SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 número15Novos fundamentos para a clínica da psicanálise ou a clínica em comunidade de destino índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005

 

RESENHAS

 

 

Marisa Schargel MaiaI

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 

CARDOSO, Marta Rezende (org). Limites. São Paulo: Escuta. 2004. 220p. ISBN 8571372292.

Há algumas décadas, mais precisamente em 1970, o artista plástico Rudolf Schwarzkogler enviou seu projeto para participação na Documenta de Kassel 51. Adepto da Bodie Art, sua proposta era fazer uma performance na qual, utilizando seu corpo como suporte de expressão, retalharse-ia com um objeto cortante. Com ou sem reflexão, o projeto foi aceito, e no dia e hora marcados lá estavam todos para o espetáculo.

O artista, sob os olhos atentos do público, deu início a seu dia de glória: cortou de diversas maneiras seu corpo e chegou ao ápice quando, de um só golpe, arrancou seu próprio órgão sexual, sangrando até a morte. Afinal, qual é o limite? Não haveria, nesse contexto, uma delimitação entre sanidade, insanidade, violência e expressão artística? Existe alguma diferença entre os espetáculos proporcionados pelos gladiadores, que na Roma Antiga lutavam na arena com feras sob uivos da platéia, e essa performance que tomou cena na Documenta 5?

Não há dúvida que estou tensionando o argumento, mas a leitura da entrevista com Jean Laplanche feita por Marta Rezende Cardoso no livro Limites provocou-me (no sentido positivo do termo) à participação nesse fórum de debates, que se abre conforme o leitor adentra nos diversos artigos da coletânea.

A problemática que envolve a questão dos limites é bastante complexa: aquilo que se constitui como um limite, como um contorno para determinada cultura, processa-se de forma diferenciada para outra. No entanto, é possível afirmar que qualquer grupo social traça contornos em seu processo instituinte. Para criar existência e instituir-se é preciso fazer um corte na massa “amorfa” do real; criar territórios, significações coletivas, codificações.

Nesse processo, a nossa modernidade ocidental buscou tornar o mundo inteligível e sem ambigüidades. Por meio de um esquema de ordenação respaldado pela razão, o sujeito moderno rejeitou qualquer descrição do real que não se coadunasse com o pensamento racional. Regulado pela intolerância, o homem moderno defendeu-se do inevitável estranhamento provocado pelas diferenças. Grosso modo, esse mecanismo fez com que processos purificadores reinassem absolutos durante todo o século XX. Com essas operações e exclusões pensouse ter conferido limites – delimitações rigorosas que traziam a satisfação do aparente domínio da indeterminação.

Não se pode esquecer que a dicotomização do pensamento foi fundamental para fazer funcionar a razão instrumental. Dessa forma, o século XX foi perpassado por dualidades que equacionavam o campo de significações: corpo/mente, cultura/natureza, paixão/ razão, normal/anormal, afeto/linguagem, amigo/inimigo etc. Pares que aparentemente se opunham. Digo aparentemente porque essa oposição abre uma fenda entre os dois componentes do par, que só pode ser ficcional. Como se houvesse um limite rigoroso e intransponível entre os componentes do par. Cria-se, nesse contexto, uma ilusão de simetria e de oposição que se vê desmascarada quando percebemos tratar-se de uma lógica ordenadora excludente. No entanto, como em tempo algum foi possível ao humano limitar e equacionar sem ambigüidades aquilo que não é equacionável, tivemos que lidar com as excrescências desse processo – entendo que a tentativa de extermínio dos judeus durante a Segunda Grande Guerra é o exemplo paradigmático dos delírios da razão produzidos no decorrer do último século.

Mesmo rompendo com as amarras positivistas de seu tempo, seria de todo impossível achar que as formulações freudianas passariam ao largo desse cenário histórico. Percebe-se, ao longo de sua teorização, sobretudo no percurso da primeira tópica, a árdua “negociação” que Freud teve que fazer com a ciência de sua época.

Esse campo de reflexão não é abordado de maneira explícita em Limites, no entanto, constitui-se como “pano de fundo” que sustenta a discussão levantada no decorrer do livro. A problemática dos limites – tema central da coletânea elaborada por Marta R. Cardoso – confere visibilidade à impossibilidade de precisão dos limites, acentua a dificuldade de se definir os territórios de continuidade e descontinuidade da existência. Afinal, quais são as fronteiras entre o eu e o outro? Entre o eu e o objeto? Entre realidade interna e externa? Entre corpo e psiquismo? Existe sempre uma região de limiar, de lusco-fusco em que o entrelaçamento é inevitável ou mesmo desejável.

Em uma certa medida, foi justamente o reconhecimento dessa impossibilidade que levou Freud a reformular a teoria pulsional. O dualismo pulsional da segunda tópica explode com qualquer intenção de tornar linear a matéria freudiana. O restabelecimento da teoria traumática, marcada por sua dimensão de excesso e violência, traz para primeiro plano a problemática – a meu ver crucial no livro – dos limites do representável, questão cara à clínica contemporânea. É nesse campo de reflexão que se situa o debate sobre os aspectos metapsicológicos, psicopatológicos e clínicos abordados pelos diversos autores que compõem a coletânea.

Para aqueles que desejam conhecer a contribuição teórico-clínica de André Green sobre o trabalho do negativo e a clínica psicanalítica do paciente borderline, o excelente capítulo de Luís Claudio Figueiredo e Elisa Ulhoa Cintra é um ótimo começo, ressaltando aqui a dobra que se cria em relação à noção de limite, que passa a adquirir um lugar de conceito metapsicológico fundamental para a abordagem da clínica.

A problemática dos limites é abordada por Fernanda Collart Villa e Marta Rezende Cardoso em um estudo sobre os estadoslimite, nos quais encontramos organizações psíquicas que extrapolam os quadros clássicos de neurose. Nessas formas de mal-estar os sujeitos apresentam uma dificuldade de manejo da relação eu/outro (externo e interno).

Jacques André, por sua vez, recorre a um fragmento clínico para explorar os modos específicos de apresentação da transferência borderline e seus desdobramentos na teoria e na clínica. O trabalho de Hugo Mayer insere-se no mesmo campo de questões, na medida em que tece uma interessante análise da necessidade de se refletir sobre as estratégias técnicas, quando os sintomas apresentados pelo paciente nos remetem a domínios psíquicos que se estendem para além do princípio do prazer.

É conferido ainda um destaque especial a duas patologias que hoje abundam em nossa cultura: bulimia e anorexia. O texto de Ana Cecília Magtaz Scazufca e Manoel Tosta Berlinck, reconhecendo o olhar multidisciplinar que esses transtornos alimentares demandam, parte para uma abordagem teórica e clínica, cotejando as estratégias psiquiátricas e psicanalíticas utilizadas para enfrentar a singularidade desses sofrimentos psíquicos.

Como não poderia deixar de constar, a discussão metapsicológica sobre os limites e não limites do processo de recalcamento faz-se presente em diversos trabalhos: o de Paulo de Carvalho Ribeiro traz como proposta central a reflexão dos formatos específicos que o recalque adquire em algumas modalidades do mal-estar na atualidade. Já o trabalho de José Gutiérrez-Terrazas aborda o tema da violência em sua estreita relação com a dimensão conflitiva existente entre a vida psicossexual e seus interditos. Por outro lado, Riva Satovschi Schwartzman busca tecer algumas considerações metapsicológicas acerca das, já tradicionais, “novas patologias”.

No âmbito dessa discussão metapsicológica, a análise que Maria Teresa Melo Carvalho tece adquire um lugar diferenciado, porque adverte sobre o risco de se empobrecer a teorização psicanalítica quando na produção teórica define-se e se cataloga, de forma muito rápida, rígida e pouco refletida, os sujeitos que necessitam de tratamento, privilegiando o “novo” das “novas patologias” em detrimento da riqueza do corpo teórico freudiano.

Por fim, o tema da violência, com o qual iniciei esta resenha, encerra o fórum de debates. Com mais um artigo em co-autoria, Pedro Cattapan e Marta Rezende Cardoso investigam sobre a metapsicologia dos processos psíquicos envolvidos nas diversas modalidades de criação artística, a partir do conceito limítrofe de violência psíquica e trauma, abordando as inter-relações existentes entre passividade, pulsionalidade, processos disruptivos e de ligação. Já o texto de André Maurício Lima Barreto traz um sentimento de inquietude a partir de sua reflexão sobre o lugar das representações imaginárias na prática de relações sexuais desprotegidas entre homens. Fechando a coletânea, a entrevista com Jean Laplanche dialoga com todos os trabalhos acima descritos, em um debate vivo que é imperdível.

Enfim, Limites é uma coletânea de fôlego, que se constitui como uma ferramenta fundamental para todos aqueles que se preocupam com o debate teórico e clínico que perpassa a experiência analítica em nossa contemporaneidade.

 

 

Endereço para correspondência
e-mail: bonfanti@centroin.com.br

 

 

Nota

I Psicanalista; Doutora em Saúde Coletiva (Instituto de Medicina Social/UERJ); Pesquisadora na Maternidade-Escola (UFRJ/FAPERJ); Autora do Livro Extremos da Alma: dor e trauma na atualidade e clínica psicanalítica.
1. Documenta de Kassel é uma importante e tradicional mostra de artes plásticas que se realiza em Kassel, pequena cidade alemã, a cada quatro anos.