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Imaginário
versão impressa ISSN 1413-666X
Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007
Retrato do fim do século: homem, terra e trabalho em Nova Ponte/MG e a problemática dos deslocamentos
A portrait of the end of de century: man, land and work in Nova Ponte - MG, and the problem of displacementstradition?
Retrato del fin del siglo: hombre, tierra y trabajo en Nova Ponte/MG y la problemática de los desplazamientos
Vicente de Paulo da Silva*
Universidade Federal de Uberlândia
RESUMO
O presente artigo constitui uma contribuição para o entendimento do que era Nova Ponte, com suas peculiaridades, na segunda metade do século XX e, principalmente, como era a cidade no momento em que materializou o projeto de construção da barragem, o qual destruiu toda a cidade velha. A realidade descrita aqui representava os efeitos das transformações em curso no campo brasileiro, e nas áreas de cerrado especificamente, em que esse pequeno município da região do Alto Paranaíba apresentava as condições propícias à implementação do projeto nacional de aproveitamento racional das áreas de cerrado: disponibilidade de área coberta com esse domínio e uma coletividade de moradores de baixa renda prontos a comporem uma nova relação de trabalho imposta por essa forma de ocupação, dita racional, representada pelo bóia-fria. Muitas das experiências descritas foram baseadas em nossa dissertação de mestrado, defendida na Universidade de São Paulo - USP, sob o título Destruição e Reconstrução Simbólica em Tempos de Modernização.
Palavras-chave: Barragem, Cerrado, Trabalho, Bóia-fria.
ABSTRACT
This article consists of a contribution for the understanding of what was meant by Nova Ponte, with its peculiarities, in the second half of the XX century and, mainly, how the town looked like when the barrage project was materialized, destroying the whole old city. The reality described here represented the effects of the transformations occurring in the Brazilian countryside, specifically in the Cerrado [Savannah] areas. This little town of the Alto Paranaíba region presented the propitious conditions for the implementation of the national project for the reasonable good use of the Cerrado areas: availability of covered area with that kind of vegetation and a low-income community of inhabitants ready to be part of a new work relationship imposed by that occupation form, thought as being reasonable and represented by the toiler. Many of the described experiences were based on our master’s degree dissertation, defended at São Paulo University (USP), under the title: Destruction and Symbolic Reconstruction in Modernization Times.
Keywords: Barrage, Cerrado, Labour, Toiler.
RESUMEN
El presente artículo constituye una contribución para la comprensión de lo que era Nova Ponte, con sus peculiaridades, en la segunda mitad del siglo XX y, principalmente, como era la ciudad en el momento en que materializó el proyecto de construcción de la represa, que destruyó toda la ciudad vieja. La realidad aquí descrita representa los efectos de las transformaciones en curso en el campo brasileño, y en las áreas de cerrado específicamente, en que este pequeño municipio de la región del Alto Paranaíba presentaba las condiciones propicias para la implementación del proyecto nacional de aprovechamiento racional de las áreas de cerrado: disponibilidad de área cubierta con ese dominio y una colectividad de moradores de bajos ingresos listos para componer una nueva relación de trabajo impuesta por esa forma de ocupación, dicha racional, representada pelo bóia-fria (trabalhador rural itinerante sem vínculo empregatício). Muchas de las experiencias descritas tienen como base nuestra tesis de maestría, sustentada en la Universidad de San Pablo – USP, con el título Destrucción y Reconstrucción Simbólica en Tiempos de Modernización.
Palabras clave: Represa, Cerrado, Trabajo, Boia-fria.
Introdução
O homem moderno tem convivido com uma sucessão de acontecimentos que colocam sempre em xeque seu modo de viver tradicional, impondo-lhe novas formas de viver, de se relacionar, de existir. Num mundo em que mercado e mercadoria parecem a finalidade de toda relação do homem com o homem e do homem com a natureza, tudo que se apresenta de novo tem um “quê” estratégico.
Novos produtos no mercado pressupõem a necessidade de consumidores, enquanto a história, contraditoriamente, ora parece moldar seu caminho obedecendo às imposições desse mercado, ora permite que as condições herdadas de uma tradição possam ser reproduzidas. Orientada por padrões internacionais, a tendência do lugar, por exemplo, é orientar-se não mais conforme as necessidades do local, e sim cada vez mais conforme as necessidades que lhe são impostas.
No movimento atual da modernidade, o homem parece tão escravo quanto em épocas mais antigas. Isso porque tudo parece interligado propositadamente a fatos comuns, ou seja, há uma regra para se viver no mundo moderno, na qual a obtenção de lucros tornou-se a linha de chegada de uma ambiciosa competição. Para obtê-los, faz-se necessário que tudo e todos participem, cada um com seu papel, nas diferentes etapas da competição. A contradição é parte integrante desse movimento.
Mas contraste não é uma coisa apenas do Brasil moderno. Em 1954 Roger Bastide escrevia sua obra: Brasil, Terra de Contrastes. E dizia: “contrastes das terras, das cores, dos céus e também contrastes das cidades”. É contraste, ou contraditório, as casas-fortalezas que se erguem em cidades jardins enquanto debaixo das pontes e viadutos cada metro é disputado por pessoas para passarem a noite. O shopping center conquista e aguça a necessidade de consumo de quem pode se dar ao luxo, enquanto latões de lixo são revisados por adultos e crianças a procura do que comer.
Geralmente, famílias e mais famílias são expulsas de terras que ocuparam na tentativa de produzir seu sustento. Parece faltar terra, quando grandes extensões são inundadas para produzir energia elétrica. Aqui se revela também o que podemos chamar de apropriação contraditória dos recursos da natureza.
O Estado tem sido representado por agentes que, no uso do poder, decidem, autoritariamente, o destino das pessoas. Por outro lado, o discurso tem sido a forma privilegiada de encobrir sujeitos e mascarar a realidade. Com seu papel homogeneizante, a tendência é massacrar culturas populares impondo uma forma de pensar una. Isso talvez nem seja possível, mas manifestações culturais populares assumem cada vez mais, e no caso do Brasil especialmente, o caráter de folclore – brasileiro.
Expropriação ou sedução: o novo cenário que se desenrola a partir da ocupação do Cerrado
Década de 1970. O município de Nova Ponte passa por profundas transformações no campo, as quais também são sentidas pelos moradores da cidade. A área do município era constituída por cerca de 80 a 85% de cerrado. Esse fato foi então responsável pelas mudanças que entravam em curso naquele lugar, mas também era reflexo de uma política nacional de ocupação desses domínios. A adoção de técnicas modernas para o aproveitamento do cerrado em Nova Ponte promoveu uma nova relação cidade-campo, homemterra, terra-trabalho, terra-salário. Para muitos moradores aquele momento era o que podia se considerar como a revolução da agricultura.
Depoimento de um antigo morador, sr. Salomão Pires Maciel, em meados dos anos 90, são evidências das transformações que o município e, conseqüentemente, o homem haveriam de sentir. Ele relembra que, no início de 1970, a Fazenda Caxuana adquiriu 5.000 alqueires mineiros do cerrado novapontense. Esse período coincide também com um núcleo de aproveitamento povoado por gaúchos com a ajuda do governo japonês e brasileiro e com financiamento da Cooperativa Cotia. Assim se constituíram as terras da fazenda Caxuana, e assim se iniciou o processo de transformação das relações de trabalho e dos costumes das pessoas.
As lavouras de arroz, milho e feijão, que abasteciam o município, cedem lugar então a uma estrutura fundiária, cuja característica mais marcante era a da modernização. Segundo os dados do IGA/ SECT, em 1975 o município passou por uma importante transformação agrícola, ocorrida durante a implantação do Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba (PADAP). Com isso, as culturas do arroz, milho e feijão foram diminuindo a produtividade, enquanto culturas novas, como a soja e o café, se tornavam intensamente mais rentáveis. Além disso, em grande parte da área do cerrado foi introduzido o reflorestamento de pinus e eucaliptos.
Os dados acima revelam a transformação ocorrida no campo novapontense no período de 1960 a 1985. Culturas, como caqui, lima e algodão, apesar da produção pouco significativa, acabaram eliminadas da produção. Outras, como o arroz e principalmente o feijão, caíram radicalmente na escala da produção. Mesmo com o acréscimo percebido na área destinada à produção de arroz no período 60/80 e uma nova diminuição no período 80/85, verificou-se uma queda na produtividade. Acreditamos que o fato se deva ao esgotamento do solo, ainda que tenha havido um extraordinário aumento no uso de fertilizantes no período em questão.
Enquanto alguns produtos perdem lugar no espaço da produção, o destaque fica por conta dos novos produtos, como o pinus, o eucalipto e a soja, ou ainda, daqueles que já eram produzidos e que tiveram sua área aumentada. Foram os casos do milho e do café. Sem dúvida essa transformação ou essas novas culturas exigiam maior investimento em tecnologias traduzidas no aumento marcante de máquinas e instrumentos agrícolas, além da intensificação do uso de fertilizantes.
Mas as mudanças não estavam acontecendo por acaso. Elas faziam parte de um contexto mais amplo: o país. O general Ernesto Geisel, no início de seu mandato, falava da intenção de elevar o Brasil à condição de 1ª potência mundial do hemisfério sul até o ano 2000. As mudanças, no caso de Nova Ponte, já faziam parte do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que projetava um crescimento meta de 7% a.a. Uma das metas seria o aproveitamento racional das áreas do cerrado, que representavam 21,5% das terras do território nacional. Com esse intuito, foi criado o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (POLOCENTRO).
O programa de desenvolvimento dos cerrados (Polocentro) foi criado em 29/01/75, através do decreto nº 75.320, do governo federal, com o objetivo de incentivar e apoiar a ocupação racional das áreas de cerrados na região do centro oeste brasileiro, nos Estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, abrangendo a área de 785.472 km2, em 202 municípios (FERREIRA, 1985, p. 3).
De modo geral, nas áreas onde atuou o POLOCENTRO, verificouse uma tendência cada vez mais forte de concentração da terra. Em conseqüência, verificou-se também uma redução de formas tradicionais de ocupação e de produção da terra1. Ainda de acordo com Ferreira:
As empresas reflorestadoras, apoiadas pelos incentivos fiscais, formaram imensos maciços sem destinação econômica assegurada e, ao que tudo indica, tratou-se de uma estratégia para o aproveitamento dos incentivos do IBDF e apropriação de extensas glebas de terra em rápida valorização, resultando inclusive, em ocupação com atividade florestal de terras aptas para lavouras” (idem, p. 12).
Isso caracteriza o que chamamos da passagem de uma cultura socialmente importante para uma cultura economicamente importante. Embora tenha se verificado um aumento espetacular da produção a partir da implantação do POLOCENTRO, há que se pensar no tipo de produto e qual o objetivo de produzi-lo. Naquele momento, em Nova Ponte, a soja se tornava, com destaque, o produto mais cultivado.
Em 1984, conforme Freitas e Sampaio (1985, p. 99-100), foram cadastrados no Triângulo Mineiro, macrorregião IV2, um total de 45.348 imóveis rurais, numa área ocupada por 7.939.164,8 há assim distribuídos:
Os imóveis menores do que 100ha representavam 59,84% do total de imóveis, atingindo 13,35% da área cadastrada. Já os imóveis maiores do que 1000 ha, apesar de representarem apenas 2,49% do total, respondiam por 26,68% da área cadastrada”. A nível microrregional, no planalto de Araxá, no qual está inserido o município de Nova Ponte, “foram cadastrados três (3) imóveis maiores do que 10.000 ha. Em conjunto, sua área atingia a expressiva marca de 38.587,8 ha. Já os 1.017 imóveis rurais com menos de 10 ha se acomodavam numa área de 5.332,0 ha.
No município de Nova Ponte, a fazenda Caxuana ocupava, em meados dos anos 90, uma área de 18.000 ha, segundo informações do chefe administrativo da fazenda, sr. Benedito Pereira dos Santos. Incluindo terras de outros três municípios da região, sua área somava 25.000 ha. Ele nos informa que a constituição dessas terras se deu entre 1968 e 1970 num processo de compra e venda de área totalmente ocupada pelo cerrado. Em seguida cita o POLOCENTRO, dizendo da sua importância para o desenvolvimento das terras de cerrado. Também diz que a fazenda Caxuana só começa a explorar a atividade agrícola em 1975 e 1976, datas que coincidem com a implantação do POLOCENTRO e que, até então, a fazenda era uma empresa reflorestadora. Em toda a área adquirida pela fazenda foi introduzido, a princípio, o reflorestamento para exploração da madeira, mas a exploração de suas florestas só começou em 1982.
Todos os seus argumentos são no sentido de afirmar que o cerrado era constituído apenas de áreas improdutivas. Mas durante a visita que fizemos à fazenda Caxuana, ele fala sobre a visita que recebeu na sede da fazenda, de uma senhora que fora dona daquelas terras. Segundo ele, a senhora disse: “Ah! deixa eu matar saudades, estas terras aqui era nossa [sic], tinha isso, tinha isso...”. O “tinha isso, tinha isso” a que ele se refere é bastante revelador de que o “100% improdutivo” deve vir necessariamente entre aspas. O gerente nos conta que, na época, eles venderam as terras por preço baixo porque o cerrado era uma área que, segundo ele, não tinha valor, mas acredita que mesmo assim a pessoa deve sentir saudade.
Dos 18.000 ha das terras compradas em Nova Ponte, 14.000 ha estavam naquele momento ocupados com florestas, e o restante ocupado com agricultura e pecuária. A parte destinada à agricultura estava assim distribuída: 2.300 ha com soja, 400 ha de milho, uma parte pequena com café (aproximadamente 50 ha) e arroz (20 ha). Havia também uma área arrendada (2300 ha) da qual o proprietário recebia 20% da produção como forma de pagamento3.
No que se refere à mão-de-obra, o gerente lembrava que a fazenda já havia contado com quase 2.000 empregados no início da implantação dos projetos de reflorestamento. Porém, naquela data contava apenas 200, com maior mobilidade no período de colheitas (presença do bóia-fria). A lei 51064, ele conta, foi a grande incentivadora dos projetos de reflorestamento, pois ela isentava o proprietário de pagar os impostos que, por sua vez, eram reinvestidos em reflorestamento. Sobre o aproveitamento da área de cerrados Ferreira diz que:
Por ter sido implementada em áreas propícias a motomecanização, trouxe a necessidade do estabelecimento de uma linha especial de crédito destinada ao financiamento de máquinas e implementos agrícolas para os produtores rurais e empresas de prestação de serviços de motomecanização (idem, p. 13).
Portanto, conforme a expressão, dois coelhos eram mortos com uma única cajadada: o aproveitamento do cerrado era concomitante ao desenvolvimento da indústria e do comércio de instrumentos agrícolas. A fazenda Caxuana possuía, nessa data, o que eles consideravam um número razoável de instrumentos: 26 tratores e 6 colheitadeiras, além de caminhões e ônibus.
A produção de grãos normalmente era comercializada com a Cargil e o Grupo Rezende em Uberlândia, sendo apenas beneficiada na Caxuana. O café ia para a zona da mata e a madeira era explorada por outra empresa do grupo Caxuana, a Madeireira Somad Ltda., cujos diretores eram os mesmos da fazenda. A madeira cerrada era comercializada com 12 ou 13 madeireiras nacionais, e havia previsão de exportação para a Alemanha a partir de 1996.
O grupo Caxuana mantinha uma creche em Nova Ponte, além de casas fraternais e asilos em Uberlândia e São Paulo. Os proprietários da fazenda residiam na cidade de Santo André/SP, visitando a fazenda a cada 15 dias. Mas cada área da empresa tinha um encarregado responsável na ausência do proprietário ou, como eles diziam, na ausência do homem.
O fato de o produtor morar fora de Nova Ponte foi abordado na entrevista que fizemos ao sr. Salomão, referida anteriormente. Ele lembrou que isso acarretava o escoamento de benefícios para outros lugares:
Só com a soja é que começou, vamos dizer, abundância real na produção. Muito embora essa produção não se transformasse, vamos dizer, em benefício para o município, porque os grandes produtores moram fora daqui. Moram em São Paulo, Uberaba, pra lá do Estado de São Paulo. E o dinheiro, produto disso tudo, ia pra lá, foi carregado pra lá, não veio pra cá (...). Há mais de trinta anos, o governo federal, através de vários planos, o POLOCENTRO foi o primeiro desses planos, derramou dinheiro aqui para os agricultores, mas, de nada ou quase nada adiantou (...). Tínhamos a produção de beira de rio, onde as pessoas produziam arroz, feijão, milho, suínos e gastavam isso em Nova Ponte, portanto, tínhamos mais fartura.
Aqui, ao nosso ver, o sr. Salomão falava dos lavradores, que eram uma tradição no município. Por outro lado, já estávamos vivenciando o início do processo de desterritorialização colocado por Costa (1993) e o começo de outra grande transformação em que o povo era destituído dos meios de produção e inserido numa relação assalariada de trabalho e se tornaria passivo diante de outras possíveis transformações, como a imposta pela barragem posteriormente.
A nova relação de trabalho do homem com a terra
Foi a partir de 1970, coincidindo com a instalação da Fazenda Caxuana, que teve expressão no município a mão-de-obra volante. Gradativamente percebia-se que as coisas estavam mudando. Por um lado, porque as terras eram cultivadas com produtos que os moradores não tinham o hábito de comer; por outro porque as pessoas estavam ocupadas agora com o trabalho assalariado. Assistia-se à abertura de novas terras, mas também ao desbravamento das áreas de cerrados para as novas culturas.
A emergência da força de trabalho assalariada foi condição sine qua non para o desenvolvimento do programa incentivado pelo POLOCENTRO. Conforme Ferreira (Idem, p. 16), “o desenvolvimento regional e os estímulos dados pelo POLOCENTRO agravaram as condições de sobrevivência dos pequenos produtores que, muitas vezes, diante das condições econômicas desfavoráveis e da valorização das terras regionais, venderam suas propriedades, indo para as cidades ou em direção às novas fronteiras”. Essas mudanças foram percebidas também no modo de vida dos moradores de Nova Ponte, tanto os do campo quanto os da cidade. Nesse sentido, já não se percebiam muitas diferenças entre os hábitos. Começava a se criar um ritmo de vida cotidiana que tendia à homogeneização deles, uma vez que agora era a empresa que ditava as regras do trabalho, da sobrevivência.
Muitos dos costumes novapontenses começaram a mudar. Nos dias, por exemplo, de São Bento, Santa Luzia e Santos Reis, apenas alguns mais tementes faltavam ao serviço. Perder um dia de trabalho era perder parte do salário no final da quinzena, pois agora já não existia mais o estoque de alimentos da colheita, nem da cata5. Pescava-se menos, pois os dias de trabalho aumentaram; a distribuição gratuita de alimentos em dias santos que eram tão comuns foram se escasseando, as festas farturentas acabaram virando festinhas e tomando novas concepções, ou seja, elas destinavam-se ao mercado.
Leal (1985, p. 50) diz que “o assalariamento deixa de ser uma forma de complementação da renda familiar, tornando-se a principal fonte desta”. Impunha-se a partir daí a lei do mercado e os hábitos, o modo de vida daqueles moradores deixavam de ser regidos pela sua crença, seus costumes.
Esta é a origem do trabalhador bóia-fria em Nova Ponte. D’Incao (1983, p.120-121), diz que “a necessidade de trabalhar para sobreviver, num quadro de escassez de oportunidades de trabalho, associada a um relativo desconhecimento de seus direitos legais por parte do trabalhador, garante, portanto, ao empregador a possibilidade de contar com o trabalhador volante”. A vida do trabalhador bóia-fria era muito difícil. Com sol ou chuva era necessário estar no trabalho. Se fizesse sol, não era possível se proteger; quando chovia o trabalhador apenas parava no lugar que estava e esperava a chuva parar, e depois continuava o trabalho com a roupa grudando no corpo e com muito frio.
O trabalho era muito cansativo. Chegava-se após ter viajado horas de caminhão, que como diziam na época, mais parecia uma lata de sardinha, ou seja, lotado, tirava rebarba6 e em seguida, o trabalho começava. Na hora do almoço, a comida era esquentada, quando se juntavam pequenos montes de gravetos e faziam fogo. Algumas vezes a comida ficava com gosto e cheiro de fumaça, outras vezes os insetos invadiam-na, ou ainda, estragava. Neste caso, os colegas dividiam seu almoço com aquele cuja comida havia sido perdida.
No intervalo do almoço, que era de uma hora, ao invés de descansar, a turma começava a brincar. Como eram turmas só de homens, as brincadeiras promíscuas eram muito freqüentes. Os mais fortes simulavam cenas de sexo com os mais fracos que corriam e gritavam tentando se proteger. Quando havia um grupo de pessoas juntas, era comum alguém pegar um torrão, jogar para o alto em direção ao grupo e gritar: “na cabeça de quem cair, veado é quem fugir”. Então muitas vezes alguém levava o torrão na cabeça para provar sua masculinidade.
Voltava-se ao trabalho, e até o fim do dia muitos cantavam músicas de pura obscenidade, muitas vezes inventadas pelo próprio grupo. As brigas também eram muito freqüentes. No horário destinado ao café, 30 minutos, tudo se repetia: as brincadeiras, as brigas, tudo, tudo. A linguagem parecia ser própria. Diziam: “nóiz faiz” e faziam bem feito; “nóis trabaia”, e trabalhavam duro; falava “uruvai” para se referir ao orvalho das manhãs frias e úmidas, mas podiam fazer previsões do tempo.
Quando o trabalho era juntar raízes na preparação do solo para plantio, o gerente delimitava com estacas de madeiras uma área que dizia ter tanto tempo para chegar até aquela marca. Com isso acompanhava a turma no sentido de forçar para que realmente a marca fosse alcançada no tempo delimitado. Este mais parecia um condutor de animais, pois sempre gritava: “vamo tropa; eh cambada”; isso no sentido de apressar a turma. Ele não podia ver ninguém na posição ereta; os trabalhadores tinham que estar sempre emborcados para mostrar que realmente estavam trabalhando. O gerente tinha também o poder de demitir quem ele quisesse, ou “podar” como falavam na época. Nesse caso, se uma pessoa era “podada” da turma de um gerente, no dia seguinte ia trabalhar na turma de outro.
Como se tudo isso não bastasse, no final ainda tinha o pagamento diferenciado para menores, que chegavam a receber metade do que recebiam os maiores. O dia do pagamento era o dia em que não faltava ninguém ao serviço. E também, neste caso, a chegada do caminhão era esperada ansiosamente, pois a turma era levada ao escritório da fazenda onde o pagamento era efetuado. A fazenda Caxuana era considerada um progresso para o município. O desenvolvimento econômico suprimiu relações sociais tradicionais e criou novas relações. Em pouco tempo já não se encontrava mais no município a figura do lavrador. Contudo, os quintais pareciam reproduzir o velho costume do lavrador de plantar para seu próprio consumo. Isso permaneceu como tradição, na qual as lavouras perderam lugar para a agricultura moderna e em que os quintais, dada a sua grande extensão, às vezes, permitiam safras significativas para a economia da família.
Mudanças de hábitos
Tendo então mostrado como Nova Ponte foi alvo de um processo de modernização, iniciado nas áreas de cerrado, imposto sob a égide do progresso – e progresso, neste caso, se traduzindo por crescimento econômico –, passamos a mostrar alguns aspectos específicos da cultura que ficaram perdidos ou foram fortemente transformados, ou ainda apontar aspectos culturais que mesmo com a grande transformação imposta continuaram expressivos na vida desse povo.
Bosi (1992, p. 328) diz que:
O poder econômico expansivo dos meios de comunicação parece ter abolido, em vários momentos e lugares, as manifestações da cultura popular, reduzindo-as à função de folclore para turismo. Tal é a penetração de certos programas de rádio e TV junto às classes pobres, tal é a modernização que cobre a vida do povo em todo território brasileiro que, à primeira vista, parece não ter sobrado mais nenhum espaço próprio para os modos de ser, pensar e falar, em suma, viver, tradicional populares.
Este é o sentido das manifestações da cultura popular em Nova Ponte, as quais passaram a ser bastante influenciadas pela TV, um traço característico da vida na cidade naquele momento. A modernização do campo, e por que não dizer também da cidade, acarretaram sérias transformações na cultura popular dessa gente, no seu imaginário, no seu universo simbólico.
Quando novos personagens entraram em cena7 em Nova Ponte, o discurso anunciava uma panacéia. Mas, só falava da “dose” que o povo tomaria, que iria tirar-lhes da condição miserável de vida. Conforme Sader (1988, p. 58) “é através dos discursos que a carência virtual de bens materiais se atualiza numa carência de casa própria ou de um barraco, de sapatos ou de vestidos, de feijão com arroz ou carne-de-sol, de escola para os filhos ou televisão”.
O progresso econômico suprimiu costumes e transformou o universo simbólico do povo novapontense. Os símbolos eram referências que permitiam aos moradores se localizarem na cidade. Se alguém procurava uma pessoa e pedia informação, ouvia-se: ele mora depois da ponte; ao lado da igreja, em frente à máquina de arroz; subindo a rua que passa atrás do cemitério ou, mais calorosamente ainda, “espere um pouco que eu te levo lá”.
Entendemos a cultura popular como uma manifestação simbólica, que representa um modo de ser e de viver tradicional, portanto, uma forma particular de expressão de uma realidade que, acima de tudo, retrata a identidade que legitima o grupo.
Bosi (1992, p.15), diz:
A possibilidade de enraizar no passado a experiência atual de um grupo se perfaz pelas mediações simbólicas. É o gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca, a fala que invoca. No mundo arcaico tudo isto é fundamentalmente religião, vínculo do presente com o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustêm a sua identidade.
De acordo com essa citação podemos colocar a questão se realmente a destruição dos símbolos em uma comunidade não passa por uma prática etnocidária. Essa destruição, em Nova Ponte, foi uma extensão das diferentes etapas da modernização.
Os símbolos sozinhos ou isolados não têm o mesmo significado se não forem atrelados à história do lugar. Portanto, sua posição, sua forma, sua existência em determinado lugar é também uma construção simbólica, que pode ajudar a entender o momento e as condições de sua criação.
É nesse sentido que dizemos que os símbolos são importantes na medida em que são relacionados ao tempo e à história de sua criação. Uma mudança do lugar e, conseqüentemente dos símbolos, significa a quebra do seu sentido, da sua história e da história da qual ele é símbolo.
Vida na cidade, ritos da roça
Os moradores de Nova Ponte viviam, na sua maioria, no meio rural pelo menos até o fim da década de 1950/60. A partir desse período começou a se perceber uma queda no número da população total, mas principalmente em relação ao campo. Aí foi o lugar onde muitos de seus costumes foram criados. O lugar onde aprenderam a viver, onde aprenderam a trabalhar a terra, onde aprenderam a rezar e a cultuar seus santos.
Na roça, a prática dos rituais religiosos parecia renovar a cada acontecimento uma aliança com Deus. Na cidade, as festas típicas, canções líricas ou a recriação de hábitos pareciam renovar uma aliança com sua própria origem campesina. A manutenção desses gestos na cidade garantia que o passado pudesse continuar, ao menos nos rituais, e nunca passasse de todo. Uma vez recriados, renovados ou incorporados aos hábitos da vida cotidiana na cidade, esses rituais significavam, acima de tudo, a continuidade da própria vida.
No que se refere aos dias santos, era comum, numa cidade de lavradores, não ir ao trabalho no dia de Santos Reis, pois, diziam que “estes santos são muito vingativos” e por isso era considerado perigoso trabalhar nesse dia; dia de São Bento, pelo perigo de ser picado por cobra; dia de Santa Luzia, pelo perigo de ferir o olho. Além disso, tinham os dias santos de guarda estabelecidos pela igreja católica, ou seja, já era decretado o feriado. Nestes dias, aproveitavam para se dedicarem à pesca, que era uma forma de divertimento. Diziam até que pescar no dia de Santa Luzia era muito perigoso e que poderia fisgar o peixe pelo olho como sinal de punição pela desobediência.
No dia de São João, São Pedro e Santo Antônio não se ia ao trabalho, pois era preciso organizar para levantar santo8 e acender a fogueira à noite. Esse ritual presente por muito tempo no município consistia em estourar pipoca, torrar amendoim, fazer quentão etc., além de ser o dia de batizar as crianças. Cada criança deveria ser batizada nas três fogueiras, São João, São Pedro e Santo Antônio, estabelecendo assim o que Queiroz (1973, p. 92) chama de relação de compadrio:
O batismo constitui em todo o Brasil a base de um conjunto de relações sociais fundamentais - as relações de compadrio*. O compadrio liga uns aos outros vários indivíduos: padrinho, afilhado, compadre, comadre, transformando-os num grupo altamente solidário, com deveres e direitos recíprocos. A ajuda mútua entre os compadres é de regra.
Em Nova Ponte, o batismo nas três fogueiras era também uma regra e, aos pais, representava uma obrigação diante de Deus para com a criança. O pai chamava para padrinhos de seu filho pessoas com quem tinha amizade, muitas vezes os próprios parentes. Cada criança9 deveria ter dois padrinhos e uma madrinha ou duas madrinhas e um padrinho em cada fogueira. No final, a criança tinha seis padrinhos e três madrinhas de fogueira ou o inverso.
O rito do batismo consistia em rezar primeiro diante da fogueira, quando eram tirados dois pedaços da lenha em chamas e colocados dispostos em forma de uma cruz. Um dos padrinhos segurava uma vela e os outros dois, uma toalha branca que colocavam nas costas do afilhado. Quando bebê, a madrinha trazia nos braços a criança e um padrinho segurava a ponta da toalha e o outro segurava a vela. Um tirador10 era responsável pelo batismo. Ele tirava e os padrinhos repetiam as palavras:
Eu juro
Pra São Pedro e São Paulo
Santo Antônio e São João Baptista
E os três ramos da guia
Que (nome da criança) é meu afilhado(a)
Que (nome do pai) é meu compadre
E (nome da mãe) é minha comadre
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
Amém
Rezavam em cada canto da fogueira e em seguida repetiam o mesmo gesto diante da bandeira do santo que havia sido levantado, sendo que no quarto juramento rezavam-se três pais-nossos e três ave-marias. Terminado o batismo, a criança tomava a bênção de cada padrinho e os compadres se cumprimentavam. Daí em diante criava-se uma relação mais próxima entre essas pessoas, estabelecendo, inclusive, o que Queiroz chamou de ajuda mútua entre os compadres, além do presente que o afilhado recebia do padrinho.
Outro ritual muito respeitado por esse povo era o da quaresma, ou “coresma” como a maioria do povo novapontense falava. Para eles a quaresma era considerada coisa muito séria. Muita gente não comia carne durante os quarenta e cinco dias desse ritual. Todo o período era acompanhado de outros rituais simbólicos de penitência, como ir à missa todo domingo e participar de procissões.
Na semana das almas, que era a terceira semana da quaresma, as pessoas saíam em grupos cantando à noite, do lado de fora das casas, para as almas dos parentes daqueles. Quem participasse uma vez, não poderia deixar de acompanhar o ritual antes de completar sete anos de participação. Havia toda uma tradição nesse acontecimento. Ninguém poderia olhar para trás, pois corria o risco de verem almas em forma de lençóis brancos acompanhando. Nas casas, quem ouvisse o grupo deveria acordar a todos os que estivessem dormindo e apagar as luzes quando batesse a matraca anunciando a chegada dos cantadores. Lá dentro as pessoas, às vezes, chorando, lembrando de seus parentes mortos, agiam como que cumprindo o ritual expresso na letra da música:
Alerta, alerta
pecador pecador adormecido, pecador adormecido
alembra de benditas almas elas tão lá te esperando,
elas tão lá te esperando
Alembra que Deus não dorme
Dele não será esquecido, dele não será esquecido
alerta se estás dormindo neste sono que está,
neste sono que está
O sono é irmão da morte a cama é a sepultura,
a cama é a sepultura
alembra de benditas almas
elas tão lá esperando, elas tão lá esperando
Reza ao deitar na cama
amanhecer na outra vida, amanhecer na outra vida
reza ao menos um pai nosso
junto com ave Maria, junto com ave Maria
Pras almas do purgatório
reza pelo amor de Deus, reza pelo amor de Deus
reza agora a salve rainha
reza pelo amor de Deus, reza pelo amor de Deus
Em seguida, os participantes faziam uma oração e iam para outra casa, que, pela contagem que faziam, teria, necessariamente, que ser número ímpar. Queiroz (1973, p. 87-88), referindo-se ao ritual dedicado às almas, diz que elas:
Não abandonam definitivamente a família em que viveram; partiram antes que os outros membros e esperam no céu que todos ali se reúnam novamente... Os vivos por sua vez, devem oferecer-lhes auxílio representado por ritos que facilitem a passagem pelo purgatório. As almas dos mortos reclamam de parentes, compadres, amigos, este auxílio. Havendo esquecimento ou pouco caso, zangam-se fazendo adoecer os membros da família ou causando insucesso nos negócios.
O ritual de cantar para as almas em Nova Ponte talvez tivesse esse significado, pois, como diz Queiroz, “os ritos efetuados em benefícios das almas variam de um lugar a outro do país”. Ela dá como exemplo a dança de São Gonçalo, as penitências, a confraria especial da boa morte como outras formas de expressar esse compromisso.
Na sexta-feira santa, último dia da quaresma, deveria haver uma guarda absoluta. Não se podia varrer a casa, pentear os cabelos, usar objetos cortantes, como a faca, nem mexer com fogo. Os alimentos eram preparados na véspera afim de não ter que fazê-los na sexta-feira.
Muitas histórias fantásticas eram associadas à quaresma, como o homem que se transformava em porco neste período e ameaçava comer gente; a mulher pecadora que se transformava em mula sem cabeça; o saci pulando em cima do muro do cemitério; o lobisomem. Essas histórias tinham lá seus objetivos. Dentre eles havia o intuito de garantir o respeito, através do medo, pois as pessoas, principalmente crianças, sentiam-se na obrigação de dormirem cedo nesse período.
Quanto aos ritos da morte, havia em Nova Ponte, toda uma tradição, semelhante, embora na cidade, ao ritual descrito por Martins (1983) sobre “A morte e o morto: tempo e espaço nos ritos da roça”. Essa semelhança é, ao nosso ver, a evidência da origem roceira dessa gente.
Havia sempre uma pessoa acompanhando o enfermo, esperando para colocar a vela em sua mão na hora da morte para que morresse na luz e encontrasse luz após a morte. A mortalha era simbólica, assim como a cor do caixão, feito em madeira e tecido. As cores deveriam obedecer a um significado especial. Assim usava-se o branco para a mulher virgem, que às vezes até era vestida de noiva; caixão azul e terno para homens; caixão roxo e véu sobre o rosto para a mulher casada ou idosa.
Rezavam o terço várias vezes se o morto fosse católico; havia missa de corpo presente e o padre ainda encomendava a alma na hora da descida do caixão à sepultura. O sino da capelinha do bairro do Rosário badalava com um som característico de enterro desde a hora que saíam com o corpo para o cemitério, só parando quando passassem com o corpo pela capela.
A última homenagem, que muitas vezes refletia o poder aquisitivo da família, era o túmulo erguido sobre a cova. Quando era difícil para a família, fazia-se uma carneira11 e, nos casos mais extremos, apenas a cova de terra. Em seguida fincavam a cruz e colocavam uma fotografia do morto além da imagem do santo a que aquele era mais devoto.
Dizeres, como “aqui jaz [sic] os restos mortais de...” ou “saudades de seus filhos, netos, noras...” eram escritos em placas e colocados sobre a cova, como se o morto quisesse dizer exatamente aquelas palavras. Para os corpos de pessoas que “morreram fora do lugar”, como no trabalho, na estrada ou no rio, a cruz era o símbolo de que ali morrera alguém daquele lugar. Vovelle (1991, p. 134), diz que “todas as representações da morte estão imersas em um contexto ou em um banho cultural que é propriamente o tecido da história”.
No início dos anos 70, Nova Ponte ainda não tinha hospital e, nessa época, também não tinha médico. Por isso, os casos de doenças mais graves eram encaminhados pelo farmacêutico para as cidades de Uberlândia ou Uberaba. Mas, o mais comum era apelar para os benzedores, como o sr. Nêgo Ferreira, a Dona Jerônima, a d. Maria Teodoro, d. Irani, d. Maria Bodé e d. Odete. Eles benziam dor de dente, picada de cobra ou escorpião, mau olhado, ventre virado e cortavam o medo de crianças que começavam a andar. Até mesmo os animais domésticos doentes eram encaminhados para que eles os benzessem.
Era também comum buscar a paz e a saúde no Centro Espírita Viva Deus. As pessoas levavam garrafas d’água para serem fluídas e purificadas. Depois tomavam daquela água ao longo da semana, chegando a misturá-la à água do filtro para garantirem a disponibilidade da mesma. O Senhor Taíde, farmacêutico, adepto da fé espírita e médium, sempre recebeu em sua casa pessoas que buscavam uma bênção e a cura para os males que as afligia. Além de dar o Passe Espiritual12, ele receitava remédios como farmacêutico. E os casos em que ele era procurado variavam desde crianças cujos dentes estavam para nascerem até os casos conhecidos como “encosto”, ou seja, pessoas que incorporam um espírito de sombra, às vezes ameaçador da paz dos vivos.
As mulheres grávidas dificilmente iam dar à luz em hospital de outras cidades. As parteiras, como d. Fia e d, Adelina do Izidoro, eram chamadas para se encarregarem dessa função. A mulher que iria dar à luz deveria trazer na cabeceira da cama um quadro de Nossa Senhora do Bom Parto. Isso, acima de tudo, era a garantia de um parto feliz. Quem não possuísse o quadro da santa deveria pedir emprestado e com ele ficar até o fim do resguardo, que era o período de 40 dias do nascimento da criança.
Nesse caso também se estabelecia uma relação mais próxima entre essas pessoas, a mãe, o filho e a parteira. As parteiras deveriam ser chamadas de “vó” pelas crianças, que elas ajudavam a nascer e criava-se o hábito em que as crianças deveriam lhes pedir a bênção.
As mães-de-leite também eram comuns quando a mãe biológica tinha pouco leite. Neste caso, a mãe levava seu filho para que outra mulher que estivesse amamentando pudesse alimentar seu filho. Esse procedimento criava a relação entre a mulher que amamentava o filho de outra, a criança que ela alimentava e seu próprio filho, ou seja, era a mãe, o filho e o irmão de leite.
Esse é o retrato de uma cidade simples e de pessoas carentes. Cada gesto estava imbricado de significado que mais parecia revelar a imagem da roça. Até mesmo o hábito de ouvir missas e orações pelo rádio, que era comum na roça, onde dificilmente havia um padre para celebrar a missa na capela, fora observado em Nova Ponte. As pessoas colocavam copos ou garrafas com água em frente ao rádio, no momento em que chamavam “a hora da bênção”, para se ter água benta em casa. Todos bebiam um pouco da água, um gesto de certa forma semelhante à comunhão na igreja ou ao descrito anteriormente no ritual espírita. Também passavam um pouco da água na testa para benzer-se.
Esses gestos representavam o modo de viver das pessoas e significavam, acima de tudo, a razão da própria vida. Eram formas de garantir a saúde e as alegrias; formas de garantir a plenitude da vida “assim na cidade como no campo”, “assim na terra como no céu”.
Considerações finais
Esse era o retrato de Nova Ponte no limiar do século XXI, uma comunidade crente, carente, porém inserida no processo de globalização da economia, dada a disponibilidade de um recurso natural tomado como frente de modernização, o cerrado. Uma história que talvez não seja muito diferente da que ocorrera em diversos outros lugares do Brasil, mas, ao mesmo tempo, uma história específica, de uma gente modesta, mas também sujeitos de sua própria história.
O discurso estratégico dos agentes envolvidos na decisão do Estado, de modernizar o campo brasileiro, foi a forma de convencer muitos proprietários a venderem suas terras e migrarem para a cidade. Ao mesmo tempo eram agentes da própria comunidade que tratavam de convencer esses moradores, com vistas a colocarem em prática algo que já estava determinado em lei, como era a proposta da referida Lei 5105/66. Após a concretização das transações restava a esses moradores se inserirem no processo de modernização, porém, na condição subalterna de vendedor da força de trabalho no campo, nas frentes que se abriam ante os olhos do povo.
Isso, por outro lado, não representou, necessariamente, o fim de uma cultura. Os gestos, os rituais simbólicos, o próprio cultivo dos quintais como mencionado anteriormente pareciam demonstrar que nessas atitudes revelava-se uma resistência – re-significadas, claro, mas suficientes para garantirem o que chamamos de razão para manutenção da vida.
Os moradores da cidade também sofreram perdas com as mudanças no campo como mostrado nesse trabalho. Não ter mais os locais de cata de arroz, feijão, milho ou mesmo o fato de não mais encontrarem as frutas típicas do cerrado eram situações entendidas como perdas por aqueles que estavam acostumados a esses hábitos.
Mas na realidade os símbolos presentes na paisagem urbana eram referências tanto para os moradores da cidade quanto para os da roça. Isso significa que os moradores da roça foram mais diretamente atingidos pelas mudanças. Eles perderam parte de seus símbolos e, nesse sentido, recriá-los passava por uma adaptação aos novos hábitos.
No silêncio sutil desses moradores se expressava um rumor de comodidade. Todavia, era nos hábitos da vida cotidiana que se expressava uma forma única, pessoal e calada de resistência passiva, e por vezes matuta, às atitudes de agentes de poder.
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Endereço para correspondência
E-mail: vicente@ig.ufu.br
Recebido em 28/08/2006
Aceito em 29/09/2006
* Possui Licenciatura Plena Em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (1988), mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo USP (1995) e doutorado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ (2004). Professor adjunto da Universidade Federal de Uberlândia, atuando principalmente nos seguintes temas: Geografia Regional, América Latina, Países Centrais e Periféricos, Iniciação à Pesquisa Geográfica e Estágio Supervisionado em Geografia
1 Sobre isso, ver: LEAL, M. L.C.M., 1985, p. 39-51
2 O Estado de Minas Gerais foi regionalizado para fins de planejamento estadual. A Mesorregião do Triângulo e Alto Paranaíba, “com uma área de aproximadamente, 93.500 km2, localiza-se na porção ocidental de Minas Gerais, limitando-se, grosso modo, a leste pela serra da Canastra e Marcela e a oeste pela confluência dos Rios Grande e Paranaíba, foi regionalizada para fim de planejamento estadual tendo como base fatores fundamentalmente hidrográficos e orográficos, constituindo-se na chamada IVª Macrorregião Homogênea”. FREITAS, P. S. R.; SAMPAIO, R. C., 1985, p. 15
3 Os dados acima se referem ao ano de 1994, mas em outra entrevista que fizemos ao gerente ele disse que a área destinada ao café já chegou a 220 ha e que a soja vinha penetrando cada vez mais nessas áreas, inclusive na de onde se extrai a madeira. Diz ainda que havia previsão de a terra arrendada ser reintegrada à fazenda em 1995, e a partir daí seria ocupada com a produção da soja
4 A Lei Federal 5106, de 2 de setembro de 1966, dispõe sobre os incentivos fiscais concedidos a empreendimentos florestais. Ela permitia, de acordo com seu artigo 1º, que as importâncias empregadas em florestamento e reflorestamento pudessem ser abatidas ou descontadas em declarações de rendimento das pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no Brasil. Em alguns casos, os benefícios concedidos por essa lei eram cumulativos com outros benefícios dispostos em outras leis. No artigo 2º, alínea “a”, diz que a pessoa, física ou jurídica, só poderá ter direito a esses benefícios se realizar o florestamento ou reflorestamento em terras de que tenham justa posse, a título de proprietário, usufrutuário ou que sejam detentores do domínio útil ou que, de outra forma, tenham o uso, inclusive como locatários ou comodatários
5 Hábito de recolher no campo as sobras de produtos, como arroz, feijão ou milho, que eram desperdiçados durante a colheita. Muitos moradores saíam de casa ainda de madrugada para o trabalho da cata e conseguiam, às vezes, estocar boas quantidades do produto que era consumido em casa. Por vezes também vendiam aquela produção em armazéns ou trocavam por outros produtos
6 A rebarba consistia em comer parte do almoço pela manhã, antes de começar a trabalhar
7 Frase que constitui o título do livro de SADER, E., 1988, 329 p.
8 Além da fogueira, o dia era dedicado às rezas e comidas típicas. O ritual consistia em enfeitar a bandeira do santo com flores de papel e colocála sob um mastro que seria levantado e fincado no quintal da casa, ficando pelo menos sete dias após o dia de São Pedro (29 de junho)
(*) As relações de compadrio têm importância idêntica em todos os países da América Latina e não apenas no Brasil (nota da autora)
9 Menos freqüente, mas também se verificava o batismo de adultos, que no caso escolhiam seus próprios padrinhos
10 Pessoa que fazia o batismo
11 Pequeno túmulo de placas de cimento ou de tijolos. Por dentro esparramavam a cal para depositar o caixão
12 O passe espiritual consiste em um ritual espírita que, segundo informação de Maria Naves, adepta da Fé Espírita, significa uma transmissão de fluidos em que o médium representa a fonte para a passagem de luz espiritual à pessoa que recebe o Passe