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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Pai fouveiro: o pacto perverso

 

The fallacious father: the perverse pact

 

 

Cassandra Pereira FrançaI

Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A clínica infantil fornece elementos que nos permitem inferir que a posição subjetiva dos pais diante da castração incidirá diretamente sobre a disposição perverso–polimorfa da sexualidade infantil, pois a percepção de um abismo entre um discurso parental que procure sustentar a lei e a observância da introjeção desta lei pelos pais levarão a criança a tentar, de todas as maneiras possíveis, dilatar os limites impostos pela castração.

Unitermos: Perversão, Infância, Castração, Identificação, Falo.


ABSTRACT

The children’s clinic provides elements which allow us to infer that the subjective position of the parents in face of castration has a direct influence on the perverse polymorph disposition of children’s sexuality. The perception of the gap between a parental discourse which supports the law and their actual behavior in what concerns abiding by that law will make the child attempt, by all possible means, to dilate the limitations imposed by castration.

Keywords: Perversion, Childhood, Castration, Identification, Phallus


 

 

A mão e seus extremos Um dedo para aliança, outro para masturbação Um dedo para pintar as unhas, outro para exigir explicação A mão e sua utilidade no escuro Para segurar no cinema, a mão Para selar um trato, a mão Para segurar na hora da dor, a mão A mão que benze A mão que empurra A mão que toca A mão que surra Duas Uma para segurar a lata, outra para abri–la Uma para erguer um peso, outra para erguer o outro A mão que segura o prato e a outra que enxuga Duas As primeiras que envelhecem (Marta Medeiros: Cartas extraviadas e outros poemas)

 

 

As tentativas de introjetar a interdição, feita pelos pais, aos impulsos infantis iniciam–se muito cedo na vida da criança – são contemporâneas da implantação do processo de simbolização que ocorre a partir do segundo semestre de vida, entre o desmame e o fort da. Situações corriqueiras demonstram a precocidade dessas tentativas: costumeiramente os bebês são impedidos de colocarem o dedo nas tomadas, e logo alguns deles podem ser vistos titubeantes entre o impulso do gesto de colocar o dedo na tomada e a repetição do gesto negativo do dedo dos pais – cena que retrata claramente a convocação do aparelho de memória para a evocação do registro simbólico.

Ao longo da primeira infância, a criança tentará checar a congruência entre as limitações que lhe são impostas e a obediência dos pais às mesmas proibições, colocando em prática o que teoricamente sabemos ser a “prova dos nove”, a mais difícil de ser tirada: a verificação da elaboração interna da angústia de castração. Para a checagem do posicionamento dos pais diante da Lei, suas próprias regras educacionais serão úteis – um feitiço que pode virar contra o feiticeiro: “Por que você mandou falar para o moço do telefone que você não estava?”, perguntaria uma criança, enquanto outra que teria ouvido que lugar de limpar o nariz é no banheiro, não perderia a oportunidade de, em um gesto de desafio, limpá–lo exatamente na soleira do banheiro, o que pode mostrar quão relativos são os limites impostos.

Qualquer brecha é válida para tentar infringir as proibições, que quando são aceitas, serão cumpridas por todos, ou pelo menos por aqueles que são considerados do “mesmo time”. E assim, já no Maternal, uma criança poderá ser rejeitada pelo grupo caso não aceite assentar–se na “rodinha na hora do combinado”, momento em que todos “fumarão o cachimbo da paz”, firmando o acordo de obedecerem às regras de convivência social. A construção superegóica cresce a cada dia, preparando o psiquismo da criança para o arremate final, que será dado com o pacto edípico1 – estabelecedor das condições a que os desejos terão de se submeter para serem satisfeitos.

 

A criança má

A idéia de criança má desperta calafrios e um repúdio tal que o cinema não pode deixar de aproveitar para exacerbar o foco na perversidade infantil: o filme de Joseph Ruben, Good son, que no Brasil recebeu o nome de Anjo malvado, estrelado por Macaulay Culkin, é um excelente exemplo. A trama do filme procura mostrar o fantasma da criança perversa, por meio das ações sádicas de um garoto possuidor de um senso de humor mortífero, que o leva a tentar eliminar todos aqueles que ousem se colocar como obstáculo à sua exclusividade aos olhos da mãe.

Essa tendência do cinema americano de enfatizar a maldade da criança é apenas o coroamento da visão de candura que aquela sociedade quer garantir ao mundo infantil2, de modo que mesmo gestos anódinos, vindos de quem quer que seja, possam ser interpretados como tentativas de violação da moral. Todos devem lembrar–se do escândalo ocorrido há uns dez anos, em que a família de uma garota de seis anos abriu um processo de assédio sexual contra um colega dela, que havia arrancado um botão de sua saia xadrez. As declarações do acusado serviram para ilustrar a candura do imaginário infantil: havia arrancado o botão porque era igual ao que o ursinho da conhecida história infantil3 estava precisando costurar no seu macacão, para não ser mais rejeitado pelas crianças e ficar sozinho na prateleira da loja.

A Psicanálise tem uma posição eqüidistante no que diz respeito a esse contraste de visões: não compartilha nem da visão popular da candura dos pensamentos infantis, nem daquela visão estereotipada da maldade da criança dada pelo cinema americano – pois sabe muito bem que a infância é marcada tanto pela ingenuidade quanto pela presença de fantasias sádicas. Afinal, qual de nós ainda não atendeu uma criança que praticou atos deliberados para se beneficiar, sabendo claramente que traria um prejuízo ao próximo? As possibilidades de “aprontações” são infinitas, e vão desde rifa de uma televisão que não existe, passando por atos delinqüentes como furtos e quebradeiras, chegando a acusações levianas a terceiros de abuso sexual. Situações imediatamente agravadas pela força da pureza suposta na palavra da criança: afinal, criança não mente, diriam alguns. No entanto, as fantasias ardilosas contidas nos relatos dos planos para prejudicar alguém, e confidenciadas ao analista, repelem a contaminação dessa visão popular ou de qualquer outro contra–argumento psicológico que procure justificar o ato em função do egocentrismo infantil.

Afastando–se dessa idéia de maldade na criança, a psicanálise tentará sublinhar outras linhas de identificação dos desvios perversos na infância: observará a força das fantasias perversas e a interação destas à forma como a criança administra seu desejo na relação com o outro, ou seja, se transforma o seu desejo em lei. Aproveitando–se da experiência clínica com adultos, que “só faz confirmar, há meio século, que a solução ‘perversa’ da sexualidade humana é nitidamente uma tentativa (dentre outros objetivos) de contornar a angústia de castração e de manter, sob o disfarce do ato, os laços incestuosos da sexualidade infantil” (McDougall, 1992, p. 192), a psicanálise da criança elege as condições que se colocam em jogo no Complexo de Édipo, e determinam suas vicissitudes, como ideais para a observação da constituição de uma organização perversa. Assim, os impasses diante da angústia de castração e os mecanismos de defesa para contorná–la transformam a faixa etária dos sete aos dez anos em momento privilegiado para essa observação – o que não exclui, de modo algum, a possibilidade de também observarmos a existência de manifestações perversas em crianças menores.

Freud produziu uma série de artigos que tentaram descrever a sexualidade perverso–polimorfa da infância, a recusa da criança diante da diferença sexual, as sutilezas das fantasias perversas, a força da exigência pulsional para se satisfazer e os possíveis perigos que o eu sofreria com essa satisfação. Se fosse nosso objetivo nestas páginas elencar detalhadamente toda a contribuição de Freud, não poderíamos deixar de incluir, entre os artigos fundamentais para o presente assunto, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905); Cinco lições de psicanálise (1909); Totem e tabu (1913); Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (1919); A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade (1923); e A divisão do ego no processo de defesa (1938). Entretanto, desviar–se desse rumo faz–se necessário para que possamos, neste breve artigo, abrir espaço para uma discussão que leve em conta a hipótese de perversão na infância.

Apesar de partilharmos a idéia de que uma estrutura psíquica só se configura como tal após a adolescência, o que pretendemos basicamente é enfatizar a importância da relação entre os pais reais e a função que devem encarnar para que sejam estabelecidas as condições mínimas que favoreçam o desfecho edípico e a aceitação da castração. Nosso enfoque será o movimento real da ausência da interdição dos pais como lei encarnada aos laços incestuosos da sexualidade infantil, e as reverberações dessa ausência no psiquismo da criança, de que resulta uma via régia para o trilhamento de uma estruturação perversa. Com esse intuito apresentaremos dois casos clínicos que ilustram as falhas na assunção das funções maternas e paternas. O primeiro caso é mais raro e ilustra bem a errância das pulsões parciais, assim como o reinado da sexualidade perverso–polimorfa na infância, capaz de deixar como rastro na sexualidade adulta, não neurótica e não perversa, esse matiz polimorfo (Meltzer apud McDougall, 1992, p. 192). O segundo caso está mais distante das aberrações sexuais e mais próximo da visão de perversão da psicanálise contemporânea, que faz uma leitura da posição subjetiva diante da castração.

 

As pré–condições do pacto perverso

McDougall afirma que suas observações clínicas levaram–na a “constatar que a criança destinada a uma solução perversa da sexualidade raramente conheceu na infância a masturbação normal” (McDougall, 1992, p. 194), e é o que parece acontecer com o pequeno JPLN, de quatro anos de idade. Garoto de nome pomposo, herdado de seu avô e de seu pai, e que se recusava veementemente, havia mais de seis meses, a atender por esse nome, exigindo que o chamassem por um apelido que se atribuíra, “Gugu”, representação dos primeiros sons que pronunciara quando bebê.

Na primeira entrevista com os pais escutamos a descrição do perfil de um filho único muito mimado, um reizinho tirânico que só fazia o que queria e não atendia ordens de ninguém. Exercia uma liderança negativa sobre os colegas e tratava de arrumar brigas até com os maiores: provocando, xingando e colocando apelidos. Não saía de seu castelo, e as vítimas atraídas até lá tinham de se contentar apenas em vê–lo brincando com seus jogos e brinquedos, pois ele não permitia que encostassem em nada seu. Tal descrição, acrescida de queixas de hiperatividade e que chupava o dedo até babar e provocar calosidade, parecia ocupar um lugar comum na clínica infantil, mas à medida que avançávamos nas entrevistas iniciais com os pais, dados cada vez mais interessantes foram surgindo e direcionando a escuta analítica.

A agressividade daquela criança não era difusa, estava canalizada para a discriminação cruel que fazia contra negros e pobres, tratando com extrema agressividade as crianças pedintes das ruas. Paralelamente a esse comportamento, preocupava–se com uma idéia fixa: a de que seus pais iriam ficar pobres, e as coisas iriam faltar. Apresentava períodos de tristeza, em que expressava frases que deixavam os pais boquiabertos, como: “Eu não tenho opção de ser feliz!”. Frase que à primeira vista pareceria nem ter sido pronunciada por uma criança de quatro anos: no entanto, pude constatar quando estive com ele o quanto era inteligente e verbalmente articulado. Estaria então expressando seu desalento diante de qualquer perspectiva de alteração do quadro clínico em que estava mergulhado? Estaria sendo denunciada uma neurose familiar tão bem engrenada, que não permitiria uma intervenção terapêutica? Caso assim fosse, a situação era muito mais grave do que se configurara inicialmente. É importante acrescentarmos que um ano antes, a pedido da escola, seus pais haviam me sondado sobre a possibilidade de atendimento do garoto, mas além de não terem comparecido ao primeiro encontro, haviam mudado a criança de escola.

Seja como for, a tal frase postava–se como um enigma, que tinha como chave o grande contraste existente entre sua pose de reizinho mandão e seu temor de se tornar uma criança pedinte – que, em sua concepção, sequer tinha pais. Um estado de vulnerabilidade psíquica como esse estaria mostrando sua vivência de não ter pais, ou melhor dizendo, de não tê–los exercendo suas funções materna e paterna?

A resposta esclarecedora surgiu a partir do momento em que seus pais comentaram, de passagem, que Gugu volta e meia dizia que se tivesse um irmão iria matá–lo, e interpelava os pais se para ter um irmão seria preciso que eles namorassem, pois se assim fosse, ele não queria mesmo! Essa atitude de ingerência na vida sexual de seus pais levou–me prontamente a abrir a questão sobre as formas como Gugu lidava com sua sexualidade. Descortinou–se então o descontrole dos impulsos sexuais da criança e a inadequação dos pais na contenção dos mesmos, o que nos alertava, a um só tempo, para a complementaridade de outras carências e para a impossibilidade de exercício, pelo casal, da função paterna.

O fato é que a sexualidade daquela criança, estruturada sob a perspectiva das pulsões parciais, ou seja, sob a perspectiva da estrutura perversa, como em todas as crianças, estava primordialmente direcionada à sua mãe, e tinha um caráter marcadamente compulsivo: a todo momento o menino tirava seu pênis da calça, exibia–o à mãe e roçava–o em suas pernas, comentando o quanto estava grande e duro, e indagando se ela também sentia “aquilo” na sua “perereca”. Além disso, lambia a mãe, tentava agarrar seus seios, e se queixava de assaduras, só para que ela passasse pomada em seu ânus. Às vezes também dirigia tais ímpetos para a empregada, ou então, quando estava nos ombros do pai, tentava roçar o pênis em suas costas. No ano anterior, o motivo do telefonema deles tivera como causa o pedido feito pela escola: Gugu estava agarrando outros meninos pelas costas, simulando um ato sexual.

Ferraz, citando Masud Khan, diz que a mãe do perverso, “tendo um baixo grau de tolerância ante a frustração de seu filho, permite–lhe um infantilismo nas experiências corporais libidinais incongruente com o desenvolvi–mento das funções egóicas que dele exige”. Acrescenta que a instabilidade da mãe, “que tende a alternar exigências traumatizantes com atitudes excessivamente indulgentes, favorece a dissociação egóica e dificulta o desenvolvimento emocional, o que contribui para o engendramento de um adulto com traços infantis de personalidade” (Ferraz, 2000, p. 72).

Questionados sobre o posicionamento diante das atitudes do filho, a resposta foi mais surpreendente do que qualquer imaginação fértil poderia vislumbrar para um quadro de indulgência. O pai disse que tentava resolver o problema da sexualidade exacerbada do filho de forma didática: conversava, explicava, pois seu lema sempre foi liberdade com responsabilidade. No entanto, reconhecia que de nada estava adiantando tal método, passando então a usar como tentativa de limite a ameaça de outro irmão. A mãe, por seu lado, evitava usar qualquer tipo de roupa que deixasse suas pernas, braços ou seios à vista, mas se mesmo assim ele ficasse roçando o pênis nela, saía correndo pela casa – o que não resolvia o problema, pois ele corria atrás dela. No entanto, agora ela havia encontrado um jeito de detê–lo: passara a dizer que, se fizesse aquilo, iria dá–lo para outra mãe, o que o deixava com ar de pânico!

De tão grave, essa situação quase chegava a ser grotesca: a mãe correndo do filho, como se este fosse um tarado, que paradoxalmente a excitava. O pai usando como limite a ameaça de entrar no lugar de homem e fazer um outro filho nessa mulher. Não restava dúvidas de que havia uma questão muito grave na vida sexual desse casal, e que por mais delicada que fosse, teríamos de tentar abordá–la. De fato, nossa hipótese foi confirmada: até aquela data apenas quatro relações sexuais haviam sido consumadas durante o casamento. O conceito lacaniano de gozo cai como uma luva nesse caso, denotando que podíamos prever, com boa margem de segurança, que uma formação de compromisso tão patológica como essa dificilmente seria desfeita. Afinal, os ganhos secundários eram significativos: o casamento, além de seu valor social, nem pedia questionamentos acerca da identificação sexual dos pais. Tudo estava arranjado, e qualquer mudança na criança poderia trazer uma desarticulação.

No discurso da mãe não havia lugar para o pai; ela fazia de tudo para não deixar o filho sentir a falta dele: até organizava programas em que os outros pais também não pudessem comparecer. Assim, mãe e filho ficavam “grudados” o dia todo, comprovando que “a forma como cada mulher passou por seu Complexo de Édipo será determinante do modo de desejo que a ligará, como mãe, a um filho” (Faria, 1998, p. 52).

Mas a mãe a que ele tentava conectar–se, e para quem mostrava a todo momento seu pênis, fazia a pior de todas as ameaças: entregá–lo a outra mãe, saindo simbolicamente do lugar de mulher interditada para o de mulher liberada, interrompendo “a evolução psicossexual do menino pela crença que ele adquire – induzido pela mãe, ao que parece – de que seu pênis infantil, ainda que pequeno, é superior ao do pai em qualidade e que ele, mesmo sendo criança, é um parceiro perfeito para a mãe, nada deixando a desejar em relação ao pai” (Ferraz, 2000, p. 58). O ar de pânico da criança diante daquela ameaça expressava sua crença nessa possibilidade: afinal, estava bem registrado o fracasso da função materna desde os primeiros tempos: sua fixação libidinal na fase oral denunciada pelo sugar auto–erótico do dedo, o lamber o corpo da mãe, a autonomeação de Gugu, davam notícias de um período de frustração intensa, decorrido durante a depressão puerperal, que impedira a mãe de conectar–se com ele e até de amamentá–lo. Quem sabe não seria essa busca desesperada de dar prazer à mãe uma tentativa enlouquecida de restabelecer uma conexão em nível corporal e mental?

Nesse ínterim, a função paterna, como indissociável da função materna, não teria mesmo forças para promover uma intervenção na relação mãe/filho. Muita água teria ainda de passar por debaixo daquela ponte... Sair do primeiro tempo do Édipo, dialetizar a premissa de ser ou não ser o falo materno, era o primeiro grande desafio que esperava Gugu. Para o segundo tempo do Édipo, sendo otimistas, poderíamos contar com as contingências da vida para fisgar o desejo da mãe em outra direção. E como ainda era cedo e a função paterna é “encarnável” (Faria, 1998, p. 68), quem sabe a força propulsora do processo de subjetivação, mesmo a duras penas, não permitiria que um dia essa criança assinasse JPLN?

 

A assinatura do pacto perverso

Nesse outro caso que ora discutiremos, é possível observar a presença de mecanismos perversos classicamente encontrados na clínica da perversão em adultos: a transgressão, a manipulação para fins de controle, a sedução com fins de corromper, o conluio e o menosprezo pelo outro.

Trata–se de uma menina de nove anos, aqui chamada Carolina, que estava repetindo pela terceira vez a primeira série escolar, queixa que justificou a procura do Serviço de Psicologia Aplicada4. A problemática da dificuldade escolar enquistava um ponto intrigante: as notas baixas desencadeavam reações de violência no pai daquela criança, que então espancava mãe e filha. “O pai bate com vassoura, e a mão dele é pesada como ferro ” – murmurava a menina. Mas disso a mãe não se queixava, muito menos do fato de a filha furtar objetos ou não obedecer às ordens dela, do pai, das irmãs mais velhas, ou da professora. As primeiras entrevistas transcorreram, mãe e filha juntas, sem que houvesse qualquer manifestação de angústia por parte delas. Poderia essa ausência dizer de um relacionamento sado–masoquista regendo uma tríade (pai/mãe/filha), em que o gozo advinha do amálgama das fantasias de prazer e dor? A condução da análise mostrou que sim: o ambiente familiar era propício para a edificação de uma estrutura perversa, pois a inexistência da função paterna permitia a essa menina a satisfação direta das suas pulsões sádicas.

Carolina dizia não mais estar preocupada com o pai, pois conseguira um jeito de detê–lo: em sua escola distribuíram uma carteirinha para os alunos denunciarem abusos e espancamentos, e agora, quando via que o pai estava possesso, bastava puxar a ponta da carteirinha – constantemente em seu bolso –, que o gesto fazia com que ele saísse de perto dela. Ao que tudo indica, este trunfo dava–lhe a sensação de estar no lugar da lei, podendo desse modo sancioná–la quando se sentisse ameaçada. Encontramos assim uma inversão: o pai assentado no banco dos réus e ela no banco da promotoria.

O embaralhamento dos personagens para a montagem de um pseudojulgamento parecia mesmo ser uma de suas especialidades, como podemos ver no caso do desaparecimento de umas camisetas novas compradas pela irmã. Carolina afirmou ter visto o pai escondê–las dentro de sua roupa; ele negou veementemente, e o caso não foi esclarecido. Tempos depois, quando os pais foram a uma reunião na escola, para sua surpresa, encontraram a professora e a diretora vestindo as tais camisetas. Estava montada a cena perversa: graças a um jogo de sedução, as figuras de autoridade haviam sido corrompidas e estavam envolvidas em acusações espúrias – uma prova do gozo em transgredir bem debaixo das barbas da lei. Sem muito empenho em vender o papel de vítima, Carolina displicentemente retrucou: “ Não tinha outro jeito, se eu pedisse, eles não iam mesmo comprar um presente para eu levar para elas... ”.

A análise teve seu início, e paulatinamente foram sendo narradas uma infinidade de cenas que ajudavam a analista a entender a vinculação entre os personagens da trama familiar. Uma idéia começou a ganhar força, a de que pai e filha formavam um perfeito par em conluio: “por sua participação, por seu prazer, o outro vai fornecer a prova de que a castração não faz mal” (McDougall, 1992, p. 197). Graças às brigas constantes do casal, o pai ficava inteiramente nas mãos da filha: dava uns trocados para ela fazer coisas escondidas, para que ele, por orgulho, não tivesse que assumir alguns atos, como ter comido algo escondido, ter quebrado um perfume... Esse pai, tão forte por fora, duro de cimento, e tão turvo e frágil internamente, acabava obscurecendo a passagem da lei. E em nível edípico, poderia esse pai ser objeto de paixão? Tudo leva a crer que não, pois no discurso da garota apareciam sempre queixas de que o pai chegava do trabalho, não tomava banho e ficava todo “fouveiro”. Palavra de uso corrente popular, usada para representar algo desbotado por causa do uso ou do tempo. Significante perfeito para um pai que assina um pacto perverso.

Mesmo assim, Carolina era incapaz de se sentir excluída da cena primária, quer fosse na hora da briga ou na hora da sedução. Quando brigados, seus pais não dormiam juntos por longos períodos; então o pai pedia à menina que levasse recados à mãe: “Diz que ela é uma ‘belezinha’, e que eu quero que ela venha dormir comigo ”. Ela apenas fingia que dava os recados, pois sabia que a mãe não queria dormir com o pai. Quem não queria, a mãe ou ela?

Seu papel de patrocinadora das brigas foi confidenciado à terapeuta em meio a risadas sádicas, em que assumiu que fazia questão de guardar segredos de todos da família, deixando para soltá–los na hora certa: “Quando está tudo calmo... Aí a coisa não fica agarrada na minha garganta. Quando estão brigando, eu fico feliz, quando não estão brigando, fico com raiva. Quando não tem briga, não tem graça!”.

Mas a angústia de castração encontrava–se controlada apenas ilusoriamente, pois Carolina começou a pagar um preço cada vez mais alto por não aceitá–la. Suas transgressões começaram a gerar angústia e culpa, um medo de que a agressividade circulante no triângulo edípico levasse à morte do terceiro elemento. Fantasias ilustradas a princípio ora pelo medo de sair com a mãe e de alguém roubá–la, ora pelo medo de que as brigas dos pais provocassem a morte da mãe. Com o tempo Carolina foi narrando alucinações: via o capeta com dois chifres, olhos amarelos e dentes vermelhos. Ele dizia: “Eu vou entrar nesse corpinho lindo”. Às vezes ela sentia que ele estava dentro dela, outras vezes ele ficava só de um dos lados do seu corpo, comprando briga com o outro lado. Essas alucinações, acompanhadas de paralisações histéricas dos membros superiores, servem para mostrar–nos como a perversão em ato é, de fato, uma medida defensiva contra a força disruptiva da psicose.

“Mas tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra”, dizia–nos Freud, referindo–se ao conflito psíquico advindo da luta entre a exigência pulsional e a proibição, pela realidade, dessa satisfação pulsional – concluindo que a criança responde ao conflito por duas reações contrárias: “por um lado, com o auxílio de certos mecanismos, rejeita a realidade e recusa–se a aceitar qualquer proibição; pelo outro, no mesmo alento, reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma patológico e subseqüentemente tenta desfazer–se do medo”5 (Freud, 1938, p. 309). O preço para essa saída será o splitting do ego: “a função sintética do ego, embora seja de importância tão extraordinária, está sujeita a condições particulares e exposta a grande número de distúrbios”, argumentava Freud naquele artigo, que poderíamos completar citando a perversão como um bom exemplo de distúrbio.

Em dois semestres de análise a terapeuta de Carolina esteve com seu pai apenas uma vez, quando ele compareceu para dizer que o trabalho podia ser interrompido porque ela já estava indo bem na escola. A cena ilustrava o próprio ato perverso – “trata–se sempre de uma castração lúdica, na qual o tema principal é cuidadosamente escondido pela recusa: um não castra o outro, repara–o; os dois não se castram, completam–se” (McDougall, 1992, p. 195): o pai assentado como uma grande estátua, Carolina assentada no seu colo, ora puxando os cabelinhos de seu nariz ou de sua orelha, ora riscando com as unhas, suavemente, o braço daquele pai fouveiro.

Do que pôde ser visto até aquele momento, podíamos esperar que em Carolina, tal como em todo perverso, “a coexistência de duas atitudes opostas em relação à castração, durante toda a sua existência seria a característica marcante” (Ferraz, 2000, p. 32), delineando um paradoxo à altura do que nos diz Marta Medeiros (2001): “um dedo para aliança, outro para masturbação... um dedo para pintar as unhas, outro para exigir explicação”.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Cassandra Pereira França
Av. Olegário Maciel, 2345 / 703 – 30430–110
Bairro Lourdes – Belo Horizonte/MG
tel: (31) 3292–2818
e–mail: cpfranca@ig.com.br

recebido em 26/08/04
aprovado em 09/09/04

 

Notas

I Doutora em Psicologia (PUC–SP); Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
1 Faço menção aqui à terminologia cunhada por Hélio Pellegrino (1987), em um dos textos mais importantes da Psicanálise Brasileira: Pacto edípico e pacto social.
2Sobre esse assunto recomendo a leitura do texto de Maria Tereza Carvalho (1999), em que é comentado o fenômeno da “Síndrome da Falsa Memória”.

3Trata–se da história Ursinho, de Don Freeman, que no Brasil teve seu texto trabalhado por Maria Clara Machado (1968).
4Este caso foi atendido por uma supervisionanda, Tamúsia Cohen Prado, que soube conduzir os movimentos transferenciais e contratransferenciais com muita habilidade, propiciando o surgimento da riqueza desse material clínico.
5No filme Anjo malvado esse ponto pode ser ilustrado quando o garoto, tentando induzir o primo para o caminho da perversão, faz–lhe uma revelação que considera um ensinamento: “ medo era algo que ele sentia antes de descobrir que quando se pode fazer qualquer coisa, se é livre, pode–se voar e ninguém mais pode tocá–lo ”.