver. Se o Estado é hoje o que é, é graças a esta governamentalidade, ao mesmo tempo interior e exterior ao Estado. São as táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal etc.; portanto o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido com base nas táticas gerais da governamentalidade (Foucault, 2013, p. 430).
Mas aqui, ao falar de táticas de governo, o autor não se refere apenas às práticas especificamente governamentais, exercidas no âmbito interior do Estado, mas também todas aquelas desenvolvidas pelos sujeitos, pela população, em relação ao Estado, com os outros e consigo mesmos. Ele vai definir governamentalidade como todos os campos estratégicos onde se dão as relações de poder, “no que elas têm de móvel, de transformável, de reversível” (Senellart, 2008, p. 533). Portanto, para o autor, a análise de uma dada governamentalidade porta também a análise das formas de resistência inerentes a toda relação de poder, mesmo que se manifestem num simples ato, de não responder, silenciar.
No que tange à conflituosa relação que aparece nos atendimentos em Liberdade Assistida, os técnicos pontuam: “Porque a medida socioeducativa é obrigatória. Então, nesse primeiro momento o diálogo é bem difícil com alguns deles, porque eles não se pronunciam.” (Entrevista, novembro de 2013).
Ainda que pareça contraditório, justificam-se as intervenções governamentais em todo um “em torno” do mercado, a fim de garantir sua liberdade. É preciso proteger o interesse coletivo de ser atropelado por interesses individuais e também proteger os interesses individuais contra o abuso de interesses coletivos. Para isso criam-se dispositivos de segurança para gerir, regular, arbitrar, controlar os perigos que envolvem o jogo das liberdades/interesses individuais e coletivos. Foucault (2008a) afirma que nesse jogo fabricam-se liberdades, assim como se fabricam perigos: o medo da violência e do crime, o medo do desemprego ou da velhice, o medo de doenças, da degeneração do indivíduo, da família, da raça, da espécie humana. Uma cultura do perigo, nos diz o autor, para os quais o mercado fabricará muitas soluções e sob os quais o governo deve manter vigilância para intervir quando afetarem o mecanismo natural do mercado. Contexto de intensificação do biopoder sobre a população. Para se garantir um “a mais” de liberdade de mercado, deve-se garantir também um “a mais” de controle e de intervenção.
Dessa forma, entre o ato infracional e a medida socioeducativa de Liberdade Assistida no Creas, procedimentos e atendimentos marcam os corpos dos adolescentes: apreensão e encarceramento para aguardar a audiência, tratamentos do sistema judiciário, sentenças, etc. Tais marcas, hoje, podem carregar tratamentos discriminatórios, violentos, desrespeitosos, agressivos, que invariavelmente justificam-se como medidas de segurança e proteção.
Esses modos de segurança apontam para a construção da imagem monstruosa de criminoso, personagem temido, que é associado a uma ameaça de violência ligada ao crime, à violação. Um sujeito capaz de indisciplinas às regras sociais, de rompimento com a lei, de ignorâncias em relação às condutas esperadas, por isso, ele pode ser alvo de medos, de agressões e humilhações. Produz-se uma necessidade de se avisar a todos sobre o “perigo” que carrega, assim como é preciso que as pessoas vigiem, observem, suspeitem, para buscar prevenir que as violações aconteçam.
“A periculosidade, essa sombra de qualidade que se empresta aos indivíduos, vem agora juntar-se ao delito. E dá direito a um suplemento de pena. Está se criando a infração psicológica, o ‘crime de caráter’” (Foucault, 2012, p. 112). Dessa forma, através da justificativa da periculosidade, todo um imaginário em torno da infração e infrator se instala, não só do judiciário, mas em toda a sociedade.
Quando o “delinquente3” é capturado, as pessoas querem afastá-lo, aprisioná-lo, ocultá-lo, silenciá-lo, para que não ameace a segurança “de todos”. Adolescentes chegam calados e seu silêncio também denuncia violências implícitas, indizíveis, dos sistemas formais de vigilância, justamente porque se acredita estarem justificadas por discursos de medo e de ameaça à sociedade. Da mesma forma, é importante perceber que existe o discurso carregado de uma culpabilização e da restauração dessa culpa:
“Meio assim, fulano não vai porque ele não quer”. Tudo bem que ele tem que querer e a gente fica 10 anos tentando, mas desconsidera a vida da pessoa também, porque é “o vagabundo que está ali e não quer nada com nada. ” [Criticando um discurso que presenciou num serviço de um Centro de Referência da Assistência Social CRAS] (Entrevista, novembro de 2013).
Em uma grade de inteligibilidade concorrencial e individualizante compreende-se a concepção de política social no âmbito do neoliberalismo. Tal concepção difere em muito das políticas de previdência do Estado de Bem-Estar Social. Neste, a política social é tida como contraponto aos efeitos dos processos econômicos que são geradores de desigualdades sociais; age por igualização do acesso a bens e serviços; advoga que quanto maior o crescimento econômico mais a política social deve aumentar.
Para os neoliberais a política social não tem por objetivo contrabalancear ou equilibrar os efeitos dos processos econômicos, nem equalizar/igualar acesso a bens e serviços, pois, lembremos: a regra máxima neoliberal é a regulação das relações por meio da concorrência, e é própria desta a diferenciação, a desigualdade, a oscilação. Assim,
[...] É preciso que haja pessoas que trabalhem e outras que não trabalhem, ou que haja salários altos e salários baixos, é preciso também que os preços subam e desçam, para que as regulações se façam. Por conseguinte, uma política social que tivesse por objetivo principal a igualização, ainda que relativa, que adotasse como tema central a repartição, ainda que relativa, essa política social seria necessariamente antieconômica. Uma política social não pode adotar a igualdade como objetivo. Ao contrário, ela deve deixar a desigualdade agir. [...] para eles, o jogo econômico, com os efeitos desigualitários que ele comporta, é uma espécie de regulador geral da sociedade, a que, evidentemente, todos devem se prestar e dobrar (Foucault, 2008a, p. 195; 196).
Portanto, na proposição neoliberal, coletivizar e redistribuir renda, objetivando a igualar os sujeitos, compromete e perturba o jogo econômico e isso não pode acontecer. Não se pode perder de vista em nenhum momento que o que move a economia é a lógica concorrencial, por isso usa-se a ideia de jogo. É por meio da inserção no jogo econômico que as pessoas devem buscar as próprias maneiras de manterem a si mesmas e suas famílias e enfrentarem os riscos (doenças, velhice, acidentes, perdas materiais, etc.). A política social, assim, atua não por socialização, mas por individualização.
Tendo de um lado o jogo econômico e de outro a política social, que se tocam na superfície, mas não devem um adentrar no outro, o segundo não deve perturbar o primeiro, e cabe assim ao Estado estabelecer as regras do jogo dessa interface e zelar por sua aplicação. E quais são as regras desse jogo? Pergunta Foucault (2008a). Já que a política social, nessa perspectiva, se dá por meio do indivíduo encontrar, por sua conta, os meios de sua sobrevivência nas relações econômicas, têm-se basicamente uma regra geral:
[...] deve ser impossível que um dos parceiros do jogo econômico perca tudo e, por causa disso, não possa mais continuar a jogar. Cláusula, por assim dizer, de salvaguarda do jogador, regra limitativa que não altera em nada o desenrolar do jogo, mas impede que alguém fique total e definitivamente fora de jogo. [...] ninguém originariamente participa do jogo econômico porque quer, por conseguinte cabe à sociedade e à regra do jogo imposta pelo Estado fazer que ninguém seja excluído desse jogo no qual esta pessoa se viu envolvida sem nunca ter desejado explicitamente participar dele. [...] deve ser a de garantir pura e simplesmente a não-exclusão de um jogo econômico que, fora disso, deve se desenrolar por si mesmo [...] (Foucault, 2008a, p. 278).
É esse raciocínio que vai dar a diretriz das políticas sociais na governamentalidade neoliberal. Às pessoas, que por algum motivo, não estejam conseguindo manterem-se por conta própria, deve-se garantir um mínimo para continuarem disponíveis à participação no jogo econômico. Apenas o mínimo, pois toda e qualquer ação do governo deve ter o custo mais baixo quanto possível. Não se devem criar benefícios universais, a que todos tenham direito, pois uma parte das pessoas pode pagar pelos bens e serviços. A política deve ser focalizada estritamente naqueles que temporária (desemprego) ou definitivamente (deficiências, velhice) não conseguem prover o mínimo para a subsistência. A perspectiva de direitos universais, dentro dessa lógica, é abandonada. Nesse sentido, vão ser implementadas medidas como, por exemplo, o imposto negativo. Ele tem como objetivo complementar a renda desses indivíduos que estejam abaixo de um “patamar de consumo que a sociedade considera decente” (Foucault, 2008a, p. 280), mas de forma moderada para que não desistam de procurar emprego.
Não importa saber por que essas pessoas caíram ou se encontram no patamar da pobreza, importa apenas conceder-lhes um estímulo para que se sintam motivados, apesar de todas as possíveis causas, a quererem sair, se elevar desse patamar – individualmente, é claro. Por esse viés, as relações sociais passam a ser atravessadas por conceitos e interesses empresariais. Entre humanos, conversas e negociações, todos vão se adequando à essa moldura. Portanto, para se resolver conflitos, considerando diferenças de interesses e as formalizações, são necessárias, crescentemente, intervenções jurídicas, as quais funcionam sob a mesma lógica.
A sociedade está tão indexada na multiplicidade e na diferenciação das empresas que até as relações do dia a dia entre pessoas estão atravessadas pela lógica de mercado. Quanto mais se multiplicam as empresas, mais se multiplicam as superfícies de atrito entre estas e, consequentemente, para arbitrá-las, aumenta a necessidade de intervenções jurídicas.
Logo, conclui-se que o Estado, para legitimar-se, precisa estar a serviço da lógica de mercado e utilizar dos aparatos jurídicos e institucionais. “Onde há forma da lei, e no espaço definido pela forma da lei, o poder público pode legitimamente tornar-se coercitivo.” (Foucault, 2008b, p. 233)
O que Foucault (2008b) ressalta é que existe, então, uma relação de cegueira do Estado com a economia, na qual funciona como um “jogo: um conjunto de atividades reguladas” uma moldura de leis, ou seja, “um conjunto de regras que determina de que modo cada um deve jogar”, mas do qual não se sabe o desfecho. Entretanto os únicos agentes reais nesse jogo são os indivíduos, que funcionam, como unidades-empresa. “Um jogo de empresas regulado no interior de uma moldura jurídico-institucional garantida pelo Estado.” (Foucault, 2008b, p. 238)
As demandas dessas numerosas empresas e suas relações vão requerer o aumento crescente das demandas de arbitragens. Então, a Justiça vê ampliadas e diversificadas as necessidades de suas intervenções. Assim, tende a tornar-se “um serviço público onipresente”. (Foucault, 2008b, p. 241)
A forma que o Estado encontrou para assegurar que ninguém fique excluso do jogo foi através da regulamentação social, da seguridade social, da assistência social, dentre outros dispositivos. Em suma, não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar riscos (Foucault, 2008b, p. 198).
A política social, na qual se inclui o Creas e a Liberdade Assistida, portanto, tem como objetivo garantir o acesso mínimo de cada um aos bens de consumo, havendo sempre um risco de perder esse acesso, pois, em uma sociedade organizada sob a lógica de unidades-empresa, cada sujeito deve buscar garantir seu próprio acesso aos bens, sendo “uma espécie de empresa de si mesmo”, um “capital-competência” (Foucault, 2008b, p. 310) ou um “empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital” (Foucault, 2008b, p. 311).
Considerando que a concorrência é regra fundamental desse jogo, por mais que se garanta que todos fiquem incluídos, não é possível a transferência de renda de uma classe social para outra de modo que haja igualdade social. (Foucault, 2008b)
Desse modo, as políticas assistenciais são estratégias para garantir que certa população se situe na miserabilidade, mas sem morrer: os “vulneráveis” ainda em “risco social”, mas com suas vidas atravessadas pelos serviços governamentais - como forma de garantir a conservação de suas vidas.
No que se descreveu sobre esse público atendido no campo da Liberdade Assistida, sobre as condições das famílias, o que se apontou foi para sua precariedade Agravada ou amenizada pelo envolvimento com o tráfico e uso de drogas ilícitas. Entretanto, é importante perceber como isso também pode ser utilizado para que serviços estatais intervenham nas vidas dos adolescentes.
Quando o adolescente não tem um envolvimento assim, mais profundo, mesmo continuando lá no tráfico, naquele movimento, com o qual a gente sabe que é difícil ele romper, ele consegue vir ao Creas, mas assim, casos e casos... Tem situação que o adolescente vem para o acolhimento e nem chega a iniciar a medida, e que se perde no meio do acompanhamento, devido a fatores de uso de drogas, tráfico de drogas, ameaças, conflitos. Então, acho que isso é uma barreira para que ele consiga cumprir, né, a medida socioeducativa. (Entrevista, 11/2013)
E nesses princípios de governamentalidade, nesses princípios de conduzir as ações da população, a gestão da família encontra-se no centro de movimento de continuidade ascendente e descendente entre o governo do Estado e dos indivíduos. Em todas as políticas sociais, ao longo dos séculos XVIII ao XXI, de diversos modos, as famílias, e a produção de suas regulações estão diretamente envolvidas.
A medida socioeducativa em LA parte do princípio de que a detecção da vulnerabilidade, do risco social, e a necessidade de fortalecimento de vínculos familiares são o que autoriza a intervenção estatal em algumas famílias.
Nos atendimentos psicossociais do Creas, o “responsável legal”, pessoa juridicamente responsável pelo adolescente em sua família (biológica ou não), deverá atuar em parceria com o Estado, garantindo que adolescentes participem das atividades propostas pelos equipamentos. Ao se partir desse princípio, olha-se para essa família em seu déficit, aponta-se uma necessidade de responsabilização, certo fracasso em promover a “boa” conduta:
A família a gente tenta trabalhar também assim né, no fortalecimento de vínculos, que muitas vezes está fragilizado... Falando... “como vocês podem se resolver, se reorganizar, para fazer que esse adolescente saia do ato infracional?” Como é que a família pode se envolver nisso? A gente às vezes consegue... (Entrevista, novembro de 2013)
Vista pelo olhar em que há déficit de governo, de condução das condutas, não é raro escutar:
Falta de envolvimento da família. As famílias, a maioria das famílias, não têm comprometimento, não colaboram em nada na ressocialização do adolescente, muitas estão envolvidas com o tráfico, envolvidas com o uso de drogas, e aí é muito complicado a gente querer mostrar uma outra realidade pra eles, sendo que a realidade que eles vivem dentro de casa, é essa realidade de violência, de uso abusivo [de drogas], de estar vivenciando o tempo todo agressões, físicas e verbais dentro de casa, é um maltrato um com o outro... É um desrespeito intergeracional, que, até para a gente colocar o respeito aqui dentro é difícil, às vezes, por que eles não têm isso. (Grupo, novembro de 2013)
Diante disso, pergunta-se: como técnicos imbuídos da função de acompanhar a medida sócio educativa em meio aberto, cujos desafios prescritos são a ressocialização e o fortalecimento de vínculos, deparam-se com tais realidades? Não é somente o adolescente e suas condutas que estão em jogo, mas a responsabilização, a re-condução psico-sócio-pedagógica de suas famílias, que são frequentemente nomeadas de negligentes: “Mas eu percebo, em relação às famílias dos adolescentes, que a família vem ao Creas, mas muitas vezes é omissa em algumas informações, é negligente e aí isso dificulta” (Entrevista, novembro de 2013).
Há claros embates, jogos de forças, exercícios de poder no que se passa entre técnicos, adolescentes e suas famílias. Há um jogo, uma arte de governar encarnada nas legislações, nos relatórios, nos Planos de Acompanhamentos Individuais (PIA), que visa enquadrar, agir sobre as ações das vidas que ali são intimadas a se apresentar. Tais propostas lutam por estabelecer formas de ser e estar no mundo, formas que moldam as percepções de quem ali intervém e que colaboram para a produção de modelos de adolescente, de família, de “conflitos com a lei” e de população de periferia.
Assim, técnicos do Estado com seus olhares focados em resultados dos procedimentos prescritos, sofrem com adolescentes e famílias que resistem, faltam, calam, desculpam-se. Recusas que incitam incômodos, pois apontam para todo um conjunto de discursos e procedimentos de Estado articuladas às governamentalidades em exercício na sociedade.
Entre técnicos e adolescentes há uma regulação não só de como se viveu até se constituir o ato infracional, como também, uma busca minuciosa de registrar o como se vive durante a execução da medida. Essa relação, portanto, se constitui em uma trama de tensões, de exercícios de poder, de marcações entre o que pode ser dito, o que se quer escutar, e o que cabe silenciar, ou ao menos, como não contribuir diretamente para uma rede de informações.
O encontro entre técnicos, adolescentes e suas famílias é atravessado por uma trama investigativa, inquiridora, e normatizadora, constituída sob o argumento de proteção às crianças e adolescentes. Para Foucault (2011), o inquérito, como um modo de produção de verdade, é uma forma de gestão populacional, uma forma de exercício de poder: “O inquérito é uma forma de saber-poder. É a análise dessas formas que nos deve conduzir a análise mais estrita das relações entre conflitos de conhecimento e as determinações econômico-políticas” (p. 78).
Sim, no prontuário a gente relata todos os atendimentos, e manda o PIA, manda alguma intercorrência, e os relatórios de seis e doze meses. Aqui, a gente está respondendo muito o judiciário, a gente fica muito agarrada nisso mesmo, toda semana tem que mandar uns 5 relatórios, 4 relatórios, é complicado, para atender 70 famílias... (Entrevista, novembro de 2013)
Desse modo, salienta-nos como as metodologias de trabalho em Liberdade Assistida exigem desses técnicos: cadastros, relatórios para o judiciário (prescritos e requisitados), relatórios para a prefeitura (quantitativos e qualitativos), relatórios para os serviços estatais de atendimento socioeducativo, relatórios para encaminhamentos, relatos de atendimento em prontuários, entre outros necessários ou requisitados. Inquéritos incessantes contribuindo para o detalhamento e controle, e incessantemente para certo modo de efetivar a medida socioeducativa, o que sufoca tempo de outras propostas e intervenções: “A gente gasta muito tempo fazendo relatório” (Entrevista, novembro de 2013); “São poucos atendimentos para muitos relatórios” (Entrevista, novembro de 2013).
Palavras com poder de verdade, investidas de um poder minucioso e perigoso do trabalho com o judiciário. Aqueles que, ao mesmo tempo em que registram, respondem pelas verdades que produzem. “Eu quero saber quem vai ler aquilo. Porque se faz para o juiz, talvez às vezes para um estudo de caso, quando a situação anda muito delicada, mas eu não vejo lógica [na produção de relatórios]. Não vejo lógica.” (Entrevista, novembro de 2013).
Se adolescentes medem seus silêncios, técnicos também administram o que ouvem, o que escrevem.
Então eu fico com muita informação retida, muita informação que eu poderia colocar ali, mas, que não é bom para eles e não é bom para mim. Então, fica nisso, eu acho que os relatórios, eles, não tem um papel ideal, eu acho que aquele papel ali não é verdadeiro. (Entrevista, novembro de 2013)
Porque o que está escrito ali, não é toda verdade. É uma omissão. Eu acho que o relatório é uma omissão. Se omite muita coisa. Às vezes eles não participam, se eles não participarem, eu também relato, se eles chegam muito chapados, também relato, mas, só isso. Nada mais que isso. (Entrevista, novembro de 2013)
Produção de relatórios e ao mesmo tempo, gestão do que pode ou não ser dito, registrado. Recolocando-nos as perguntas: as políticas de acompanhamento dos adolescentes em LA primam por construções de espaços em que se pode dizer? Que condições de dizibilidade os relatórios produzem? O que se silencia?
O que se pode dizer quando o que está em jogo é um atendimento que prioriza uma necessidade pedagógica de “conscientizar da infração” e o fortalecimento de vínculos familiares? Que noções de adolescência, infração e família se efetiva nesse encontro em que os mesmos teimam em não contribuir? Como a psicologia, que opera como parte da equipe técnica, tem se tornado um modo de inquerir? Até que ponto a cobrança por prazos e relatórios permitem que esses encontros entre técnicos e adolescentes tornem-se de fato um acompanhamento?
Conclusão
Pelas conversas com os técnicos, percebe-se como a Liberdade Assistida, a Socioeducação, o Creas e a Assistência Social, compõem as artes de governo e como silêncios e recusas apontam para formas de se resistir a algumas propostas.
Também se percebe como discursos construídos pelo Estado, presentes nos propósitos de intervenção dos técnicos, reproduzem interesses de uma lógica neoliberal de manter uma população excedente ao mercado, para garantir a lógica concorrencial, ou seja, certo modo de lidar com uma parcela populacional específica que, de alguma forma, desconsidera sua história e suas realidades cotidianas.
Da mesma forma, expõe-se a difícil condição de técnico, convocado a um lugar de quem ouve e relata, quem acompanha a Liberdade Assistida, quem trabalha para que essa proposta se efetive. Ao mesmo tempo, explicita-se como esses trabalhadores, ao se deparar cotidianamente com a forma como os equipamentos estatais funcionam, tratam as realidades das famílias atendidas, sendo também convocados a criar estratégias de sobrevivência e modos criativos de resistência.
Referências
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Data de submissão: 06/01/2015
Data de aceite: 26/10/2015
1 Mais detalhes em Souza, 2008, p. 20
2 “A Proteção Social Especial é a modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e, ou, psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras”. (Política Nacional de Assistência Social – PNAS, aprovada pela Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004, do CNAS)
3 Historicamente crianças e adolescentes não se enquadrava dentro do padrão de regra familiar e não estavam, assim, protegidos, foram denominados pelas próprias leis de “vagabundo”, “menor abandonado”, “delinquente”, ou seja, terminologias que começaram a ser utilizadas para justificar certas intervenções e tratamentos corretivos Estatais nas vidas desses indivíduos.
I Psicóloga, com experiência em Clínica e Assistência Social. Mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo. E-mail: liviapig@gmail.com
II Professora do Curso de Psicologia e do Programa de pós-graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase nas propostas grupalistas e processos educacionais e formativos. E-mail: paula-louzada@ig.com.br
III Mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo. Pedagoga do Instituto Federal do Espírito Santo (Campus São Mateus). E-mail: pedbel@gmail.com