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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.8 n.15 São Paulo dez. 2004
ARTIGOS
Os efeitos da violência na constituição do sujeito psíquico
The effects of violence in the psychic subject constitution
Fábio BeloI
Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de Psicologia. Setor de Psicanálise
RESUMO
Pretendo descrever alguns efeitos da violência na constituição do sujeito. Para fazê-lo tomarei o filme “Cidade de Deus” como ponto de referência. Saliento a importância da noção de a posteriori e da teoria da sedução generalizada, de Jean Laplanche, para se entender o caráter sexual que a violência ganha em uma perspectiva psicanalítica.
Palavras-chave: Violência, Teoria da sedução generalizada, Constituição do sujeito psíquico, Sadismo, Desobjetalização, A posteriori.
ABSTRACT
I intend to describe some effects of violence in the psychical subject constitution. To do that, I used the film “Cidade de Deus” as a point of reference, although I do not intend to analyse it. I accentuate the importance of the concept of a posteriori and of Jean Laplanche’s generalized seduction theory in order to understand the sexual trait of violence.
Keywords: Violence, Generalized seduction theory, Psychical subject constitution, Sadism, Desobjectalization, A posteriori.
Ressalvas metodológicas e introdução do problema
Meu objetivo neste trabalho é iniciar uma reflexão sobre os efeitos da violência durante a constituição do sujeito psíquico. Tomarei o filme “Cidade de Deus” como referência, mas não farei nenhuma análise pormenorizada do mesmo. Ao tomar um filme como material de cotejamento, entretanto, duas ressalvas metodológicas devem ser feitas. A primeira inerente, parece-me, a todo trabalho de psicanálise aplicada é que os personagens serão tratados “como se fossem pessoas”, seguindo o método empregado por Freud (1907) em seu estudo sobre a Gradiva de Jensen. A segunda ressalva lembra que qualquer interpretação psicanalítica de um fenômeno social corre o risco de “psicologizar” os fatos. Em contrapartida, Freud (1921) já salientara que o contraste entre a psicologia social e a individual “perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto”, e que o fato de o outro estar sempre presente na vida anímica do indivíduo como modelo, objeto, auxiliar ou inimigo justifica dizer que a psicologia individual é, ao mesmo tempo, psicologia social (ESB, XVIII, p. 91; GW, XIII, 73)1. A advertência de Freud, contudo, não faz da psicanálise instrumental suficiente para análise do fenômeno social. Ao contrário, em Psicologia das massas... o diálogo com a sociologia é evidente. Portanto, não pretendo neste trabalho dar uma resposta totalizante sobre a violência. Acredito que somente por meio do diálogo entre diversas áreas do saber uma compreensão mais ampla é possível.
Mesmo tratando-se de um trabalho de psicanálise aplicada, espero que o resultado final traga contribuições para a clínica psicanalítica. Ao propor algumas hipóteses sobre as conseqüências da violência sofrida pelo sujeito nos primórdios de sua constituição, desejo contribuir para o tratamento de pacientes que se enquadrem nessa condição. O filme Cidade de Deus auxilia a mostrar que existem várias saídas para a violência sofrida nos primeiros tempos da vida psíquica. Ao comparar, de maneira esquemática, os personagens Dadinho e Buscapé, pretendo mostrar quais as diferenças e semelhanças entre os possíveis destinos do sujeito frente à violência.
O filme conta a história do bairro Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. A narrativa gira em torno do desenvolvimento do crime organizado, em especial aquele ligado às drogas. A história do bairro confunde-se com a vida de Zé Pequeno, o primeiro grande traficante do lugar. Zé Pequeno é o segundo nome de Dadinho, cujo crescimento é mostrado dos anos 60 aos 80. O narrador é Buscapé, que também mora no bairro, mas não participa do crime organizado. Dentre os muitos personagens, vale lembrar dois: Bené, o único amigo de Dadinho/Zé Pequeno e Zé Galinha, inimigo invejado de Zé Pequeno.
No começo, a galinha
A primeira seqüência do filme mostra a preparação de um almoço. Três cenas focadas: uma faca sendo afiada, a degola de um frango e o olhar de uma galinha que consegue escapar. Uma longa seqüência de perseguição que será retomada no final do filme termina com o encontro da galinha com Buscapé. O que significa fazer dos objetos e dos animais testemunhas dos acontecimentos? Do ponto de vista literário, esse recurso é amplamente usado, tendo como exemplo maior as fábulas infantis. Na literatura moderna para adultos, o paradigma ainda é Animal farm, de George Orwell2.
Freud sugeriu que “o recalcamento encontra sua expressão na contraditoriedade (Gegensätzlichkeit)” (1918, p. 112), isto é, onde há contradição, inversão, pode-se suspeitar da presença do recalcamento. Quem deveria observar a cena era um ser humano e não uma galinha. Pode-se pensar que fazer uma coisa ou um animal ser testemunha dos acontecimentos significa que os humanos não podem testemunhar seja porque estão alienados de sua situação e não sabem o que ver, seja porque são impedidos de ver. Podemos tomar essa seqüência inicial de Cidade de Deus como um aviso: a história narrada é comprometida por alguma alienação, proibição ou recalcamento.
O narrador da história é Buscapé. Parece haver uma clara associação entre ele e a galinha: tal como ela Buscapé, em diversas cenas do filme, está correndo daí talvez seu apelido. Quando joga no gol, Buscapé é “frangueiro”. Essa aproximação não me parece fortuita. De fato, Buscapé recusa contar toda a história. Não por alienação, mas por medo e proibição. Se a atitude dele é ou não correta, é uma questão a ser discutida. O que me interessa, por enquanto, é marcar esse ponto: a narrativa virá marcada pela proibição.
Retomando a primeira cena: a galinha vendo outra galinha sendo degolada é uma imagem que imediatamente antropomorfiza a galinha. Como Buscapé, que não quer ser polícia nem ladrão “com medo de tomar tiro”, ela também “tem medo” de ser morta. Tomo essa cena como uma metáfora para todo o filme. Vejo-o como a narrativa sobre algo que o sujeito não compreende. Esta é nossa primeira hipótese sobre os efeitos da violência na infância: uma radical alienação do sujeito.
Violência e identificação com o agressor
Segundo Jurandir Freire Costa, alguns psicanalistas têm como base de suas afirmações a noção de violência em sua versão aristotélica, ou seja, “violência como a qualidade do movimento que impede as coisas de seguirem seu movimento natural”. O autor continua:
Só assim pode-se entender que linguagem, desejo ou sexualidade do adulto violentam o psiquismo infantil. É porque os autores partem do postulado de uma suposta naturalidade do psiquismo infantil, que segue um curso supostamente natural, que podem qualificar de violenta a ação do ambiente ou do mundo externo sobre este psiquismo (Costa, 1986, p. 16).
O psiquismo do bebê realmente não tem um “curso natural”. Ele é fomentado nas relações amorosas com os adultos. O autor argumenta que “a teoria psicanalítica migrou das proposições freudianas a respeito da natureza traumática da sexualidade para uma concepção da natureza violenta deste traumatismo” (p. 21). Além da crença (equivocada, segundo ele) na primazia da violência da gênese da cultura, o autor sugere um outro motivo para essa migração: “identifica-se trauma infantil com violência, fazendo do primeiro termo este, sim, condição sine qua non da existência psíquica sinônimo do segundo, fenômeno gratuito às necessidades do desenvolvimento psicológico da criança” (p. 22). Adiante interrogo até que ponto trauma, sexualidade e violência realmente não se confundem. Tento mostrar como o aporte laplancheano vai problematizar a questão.
O que interessa por agora é uma definição mais precisa de violência. Segundo Jurandir, violência é uma ação destrutiva que porta a marca de um desejo; “é o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos. Esse desejo pode ser voluntário, deliberado, racional e consciente, ou pode ser inconsciente, involuntário e irracional” (p. 30). Ele complementa: “É porque o sujeito violentado (ou o observador externo à situação) percebe no sujeito violentador o desejo de destruição (desejo de morte, desejo de fazer sofrer) que a ação agressiva ganha o significado de ação violenta” (p. 30)3.
É nesse sentido que Jurandir caminha para dissociar a noção de trauma da noção de violência. Para ele, nem todo trauma é violento. Desta forma, é um erro tomar a violência física como modelo da violência psíquica. O que importa, mais que o aspecto quantitativo, é o aspecto qualitativo, expresso na representação que é associada como causa da violência. Para o autor, o sujeito violentado é aquele que, a posteriori, “virá a saber que foi submetido a uma coerção e a um desprazer absolutamente desnecessários ao crescimento, desenvolvimento e manutenção de seu bem-estar enquanto ser psíquico” (p. 95-96).
O problema da violência sofrida nos tempos da constituição do sujeito psíquico agrava-se quando “o agente da violência é concomitantemente condição inelutável de sua sobrevivência e porta-voz onipotente de sua sentença de morte” (p. 100). Esse duplo vínculo coloca o sujeito em um impasse: “ou aceita definir sua identidade segundo a palavra arbitrária do intérprete da lei o que significa morrer ou nega a existência deste intérprete, abolindo sua representação” (p. 100). Jurandir diz que o sujeito nem sempre é obrigado a recusar a representação do agressor. O autor não chega a sugerir outras alternativas, mas posso sugerir que uma delas é a identificação com o agressor.
Uma das primeiras tentativas de abordar o problema da identificação com o agressor foi feita por Ferenczi (1932). Para o autor, o medo que as crianças sentem do adulto agressor faz com que elas se identifiquem com ele. Elas sentem-se obrigadas a submeter-se à vontade dele e esquecem de si mesmas. Novamente encontramos algo semelhante a uma alienação nas situações de violência vividas precocemente. Ferenczi aborda casos nos quais o adulto agressor sente-se culpa-do pela violência cometida contra a criança. O filme Cidade de Deus convida a pensar em casos ainda mais trágicos, isto é, onde não há culpa por parte dos adultos. Quais seriam os efeitos dessa violência? Seria somente o medo que a criança sente do agressor o motor para sua identificação com ele? Não teria a culpa do agressor papel importante para que essa identificação se fizesse?
Acredito que não é o medo o verdadeiro motor da identificação com o agressor. A identificação, nos primeiros momentos da vida psíquica, não parte da criança. Como o eu poderia identificar-se com alguém se ainda o próprio eu não existia? A solução é pensar que, nos primórdios, a identificação seja um processo que parte do adulto para a criança, isto é, a criança é identificada pelo adulto muito mais do que se identifica com ele4. Só assim pode-se entender a identificação com o agressor. Tem que haver uma relação amorosa com a criança para que essa identificação se realize. A culpa mostra a existência do amor mesmo que ambivalente.
Do ponto de vista clínico, é fundamental tentar perceber se o paciente que sofreu algum tipo de violência muito precocemente teve ou não acesso a uma relação amorosa com seu agressor. Isso vai determinar o destino que o eu poderá dar à violência. Quanto mais o amor estiver presente em forma de culpa, por exemplo , maior a chance de uma identificação com o agressor. Quanto menos amor houver, maior a chance de encontrar casos como o de Dadinho. Se nos primeiros casos a alienação é parcial, pois o sujeito ainda encontra existência sendo identificado e identificando-se com o agressor, nos casos mais graves, onde além da violência há privação, a alienação tende a ser mais radical.
A pulsão sexual de morte e o mais aquém do princípio do prazer
Uma das críticas que se pode fazer à definição de violência proposta por Jurandir, resumida acima, pode ser sintetizada em um trecho da entrevista que Jean Laplanche concedeu a Marta Rezende Cardoso:
Claro, penso que ela [a psicanálise] tem uma contribuição importante a dar [para a reflexão sobre a violência]: não deixar esquecer que a violência é sempre sexual. Para mim este é o ponto principal: os aspectos da violência que aparentemente são dessexualizados têm sempre um fundamento sexual tanto na violência individual quanto na coletiva, as guerras, os massacres etc. (Laplanche, 2000, p. 58 grifo nosso).
Para se entender por que Laplanche insiste no caráter sexual da violência, deve-se ter em mente os pressupostos de sua teoria da sedução generalizada. Para Laplanche, nos cuidados maternos básicos, o adulto excita a criança. Quando a mãe (ou qualquer adulto) cuida do bebê, ela não pode abrir mão de seu inconsciente. Juntamente com seus cuidados, ela envia à criança mensagens enigmáticas. Enigmáticas inclusive para ela mesma, pois não sabe que as transmite. A criança é impelida a traduzir essas mensagens. Além do fato de essas mensagens serem enigmáticas, no início de vida, a criança ainda não tem recursos narcísicos e simbólicos para fazê-lo, resultando no fracasso da tradução. O resto dessas excitações, não traduzidas ou não ligadas pelo ego ainda incipiente da criança, formará o que Laplanche denominou o objeto-fonte da pulsão. É desse objeto interno que partirão os ataques ao ego, impelindo-o a novas traduções ou medidas defensivas5.
É verdade que a mãe excita a criança e deposita nela sua sexualidade, mas é também quem fornece à sua cria elementos que vão ligar essa excitação. Na feliz expressão de Silvia Bleichmar, a mãe age como um duplo comutador. Por um lado, a mãe “agita sua cria” devido às mensagens enigmáticas que lhe transmite; por outro, é ela quem possui as “representações egóico-narcisistas que lhe permitem ver seu bebê como um todo”. Desta forma, conclui a autora, “a libido desligada, intrusiva, que penetra, será ligada inicialmente por vias colaterais, mediante este narcisismo estruturante que um vínculo amoroso propicia” (1994, p. 26).
A mãe, portanto, tem que fornecer material narcísico para que o bebê consiga ligar as excitações que ela mesma deposita nele. Quando a mãe falha em fornecer esse material narcísico, a cria humana fica entregue a essas excitações não articuladas, “que a submetem a uma dor constante com tendência a uma compulsão evacuativa que responda a um mais aquém do princípio do prazer” (p. 31).
A autora define o funcionamento do sujeito no mais aquém do princípio do prazer como uma “compulsão de repetição traumática que não consegue encontrar vias de ligação e retorna a um circuito sempre idêntico já que não é possível de ser evacuado” (p. 33). Essa compulsão pode ser vista, por exemplo, na falta de sono de um bebê e na sua constante irritação e choro. Minha hipótese é que Dadinho esteve entregue à pulsão sexual de morte e não teve o outro lado do comutador, isto é, alguém que oferecesse vias de ligação da excitação. Muito pelo contrário: o outro é sempre o que excita, o que põe em risco suas débeis ligações egóicas6.
De fato, em um primeiro momento, não é a conotação violenta que fará o traumatismo sexual ser violento, mas sim a conjunção de dois fatos: a) essa excitação ter sido aportada de maneira enigmática pelo adulto ao bebê, em um tempo em que este era incapaz de integrá-la ao seu ego ainda incipiente; b) essa excitação só ganhar seu caráter propriamente sexual a posteriori. Contra a angústia de aniquilamento, o ego fecha-se em si mesmo, evitando cada vez mais um contato amistoso com os objetos. Daí a conclusão de Jurandir: a sexualidade provocada pela violência é uma sexualidade defensiva (contra a morte) e, inevitavelmente, narcísica. O autor explica:
A sexualidade é compulsoriamente narcísica porque não pode ligar-se ao objeto traumático. [Mas não seria esse narcisismo obrigatório a marca de uma ligação permanente e traumática com o objeto?] A violência impede o surgimento da sexualidade objetal, dada a especificidade do estímulo não-sexual que veicula. O sujeito violentado vai procurar lidar com o objeto de outra maneira. Em vez de investi-lo sexualmente tenta afastá-lo, anular sua existência, inibir o ressurgimento de seus traços mnésicos ou evocá-lo para fixá-lo, assim como anticorpos diante de um corpo estranho (p. 176)7.
Para Jurandir, então, a sexualidade que surge a partir da violência na infância é uma sexualidade narcísica, porque a violência é não-sexual. Isso vai de encontro à advertência feita por Laplanche de que toda violência é sexual! Não seria mais adequado pensar que o estímulo violento aportado pelo adulto é pré-sexual/sexual e que, a posteriori, ele ganha seu caráter plenamente sexual? Vejamos como Laplanche entende a origem da sexualidade, para voltarmos a analisar essa contradição com a hipótese de Jurandir.
Laplanche diz que há duas formas de o adulto endereçar a sexualidade à criança. A primeira é a implantação, que é o fato de os “significantes aportados pelo adulto se encontrarem fixados, como em superfície, na derme psicofisiológica de um sujeito no qual uma instância inconsciente ainda não é diferenciada”. Para o autor, é sobre esses significantes recebidos passivamente que “se operam as primeiras tentativas ativas de tradução, cujos restos são o recalcado originário (objetos-fonte)” (1992, p. 358). Uma segunda forma desse aporte sexual é a intromissão, a variante violenta da implantação. Quanto a ela, diz Laplanche:
Enquanto a implantação permite ao indivíduo uma retomada ativa, com sua dupla face tradutiva-recalcante, é preciso tentar conceber um processo que faz obstáculo a essa retomada, curto-circuita as diferenciações das instâncias em via de formação, e coloca no interior um elemento rebelde a qualquer metábole (p. 358).
Portanto, a violência vai impedir o aparecimento de uma sexualidade objetal não porque ela é não-sexual. Pelo contrário, é porque a sexualidade é endereçada violentamente à criança, intrometida nela e não implantada, não permitindo nenhuma tradução. O aspecto narcísico que advém daí tem como objetivo anular a alteridade do outro (Mezan, 1998, p. 187). Na verdade, esta alteridade é interna, é um corpo estranho. Uma defesa do ego é fazer com que o ataque desse outro interno pareça vir de fora. É o que acontece com Zé Pequeno: ele tenta anular o outro, mas o movimento nunca tem fim, pois os ataques não vêm de fora. Há uma seqüência em que Dadinho é filmado atirando e rindo em vários lugares. Se por um lado pode-se detectar algo sádico nesse sorriso, por outro acredito que sua violência está muito mais para a desobjetalização do que para o sadismo (tento diferenciar esses conceitos adiante) aquém do princípio do prazer, e não regida por ele. Realmente, não se pode entender a compulsão à repetição presente na violência sem reconhecer seu caráter eminentemente sexual.
Um segundo argumento que indica o caráter sexual da violência encontra apoio no conceito de a posteriori. A noção de a posteriori diz respeito à temporalidade e à causalidade psíquica, à possibilidade de um determinado evento poder ser ulteriormente remodelado em função de experiências novas. A esse evento pode ser conferido, “além de um novo sentido, uma eficácia psíquica” (Laplanche e Pontalis, 1994, p. 33). Quando se compreende a lógica do a posteriori, torna-se impossível conceber a história do sujeito sendo determinada unicamente do passado para o presente. Laplanche e Pontalis diferenciam o a posteriori de uma reapropriação do sujeito de seu passado ou das fantasias retroativas, isto é, fantasias que visam modificar o passado. Para os autores, “não é o vivido em geral que é remodelado a posteriori, mas antes o que, no momento em que foi vivido, não pôde integrar-se plenamente num contexto significativo. O modelo dessa vivência é o acontecimento traumático” (p. 34). A sexualidade é justamente o que não pode integrar-se na infância. Ora, isso não seria ir contra a sexualidade infantil? Essa dúvida é fruto de uma confusão.
Para desfazer essa confusão, tome-se a amamentação como paradigma dessa sedução precoce: de um lado temos o bebê que sente prazer ao sugar o seio pode-se falar aí claramente de um prazer oral, de uma sexualidade oral. O instinto de sucção é rapidamente “parasitado” pelo prazer do órgão: o prazer tem primazia, e não a nutrição. De outro lado, temos o seio que é ao mesmo tempo órgão de nutrição para o bebê e órgão sexual da mãe. É impossível destituir a mãe de seu inconsciente no momento da amamentação. Fantasias inconscientes são trazidas inevitavelmente à tona: de que se pode sufocar o bebê com o seio, de que o bebê vai morder o seio etc. São essas fantasias da mãe, transmitidas ao bebê, que não poderão ainda ser simbolizadas pelo infans. São essas excitações que terão a posteriori um sentido e uma eficácia psíquica. Diante dessas excitações o ego não pode fugir, como poderia fazê-lo diante de um perigo externo. O ego vê-se forçado a traduzir essas mensagens. O fracasso dessa tradução é o recalcamento. E o resto que não conseguiu se integrar ao ego torna-se um “corpo estranho”, um espinho na carne.
Percebe-se que, desde uma perspectiva laplancheana, teremos que agregar à noção de a posteriori dois elementos: a noção do outro (sedutor, excitante) e um modelo de tradução. Laplanche esclarece:
Mesmo se focalizamos toda nossa atenção sobre a direção temporal retroativa, no sentido em que qualquer um reinterpreta seu passado, esse passado não pode ser pura-mente factual, um “dado” bruto, não transformado. Ele contém sobretudo de uma maneira imanente alguma coisa de anterior uma mensagem do outro. É portanto impossível propor uma posição simplesmente hermenêutica nos termos em que alguém interpreta o passado em função do presente pois o passado depositou alguma coisa que demanda ser decifrado que é a mensagem da outra pessoa (1999b, p. 65-66).
O caráter sexual da violência talvez não seja explícito. A questão é que no ato violento o adulto veicula mensagens sexuais enigmáticas, tanto para ele quanto para a criança. A posteriori, como diferir um tapa de um gozo sádico? Em um primeiro tempo, o tapa pode até não ter nada de aparentemente sexual. No entanto a criança, na medida em que se desenvolve, tentará encontrar os motivos pelos quais apanha. É nesse segundo momento que o tapa passa a ser sinônimo de dominação, sadismo, humilhação. Quando esse sentido vem à tona, é tarde demais, a excitação já está depositada e ela passa a operar a partir de dentro.
É interessante perceber que a estrutura narrativa do filme remete à lógica do a posteriori. Uma cena é apresentada para ser cortada ao meio e ser reapresentada mais tarde com um novo sentido. A narrativa volta, “explica” o que ocorreu e recomeça. É claro que em termos de narrativa, a temporalidade é retroativa e não exatamente a do a posteriori. No entanto, abstraindo-se o aspecto narrativo em si, diversas vezes sentimos que algo só será entendido depois. De qualquer forma, é como se a narrativa tomada como um todo quisesse dizer-nos que algo desse tipo (re-significações temporais) ocorre no fenômeno da violência.
Sadismo e função desobjetalizante: fotografar ou matar?
Zé Pequeno pede a Buscapé que o fotografe. Buscapé focaliza o bando armado de Zé Pequeno. O disparo da máquina de fotografia é sobreposto ao disparo de uma arma. É como se o tiro tivesse saído da máquina de Buscapé. Em seguida fica-se sabendo que o disparo havia sido efetuado por Mané Galinha, situado atrás de Buscapé. O processo de montagem dessa cena permite pensar que, de alguma forma, fotografar e matar querem dizer algo semelhante. De fato, as duas ações dominam o objeto. Em um certo sentido, matar é exercer pleno domínio sobre o outro, e fotografar é exercer domínio sobre a representação de um objeto.
Acredito que a descrição de Walter Benjamin sobre fotografias de grandes obras de arte diz muito sobre fotografia de modo geral. Para ele, “os métodos mecânicos de reprodução são uma técnica de redução e fornecem ao homem um grau de domínio sobre as obras sem o qual elas não poderiam mais estar à sua disposição” (Benjamin, 1931, p. 31). De fato, é possível pensar que fotografar é uma maneira de apreender, dominar (maîtriser) o objeto, reduzindo-o à sua representação8.
O encontro de Buscapé com a máquina fotográfica se dá quando ele vê o corpo de Cabeleira um assaltante sendo fotografado. Walter Benjamin diz que somente a fotografia “informa sobre o inconsciente do visto, como a psicanálise faz sobre o inconsciente das pulsões” (1931, p. 19). Ele usa a imagem das pessoas caminhando para se explicar: paralisando alguns momentos da marcha das pessoas, aparece algo que durante o movimento era, por assim dizer, invisível. Em minha opinião, o encontro de Buscapé com a fotografia permitiu que ele pudesse entrar em contato com a violência, sem que seus aspectos disruptivos aparecessem. Como já disse, Buscapé não quer ser polícia nem ladrão pelo medo que tem de tomar tiro. O disparo da máquina paralisa o objeto, domina-o, e dessa forma o medo diminui. Não seria a máquina fotográfica o equivalente ao que Freud denomina escudo protetor contra os estímulos (Reizschutz), isto é, uma barreira erigida pelo aparelho psíquico a fim de evitar a entrada descontrolada de estímulos?
Uma cena em que o pai de Buscapé faz uma reprimenda a Marreco, seu irmão, exortando-o contra o crime e obrigando-o a trabalhar como ele, parece explicar o que permitiu que Buscapé tivesse esse destino e não um outro, no qual a violência aparecesse na forma que Bleichmar chamou de aquém do princípio do prazer. O pai de Buscapé talvez tenha funcionado como aquele que fornece material narcísico para ligar as excitações provenientes da violência. O tapa na cara que Marreco recebe do pai é completamente diferente dos tapas na cara que Dadinho recebe de Cabeleira. A diferença está na arbitrariedade desses últimos frente ao aspecto educativo/interditor do primeiro. Além disso, posso mencionar, para retomar a tese de Ferenczi já citada, a presença da culpa no agressor.
Os mecanismos de defesa usados por Buscapé e Zé Pequeno, que visam controlar o objeto que causa a angústia, são semelhantes na medida em que, tanto na fotografia como na agressão mortífera, o objeto é diminuído e despojado de suas características perigosas. É evidente que é desproporcional a comparação entre fotografar e matar. O importante aqui é ir do fenomenológico ao metapsicológico. Fenomenologicamente, é claro que são ações muito distintas. Metapsicologicamente, aproximam-se como defesa. Há, no entanto, uma diferença radical entre essas defesas: no caso de Zé Pequeno, o narcisismo é prevalente, enquanto em Buscapé há um desenvolvimento do amor objetal. Isso indica duas saídas possíveis encontradas pela criança quando submetida à violência: o sadismo e a desobjetalização.
André Green diz que “a meta da pulsão de morte é realizar ao máximo uma função desobjetalizante através do desligamento” (1988, p. 65). A pulsão de vida, ao contrário, tem como meta objetalizante “realizar, mediante a função sexual, a simbolização” (p. 68). O que determina o destino da criança em direção à prevalência de uma ou outra saída? A meu ver, a criança recorre à desobjetalização quando não tem recursos narcísicos consistentes, ou seja, o próprio ego, como objeto, é constantemente ameaçado. A desobjetalização matar, destruir os objetos externos seria uma forma de diminuir a tensão gerada por essa constante ameaça de dissolução egóica. Foi nesse sentido que disse acima: a desobjetalização está aquém do princípio do prazer. Por outro lado, o sadismo indica a presença de recursos narcísicos mais consistentes. Esses recursos provêm do outro e são mobilizados nas primeiras identificações, possibilitando à criança identificar-se como unidade e, além disso, com o agressor.
Os destinos da violência seguiriam, portanto, uma escala de simbolização correlata à presença ou à ausência de elementos identificatórios e amorosos (mesmo que ambivalentes). Quanto maior a presença desses elementos, maior a capacidade de simbolização. Quanto mais faltar a possibilidade de identificação, quanto maior a privação, mais defesas que visem destruir o outro serão usadas.
Do ponto de vista metapsicológico, o que está em jogo é o triângulo da formação do eu, cujos vértices são: narcisismo, identificação e amor objetal. Uma das conseqüências da violência sofrida nos primórdios da vida psíquica é a tentativa desesperada do sujeito em tentar separar esses três vértices, reforçando o narcisismo e recusando a identificação e o amor objetal.
Em busca de limites
O filme “Cidade de Deus” é dividido em três partes: anos 60, 70 e 80. Há um aspecto visual que marca cada uma delas. O enquadramento da câmera vai fechando cada vez mais na passagem do tempo. Na primeira parte o plano é bem aberto, o horizonte é visto, as tomadas são feitas de cima. Na segunda parte, o ângulo começa a se fechar, os meandros e muros da cidade já são mostrados. Na última parte, o plano é bem fechado, muitas cenas dentro de ambientes fechados e pouco iluminados. A claridade do filme diminui gradativamente, acompanhando a oclusão da imagem.
Assim como tomei a galinha como metacomunicação (ou metáfora) de que o filme trataria de algo alienante, e a estrutura narrativa igualmente como metacomunicação da temporalidade psíquica o a posteriori , tomo também o aspecto visual do filme como metacomunicação. O que poderia ser dito? Duas hipóteses: um limite cada vez mais estreito está sendo criado; estamos perdendo de vista possibilidades de saída. Começarei a interpretar o que pode ser esse limite, a partir de um trecho de Winnicott:
A criança cujo lar não conseguiu dar-lhe um sentimento de segurança procura fora de casa as quatro paredes que lhe faltaram; tem ainda esperança e busca nos avós, tios e tias, amigos da família e na escola o que lhe falta. Procura uma estabilidade externa, sem a qual enlouquecerá. Fornecida em tempo adequado, essa estabilidade poderá consolidar-se na criança como os ossos no seu corpo, de modo que, gradativamente, no decorrer dos primeiros meses e anos de vida, passará da dependência e da necessidade de ser dirigida para a independência (1979a, p. 257 grifo nosso).
Pode-se notar que Winnicott subverte a idéia de que a criança sem limites, sem um sentimento de segurança, está entregue ao prazer e se sente absolutamente livre. Ao contrário, ela precisa de limites para se sentir livre e para não enlouquecer. Caso a criança não consiga fazer desse controle algo interno é curiosa a metáfora dos ossos utilizada por Winnicott ela tentará fazer com que esse controle seja externo: “a criança anti-social, doente, sem oportunidade para criar um bom ‘ambiente interno’, necessita absolutamente de um controle de fora para ser feliz e estar apta a brincar ou trabalhar” (p. 259).
Zé Pequeno estaria em busca desse limite para não enlouquecer? Uma criança hiperagressiva não está procurando justamente alguém que a contenha? Bem, Winnicott não diz o que enlouquece a criança caso ela fique sem limites. A teoria da sedução generalizada mais uma vez ajuda-nos a compreender que o que enlouquece, excita a criança, é a pulsão. Sem algo que a ligue, elabore, ela irrompe, descontrolada, exigindo satisfação e escoamento a qualquer preço. De certa forma, a criança não procura alguém que a contenha, mas que contenha algo dentro dela. Podemos entender dessa forma a necessidade da criança por um pai rigoroso, severo e forte: “só quando a figura paterna, severa e forte, está em evidência é que a criança recupera seus primitivos impulsos amorosos, seu sentimento de culpa e seu desejo de corrigir-se” (p. 258). O pai tem um papel fundamental em transformar a pulsão sexual de morte em pulsão sexual de vida. Obviamente, quando digo “o pai” refiro-me a alguém que exerça uma contenção da criança e ao mesmo tempo possibilite que ela ame. Essa segunda parte é fundamental: não adianta só conter a criança, deve-se abrir possibilidades para ela mesma conseguir elaborar sua agressividade. Contê-la sem dar a chance de tentar transformar o ódio em amor é inútil e só fará aumentar ainda mais a agressividade dela.
Bené talvez tenha sido o único que dera essa chance a Zé Pequeno, inclusive interpretando algo do seu desejo dizendo a ele: “O seu problema é esse, Zé, pra você todo mundo é filho da puta”. É Bené também quem a todo momento tenta impor limite à agressividade dele, abaixando seu braço armado, exortando-o a ter calma e abraçando-o.
O pai-de-santo também fornece algum tipo de contenção pulsional quando interpreta o desejo de Zé Pequeno de maneira oracular, dizendo: “suncê quer poder, suncê quer crescer”. Ele fecha seu corpo e o manda usar uma guia (um colar). O curioso é que com ela não pode “furunfar”, isto é, manter relações sexuais, sob pena de morte. Poderíamos interpretar essa proibição ao sexual como sendo uma permanência de Zé Pequeno na sexualidade infantil e per-versa. Nesse ritual com o pai-de-santo, Exu é evocado. O diabo pode ser visto como um pai que excita mais do que contém. Alguém que não permite a relação com o outro. Ao contrário de Deus, que seria a projeção de um pai bom. O pai-de-santo, aliás, pergunta: “por que suncê fica nas encruziada da Cidade de Deus, donde Deus não tá pensando em suncê?”. A resposta ao desamparo é a busca pelo poder e um revigoramento do narcisismo. Tudo isso tem um preço: a impossibilidade de amar. Na cena em que Zé Pequeno estupra a namorada de Mané Galinha, a guia é focalizada: é o anúncio da morte de Zé Pequeno. O próprio filme parece apontar para a importância do sexual nos atos de violência, e ao mesmo tempo para a violência do sexual9.
É interessante comparar novamente o destino de Buscapé e Zé Pequeno quanto à sexualidade. Sabemos que a sexualidade infantil é perversa e polimorfa, isto é, ela não tem nenhum objeto de amor fixo nem pré-determinado. A organização da sexualidade depende de contenção, como estamos vendo. O desenvolvimento psicossexual do sujeito leva-o a reconhecer o outro completo como um objeto de amor. Zé Pequeno nunca conseguiu fazer isso: os outros continuavam “parciais”, sempre persecutórios, sempre maus, sempre violentos, sempre “abandônicos”. No outro extremo temos Buscapé, que começa o filme virgem e deseja uma mulher. Em um certo sentido, o filme é também a história dessa procura por um objeto de amor completo. A organização libidinal de Buscapé permitiu que esse objeto fosse encontrado; já a de Zé Pequeno destinou-o à solidão. Buscapé, no final, passa à vida adulta: ele torna-se “Wilson Rodrigues, fotógrafo”.
Uma outra interpretação diferente (mas complementar) da que entende a agressão como sendo um pedido de contenção é pensá-la como uma maneira de se evitar as relações amorosas, ou melhor, evitar o que elas podem “despertar”, trazer à tona. Por exemplo, na cena em que Zé Pequeno chama a moça para dançar e ela recusa, ele agride o namorado dela. É como se ele dissesse: “veja só, eu não preciso de ninguém, meu prazer ocorre à revelia do outro; se o outro não me ama, vou destruí-lo sempre, vou obrigá-lo a me dar prazer e atenção, nem que seja matando-o e violentando-o”. Se ele mata as pessoas é para não correr o risco de um desses objetos chamarem à tona seus fantasmas de privação e desamparo fantasmas estes que continuam atacando-o por dentro. O corpo é fechado pelo pai-de-santo... mas a fronteira interna do eu não conhece barreira. O real desamparo é o que sentimos diante da pulsão.
Por fim, é bom lembrar que Winnicott não está sugerindo que se supra a agressividade da criança. Pelo contrário, ele reconhece que a agressão está sem pre ligada “ao estabelecimento de uma distinção clara entre o que é o que não é o eu” (1979b, p. 264). No princípio de sua vida mental, a criança imagina-se onipotente. A mãe deve permitir que essa onipotência aconteça a fim de dar tempo ao filho “para adquirir toda espécie de processos para enfrentar o choque de reconhecer a existência de um mundo que está situado fora do seu controle mágico” (p. 270). A agressão é positiva no sentido de permitir à criança testar seus limites e seu mundo. O problema é quando ela se torna o único meio de fazê-lo.
Para concluir: por que o mal?
Assistir ao premiado filme Cidade de Deus pode trazer à tona um mito sobre a violência: o de que ela é algo animal, instintual, que aparece sempre onde está ausente a cultura. Esse mito tem como lema a frase homo homini lupus. Frase que Freud toma emprestado para ilustrar a crueldade do homem, explicitada como se segue: “satisfazer sobre o próximo sua própria agressão, explorar sem piedade sua força de trabalho, utilizá-lo sexualmente sem seu consentimento, apropriar-se do que ele possui, humilhá-lo, causar nele dores, martirizá-lo e matá-lo” (1929, p. 471)10.
No artigo A assim chamada pulsão de morte: uma pulsão sexual, Laplanche pergunta se o lobo real é um lobo para o homem. Nem para o homem, nem para nenhuma outra espécie. O lobo não é cruel e nem mata por prazer como o homem. Nem mesmo para outro lobo o lobo é um lupus. “É exclusivamente o homem que é para o homem um Lupus. Uma conclusão que aniquila toda dedução biologizante, quem sabe zoológica da pulsão sexual de morte, e de toda pulsão em geral” (1999a, p. 214).
“O assim chamado combate entre as pulsões de vida e as pulsões de morte não é em absoluto uma oposição biológica existente no ser vivo, nem, por conseqüência, pertinente à ciência biológica” (p. 190). Em outras palavras, a questão não é biológica, não é de “natureza humana”, no que essa expressão tem de mítica, isto é, de denotar um tempo anterior à cultura. A violência não é o aparecimento de um homem em estado bruto. É o comportamento do “enlouquecido” winnicottiano, de alguém que não tem recursos para ligar os aspectos disruptivos da pulsão sexual de morte implantados, ou intrometidos, “dentro dele” por um outro.
Para evitar esse mito da violência não-sexual é bom lembrar “a absoluta heterogeneidade da agressão sádica do homem, com relação à qualquer animalidade” (p. 215). A guerra ou a violência nas favelas não podem ser explicadas por remissão a um recôndito “animal biológico” em nós. Essa explicação teria o mesmo aspecto denegatório encontrado em outras duas apontadas e criticadas por André Green para explicar o mal.
Green diz que há duas respostas possíveis para a questão “por que o mal?”. A primeira, fruto de uma negação, tende a dizer: “o mal está no outro, então se elimino o outro, responsável pelo mal, elimino o mal”. Para Green, essa posição é claramente paranóica e persecutória, repousa sobre uma idealização de si e conjura a ameaça depressiva de se reconhecer portador do mal. Encontra-se essa posição de maneira evidente nas ideologias totalitárias ou religiosas, e de maneira menos explícita nas pessoas que sempre atribuem suas infelicidades a seus próximos. De novo percebe-se que “o mal é um fator de sustentação da coesão narcísica” (1990, p. 399).
André Green sugere que uma outra forma de responder à questão “por que o mal?” seria dizer que o mal é sem porquê. Mas ao fazer isso fica-se sob efeito do mal, que é justamente desfazer todo o sentido, é transformar tudo em contra-senso. O autor vai recusar também essa resposta, pois ela troca a explicação pelo efeito. É efeito do mal retirar o porquê das coisas. O efeito maior do mal é fazer com que se acredite que ele mesmo é sem porquê. Talvez ainda seja fruto de sua ação fazer com que acreditemos que ele é nossa natureza incivilizada, nosso lado animal. Ao se acreditar nisso, fica mais fácil tratar crianças como bichos. É menos penoso trancafiá-las cada vez mais cedo nas prisões.
Três respostas que são recusadas: dizer que o mal é fruto de nossa parte animalesca; que ele provém exclusivamente do outro e do diferente; e que ele não tem sentido. Parece evidente que o filme Cidade de Deus pode ser visto aceitando essas respostas. Espero, entretanto, ter mostrado que o mesmo filme pode nos auxiliar a mostrar que a violência: é sexual; submete-se à lógica do a posteriori; pode ter vários destinos na vida psíquica do sujeito, destinos estes ligados à presença ou não de elementos identificatórios consistentes nos tempos iniciais da constituição do eu.
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Endereço para correspondência
Fábio R. R. Belo
R. Germano Torres, 166 / 707 Cruzeiro
30310-040 Belo Horizonte/MG
Tel.: (31) 3225-4686
E-mail: frbelo@terra.com.br
Recebido em 09/02/04
Versão revisada recebida em 21/06/04
Aprovado em 17/08/04
Notas
I Psicanalista; Mestre em Teoria Psicanalítica (UFMG); Professor Substituto no Setor de Psicanálise do Departamento de Psicologia (UFMG).
1 ESB e GW são as siglas para as obras completas de Freud, em português e alemão, respectivamente. As traduções de Freud e dos outros textos são minhas.
2 No poema “Notícias de Espanha”, Drummond usa também esse recurso pergunta aos objetos por notícias.
3 Concordo com Jurandir nesse ponto, mas discordo quando ele diz que “quando a ação agressiva é pura expressão do instinto ou quando não exprime um desejo de destruição, não é traduzida nem pelo sujeito, nem pelo agente, nem pelo observador como uma ação violenta” (Costa, 1986, p. 30). Na verdade, a violência dos animais não é violência, mas é interpretada/traduzida como tal. Principalmente pela criança: haja vista os contos de fada. Recorro novamente à cena inicial do filme, que funciona como mensagem de violência. Mais: uma violência que tangencia um certo prazer (o samba, a comida etc).
4 Cf. Ribeiro (2000) para uma ampla pesquisa sobre o conceito de identificação, e em especial o último capítulo de seu livro sobre a constituição do sujeito psíquico.
5 Uma questão importante é distinguir o objeto-fonte da pulsão da pulsão sexual de morte que também ataca o eu, sua coesão, suas ligações. São conceitos correlatos, mas não equivalentes.
6 Cabe ressalvar que o aporte narcísico pode ser, ao mesmo tempo, excitação traumática. Françoise Couchard (1991) lembra-nos o quão próximos podem estar o amor e a dominação da mãe por seu bebê. Além disso, não custa advertir que a agressividade já é algum tipo de ligação.
7 Os comentários entre colchetes são nossos.
8 Renato Mezan (1998) também aproxima a fotografia da dominação.
9 Agradeço à Profª Marta Rezende Cardoso por essa observação.
10 É espantoso perceber que todas essas formas de crueldade estão presentes no filme. A exploração do outro por meio do trabalho é um tema que merece destaque. A “vida de otário” é sempre contraposta à vida do tráfico.