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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007
ARTIGOS
A teoria freudiana da sexualidade 100 anos depois (1905-2005)
Freud’s theory of sexuality 100 years later
Marco Antonio Coutinho JorgeI
Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia
RESUMO
Este artigo é a transcrição da conferência de abertura do III Congresso Nacional de Psicanálise da UFC, que celebrou o centenário de publicação dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. O conceito de pulsão, introduzido nessa obra, marcou uma subversão no campo científico ao tratar da sexualidade humana com uma lógica conceitual consistente. Certas noções de Freud, como a disposição neuropática geral, que trouxe nova visão à discussão sobre a oposição entre inato e adquirido, assim como a demolição da barreira entre normal e patológico, são atuais e necessárias, em um momento em que surgem na cultura manifestações como a de um projeto de lei que pretende a cura para homossexualidade.
Palavras-chave: Psicanálise, Sexualidade, Pulsão, Normal, Patológico.
ABSTRACT
This lecture was given at the opening of the III National Conference of Psychoanalysis of the Federal University of Ceará, held in celebration of the centenary of the publication of Freud’s Three Essays on the Theory of Sexuality. The concept of drive, introduced in this text, constitutes subversion in the scientific field insofar as it deals with human sexuality in a consistent conceptual logic. Certain notions from Freud, such as general neuropath disposition brought a new outlook onto the debate of the notions of innate and acquired, as well as the blurring of borders between the normal and the pathological. Such subversion still proves to be pressing and necessary in this moment when we see in contemporary culture the emergence of attempts to establish the cure for homosexuality.
Keywords: Psychoanalysis, Sexuality, Drive, Normal, Pathological.
Escrito em 1905, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, livro cujo centenário comemoramos no III Congresso Nacional de Psicanálise da UFC, é a segunda grande obra de Freud. A primeira, Ainterpretação dos sonhos (1900), fora escrita e publicada alguns anos antes. O editor inglês das Obras completas de Freud expressa a mesma opinião: “os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud, juntamente com sua A interpretação dos sonhos, constituem, não pode haver dúvida, suas contribuições mais importantes e originais para o conhecimento humano” (Strachey, 1996, p. 112). Conforme podemos ler em uma carta de Freud a Abraham de 1908, ele próprio partilhava desta idéia: “a resistência à sexualidade infantil, diz ele, fortalece minha opinião de que os três ensaios são uma realização de valor comparável à Interpretação dos sonhos (apud Gay, 1989, p. 146).
Os Três ensaios representam o achado do famoso cavalo de uma Tróia desenterrada, segundo Freud, no livro dos sonhos?
Trata-se de fato de dois textos que constituem a fundação da psicanálise, e se podemos afirmá-lo, é porque em ambos foram introduzidas as suas bases conceituais: no livro dos sonhos, Freud introduz o conceito de inconsciente, ao passo que nos Três ensaios, trata-se da introdução do conceito de pulsão. Como já tivemos oportunidade de demonstrar no livro Fundamentos da psicanálise vol. 1: as bases conceituais (Jorge, 2000), inconsciente e pulsão são os dois conceitos fundamentais da teoria psicanalítica sem eles não estaria completada aquela articulação entre linguagem e sexualidade que a psicanálise demonstra a partir de sua clínica1, e que leva Lacan a afirmar, no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, que “a realidade do inconsciente é verdade insustentável a realidade sexual” (1964, p. 143). Quando, nesse mesmo seminário, Lacan retoma os fundamentos da psicanálise, ele afirma que no meio psicanalítico de sua época ele se deparava com uma espécie de “recusa do conceito” (p. 24). São os conceitos freudianos que outorgam especificidade à psicanálise, tanto à sua teoria quanto à sua clínica.
No “Prefácio à segunda edição” desse livro, de 1909, Freud afirma que “é seu desejo ardente que o livro envelheça rapidamente que o que nele uma vez foi novidade, possa tornar-se geralmente aceito, e que o que nele estiver imperfeito possa ser substituído por algo melhor” (1905, p. 117)2. É inegável que esse desejo de Freud encontra-se parcialmente realizado em nossa cultura.
O grande embate que está em jogo nos bastidores dos Três ensaios é o da oposição entre normal e patológico no que diz respeito à sexualidade, especialmente suscitada pelos trabalhos dos sexólogos pré-freudianos sobre a chamada inversão sexual, que era o grande alvo das reflexões da sexologia da época, sustentadas inclusive por sujeitos declaradamente homossexuais, como Magnus Hirschfeld. Freud chega até esse debate munido de uma nova e poderosa arma, o conceito de inconsciente, e é com ela que ele enfrentará, por sua vez, a avalanche de problemas colocados pela sexualidade.
Como formula Elisabeth Roudinesco (1994) na apresentação à segunda edição francesa da obra de Henri Ellenberger, Histoire de la découverte de l’inconscient, o que os historiadores não chegaram a evidenciar nas pesquisas feitas sobre as fontes utilizadas por Freud em sua teoria da sexualidade foi o corte epistemológico que ele fez incidir sobre os estudos de sua época. Segundo ela, Ellenberger imergiu a obra de Freud na longa duração da história da descoberta do inconsciente, mas isso “ao preço de desconhecer a noção de ruptura tal como ela é empregada pela tradição francesa da história das ciências de Gaston Bachelard a Michel Foucault passando por Georges Canguilhem” (1994, p. 24). Toda a historiografia americana rejeitou esta noção e desembocou na escola revisionista, cujo principal representante é Frank J. Sulloway, com sua obra Freud, biologiste de l’esprit, publicada originalmente em 1979. Ainda segundo Roudinesco (1994, p. 24), criticando Ernest Jones por sua biografia que retrata Freud como um herói solitário e acentua a hostilidade do meio científico em relação a seu trabalho, Sulloway chega a negar que Freud seja o iniciador de uma nova concepção do inconsciente e da sexualidade, e a afirmar que ele teria sido apenas “o porta-voz da ciência de sua época”.
A novidade inerente à obra freudiana fica assim descartada, e se por um lado os revisionistas criticam duramente os biógrafos que fazem um retrato heróico de Freud, por outro, eles os igualam em inverossimilhança ao destituir sua obra de toda e qualquer genuinidade. Roudinesco resume essa polêmica ao dizer que é necessário opor à argumentação que retira da obra de Freud sua fecunda ruptura:
Uma interpretação diferente do mesmo fenômeno: no final do século passado, todos os especialistas da subconsciência e das doenças nervosas tinham reconhecido a importância do fator sexual na etiologia das neuroses. Freud não era, portanto, um “herói solitário”. Mas ele foi o único a efetuar uma síntese fecunda de todas as correntes para traduzir a evidência biológica numa nova linguagem conceitual (1994, p. 25).
Trata-se, na psicanálise, do advento de um novo conceito de sexualidade. Freud fala de uma “teoria da sexualidade”, na qual os autores só expunham longamente seus casos clínicos sem qualquer teorização a respeito deles. Antes de Freud, não há propriamente um conceito clínico sobre a sexualidade. A degenerescência de Krafft-Ebing e a psicologia associativa de Binet, que se opunha a ela, são duas concepções extremamente simplistas, que apenas aplicam a antiga dicotomia médica hereditário/adquirido aos problemas levantados pela sexualidade. Mas nenhum conceito emana dessas discussões que os sexólogos freudianos empreenderam. O mérito desses autores foi, em primeiro lugar, o de ter aberto o diálogo sobre a sexualidade para o campo da ciência, e em segundo, o de ter tornado evidente, com seus trabalhos, a enorme freqüência das chamadas “aberrações sexuais”. Não é a toa que este é o título do primeiro ensaio que abre a obra de Freud, fazendo referência aos autores mais importantes de sua época que tratavam do assunto. É sobre eles que Freud vai instaurar um corte. Este corte é conceitual e tem um nome: pulsão.
A exceção Lacan
É interessante notar que aquilo que Freud apontara como uma das mais freqüentes formas assumidas pela resistência à psicanálise, isto é, a ressalva de que a teoria psicanalítica exagerava quanto à importância do sexo na vida psíquica, retorna viva ainda hoje sob a pena de um psicanalista brasileiro. Em um texto consagrado a nada menos do que criticar a “noção” de pulsão (trata-se precisamente da mesma recusa do conceito de que fala Lacan), cuja “fragilidade” ele afirma ser evidente, Jurandir Freire Costa postula que “a causa sexual é uma das causas possíveis de nossa vida mental e de seus conflitos. É muito, mas é só isso”. Sem precisar quais seriam essas outras pulsões, o mesmo autor afirma que:
A sexualidade é uma pulsão nem mais nem menos elementar que tantas outras que podemos vir a valorizar na clínica [para concluir que] a importância dada ao sexo, por Freud, é entendível não por ser ele o representante das qualidades elementares ou originárias do psiquismo, mas por fatores históricos ligados à invenção da psicanálise (2004, p. 51).
Esse recente escrito de Costa, surpreendente por sua violência em relação à delicada construção conceitual freudiana, retoma na íntegra, e com vinte anos de atraso, as mesmas colocações feitas por Jean-Bertrand Pontalis em 1984 (p. 5-10), no editorial da Nouvelle revue de psychanalyse, em um número dedicado a La chose sexuelle, que afirma que os sucessores de Freud estabeleceram, em sua maioria, uma limitação do campo da sexualidade. Ele pondera que não há em Freud uma nítida distinção entre o sentido trivial da palavra “sexualidade”, de “comportamento sexual propriamente dito” e o sentido psicanalítico de “psicossexualidade”, que se refere a vários elementos, como os sintomas, por exemplo, que aparentemente nada têm a ver com a sexualidade no sentido comum do termo. Pontalis pondera ainda que a distinção tardia entre repressão (Unterdrückung) social e recalque (Verdrängung) intrapsíquico da sexualidade está na base da indeterminação entre práticas sexuais propriamente ditas e aqueles elementos que estariam ligados à pulsão sexual pela mediação de representações sem conteúdo sexual manifesto.
Pontalis enumera com desenvoltura a lista dos pós-freudianos que, segundo ele, produziram uma restrição teórica da sexualidade no campo da psicanálise: Melanie Klein, ao falar da predominância das pulsões de destruição; Fairbairn e os teóricos da relação de objeto, que definem o movimento da libido como object-seeking e não como pleasure-seeking; Winnicott, que diminuiu a importância da sexualidade infantil com a noção de “primeiro, ser” first, being; Kohut, com o estudo do desenvolvimento narcísico independente do desenvolvimento sexual. E Pontalis conclui: “sem dúvida, Lacan constitui uma exceção” (1984, p. 8).
Não sem acrescentar que Lacan despreza certos dados clínicos e, além disso, subordina a sexualidade à supremacia do significante. Embora Pontalis considere essa subordinação um demérito, nós vemos nela um gesto freudiano de articular o real da pulsão com o simbólico do inconsciente3. Mas é claro que, com sua teoria da “pulsão sem qualidades”, Freud aponta, no fundo, para a irredutibilidade do real inerente à pulsão ao simbólico.
Quais são os dados clínicos a que Pontalis se refere? Resumidamente: a multiplicação de demandas de análise e de formas patológicas, que aparentemente pouco devem aos conflitos sexuais, como distúrbios do caráter, neuroses narcísicas, casos fronteiriços, afecções psicossomáticas, personalidades “como se”. Segundo ele ainda, a neurose obsessiva e a perversão passaram a ser consideradas menos como um conflito entre as pulsões sexuais e o supereu do que como mascarando um “núcleo psicótico”, assim como o papel da sexualidade desempenhado na histeria foi reavaliado e considerado como uma máscara. O último argumento clínico desprezado por Lacan, segundo Pontalis, diz respeito ao fato de que os distúrbios manifestamente sexuais, como impotência, ejaculação precoce, frigidez, passaram a escapar à investigação psicanalítica e a se dirigir às terapias funcionais e sexuais com uma abordagem puramente técnica.
Como comentar todas estas observações infiltradas por uma grande negligência do texto freudiano, necessária a essas revisões? Como entender que Costa e Pontalis desprezem tão acentuadamente a insistente observação freudiana, formulada a partir dos Três ensaios (1905, p. 164), de que o sexual não é, para a psicanálise, o mesmo que genital, e que só por isso Freud pôde introduzir a noção tão rejeitada inicialmente de sexualidade infantil? Não é outra coisa o que Freud observa no “Prefácio à quarta edição”, de 1920, de sua obra:
Muito do que este livro contém sua insistência sobre a importância da sexualidade em todas as realizações humanas e a tentativa que faz para ampliar o conceito de sexualidade forneceu, desde o início, os mais fortes pretextos da resistência contra a psicanálise (p. 121).
Além disso, como fazê-los ver que a dimensão propriamente sexual da pulsão foi a primeira a ser evidenciada por Freud por seu caráter ruidoso, barulhento, até mesmo espalhafatoso4? Em um segundo momento, a dimensão narcísica inerente ao sexual foi destacada por Freud como um elemento essencial, mas cuja manifestação não é tão evidente quanto aquela ligada às relações de objeto embora seja de grande importância por evidenciar o quanto o eu é igualmente um objeto passível de ser investido pela libido, como os objetos da fantasia e os objetos externos. E por fim, a derradeira apreensão freudiana disse respeito à pulsão, em sua dimensão mortífera, a qual constitui o núcleo mais importante da pulsão, e contudo, o menos perceptível daí a célebre fórmula de Freud, segundo a qual a pulsão de morte opera em silêncio. Esta é a derradeira observação feita por Freud em Mais-além do princípio de prazer:
As pulsões de vida [leia-se pulsões sexuais] têm muito mais contato com nossa percepção interna, surgindo como rompedoras da paz e constantemente produzindo tensões cujo alívio é sentido como prazer, ao passo que as pulsões de morte parecem efetuar seu trabalho discretamente. O princípio de prazer parece, na realidade, servir às pulsões de morte (1920, p. 61).
Tal formulação será mais ainda precisada por Freud quando, em O problema econômico do masoquismo (1924), ele vier a formular a oposição entre princípio de constância e princípio de Nirvana.
Logo, não se trata para Freud, de modo algum, de abordar o sexual como prática ou comportamento sexual, mas sim em seu alcance e enraizamento inconsciente. Quando Lacan, no seminário sobre Os quatro conceitos (1964), afirma que “toda pulsão é pulsão de morte”, ele tenta nos fazer ver que o sexual está radicalmente ligado à morte, daí o segundo dualismo pulsional freudiano opor vida, Eros, e morte, Tânatos.
Diga-se desde já que a ampliação do conceito de sexualidade baseou-se na concepção freudiana de sexualidade infantil objeto de investigação do segundo ensaio , que situada como perverso-polimorfa, constituiu a ponte entre a sexualidade dita normal e a patológica ou perversa. É com ela que Freud poderá dizer não às teorias que abordam os aspectos congênitos, inatos, como a da degenerescência, e aquelas que abordam os aspectos adquiridos, como a relativa ao trauma sexual.
É preciso que recordemos do importante lembrete de Foucault, quando afirmou que o grande escândalo promovido pela psicanálise foi não apenas falar de sexo, mas falar de sexo dentro de uma certa lógica, dentro de um certo aparato conceitual consistente, diríamos com Lacan. E é este aparato que certamente os detratores da psicanálise pretendem demolir. Lacan, por sua, vez valorizou enormemente esse texto freudiano, que constitui em seu seminário a sétima obra mais citada em geral, e a quarta obra freudiana em particular5.
A fundação da psicanálise
Segundo Henri Ellenberger (1994), o livro sofreu tantos aumentos ao longo das sucessivas edições que seria preciso ler a edição de 1905 para poder compreender a teoria original. Freud abre o primeiro de seus Três ensaios advertindo-nos de que este capítulo é baseado nas obras de vários autores, hoje inteiramente desconhecidos dos psicanalistas. É impressionante a sinopse que Freud faz dos trabalhos dos autores de sua época, manifestando sua metodologia habitual de retomar a tradição a respeito de um tema antes de abordá-lo de forma inovadora.
Freud enumera, um após o outro, os seguintes nomes: Krafft-Ebing, Albert Moll, Moebius, Havelock Ellis, Schrenck-Notzing, Löwenfeld, Eulenburg, Bloch e Magnus Hirschfeld além da revista Anuário das fases sexuais intermediárias. A ordem de enumeração não é alfabética, e talvez revele por si só alguma ênfase na escolha feita por Freud. Além disso, nenhum deles fez parte do movimento psicanalítico eles constituíam o grupo de sexólogos que, ao final do século XIX, investigavam os problemas relativos à sexualidade. Em 1910, Freud acrescenta o nome de Isidor Sadger quanto aos dados referentes à inversão sexual, mas tal autor não figura na bibliografia ao final do volume. Sabemos que ele freqüentou o círculo freudiano reunido na Sociedade das Quartas-feiras a partir de 1906.
A propósito, a história dessa sociedade é resumidamente a seguinte: no outono de 1902, alguns partidários de Freud começaram a se reunir sob a simpática rubrica de Círculo Psicológico das Quartas-feiras à Noite, e com o passar dos anos, o número de participantes foi crescendo. O grupo inicial, que se reunia na sala de espera da Berggasse 196, e compreendia, além de Freud, Stekel, Adler, Reitler e Kahane, foi acrescido, em 1903, por outros, entre os quais Paul Federn. Eduard Hitschmann foi apresentado ao grupo em 1905; Otto Rank e Sadger, em 1906. Nesse ano, a organização que contava com dezessete membros, com uma freqüência média semanal de onze, intitulava-se de Sociedade Psicológica das Quartas-feiras. Em 1908, tiveram seu primeiro contato com Freud, Ernest Jones, Sándor Ferenczi e A.A.Brill.
Além disso, desde 1904, o eminente psiquiatra de Zurique, Eugen Bleuler, escrevera a Freud para lhe comunicar o interesse que suas teorias despertavam na clínica Burghölzli, na qual Jung, Abraham, Rklin e Eitingon começavam a aplicar os procedimentos terapêuticos freudianos. Em 1906, Jung inicia uma correspondência com Freud, que se estende até a ruptura entre eles, que se deu em 1913-4.
Quando, em 1908, a Sociedade Psicológica das Quartas-feiras foi rebatizada oficialmente como Sociedade de Psicanálise de Viena, Freud e sua escola estavam à beira da celebridade mundial. Tal refundação se deu às pressas, a apenas dez dias do Congresso de Psicanálise de Salzburgo da IPA, isto é, quando a psicanálise fundava-se como movimento internacional. O que é interessante notar, de nosso ponto de vista, é que a psicanálise funda-se como um verdadeiro movimento de amplo alcance internacional a partir do momento em que suas bases teóricas conceituais7 são construídas: primeiro, em 1900, com o conceito de inconsciente apresentado em A interpretação dos sonhos, e em seguida, com o conceito de pulsão, introduzido pela primeira vez em 1905, nos Três ensaios.
A fundação da psicanálise parece se consolidar com o advento da pulsão e sua articulação com o inconsciente. Pode-se dizer, inclusive, que o conceito de pulsão torna o inconsciente uma conquista freudiana definitiva e dá a ele seu verdadeiro alcance. O primeiro ensaio de Freud, sobre as chamadas aberrações sexuais, termina com a introdução desse conceito, o qual parece ser apresentado como um verdadeiro corolário do que Freud traz nesse primeiro ensaio sobre a perversão (1905, p. 152).
A complementaridade mítica
Cabe destacar que o tópico da homossexualidade ou como é ali denominada, da “inversão sexual”8 é central nos Três ensaios, assim como era o tema de inúmeros trabalhos dos sexólogos do século XIX. Não é por acaso que o livro de Freud se abre e se encerra com esse tema, e é precisamente ele que parece constituir o móbil principal dos desenvolvimentos ali contidos.
Dentro da seção dedicada às “Aberrações sexuais”, que é a primeira do primeiro ensaio, o tema da inversão sexual ocupa a quase totalidade das páginas dedicadas aos desvios relativos ao objeto sexual. A seção “Sobre os desvios relativos ao objeto sexual” do primeiro ensaio, composta de catorze páginas e meia, tem treze páginas dedicadas à “inversão sexual” e uma página e meia às “pessoas sexualmente imaturas e animais como objetos sexuais”.
Já o último tópico do terceiro (e último) ensaio intitula-se “a prevenção da inversão”. Nele podemos observar a maneira sub-reptícia pela qual Freud praticamente traz a homossexualidade para o campo da normalidade. Observando que a atração que os caracteres sexuais antagônicos exercem um sobre o outro não é suficiente para excluir a inversão, Freud pondera que sua interdição pela sociedade é um fator proeminente para realizar essa exclusão. E acrescenta que “quando a inversão não é considerada um crime, ver-se-á que ela responde amplamente às inclinações sexuais de um número não pequeno de pessoas” (p. 209).
Além disso, todo o livro é pontuado por observações percucientes sobre a homossexualidade. Por exemplo, quando ele aborda a evolução sexual das meninas, encontra um meio para dizer as coisas de modo a que não se estabeleça aquilo que é normal ou não: “elas assim adquirem uma relação hostil com seu próprio sexo, que influencia decisivamente sua escolha de objeto no que é considerado direção normal” (p. 209). A frase de Freud é clara: a direção heterossexual é normal por mera convenção. A mesma maneira de se expressar se repete em outra passagem, quando ele fala dos “casos considerados anormais” (p. 134). Uma longa nota de rodapé acrescentada aos Três ensaios, em 1915, logo em concomitância com a escrita do artigo metapsicológico sobre As pulsões e suas vicissitudes, merece ser lida em um de seus trechos:
A pesquisa psicanalítica se opõe com o máximo de decisão que se destaquem os homossexuais, colocando-os em um grupo à parte do resto da humanidade, como possuidores de características especiais. Estudando as excitações sexuais, além das que se manifestam abertamente, descobriu que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual, e que na realidade o fizeram em seu inconsciente. Realmente, as ligações libidinais com pessoas do mesmo sexo desempenham um papel tão importante como fatores na vida psíquica normal, e mais importante como causa da doença, quanto ligações idênticas com o sexo oposto. Ao contrário, a psicanálise considera que a escolha de um objeto, independentemente de seu sexo que recai igualmente em objetos femininos e masculinos , tal como ocorre na infância, nos estágios primitivos da sociedade e nos primeiros períodos da história, é a base original da qual, como conseqüência da restrição num ou noutro sentido, se desenvolvem tanto os tipos normais como os invertidos. Assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente em si mesmo, baseado em uma atração, afinal de natureza química (p. 132).
A quebra da valorização da homossexualidade como anormalidade é igualmente empreendida por Freud (p. 152), de modo indireto, quando ele fala das neuroses como “perversões negativas”, e das perversões como “perversões positivas”. Freud leva muito longe seu diktat de que “a neurose é o negativo da perversão”. O primeiro aspecto dos três sobre o qual Freud (p. 151) chama atenção, quando fala da relação entre neurose e perversão e enumera os pontos que aproximam ambas, é a homossexualidade. Aliás, é a maneira pela qual Freud abordará a categoria novecentista de perversão, que retirará a homossexualidade do campo da patologia. Além de introduzir a categoria inédita de “perversão polimorfa” para designar a sexualidade infantil, o uso mesmo do termo “perversão” por Freud é extremamente ponderado: para ele, esta palavra não pode ser usada como censura, e sua utilização não é uma utilização moral (p. 146).
A classificação freudiana das aberrações sexuais, trazida no primeiro ensaio como divididas entre os “desvios quanto ao objeto” e “desvios quanto ao objetivo”, já é ela própria tributária da conceituação da pulsão aí introduzida. Apresentando quatro elementos fonte, força, objeto e alvo ou objetivo vê-se que a estrutura da pulsão comporta uma relação com o alvo, a satisfação, que reconsidera o saber sexológico em vigor na época: a busca de uma satisfação é inerente à própria pulsão e independe do objeto, este considerado como inteiramente variável.
Chama a atenção que logo na abertura do primeiro ensaio, Freud cita o mito de Aristófanes, do Banquete, de Platão, de forma parcial: “o conceito popular da pulsão sexual é refletido na lenda, cheia de poesia, segundo a qual os primeiros seres humanos foram divididos em duas metades o homem e a mulher , que estão eternamente procurando novamente se unir pelo amor” (p. 124). Não é desse modo simplista que Aristófanes narra seu mito: ao contrário, os seres originários eram esferas compostas de duas porções e de três tipos diferentes, masculinas, femininas e andróginas (Platon, 1964, p. 49). Aristófanes descreve minuciosamente que, tendo sido divididos ao meio, tais seres passaram a buscar suas metades das quais foram cindidos e surgiram seres homens que buscavam suas metades masculinas, seres mulheres que buscavam suas metades femininas e homens e mulheres que buscavam suas metades opostas. O que talvez devamos ressaltar é que, no mito de Aristófanes sobre o amor, a heterossexualidade é fruto de uma androginia original! E se Freud narra o mito de modo tão simplista e mesmo reducionista, perguntamo-nos por quê. E supomos que ele o faz na medida em que com isso reforça a idéia de que a complementaridade entre os sexos é mítica, lendária.
A conclusão geral a que Freud é levado, ao encerrar sua abordagem sobre os desvios quanto ao objeto, diz respeito à variabilidade do objeto sexual: “sob inúmeras condições, e em um número surpreendentemente grande de indivíduos, a natureza e a importância do objeto sexual recuam para um plano secundário. O que é primordial e constante na pulsão sexual é algo diferente” (1905, p. 136).
A mesma quebra de barreira entre normal e patológico é estabelecida por Freud (p. 139) ao insistir na noção de “condição fetichista” inerente a toda e qualquer escolha de objeto. Ou ainda quando afirma, citando Moebius, que de certa forma somos todos histéricos...
Assim, o primeiro ensaio se dirige para a demolição da barreira entre normal e patológico e se encerra com a argumentação freudiana de crítica à teoria do inatismo para a perversão (Krafft-Ebing), e também do adquirido (Binet). Freud faz todo o seu encaminhamento no sentido de poder vir a afirmar que há algo de inato nas perversões, sim, mas de modo universal: “há, na verdade, algo inato atrás das perversões, mas que é algo inato em todas as pessoas, embora como uma disposição, possa variar de intensidade e ser aumentado pelas influências da vida real” (p. 156). Trata-se da bissexualidade, elemento teórico que atravessou todo o diálogo entre Freud e Fliess, e que permite a Freud situar a perversão polimorfa como constituinte e evidenciá-la nas manifestações da sexualidade infantil.
Freud consegue produzir uma verdadeira torção no conflito teórico que havia na época. A polêmica parece ter seguido o seguinte fio. Inicialmente, Krafft-Ebing atribui como causa das perversões em geral a degenerescência, noção oriunda de Morel, extremamente vaga e sem precisão. Binet e alguns outros contestam esta visão e sustentam a hipótese do determinismo adquirido. Freud soluciona a questão de um ponto de vista verdadeiramente terceiro: para ele, não significa que não haja algo hereditário, que surge inato, apenas que este fator é comum a todos os sujeitos. Esta é a noção freudiana de disposição neuropática geral, presente em todo e qualquer indivíduo sem exceção, e que está na base do possível desencadeamento das chamadas perversões sexuais. Freud inclui em sua abordagem o inconsciente, e essa inclusão subverte radicalmente a oposição normal-patológico, de tal maneira que leva Lacan a afirmar que o inconsciente é a “verdadeira doença mental do homem”.
Esse episódio ocupa um lugar fundamental na história da psicanálise. Freud chegou a tal posicionamento após inúmeras reviravoltas, que são narradas por ele mesmo no breve, mas luminoso, artigo Meus pontos de vista sobre o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses (1906). Nos Três ensaios, Freud assevera peremptoriamente que esta “disposição para as perversões de toda espécie é uma característica humana geral e fundamental” (1905, p. 174).
Da bissexualidade ao objeto a
A teoria da bissexualidade foi um dos nomes encontrados por Freud na cultura científica do século XIX para expressar a impossibilidade da relação sexual. Se há inversão, isso se dá porque há uma “disposição bissexual” (Freud, 1905, p. 131). Ele contesta, no entanto, a hipótese de que haveria uma relação entre o hermafroditismo somático e um suposto hermafroditismo psíquico, que estaria na origem da inversão. Na verdade, a teoria da bissexualidade é um verdadeiro imbróglio teórico do qual Freud custa a se desembaraçar. E é nesse sentido que a criação do conceito de pulsão, em 1905, surge como verdadeiramente tributária do longo diálogo estabelecido entre ele e Fliess sobre a noção de bissexualidade, pois é exatamente após a ruptura entre eles, cujo relacionamento durou dezessete anos e se estendeu entre 1887 e 1904, que Freud cria o conceito de pulsão:
1887 1904 1905/--------------------/-----/bissexualidade pulsão
A pulsão é a resposta conceitual forjada por Freud para dar uma consistência às observações trazidas por diferentes autores da época sobre a bissexualidade. Freud jamais deixaria de falar de bissexualidade até o final de sua obra, e a definiu em sua relação com a escolha de objeto, descartando toda e qualquer referência à bissexualidade biológica, tal como a sustentava Fliess. A discussão entre eles sobre esse ponto incidia mais precisamente sobre a relação entre a bissexualidade e o recalque: Fliess acreditava que a primeira explicava o segundo, no sentido de que o homem recalcava elementos femininos e a mulher, elementos masculinos. Se Freud se insurge contra essa concepção, é na medida em que deste modo o sexo biológico seria prevalente e engendraria, como verdadeira palavra final, os processos psíquicos ligados ao recalque.
Para Freud, ao contrário, a bissexualidade era uma disposição psicológica responsável pelas diferentes escolhas de objeto, homossexual e heterossexual, considerando que em todo sujeito encontramos ambas as formas de escolha de objeto em quantidades diversas. Em 1908, para citarmos uma das mais importantes passagens freudianas sobre o tema, no artigo sobre Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, Freud enuncia que há uma “disposição bissexual inata no homem” (p. 146). Mais adiante voltaremos a este aspecto quantitativo na obra de Freud.
Se hoje não mais falamos em bissexualidade, isso se dá na medida em que temos o conceito de objeto a, introduzido por Lacan em 1960, no seminário sobre A angústia. O objeto a representa uma espécie de conclusão, nomeadamente almejada por Feud, de sua teoria das pulsões, e com ele podemos prescindir da tematização imaginária sobre a escolha de objeto. O objeto a, digamos assim, vai à raiz do problema, e ao invés de abordar a questão pela via do imaginário, o faz pela dimensão do real.
O objeto a é a denominação mínima estabelecida por Lacan, com a primeira letra do alfabeto dizia ele: “se fosse tão fácil falar dele, nós lhe daríamos outro nome que não objeto a” (1967, p. 364) , para falar desse objeto que não existe e que, por isso mesmo, antes de ser o objeto do desejo, é o objeto causa do desejo, afirma Lacan no seminário R.S.I. (lição de 21/1/1975). Lacan formularia, no seminário Mais, ainda: “não é a mulher que o homem aborda, mas a causa de seu desejo, o objeto a” (1972-1973, p. 67-68).
As diferentes escolhas imaginárias de objeto, tematizadas por Freud no rigor de sua ocorrência clínica, são reduzidas por Lacan à lógica do real inerente à falta de objeto. Lacan (1956-1957, p. 13) já anunciara tal reviravolta no seminário sobre A relação de objeto, ao chamar a atenção para aquela passagem situada ao final dos Três ensaios, na seção sobre “O encontro de um objeto”, na qual Freud enuncia que “o encontro de um objeto é, na realidade, um reencontro dele” (1905, p. 203). O seio como objeto perdido no desmame é prototípico do objeto a.
Ressalte-se que o objeto a é prefigurado em Freud de diversos modos por exemplo, quando ele afirma que devemos “afrouxar o laço que em nosso pensamento estabelecemos entre a pulsão sexual e o objeto. Parece provável que a pulsão sexual seja, em primeiro lugar, independente de seu objeto; nem é provável que sua origem seja determinada pelos atrativos de seu objeto” (1905, p. 134).
Como uma de suas estratégias para quebrar a barreira entre normal e patológico no âmbito da sexualidade, Freud valoriza nomeadamente o ponto de vista quantitativo em detrimento do qualitativo: “as diferenças de resultados podem ser de natureza qualitativa, porém a análise demonstra que as diferenças entre suas determinantes são apenas quantitativas” (p. 132), afirma ele ao tratar do objeto sexual dos invertidos. A própria pulsão é caracterizada por Freud como não tendo qualidade (p. 146 e 153).
Homossexualidade: inversão, perversão ou subversão?
A todo momento, vê-se na cultura o papel subversivo desempenhado desde sempre pela sexualidade humana, e, muito especialmente, pela homossexualidade. Exemplar disso foi a reeleição de George W. Bush para o governo dos Estados Unidos, a qual, segundo os especialistas, se deu essencialmente em virtude do apoio da massa conservadora da população ao candidato que era contrário à aprovação da lei que autorizava o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o same sex marriage, como é chamado em inglês. Enquanto se esperava que muitos eleitores, que jamais foram às urnas não obrigatórias americanas, o fizessem para resguardar o mundo dos malefícios da poderosa capacidade destrutiva do governo republicano recém-exibida por Bush no Iraque, teve-se a surpresa de ver a questão sexual tomar o primeiro plano na mente dos cidadãos americanos. Eles preferiram optar por exterminar outros povos e verem morrer seus filhos do que admitir a diferença posta em jogo pelo desejo homossexual. Diferença esta que se resume na formulação lacaniana: “a relação sexual não existe”. Repudiar o casamento de homossexuais é uma excelente maneira de sustentar o mito da relação sexual: ou seja, o de que há complementaridade entre os sexos. Nesse sentido, é importante observar como o recente debate suscitado nos EUA por esta questão trouxe à baila expressões como: “união natural”, “casamento sagrado” etc.
É significativo, nesse sentido, que Freud ao abrir os Três ensaios, cite o mito de Aristófanes, do Banquete de Platão, de maneira espantosamente parcial. Ele retira do mito seu poder subversivo, a idéia de que há seres homossexuais e heterossexuais, e o apresenta exclusivamente no aspecto romântico, difundido na cultura, de busca da complementaridade entre os sexos opostos. Se isso se dá, certamente é por uma estratégia: o livro de Freud é um questionamento desta mesma idéia, ele desenvolve precisamente aquilo que Lacan irá resumir dizendo: a relação sexual não existe. Ou seja, não existe complementaridade entre os sexos. E se na época falava-se de “inversão sexual”, é porque se acreditava que havia uma “versão” sexual. Tudo indica que Freud retira do mito sua faceta mais aceita pela cultura para poder desenvolver sua crítica em relação a ela. A esse respeito, é bastante significativo que Freud igualmente encerre os Três ensaios referindo-se à Antigüidade grega...
Outra manifestação recente na cultura da força da sexualidade foi uma tentativa da governadora do Estado do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho (cujo nome é graciosamente bissexual...), de instaurar pelo Estado o tratamento gratuito para os homossexuais que quisessem se curar. Trata-se do projeto de lei nº 717/2003, proposto pelo deputado estadual evangélico Edino Fonseca. Os maiores de idade poderiam buscar tratamento “voluntariamente” e os menores, pela vontade dos pais! Tal projeto, que parte do pressuposto de que a homossexualidade é uma doença que pode e portanto, deve ser tratada, aliando os preconceitos dos evangélicos filiados à Assembléia de Deus às forças repressivas do Estado, não obteve aceitação e foi repudiado na medida em que alguns segmentos da cultura manifestaram-se intensamente por meio de artigos na imprensa e por protestos na Câmara.
Nesse caso, os psicanalistas se pronunciaram para sustentar a posição freudiana apresentada nos Três ensaios e desenvolvida ao longo de toda sua obra. Antonio Quinet denunciou essa proposta como “um dispositivo heterossexista e homofóbico, que favorece a homofobia internalizada (de todos) ao alimentar a fantasia de conversão (seguindo o modelo da conversão religiosa espetacularmente encenada nos templos evangélicos), e ao prometer o impossível: a ortopedia da pulsão sexual” (2004, p. 7). Acyr Maya manifestou igualmente seu repúdio em relação à ABRACEH, grupo liderado pela psicóloga evangélica Rosângela Alves Justino, cujo objetivo é “fornecer apoio aos homossexuais quer voluntariamente desejam deixar a homossexualidade”. Maya considerou tal instituição que contraria uma das instruções do Conselho Federal de Psicologia, segundo a qual “a ética dos psicólogos é laica e, portanto, o exercício da profissão não pode ser confundido com crenças religiosas que os psicólogos porventura professem” como sendo uma “coerção disfarçada de terapia”, que visa, no fundo, com a pretensa corroboração da ciência, “anular a legitimidade da existência dos homossexuais e estancar o processo da luta pelos seus direitos” (2004, p. 7).
Não foi o que ocorreu em França: nesse país, o recente debate sobre a adoção de crianças por pais homossexuais produziu uma manifestação contrária de alguns psicanalistas, veementemente denunciada por Elisabeth Roudinesco como sendo uma verdadeira cruzada contra os homossexuais em nome da psicanálise. Em um debate publicado em 2000 na revista Le nouvel observateur, Jean-Pierre Winter declarou-se contra, e afirmou que os casais homossexuais querem fabricar “crianças simbolicamente modificadas”. Charles Melman acusou os pais homossexuais de serem adeptos de um tipo de narcisismo primário, do qual estaria excluída toda relação verdadeira com o outro. Já Pierre Legendre considerou o desejo de normalização dos homossexuais como tributário de um hedonismo ilimitado, herdeiro do nazismo. Roudinesco pergunta a esse respeito:
Por que os homossexuais seriam responsáveis por este hedonismo que existe em toda parte nas sociedades ditas pós-modernas e que, de fato, podemos criticar? E por que designar este hedonismo como um herdeiro do nazismo, ao passo que esta corrente filosófica existe desde a Grécia arcaica? (2002, p. 32)
Vê-se que estar sob a proteção do nome “psicanálise” ou de qualquer de suas instituições, ou mesmo dizer-se lacaniano, não é minimamente suficiente para sustentar seu discurso. Trata-se de algo muito diferente. Esses psicanalistas justificaram suas posições por meio de teorias e foram bombardeados por uma cultura liberal, na qual não há lugar para a homofobia travestida de discurso científico. Felizmente, Elisabeth Roudinesco teve a suficiente coragem para levantar a bandeira da psicanálise na imprensa e junto ao meio intelectual. Foi ela quem não se esqueceu de que, se a cultura hoje adquiriu grande liberdade na matéria sexual, isso se deve à obra do criador da psicanálise, sendo dela o efeito.
As conquistas que a cultura vive hoje quanto à liberdade sexual são conquistas empreendidas por um único homem, de forma solitária, mas insistente. Devemos a Freud tudo isso. Por tudo isso, este Congresso tem toda a sua importância e um alcance especial na cultura contemporânea e na comunidade psicanalítica. É preciso comemorar estes 100 anos desta obra que permitiu à humanidade se compreender melhor e voltar a refletir sobre ela. Pois, como quis apontar, nada está conquistado de uma vez por todas e tudo resta a ser feito.
Referências Bibliográficas
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Endereço para correspondência
Marco Antonio Coutinho Jorge
Rua Terezina, 19 20240-310 Santa Teresa Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21) 2242-5237
E-mail: macjorge@corpofreudiano.com.br
Recebido em 27/06/06
Aprovado em 05/03/07
Notas
IPsiquiatra; Psicanalista; Professor Adjunto (Instituto de Psicologia/UERJ); Diretor do Corpo Freudiano (Seção RJ); Membro Correspondente da Association Insistance (Paris/Bruxelas); Autor de Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan; Co-autor de Freud, criador da psicanálise e de Lacan, o grande freudiano; Organizador de Lacan e a formação do psicanalista.
1Em meu livro Fundamentos da psicanálise vol.1: as bases conceituais, abordo os dois grandes conceitos de modo oposto ao da cronologia de seu surgimento, primeiro a pulsão e em seguida o inconsciente.
2Citações de Freud são de tradução minha.
3De fato, para Lacan as pulsões constituem “o eco no corpo do fato de que há um dizer”; e ele próprio frisa que lhe coube precisamente o mérito de explicitar essa via “da relação entre linguagem e sexo” (Lacan, Le sinthome, seminário inédito, lições de 18/11/1975 e 16/3/1976).
4O termo “galinhagem”, empregado em nossa língua para designar a atividade sexual, parece nos indicar esta balbúrdia a ela inerente.
5Após A interpretação dos sonhos, O banquete, Mais-além do princípio de prazer, A fenomenologia do espírito, Totem e tabu, Função e campo da palavra e da linguagem na psicanálise (Cf. École Lacanienne de Psychanalyse, 1998, p.66).
6Esta sala é a única do apartamento da Berggasse 19, em Viena, que hoje se encontra mobiliada exatamente como na época em que os Freud ali viveram, pois quando a cidade de Viena comprou o imóvel para transformá-lo em museu, na década de 1970, Anna Freud enviou de Londres o mobiliário da sala de espera para recompô-la integralmente.
7Como os situamos em Jorge (2000, vol. 1: as bases conceituais).
8Em 1910, no ensaio sobre Leonardo da Vinci, Freud deixa de utilizar o termo inversão sexual e passa a utilizar a palavra homossexualidade.