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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.10 n.19 São Paulo dez. 2006
ARTIGOS
A “fabricaçã o do estranho” em antropologia e psicanálise (notas para um diálogo intertextual)
The “fabric of strangeness” in anthropology and psychoanalysis (notes for an inter-textual dialogue)
Mauricio Rodrigues de SouzaI
Universidade Federal do Pará. Departamento de Psicologia Social e Escolar
RESUMO
Ao adotar como pano de fundo a dimensão experiencial e hermenêutica presente nos ofícios do antropólogo e do psicanalista, este artigo propõe um diálogo entre os escritos de Velho (1987) e Figueiredo (1994) para, a partir daí, debater a especificidade dos temas da familiaridade e da estranheza no âmbito dessas duas áreas de atuação profissional. Uma vez que tais questões envolvem simultaneamente uma discussão técnica e outra ética, aposta-se aqui na validade da utilização do conceito heideggeriano de “serenidade” (Gelassenheit) para pensá-las, visando um resgate do caráter originário da interpretação como acontecimento, movimento e vida.
Palavras-chave: Psicanálise, Antropologia, Hermenêutica, Ética, Técnica.
ABSTRACT
Adopting as a background the experiential and hermeneutical dimensions present in the works of anthropologists and psychoanalysts, this article proposes a dialogue between the writings of Velho (1987) and Figueiredo (1994) debating the specificity of subjects like familiarity and strangeness in the realm of both fields. Once such questions involve simultaneously a technical and an ethical discussion, we suggest here the validity of using the Heideggerian concept of “serenity” (Gelassenheit) to reflect about them, searching for a rescue of the original dimension of interpretation as happening, movement and life.
Keywords: Psychoanalysis, Anthropology, Hermeneutics, Ethics, Technique.
As aspas no título de um trabalho podem significar várias coisas. Dentre elas, além de ironia ou neologismo, o reconhecimento do(s) autor(es) acerca das referências intelectuais que o(s) inspiram. É assim que aquele leitor atento e conhecedor dos diálogos heideggerianos com a clínica psicanalítica propostos por Figueiredo (1994a, 1994b, 1995, 1996a, 1996b, 2002) seguramente poderá considerar o presente texto como uma espécie de parasita.
Entretanto, levando-se em conta como o faz a perspectiva desconstrutivista de Miller (1995) que qualquer poema seria também um vampiro de poemas anteriores, pode-se pensar que bases solidamente construídas previamente podem e devem servir como suportes para novos e renovados edifícios. É com tal espírito que este artigo, ao mesmo tempo em que reconhece seus pontos de apoio, parte rumo a outros horizontes que o conduzem à busca de um diálogo profícuo entre Antropologia e Psicanálise no terreno da filosofia hermenêutica1.
De que maneira? Pela análise das relações de hospedagem e parasitismo nos conteúdos de dois trabalhos que detêm o duplo mérito de serem escritos de maneira simples e didática, mas que ao mesmo tempo contemplam questões de fundo bem convidativas. Trata-se de Observando o familiar, produzido por Gilberto Velho (1987), e A fabricação do estranho: notas sobre uma hermenêutica negativa, de Luís Cláudio Figueiredo (1994b). Ao adotarem uma perspectiva interpretativa e que considera a influência da subjetividade em ramos de atuação profissional aparentemente tão díspares quanto os do antropólogo e do psicanalista, tais autores nos convocam a refletir sobre questões de ordem ética e metodológica, expressas em noções como as de familiaridade e distância, cujo valor, para além da pesquisa de campo ou do atendimento clínico, permanece relevante para a área de humanidades como um todo. Daí sua inegável importância.
Como forma de complementar essa discussão, acrescentar-se-ão aqui algumas idéias desenvolvidas pela filosofia de Gadamer (1966) e Heidegger (1955), bem como outros trabalhos relevantes e que serão mencionados oportunamente. Passemos, então, aos textos em questão.
Por um “distante” tão próximo: a familiaridade na pesquisa de campo antropológica
O texto de Velho (1987) adota como ponto de partida a suposta necessidade de uma “distância mínima” que conferiria um status de objetividade às ciências sociais. Isso ocasionaria a preferência de um grande número de pesquisadores por metodologias de trabalho marcadamente quantitativas, haja vista seu suposto caráter neutro e, assim, mais verdadeiramente científico. Entretanto, ainda segundo Velho (1987), tal postulado não seria suficientemente sedutor para conseguir uma unanimidade de adeptos. Daí a aposta desse autor tanto em uma inevitável aproximação do cientista social com os grupos que estuda quanto no caráter não necessariamente maculado de tal envolvimento.
Assim é que para Velho (1987) a antropologia tradicionalmente ergueria a bandeira dos “impuros”, identificando-se com abordagens do conhecimento ditas qualitativas. Notório exemplo dessa postura seria a própria observação participante, ferramenta par excellence do antropólogo, que dessa forma realizaria seus estudos em um contato direto (in loco) com a alteridade de universos simbólicos em muitos casos amplamente diferentes do seu2. Isso porque determinados aspectos culturais poderiam resistir a um primeiro olhar, necessitando de uma análise mais detalhada ou mesmo empática.
Na verdade, ainda segundo Velho, tal esforço de buscar se colocar no lugar do outro envolveria um considerável grau de complexidade ao ter de lidar com pelo menos três tipos de distância. Primeiramente, a física, que demandaria deslocamentos e viagens rumos a lugares muitas vezes distantes e mesmo inóspitos. Além desta, porém, haveria ainda a distância social, que por sua vez está ligada a uma outra, de caráter psicológico3. Como entender a relação entre estas últimas? O trecho a seguir parece bem elucidativo:
O fato de dois indivíduos pertencerem à mesma sociedade não significa que estejam mais próximos do que se fossem de sociedades diferentes, porém aproximados por preferência, gostos, idiossincrasias (...). O fato é que se está discutindo o problema de experiências mais ou menos comuns, partilháveis, que permitam um nível de interação específico. Falar-se a mesma língua não só não exclui que existam grandes diferenças no vocabulário, mas que significados e interpretações diferentes podem ser dados a palavras, categorias ou expressões aparentemente idênticas (1987, p. 124-125).
Desta maneira, é mais adiante que Velho se detém na tarefa de problematizar a categoria distância. Para tanto, mantendo um fecundo diálogo com o trabalho de DaMatta (1978), nosso autor sustenta a instigante proposição de que aquilo com o que sempre lidamos em nosso cotidiano pessoas, situações ou lugares vinculados às relações de trabalho, estudo ou lazer, por exemplo , poderia soar como extremamente familiar, mas não seria necessariamente conhecido. Por outro lado, certos aspectos outros e que escapariam ao nosso dia-a-dia, embora sujeitos ao adjetivo de “exóticos”, certamente não seriam de todo estranhos.
Conforme Velho (1987), e eis o que parece se configurar como um dos pontos-chave de seu texto, o cientista social não seria uma exceção a essa dialética. Assim, dadas as amplas descontinuidades entre seu universo experiencial e particular e outros mundos paralelos, mas que com ele coabitam em um mesmo espaço (como o das grandes e heterogêneas metrópoles contemporâneas), tornar-se-ia perfeitamente possível a um pesquisador na cidade e que adota como objeto de estudos a cidade, efetuar um verdadeiro estranhamento ou relativismo cultural como aquele operado mediante o contato junto às sociedades geograficamente mais longínquas.
É bem verdade que, mais uma vez dialogando com DaMatta (1978), Velho (1987) pondera que a possibilidade de um choque cultural, como o mencionado no parágrafo anterior, estaria vetada à grande maioria das pessoas na chamada “sociedade complexa” devido a uma poderosa hierarquia ordenadora da realidade. Ou seja, uma espécie de mapeamento prévio e que ditaria antecipadamente os lugares de cada categoria social de uma forma estereotipada.
Segundo Velho, porém, tal mapa não significaria um verdadeiro conhecimento das visões de mundo norteadoras dos diversos atores sociais em situações específicas, nem tampouco das regras que, perpetuando o sistema, esconder-se-iam por detrás destas interações. Com isso, adotando a crença em uma impossibilidade da separação entre as identidades de pesquisador e cidadão, Velho chama nossa atenção para o lugar daquele (do acadêmico), bem como da sua eventual chance de transcender a si mesmo, ocupando, assim, o lugar do outro.
Ao longo deste processo, Velho destaca o potencial do trabalho investigativo da cultura como mobilizador de uma nova e radical experiência científica: aquela voltada para seu próprio ambiente4. Neste sentido, sugere ainda uma analogia com a psicanálise, uma vez que tratar-se-ia aqui de: “identificar mecanismos conscientes e inconscientes que sustentam e dão continuidade a determinadas relações e situações” (1987, p. 128). É desta maneira o autor retoma o fio condutor de seu texto ao insistir em dois pontos específicos: o da variabilidade do grau de familiaridade na pesquisa social que não se confundiria com um conhecimento de fato e ainda que tal proximidade poderia mesmo se constituir em um impedimento, caso não fosse constantemente avaliada por uma reflexão de cunho sistemático.
Isto não quer dizer, é claro, que quando confrontados com grupos mais distantes ou “exóticos”, deixássemos de agir com base nos mesmos princípios de classificação com os quais fomos socializados, pois, para Velho (1987), as nossas vivências e interações seriam construídas de acordo com um padrão sócio-cultural historicamente definido. Quanto a este aspecto, o referencial interpretativo de Geertz (1989) é convocado para esclarecer a dimensão subjetiva da pesquisa nas chamadas “ciências do espírito”, as quais, ao invés de balizadas por uma proposta “neutra” ou explicativa, seriam sim eminentemente engajadas e compreensivas.
Por derivação, o que podemos deduzir da perspectiva acima? Que a interpretação científica na área de humanidades permanece apenas como uma das interpretações possíveis e concorrentes acerca da cultura e da sociedade. É desta forma que Velho (1987) ainda que, como vimos anteriormente, sustente que a familiaridade não seria necessariamente equivalente a um conhecimento “verdadeiro” legitima o tipo de análise social perpetrado por pessoas que, embora sem uma formação ou pretensão universitária, poderiam contribuir com leituras consideravelmente válidas sobre determinadas instituições, épocas ou grupos sociais. Exemplos claros seriam as obras de artistas como Machado de Assis preciso e precioso observador da dinâmica social de uma sociedade como a carioca na segunda metade do século XIX.
Assim, ao estudar a própria sociedade em que vive, um profissional como o antropólogo expor-se-ia a julgamentos das mais diversas naturezas, empreendidos não somente por outros especialistas da área, mas também por leigos, sacerdotes, políticos, lideranças comunitárias e outros representantes dos diferentes grupos que compõem nossa teia social. Seria isso um prejuízo ao trabalho acadêmico? Para Velho (1987), seguramente não. Pelo contrário, tais ressalvas, possibilitadas exatamente pelo estudo do familiar, proporcionariam uma vantagem interessante, desde que sábia e humildemente utilizadas em prol de constantes revisões visando o enriquecimento da pesquisa em humanidades.
Então, após haver colocado suas cartas na mesa, Velho alcança o final do trabalho ressaltando a crença particular de que em dados momentos seria viável ao antropólogo “ver o familiar não necessariamente como exótico mas como uma realidade bem mais complexa do que aquela representada pelos mapas e códigos básicos nacionais e de classe através dos quais fomos socializados” (1987, p. 131). De que forma isso se tornaria possível? Pela coragem de oferecer a si mesmo em um tipo de sacrifício: aquele caracterizado por um movimento em direção ao outro, ainda que este, em sua alteridade, muitas vezes representasse uma clara ameaça ao chão firme proporcionado pelos cânones interpretativos, que parecem garantir nossa própria integridade emocional e intelectual.
Vale a pena guardarmos estas palavras. Elas nos fornecem um bom cartão de visita rumo ao terreno particular do trabalho clínico, próximo objeto de nosso estudo. Desta feita, na companhia de um psicanalista.
Por um “próximo” tão distante: o estranhamento na clínica psicanalítica
Figueiredo inicia suas argumentações neste caso, eminentemente endereçadas à comunidade artística, mas igualmente válidas para a atividade psicanalítica ressaltando a dimensão pragmática da interpretação. Nesta perspectiva, ao debruçar-se sobre a música ou a literatura, o intérprete é pensado não somente como aquele que “decifra”, mas como alguém particularmente responsável pela realização da plena inteligibilidade de uma obra. Eis, portanto, um resgate da dimensão original do adjetivo de hermeneutas àqueles que “são primordialmente os emissários que transmitem (ou transportam) uma mensagem para os que ainda não puderam ter acesso a ela, deixando a estes a tarefa de dar prosseguimento à atividade decifrativa” (1994b, p. 17).
Nessa citação é possível antever duas importantes mensagens: além do já referido perfil necessariamente pragmático da interpretação como atividade orientada para a vida, jaz ainda sua importante qualidade de movimento, abertura de sentido. Tal predicado deteria implicações úteis à clínica psicanalítica em seu caráter eminentemente transformador (e não somente explicativo ou esclarecedor). É assim que o autor classifica a compreensão e a interpretação como “dimensões originárias do estar no mundo” (p. 18). Em outros termos, atividades intimamente vinculadas ao infinito percurso da constituição do homem enquanto ser-aí (Dasein), ser no/para o mundo e em constante mudança e transformação.
Mais adiante, questionando o sentido do verbo interpretar, Figueiredo passa a considerar duas das principais concepções norteadoras do tema: a da interpretação como um “juízo reprodutivo” e a da atividade interpretativa como modalidade de “criação”5. No caso da primeira, que adotaria como pressuposto básico a assunção de um sentido originalmente proposto pelo autor a sua obra, caberia ao hermeneuta levar a cabo uma leitura o máximo possível objetiva, distanciada e legitimada por outros intérpretes, a qual resgatasse e/ou reproduzisse tal qualidade última e intrínseca do texto em questão.
Já a segunda, diametralmente oposta, ao pretender renunciar totalmente à capacidade objetiva dos intérpretes, acabaria por subjetivá-los como criadores de sentidos outros e totalmente novos para obras que, com isso, não mais teriam em sua composição qualquer espécie de fonte original a ser reconstituída. Nessa medida, esgotar-se-ia também qualquer possibilidade de acordo de sentido.
Para Figueiredo, ambas as propostas pecariam ao enfatizar exageradamente (e respectivamente) o objeto e o sujeito do conhecimento, permanecendo cartesianas em sua essência. Contra tais abusos, esse psicanalista propõe o entendimento da interpretação como “realização de sentido”, admitindo aí a pragmata de um momento anterior a qualquer afastamento intelectual e objetivante, em que o texto: “já deve ter feito seu próprio caminho na constituição do sujeito, deve tê-lo afetado, deve ter-se imposto a ele e nele engendrado experiências novas, surpreendentes, inquietantes, estimulantes, fascinantes e sedutoras, talvez dilacerantes, quem sabe angustiantes” (1994b, p. 19-20).
Mas o que isso quer dizer? Em que tal idéia acrescentaria algo às propostas interpretativas anteriormente mencionadas? Sim, ela o faz à medida que, nesse instante prévio, livre do intelecto e atrelado à carne e ao sangue da experiência, o intérprete responderia à obra, falaria a ela, realizando-a. Não com aquela espécie de decifração afastada e objetiva que supostamente caracterizaria o cientista, por exemplo, mas em uma dimensão em que a interpretação é tomada como resposta a um apelo verdadeiramente existencial. Para além da mera repetição, precisamente aqui residiria a verdadeira e libertária possibilidade da emergência do novo, do não premeditado.
No tópico seguinte (“Os riscos de uma interpretação defensiva”), Figueiredo explora uma seara que muito nos interessa aqui, a qual denomina de hermenêutica da pura aproximação. Trata-se do risco de um ansioso afã explicativo e tradutor comparável, talvez, ao furor científico que Freud (1912) interditava aos analistas iniciantes , o qual cedo demais buscaria trazer o outro (a obra) para perto, transformando alteridade em familiaridade. Para Figueiredo, tal modalidade interpretativa assim como seu oposto, o exagerado subjetivismo que levaria à dissolução do intérprete na obra assumiria uma função eminentemente defensiva ao evitar o ineditismo da experiência com aquilo que o outro tem de diferente, misterioso e, por isso mesmo, ameaçador a Weltanschuung, ao quadro explicativo que ordena o mundo do próprio intérprete.
É desta maneira que, resgatando a dimensão existencial e experiencial do diálogo entre texto e intérprete, Figueiredo propõe uma terceira proposta interpretativa baseada na resposta. Ou seja, um intermezzo no qual “cada um deixou-se fazer pelo outro, acolhendo em si a alteridade do outro e permitindo que se despertem em si as próprias alteridades ressoantes (...) quando isso ocorre, a interpretação converte-se num acontecimento” (1994b, p. 20-21). Eis um movimento particular e que desligaria: “os canais previamente estabelecidos que reuniam intérprete e obra interpretada rompeu os quadros de referências do intérprete e da obra propiciou a emergência de novas configurações tanto no pólo subjetivo como no da obra interpretada” (p. 21).
Portanto, podemos presumir daí que um ideal interpretativo não se restringiria nem à “reconstrução” de um conteúdo ou intenção última da obra ou de seu autor, tampouco a uma total imersão subjetiva do leitor, visto como criador de um texto rigorosamente distinto de sua fonte, mas a uma “fabricação do estranho”. Sentido último do trabalho de Figueiredo fornecendo, inclusive, parte do próprio título de seu artigo , essa expressão, ao mesmo tempo em que sugere ao hermeneuta um necessário afastamento de qualquer compreensão apressada, a priori, redutiva ou defensiva, alicerça-se em um outro importante conceito: o de conservação.
Longe de qualquer conotação reacionária, este adquiriria um caráter renovador ao buscar perpetuar no processo interpretativo a sua estranheza originária. Em outros termos, aquela estranheza produzida pela surpresa causada no hermeneuta precisamente pela diferença com que o outro lhe força a se deparar. Para tanto, mais do que conservar a distância, caberia mesmo ampliá-la a ponto de se atingir uma espécie de desfamiliarização do intérprete não somente com a obra sobre a qual se debruça, mas em última análise, de si para consigo mesmo.
Se o parágrafo acima lhe parecer algo “familiar”, não se preocupe. Isso provavelmente significa que estamos no caminho certo, e a analogia que propusemos entre os lugares do antropólogo e do psicanalista faz algum sentido. Convidamos o leitor a se juntar a nós em algumas considerações finais, e na preciosa companhia de Heidegger (1955) buscaremos sintetizar os elementos dessa relação.
As (in)conclusões de um diálogo
A leitura dos trabalhos de Velho (1987) e Figueiredo (1994b) mostra duas hermenêuticas, que ao mesmo tempo contemplam uma dimensão técnica e outra ética ao se ocuparem da inevitável subjetividade que caracteriza tanto a pesquisa de campo antropológica quanto a clínica psicanalítica. Elas resgatam o valor único da surpresa e da estranheza originárias como movimentos préreflexivos do contato com a alteridade, esteja ela no divã ou nas tribos urbanas.
Desta maneira, pode-se pensar em alguns pontos de contato, como: a transformação do exótico em familiar e do familiar em exótico não seria uma outra forma de propor uma fabricação do estranho? Ou seja, tratar-se-ia, em ambos os casos, da relativização das noções de familiaridade e distância.
Velho (1987) e DaMatta (1978) procuram resgatar a dimensão experiencial, subjetiva e primordial do trabalho de campo. Não é o que também faz Figueiredo (1994b) em relação à clínica psicanalítica? Assim, todos parecem visar uma desfamiliarização do intérprete não só com o outro (ou com a obra), mas de si para consigo mesmo, questionando tanto o tipo de orientação intelectual imposta por condições econômicas e culturais específicas quanto aquela determinada pelos cânones de uma disciplina.
É bem verdade que uma diferença entre os dois trabalhos talvez possa ser buscada em termos do valor concedido aos preconceitos do intérprete. Afinal, o texto de Velho (1987) aparentemente detém um caráter gadameriano ao parecer resgatar uma espécie de verdade consensual e obtida por via da “fusão de horizontes” entre o hermeneuta e o outro (o texto)6. Já Figueiredo (1994b), apesar de reconhecer o quadro conceitual que acompanharia anteriormente o leitor expresso no conceito de hermenêutica da pura aproximação , parece tentar suplantar tal horizonte prévio em busca do resgate de uma abertura experiencial e pré-representativa7.
De qualquer forma, o caráter “aproximativo” (inacabado, indefinido) proposto por Velho (1987) para o trabalho antropológico soa bastante comparável à noção de interpretação como “acontecimento” (abertura de sentido), sugerida por Figueiredo (1994b) como parte importante do atendimento clínico. Em outras palavras, far-se-ia necessária uma mesma coragem para que, livres de “a prioris”, antropólogos e psicanalistas pudessem se manter em um limiar como possibilidade para a emergência do novo, da “resposta” existencial do leitor ao texto e do texto ao leitor.
Para concluir, pode-se vislumbrar nos esforços desses dois autores a busca da superação de uma diferença cartesiana entre sujeito e objeto do conhecimento que há séculos influencia o pensamento e, conseqüentemente, o modo de fazer ciência do Ocidente. Com isso, a interpretação é agora pensada em sua dimensão originária de um estar no mundo, intimamente ligada, por sua vez, ao movimento do homem como ser para o mundo.
É em tal contexto que podem e devem ser propostos limites ao racionalismo conservador imposto pela técnica, seja ela industrial, etnográfica ou clínica. Como lembra Figueiredo (1996a), um bom auxílio nessa tarefa pode ser prestado pelo conceito heideggeriano de “serenidade” (Gelassenheit), segundo o qual:
já não vemos as coisas apenas do ponto de vista da técnica. Tornamo-nos clarividentes e verificamos que o fabrico e a utilização de máquinas exigem de nós, na realidade, uma outra relação com as coisas que, não obstante, não é sem-sentido (Heidegger, 1955, p. 24).
Heidegger demanda aqui a simultaneidade de dizermos “sim” ao inevitável caráter utilitário dos objetos construídos pela técnica, mas também que neguemos a possibilidade de que absorvam por inteiro aquilo que teríamos de mais íntimo: nossa capacidade crítica. É nessa linha de raciocínio que o filósofo alemão fala de um sentido oculto e anterior que dominaria o mundo técnico, ainda que, de certa maneira, aquele deixasse antever parte de sua face nos produtos finais da manufatura e do processo de fabricação industrial. De qualquer forma, tratar-se-ia aqui de um lusco-fusco, de algo que, ao se mostrar, simultaneamente se retiraria, exigindo do homem um “fazer e deixar estar” (Tun und Lassen) e que Heidegger caracteriza em seu traço essencial como “mistério”.
Conseqüentemente, como possibilidade para lidar de uma maneira mais sábia com tal paradoxo que confundiria nossos sentidos, caberia a nós manter uma constante atitude de “abertura ao mistério” (die Offenheit für das Geheimnis), por sua vez inseparável de um espírito suficientemente sereno para suportar essa espera. Somente a conjunção desses dois fatores, aliados a um labor determinado e ininterrupto do pensamento, enfatiza Heidegger (1955), dar-nos-ia a perspectiva do enraizamento em um novo e revigorado tipo de solo, do qual poderiam brotar novas e vivazes obras que alcançariam a imortalidade, sejam elas filosóficas, antropológicas ou psicanalíticas.
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Endereço para correspondência
Mauricio Rodrigues de Souza
Trav. Timbó, 1568 / 105 Bairro da Pedreira
66085-654 Belém/PA
Tel.: (91) 3266-8427
E-mail: mrodri@usp.br
Recebido em 18/02/05
Aprovado em 05/08/05
Notas
I Psicólogo e Mestre em Antropologia Social (UFPA); Doutorando em Psicologia (USP); Professor Assistente (Deptº de Psicologia Social e Escolar/UFPA).
1 Do grego hermeneutikós (declarar, interpretar, traduzir), a hermenêutica surgiu como uma área do saber originalmente ligada à exegese dos textos sagrados, e que mais tarde, no século XIX, sob a influência inicial de Schleiermacher e Dilthey, alcançaria o status de importante vertente da filosofia, englobando o sentido mais amplo de uma completa metodologia, visando o entendimento da produção humana em geral verbal e não verbal, antiga e contemporânea. Dilthey construiu seu método pela fundamental distinção entre a maneira como compreendemos um objeto e uma outra pessoa, resumindo ainda tal distinção com duas categorias de contraste baseadas na explicação e compreensão: “The sciences explain nature, the human studies understand expressions of life” (apud Palmer, 1969, p. 105). Este saber gerou uma série deconceitos particulares: foco no contexto histórico e psicológico do autor ou agente, ênfase na individualidade do objeto a ser estudado, delimitação do objeto como alguma forma de expressão humana, análise do texto ou documento como totalidade de significado, na qual a parte e o todo são compreendidos de forma interdependente (círculo hermenêutico), além da noção de que o entendimento somente se configuraria como um diálogo entre intérprete, autor e texto ou agente (Dilthey, 1976).
2 Tal quadro de referência, que inclusive serve como turning point para a constituição da antropologia como disciplina verdadeiramente autônoma, foi constituído no início do século XX em grande parte pela perspectiva funcionalista de Malinowski (1922). Sua principal característica além, é claro, da busca de definições precisas para a função social que cumpririam elementos como os ritos e cerimônias em determinadas comunidades “exóticas”, como as dos nativos da Nova-Guiné , foi basicamente de ordem metodológica ao enfatizar a absoluta necessidade da etnografia ou pesquisa de campo como condição sine qua non para a realização dos estudos antropológicos. Em outras palavras, a premência de um contato razoavelmente prolongado com o cotidiano dos grupos estudados, bem como o respeito à sua própria lógica e organização como medidas únicas para se tentar entender o outro, o diferente, e na medida do possível utilizar seu exemplo como alternativa útil para repensar nossa própria realidade.
3 Velho (1987) cita como exemplo desse tipo de discussão o trabalho de DaMatta (1978), que ao propor três períodos distintos para a pesquisa antropológica (teórico-intelectual, prático e pessoal-existencial), buscaria resgatar o lado humano e subjetivo do trabalho de campo. Para DaMatta (1978), assumir este último aspecto caracterizado como “anthropological blues” seria assumir também o ofício do etnólogo (transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico) de uma maneira integral e que englobaria tanto a relação com o nativo quanto a do antropólogo com suas emoções. Vale ressaltar que, em um contexto mais recente, autores como Canclini (1992), Crapanzano (1992), Cardoso de Oliveira (2000), Clifford (1998) e Geertz (1997) também manifestaram esse tipo de preocupação.
4 Não sendo, portanto, mera “coincidência” os exemplos retirados do campo da antropologia da religião, no qual, como apontam Pierucci (1997), Pollak-Eltz (1995) e Silva (1991), seria comum um envolvimento nada “científico” entre pesquisadores e grupos pesquisados. O que isso significa? Que aqueles (os cientistas), em alguns casos, converter-se-iam às modalidades religiosas que estudam, enquanto estes (os padres, pastores, pajés ou mãesde-santo) cada vez mais freqüentariam cursos e palestras, bem como consumiriam livros de caráter acadêmico, movimento este que lhes autorizaria a referendar ou contestar as análises teóricas feitas sobre os rituais e cerimônias dos quais se considerariam especialistas “na prática”.
5 Ao descrever esta questão, Figueiredo (1994b) aproxima-se de uma trajetória anteriormente percorrida por Eco (1993), em cuja coletânea de artigos também aparece esse duplo movimento interpretativo entre autor e leitor, bem como a proposição de um terceiro elemento a ser considerado nessa relação: o texto.
6 Vale lembrar que a consciência produzida pela história (ou seja, pelo preconceito) como construção lingüística do mundo proporcionaria, para Gadamer (1966), a esquematização inicial para as nossas possibilidades cognitivas. Eis uma dívida para com Heidegger, reconhecida pelo próprio Gadamer: a história só se faria presente em nós em face de nossa futuridade. Nestes termos, a hermenêutica inserir-se-ia em um contexto dialógico entre a imersão em um mundo já previamente interpretado (papel da linguagem) e o potencial reorganizador dessa tradição, representado por nossa própria experiência de vida. Assim é que, segundo Bleicher (1992), o valor da hermenêutica gadameriana residiria na libertação do condicionalismo objetivante que a interpretação até então teria imposto a si mesma com Schleiermacher e Dilthey, quando visava a obtenção de um método incontestável e que garantisse sua validade como saber. Ao considerar a “história eficaz”, subjacente e, já em si mesma, norteadora dos horizontes do conhecimento, Gadamer derrubaria tal perspectiva, ao mesmo tempo em que relativizaria o caráter até então intocável do saber científico, resgatando ainda as possibilidades de sentido da tradição do senso comum e da religião.
7 Neste sentido, as reflexões de Heidegger acerca das relações entre obra de arte, fala e modernidade são tomadas por Figueiredo (1994a) como fecundas possibilidades para a clínica psicanalítica. Expostas aqui de uma maneira bastante sucinta, sugeririam ao psicanalista a validade de manter-se em uma espécie de “entre” uma tradução que metaboliza e incorpora a fala alheia e uma outra que, abdicando de si, deixar-se-ia encharcar totalmente pelo discurso vindo do outro. Portanto, uma idéia de movimento, de abertura de sentido. Isto é, de pensamento.