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Psychê
versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.9 n.16 São Paulo dez. 2005
RESENHAS
Leandro Alves Rodrigues dos Santos1
Centro Universitário Santo André/UNI-A
FINGERMANN, Dominique; DIAS, Mauro Mendes. Por causa do pior. São Paulo: Iluminuras, 2005. 174 p. ISBN 85-7321-215-2.
Há certos enunciados de grandes psicanalistas que marcam, e são repetidamente evocados. Atribui-se a Lacan alguns deles, mas um em especial aqui nos interessa: a psicoterapia conduz ao pior!
De que pior estaria falando Lacan? Em uma leitura mais tradicional poderíamos pensar que a psicoterapia, discursivamente, funcionaria em um registro misto entre a universidade e a mestria, que diz ao sujeito dividido o que fazer, como fazer, e sobretudo o tranqüiliza sobre os efeitos que o mal-estar – intrínseco à divisão – inevitavelmente acarreta. Ou seja, a psicoterapia favoreceria a repressão. E como bem sabemos, tudo que é recalcado retorna!
Talvez seja desse pior que Lacan nos dizia, que retorna ainda pior que antes da passagem pela psicoterapia ou de qualquer outro tratamento do Real arquitetado pela cultura. Mas problematizar e avançar nessa questão do pior sempre foi do interesse da Psicanálise, desde Freud e seus textos ditos “culturais”. Lacan nunca se furtou a avançar a pesquisa que Freud propunha, até porque o sintoma singular de cada neurótico está, de uma forma ou de outra, atado ao imaginário de uma época, aos significantes que representam essa época, e que desvelam algumas particularidades das diversas modalidades de laço social que imperam em um determinado período histórico.
Aliás, é sempre bom re-lembrar que Lacan apontava a necessidade de o psicanalista estar afinado à subjetividade de seu tempo. Os autores desse livro dão uma boa amostra do que é pensar a subjetividade de uma época, tomando como objeto de investigação justamente o mal-estar, o pior dos dias atuais.
E tratando dos autores cabe aqui destacar a ousadia de uma proposta: dois psicanalistas de instituições diferentes, atuando em conjunto na estruturação de um seminário composto por dez encontros, produzindo juntos sem eliminar a alteridade necessária e sem perder o tom, também sustentando um fio condutor essencial ao longo do livro. Estamos falando de Dominique Fingermann, psicanalista radicada em São Paulo, e membro atuante da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano. Já Mauro Mendes Dias é ligado à Escola de Psicanálise de Campinas, atua com questões de atendimento público em Saúde Mental, notadamente nos casos de psicose. Ambos igualmente envolvidos com atividades de transmissão da Psicanálise e formação – tanto a própria quanto dos pares –, e ambos ajudando a avançar a Psicanálise.
Portanto, este Por causa do pior é uma tentativa de se fazer avançar o campo psicanalítico, e sobretudo, de poder servir como fonte de inspiração para outros psicanalistas que já pensam sobre o pior. Pois certamente todos nós somos afetados por esse pior, independentemente de quão vigoroso seja nosso poder de negação. Aos que pretendem enclausurar-se em consultórios, com o quase convincente “Não me ocupo disso!”, cabe lembrar que o pior, o d’isso, atravessa a subjetividade de seus (im)pacientes.
Na introdução a quatro mãos os autores afirmam que “colocar o pior em causa” (p. 15) foi o mote central do seminário, e movidos pelas discussões com os participantes chegaram a um ponto nodal que permeia os escritos desse livro: o pior como causa, e paradoxalmente causando o ser humano, no sentido mais freudiano da coisa, daquilo que faz advir às possibilidades da neurose, da perversão e da psicose, conforme a estruturação que cada sujeito pode concatenar frente à castração, tomada como fenômeno de linguagem, lacanianamente falando.
Ainda na introdução os autores informam como chegaram a esse ponto nodal, pois o título visa lançar luzes sobre um necessário debate, que nas palavras desses autores possa tomar forma a partir de algumas questões:
1. A partir da experiência da psicanálise e da estrutura do sujeito que nela se desenvolve (se transfere), pretendemos expor como o pior demonstra-se causa da estrutura humana do qual ele também é efeito. Usamos o termo “pior” no sentido do extremo, do cúmulo do mal, mas sobretudo como avesso do ideal, do bem supremo sonhado pela filosofia, pela religião e pela ciência. Usamos o termo “causa” em referência à releitura lacaniana da teoria das causas aristotélicas.
2. Pretendemos averiguar quais são as modalidades e/ou os avatares possíveis desse pior em causa, cingir as conseqüências patológicas da lógica humana que conta o pior como sua causa (paranóia, perversão, melancolia, depressão, angústia).
3. Almejamos, enfim, participar da indagação ética da qual os psicanalistas não podem se omitir: como a “civilização” e sua suposta “excelência” está tratando dos efeitos do pior no laço social? (p. 17).
Cada um dos autores, direcionados por essas questões, toma caminhos diferentes, abordando temáticas que nos ajudam a pensar o pior.
Dominique Fingermann, por exemplo, parte da questão da identificação na contemporaneidade, e em um segundo momento problematiza a questão da psicoterapia, que apesar das boas intenções, conduz o sujeito ao pior do pior, cristalizando o sintoma. Mais à frente aborda os “destinos do mal: perversão e capitalismo” (p. 73), capítulo no qual põe em questão o discurso capitalista – pouco explorado por Lacan se pensarmos comparativamente aos outros quatro discursos –, colocando sua horrível face à mostra, especialmente nos dias atuais. Como resistir a isso, aos gadgets da cultura? A autora teoriza sobre a arte como resistência, tratando dos filmes que se contrapõem ao ritmo holywoodiano de produção de imagens, que servem à economia de gozo dos expectadores e/ou consumidores da mídia globalizada. Paraela, sujeitos como “(...) cineastas, os artistas, apesar do pior, apesar de como o pior piora com a modernidade, continuam achando caminhos, resistindo ao entorpecimento, ao assédio e à violentação, abrindo caminhos novos, atalhos que talvez não levem a lugar algum, desvios renovados, trilhas, ponte e túneis, passagens do pior: eles permitem sua travessia” (p. 90).
Assim, os “passadores do pior” (p. 93) são convocados por Dominique, que mostra como a possibilidade da Psicanálise em extensão ainda pode render bons frutos, pois ao perscrutar autores intensos como Samuel Beckett, Maurice Blanchot e Marguerite Duras, acaba por encontrar denso material para reflexão – aquele que nos surge quando fechamos os livros.
Já Mauro Mendes Dias segue outra trilha, iniciando pela questão do pior na clínica, especialmente a depressão, passando pela identificação, mas reservando precioso espaço para um interlocutor pitoresco, o Unabomber, com o qual trocou cartas. Esse trágico personagem, autor de cartas-bombas enviadas na América, hoje está encerrado em um presídio, mas dispôs-se a trocar correspondências com o psicanalista brasileiro. E o que surge dessa troca de cartas é uma teorização de Mauro sobre a psicose e suas diferentes tentativas de inserção discursiva em uma cultura, que como notamos cotidianamente, não lhe abre espaço. Talvez pelas bombas, quem sabe?
Esse autor já lançara anteriormente um livro sobre moda, e nessa tradição brinda-nos com um capítulo no qual alinhava roupas, vestir-se e gozo, como podemos atestar em suas próprias palavras: “ainda que a moda permita situar o agenciamento do olhar como meio de gozo, é importante perceber que sua complexidade não se esgota nesta indicação, porque o uso e a escolha da roupa também participam, desde sempre, da economia do fantasma, no sentido que se encontram determinados pelo tipo de relação promovido entre o sujeito e o Outro. Para o neurótico obsessivo, por exemplo, é notório seu privilégio em escolher roupas que ressaltem seu caráter de correção e asseio, a partir do qual ele procura afastar qualquer tentação sexual. Em contrapartida, na histeria vamos encontrar uma dupla direção alternando entre vestir-se segundo o que supõe ser o que o Outro deseja, cativando seu olhar, ao lado de um embaraço completo para a escolha do vestuário, ocasião em que os signos do desejo do Outro se encontram menos evidentes” (p. 156).
Qual o efeito que um livro como esse pode causar em um psicanalista? Qual efeito deveria causar? Inquietação e elaboração acerca do momento pelo qual passa o mundo, dos povos que o habitam, e por extensão, dos seres de linguagem que chegam em busca de algum saber, justamente do psicanalista citado no início do parágrafo. Que esse analista não se furte a associar a partir das provocações dos autores, das temáticas suscitadas por eles, e especialmente daquilo que pode criar na solidão de seu consultório, junto aos que o procuram afetados pelo pior.
Uma hipótese interessante acerca dos efeitos nefastos do jogo social promovido pelo capitalismo contemporâneo é, para além da medicalização dos sintomas, a explicação sociológica dos sintomas sociais ou as tentativas pedagógicas e psicológicas de se domar o mal-estar; é pensar como cada sujeito pode responder ao lugar que lhe é destinado nesse jogo. Parece que Freud foi o estetoscópio que auscultou o mal-estar das histéricas, que não aceitavam passivamente o lugar a elas destinadas pelo jogo de então. No jogo capitalista atual, qual é o lugar do sujeito?
E por que não estender a pergunta: qual o papel da Psicanálise frente a esse cenário, tão bem representado pela capa do livro, pensada a partir do clássico quadro de Pieter Brueghel, O triunfo da morte. Quem, ou o quê, triunfa nos dias de hoje?
Talvez pudéssemos pensar o gozo como uma tentativa de sempre triunfar; afinal, o sujeito aferra-se tenazmente ao seu quinhão de gozo, evitando perder, como nos mostra cotidianamente as experiências clínicas.
Afinal, se lidamos com a linguagem, como devemos decodificar o grito que vem do pior? Nas diversas manifestações artísticas, o inferno é sempre representado por horríveis labaredas, sofrimento eterno, e a trilha sonora é de gritos, terríveis e lancinantes. Metaforizando-se essa alegoria, poderíamos perguntar: hoje, a Psicanálise escuta esses gritos? São do pior?
Endereço para correspondência
Leandro Alves Rodrigues dos Santos
e-mail: leandro.psi@uol.com.br
1Psicanalista; Mestre em Psicologia (USP); Membro Participante do Fórum do Campo Lacaniano; Professor e Supervisor (Centro Universitário Santo André/UNI-A).