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Boletim de Psicologia
versão impressa ISSN 0006-5943
Bol. psicol vol.67 no.146 São Paulo jan. 2017
RESENHA
Alfabetização: a questão dos métodos
Literacy: the methods question
Resenhado por Tânia Maria Massaruto de Quintal*
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - SP - Brasil, Núcleo de Educação Infantil - UNIESP - SP - Brasil
Soares, M. (2016). Alfabetização: A questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 377p.
Este livro não é só mais um livro sobre alfabetização. É o livro sobre alfabetização. Ele reflete, primeiramente, o legado de décadas de estudos, trabalhos e pesquisas da autora sobre a temática. Retrata sua constante busca por novas respostas para antigos problemas: a aprendizagem da leitura e da escrita dos alunos brasileiros. Sua singularidade está em fazer essa discussão reconhecendo as diversas facetas desse complexo processo, ressaltando a importância da faceta linguística e pontuando seus desdobramentos para o ensino. Seu pioneirismo está em fazer esse debate apresentando as contribuições de pesquisas e de referenciais teóricos ainda pouco conhecidos no discurso pedagógico.
Professores alfabetizadores e de língua portuguesa, pesquisadores da Educação e da Psicologia Educacional, gestores de escola, orientadores educacionais, psicopedagogos, pedagogos e psicólogos podem se beneficiar das discussões que a obra traz para o campo da aprendizagem da língua, mais especificamente, da alfabetização. A obra conta com ampla revisão de pesquisas na área da Psicogênese, Psicologia Cognitiva, Linguística, Psicolinguística, Fonologia e Sociolinguística. Sua grande contribuição para os educadores e pesquisadores é trazer uma discussão atual e acessível sobre os principais marcos teóricos dos estudos no âmbito da metalinguagem, campo ainda a ser explorado pelas pesquisas em Educação.
O título do livro já chama atenção ao pontuar "a questão dos métodos", tema polêmico e controverso nas pesquisas e práticas educativas, fruto das marcas do movimento de desmetodização da alfabetização firmado na educação brasileira a partir dos anos 1980 e que ainda permeiam os discursos pedagógicos. A autora, logo nas primeiras páginas, pontua que a obra é resultado de sua trajetória de leitura e reflexão confrontadas com as práticas vividas e observadas nas escolas públicas. Assim é desse lugar que a mesma constrói seu debate, envolvida com as questões e dilemas reais da aquisição da leitura e de escrita, conhecimentos necessários para o exercício pleno da cidadania democrática em uma sociedade grafocêntrica. Para isso ela não se exime de discutir um ponto pouco consensual, quando se trata da alfabetização: a necessidade ou não dos métodos. Pela denominação "métodos de alfabetização", a autora entende o conjunto de procedimentos que orientam a aprendizagem inicial da língua escrita, embasados por teorias e princípios de natureza linguística e psicológica.
Em seu primeiro capítulo, "Alfabetização: o método em questão", a autora resgata aspectos históricos dos métodos de alfabetização, discutindo que os mesmos são "uma" questão e não "a" questão. Por "questão" ela atribui dois sentidos diferentes e, a nosso ver, complementares: "dificuldade a resolver" e "controvérsia, polêmica".
O debate entre métodos sintéticos e analíticos é um exemplo dessa questão, que perpassou no tempo histórico da Educação Brasileira, demonstrando uma dualidade, ora tratando-os como "tradicionais" ora como "inovadores". Com a chegada do paradigma cognitivista, com a denominação "construtivista", tais métodos são questionados por terem como foco o "ensino" e não a "aprendizagem". O eixo do debate deixa de ser o método necessário para garantir a aprendizagem, passando para o sujeito que aprende. A partir desse momento, os métodos são vistos com uma conotação negativa e o movimento passa pela defesa da "desmetodização".
Outro fator importante apontado pela autora nesse capítulo é o conceito de letramento que chega ao Brasil a partir de 1980, designando as práticas sociais da língua escrita. Ainda, neste capítulo, a autora apresenta as muitas facetas relativas ao processo de apropriação da língua escrita: linguística, interativa e sociocultural. Cada uma delas tem como especificidade um objeto de conhecimento diferente, porém todas compõem o processo de aprendizagem da língua escrita. A autora propõe na obra aprofundar a faceta linguística, justificando tal opção por considerá-la alicerce das demais facetas, atrelada à discussão dos métodos de alfabetização e também às próprias demandas e problemas do ensino atual.
No segundo capítulo, "Fases de desenvolvimento no processo de aprendizagem da escrita", a autora traz teorias que discutem o desenvolvimento da leitura e da escrita. Pontua a perspectiva de interação entre desenvolvimento e aprendizagem, fatores internos (processos cognitivos) e externos (experiências socioculturais), afirmando o princípio de ação recíproca entre estes. A partir dessa premissa apresenta os diferentes autores e perspectivas que têm estudado o desenvolvimento da escrita e da leitura, por meio da organização de fases do desenvolvimento, discutindo algumas aproximações e distanciamentos entre os mesmos e, ao final do capítulo, sugerindo uma possível conciliação.
A autora inicia esse debate trazendo alguns aspectos de teorias da perspectiva semiótica, representada pelos trabalhos de Vygotsky, Kress e Luria. Nessa perspectiva a multiplicidade de formas de representação das crianças como desenhos, brincadeiras simbólicas, jogos, são momentos facilitadores, oportunidades de atribuição de signos a significados, daí a relação com a língua escrita. Luria, seguidor de Vygotsky, aproximou-se da perspectiva linguística, apesar de estar mais próximo da semiótica, organizando estágios e focalizando o desenvolvimento da escrita na criança, que descreve uma gradual diferenciação entre os símbolos utilizados por ela.
Em seguida, Soares se debruça sobre a perspectiva psicogenética, muito conhecida no Brasil pelos educadores, representada pelas teorias de Ferreiro e Teberosky (1985; 1986). Estas investigaram os processos cognitivos das crianças, envolvendo a construção de suas hipóteses e conceitos a respeito da escrita, entendendo-a como um sistema de representação. As autoras definem cinco níveis do desenvolvimento da escrita: desde um primeiro, que parte dos grafismos e garatujas infantis até níveis posteriores, nos quais as crianças vão processualmente partindo de concepções de escritas sem correspondência com o valor sonoro, até escritas com essa correspondência, chegando ao princípio alfabético.
Ainda no mesmo capítulo, Soares traz as pesquisas de Bissex (1980) sobre padrões gerais do crescimento e da aprendizagem humana. Menciona também os trabalhos de Bissex (1980) e Read (1971, 1975) por utilizarem em suas pesquisas "escritas inventadas" de crianças, entendendo que tais escritas se constituem como explorações que levam a avanços no desenvolvimento. Gentry (1982), outro autor mencionado, posteriormente propôs uma "escala de escrita" e organizou quatro níveis do desenvolvimento até a chegada ao estágio alfabético.
Frith (1985) é apresentada neste segundo capítulo por identificar o desenvolvimento da leitura em três fases, incluindo as questões que envolvem tanto o reconhecimento de palavras como a sua produção escrita, o que a diferenciou das pesquisas dos autores anteriores. Ehri (1997; 1999) toma como critério para a identificação das fases do desenvolvimento as relações entre o fonológico e o alfabético, começando pela fase denominada pré-alfabética até a fase denominada alfabética consolidada. Soares destaca que Ehri contribuiu muito para a compreensão da aprendizagem da faceta linguística da alfabetização. Ao final do segundo capítulo Soares faz comparações entre as teorias postas por Ehri e Ferreiro, com pressupostos diversos: o primeiro centrado no paradigma fonológico e o segundo no construtivista.
"Aprendizagem da língua escrita em diferentes ortografias e na ortografia do português brasileiro" é o título do terceiro capítulo. Retomando que a obra se destina a discutir a faceta linguística do processo de aprendizagem da leitura e da escrita, a autora escreve que as especificidades do sistema ortográfico de uma língua trazem relações para seu ensino-aprendizagem. Faz, então, uma discussão sobre as características das ortografias em sistemas alfabéticos de escrita, segundo níveis de transparência e opacidade nas relações entre fonemas e grafemas, levando esse debate para as implicações educacionais. Transparentes são as ortografias com correspondência grande e consistente entre fonemas e grafemas. Já nas opacas, essas correspondências variam muito, como um fonema podendo representar muitos grafemas ou ao contrário.
A ortografia da língua inglesa é mencionada com sua alta opacidade, oposta à finlandesa, que é transparente. O português brasileiro situa-se entre os dois pólos, mais próximo da transparência. Soares traz a contribuição de pesquisas que tratam da menor ou maior facilidade de aprendizagem da língua escrita em relação ao nível de transparência e opacidade. Pontua, mencionando o trabalho de Seymour (2005; 2006), que a aprendizagem de línguas escritas em sistemas alfabéticos supõe sempre a capacidade do sujeito de tomar consciência dos segmentos linguísticos usados de maneira implícita, de modo que se tornem conscientes, ou seja, explícitos. Para Soares há uma influência do tipo de ortografia para se pensar sobre os métodos de alfabetização, por isso adverte para a necessidade de atenção quanto à transposição de resultados de pesquisas realizadas sobre a aprendizagem da língua escrita do inglês para o português brasileiro, ressaltando a necessidade de considerar as particularidades deste último.
No quarto capítulo, "Consciência metalinguística e aprendizagem da língua escrita", a autora se propõe a apresentar e discutir a consciência metalinguística, enquanto componente essencial para a aprendizagem da língua escrita, envolvendo a reflexão, análise e controle consciente do aprendiz sobre aspectos da língua, se referindo a processos linguísticos e cognitivos. Durante o capítulo a autora traz as contribuições de diferentes pesquisadores brasileiros e estrangeiros principalmente: Tunmer, Pratt e Herriman (1984); Gombert (1992); Garton e Pratt (1998); S. Guimarães (2010); Maluf e Zanella (2011). Tais pesquisadores investigaram as dimensões da consciência metalinguística, citando exemplos em outras línguas como inglês, francês e também o português. Tais dimensões são: a consciência fonológica, a pragmática, a metatextual, a sintática, a morfológica e a semântica. Todas estas dimensões são apresentadas nas relações com a etapa inicial de aprendizagem da língua, ou seja, nos processos de codificação e decodificação, assim como nos momentos posteriores relativos à produção escrita e à leitura fluentes.
O título do quinto capítulo, "Consciência fonológica e alfabetização", tem como objetivo discutir a consciência fonológica, como uma das dimensões da consciência metalinguística, destacando as suas especificidades. O capítulo se debruça sobre a necessidade das crianças desenvolverem sensibilidade para a cadeia sonora da fala, atenção para o estrato fônico, segmentação de palavras, percepção de rimas, sílabas e fonemas como bons preditores para a compreensão do princípio alfabético. Aborda as variantes e níveis da consciência fonológica, que não é um construto unidimensional, como bem defende a autora, pois envolve muitas habilidades como: a consciência lexical, a consciência de rimas e aliterações e a consciência silábica. Tal discussão é essencial e de grande ajuda para os educadores que atuam com crianças em fase inicial de aprendizagem da língua escrita, já que há ainda na área carência de discussões que tragam as implicações desses aspectos para o ensino.
O sexto capítulo pode ser considerado um desdobramento do quinto, ao voltar-se para a consciência fonêmica. Intitulado "Consciência fonêmica e alfabetização", situa tal consciência como uma significativa dimensão da consciência fonológica e suas relações com a aprendizagem do sistema alfabético de escrita. Para tratar de tais relações a autora inicia o texto pontuando que os fonemas constituem a unidade mínima da estrutura fonológica. Coloca a dificuldade já reconhecida de a consciência fonêmica se desenvolver de maneira espontânea na criança, pois os fonemas nem sempre são pronunciáveis e nem sempre representam uma correspondência literal entre o som que emitem e o nome da letra. A autora reconhece a relação recíproca e interativa entre a consciência fonêmica e a aprendizagem da língua escrita. Ressalta que o conhecimento das letras, a identificação e manipulação de fonemas são fatores fundamentais e facilitadores para a compreensão do princípio alfabético pelas crianças.
Ao final do capítulo a autora apresenta pesquisas que investigaram os efeitos de intervenções pedagógicas nas escritas inventadas de crianças. Demonstra que por meio de tais escritas, as crianças podem expressar como pensam esse objeto de conhecimento. Pontua ainda que essas escritas, quando acompanhadas de propostas interventivas, podem contribuir significativamente para o desenvolvimento da consciência grafofonêmica (nível da consciência fonêmica, que também é discutido durante o capítulo).
"Leitura e escrita de palavras" é a denominação do sétimo capítulo. Nele é encontrada uma discussão aprofundada do modelo de dupla rota e as estratégias de leitura e escrita de palavras, componente necessário para a leitura e escrita fluentes de palavras e textos. O modelo de dupla rota explica que a leitura de palavras pode ocorrer por dois caminhos, a rota fonológica, pela decodificação grafema-fonema, ou pela rota lexical, reconhecimento visual da palavra conhecida, acessada pelo léxico mental. Quanto à escrita, a autora relata que menos estudos focaram este modelo, mas os argumentos para sua utilização são os mesmos que na leitura, acreditando em sua validade e aplicabilidade. Em seguida, é feita uma discussão sobre a leitura silenciosa, descrevendo as contribuições de vários pesquisadores e concluindo que este tipo de leitura envolve aspectos fonológicos também, ou seja, nela são usadas estratégias do modelo de dupla rota. As características das palavras como lexicalidade, extensão, vizinhança, freqüência e regularidade, trazem efeitos para a leitura e a escrita e isso é pontuado e explicado mais adiante nesse capítulo. Por fim a autora traz a hipótese de autoensino formulada por Share (1995), que por meio das habilidades de decodificação já consolidadas pela criança, a mesma pode ter acesso a novas palavras e incorporá-las ao léxico ortográfico.
Caminhando para o final da obra, o oitavo capítulo, intitulado "O efeito de regularidade sobre a leitura e a escrita", trata da ortografia e do efeito de regularidade sobre a escrita e leitura de palavras no português brasileiro. A autora identifica que as regularidades e irregularidades da língua escrita trazem mais impacto para os processos de escrita do que de leitura em crianças em nível alfabético. Isso porque a norma ortográfica interfere menos no reconhecimento de palavras do que na sua produção. As crianças podem representar na escrita de palavras o uso de letras que correspondem aos fonemas (sons ouvidos), mas que não condizem com a regularidade ortográfica, como no exemplo da palavra "Bruxa" (ao ler o fazem corretamente e ao escrever podem fazer de forma não convencional, como "brucha"). A aprendizagem da escrita alfabética deve ser complementada pela aprendizagem das convenções ortográficas. No português brasileiro as relações fonema-grafema são classificadas como regulares, regulares contextuais e irregulares.
Este capítulo traz diferentes exemplos, por meio de quadros e tabelas, de casos de relações regulares e não regulares em nossa ortografia, apontando procedimentos de ensino que podem ajudar a aprendizagem das relações fonema-grafema, como é o caso também das contribuições do conhecimento morfológico de palavras, que podem facilitar o domínio da grafia correta das palavras. O efeito da estrutura silábica sobre a escrita é o último tópico deste capítulo, apresentando exemplos dos padrões silábicos presentes no português e a frequência maior de sílabas com estrutura consoante-vogal, que aproxima nossa língua da transparência. Neste momento a autora traz relatos de pesquisa que atestam quais padrões silábicos são mais fáceis de aprender e acontecem primeiro nas crianças e como as estratégias de ensino adequadas podem contribuir nesse sentido.
O último capítulo, "Métodos de alfabetização: uma resposta à questão", faz o movimento de inferir, a partir de tudo que foi abordado durante a obra, uma resposta sobre a questão dos métodos e o papel do alfabetizador nesse contexto. A autora resgata o conceito de método de alfabetização, explicitado no início da obra, para defender que, para além de identificarmos quais métodos de alfabetização são os melhores, necessitamos reverter esse termo para alfabetizar com método. Esse termo é entendido como a orientação proposta às crianças através de procedimentos fundamentados nas teorias e princípios, que consigam estimulá-las nas operações cognitivas e linguísticas imprescindíveis para a aprendizagem da leitura e da escrita. Assim a autora não vai defender esse ou aquele método, tampouco acredita que uma alfabetização bem sucedida dependa de um único método. Sua grande contribuição é reconhecer que, sendo composta por muitas facetas, a alfabetização necessita de procedimentos claros e afinados com as teorias e princípios que as sustentam. A própria faceta linguística contém muitas subfacetas com naturezas específicas, todas elas discutidas durante o livro e, para cada uma, é necessário pensar em procedimentos coerentes e adequados para viabilizar o ensino-aprendizagem.
É esse o grande salto que a obra traz para o campo de estudos e práticas em alfabetização, que durante muito tempo se abstiveram de aprofundar essas questões, em decorrência da ideia equivocada que mencionar o uso de "métodos" reportaria à volta a um ensino tradicional, descontextualizado e obsoleto. A autora, mesmo sem defender um método, defende que se alfabetize com método, ou seja, que são necessários procedimentos explícitos, sistematizados e intencionais para se garantir o desenvolvimento das habilidades de decodificação e de codificação nas crianças, como alicerce da leitura e escrita fluentes.
Para concluir, pode-se dizer que a obra se fundamenta em pesquisas atuais sobre a temática, trazendo discussões de cunho interdisciplinar, proporcionando um substrato científico e pedagógico para que os alfabetizadores possam alfabetizar com método, conhecendo melhor a faceta linguística do processo de aprendizagem inicial de língua escrita, contudo sem esquecer, que as práticas de alfabetização devem estar atreladas às de letramento, marco fundamental do pensamento da autora.
Recebido em 12/05/17
Aceito em 03/07/17
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