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Psychê
versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007
ARTIGOS
A posição obsessiva frente ao saber: pontuações
The obsessive position towards knowledge: punctuations
Juliana de Miranda e CastroI
Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
O artigo parte do exame da relação da psicanálise com o saber. Trata-se de um laço em que a primeira não toma o saber como um objeto a ser plenamente apreendido. Em seguida observa como a posição obsessiva tenta preencher a impossibilidade de apreensão total de um objeto a ser conhecido. Aproximando a posição obsessiva de nossa posição no cotidiano aponta para conseqüências que se afastam da mobilidade subjetiva proposta pela psicanálise.
Palavras-chave: Neurose obsessiva, Posição do analista, Discurso universitário, Saber, Psicanálise.
ABSTRACT
This article investigates the relation between psychoanalysis and knowledge. Psychoanalysis does not really consider knowledge as an object of its scrutiny. We then observe how the obsessive position tries to fill this impossible total apprehension of such an object. Approaching obsessive position to our everyday position, points to consequences that are distant from the psychoanalytical proposal of a mobile subject.
Keywords: Obsessive neurosis, Analyst position, University discourse, Knowledge, Psychoanalysis.
Da apreensão de alguma coisa vinda da psicanálise
Freud afirma que “a coincidência entre pesquisa e tratamento no trabalho analítico é sem dúvida um dos títulos de glória deste último” (1912, p. 114), o que nos indica a dimensão clínica do saber psicanalítico. Na psicanálise, pesquisa e tratamento coincidem de modo que a psicanálise aplicada e a psicanálise teórica, inseparáveis, são duas faces de uma mesma moeda. Czermak diz que “a prática psicanalítica é teoria, seus instrumentos sendo os próprios sujeitos operados” (1998, p. 175). Segundo Elia, a prática analítica, tal como estruturada a partir do discurso analítico e sua teoria, admite e mesmo propõe um tipo de atividade de pesquisa segundo critérios próprios de execução, validação e transmissão. A pesquisa é a própria prática analítica, desde que orientada pelo eixo ético da investigação. Se nos deparamos com uma dificuldade na clínica, esta se manifesta como um impasse teórico. Segundo o autor, a clínica é a descoberta do ainda não dito, pois o inconsciente é algo de não realizado, trata-se “da produção do que não havia até então para o sujeito constituindo-se como a produção do sentido do que sempre houve, mas que só passa a sempre ter havido a partir do momento de sua produção, do então, até quando não havia” (1992, p. 27). É sempre a posteriori que se pode dizer que houve ato analítico.
Freud fundou a psicanálise no seio da ciência. Entretanto, aquela se diferencia essencialmente desta no que diz respeito a seu objeto, o sujeito do inconsciente. A ciência se pretende um discurso sem sujeito; depois de tê-lo suposto, faz sua exclusão, ejetando-o para fora de seu campo, enquanto a psicanálise o coloca como seu referente absoluto. Trata-se de “cernir e transmitir esse objeto que a própria ciência deixou de lado, ao forcluir o sujeito” (Rocha, 2002, p. 173).
O sujeito da psicanálise é o do inconsciente, aquele sem qualidades “o pensamento que Freud nega ao inconsciente é o pensamento qualificado; o pensamento que ele lhe concede e pelo qual Lacan o define é o pensamento sem qualidades” (Milner, 1996, p. 59). Trata-se de um pensamento sem consciência de si1. Assim como a ciência, a psicanálise despe o objeto de suas qualidades; o significante é despojado da compreensão do significado. Há, na psicanálise, uma oposição ao puro formalismo da ciência, em que o ideal é o desaparecimento, no dito, do fato de que ali um sujeito disse ou seja, a elisão do ato de dizer. Mas a psicanálise vem mostrar que há um saber que nos sabe, “um saber que tem seu suporte no significante como tal” (Lacan, 1972-1973, p. 88). Desse modo, o saber a ser construído, a partir da clínica, tem sua base no saber do inconsciente. Lacan afirma que “o inconsciente está acima de todos os pensamentos e que aquilo que pensa está vedado à consciência. (...) Trata-se de um pensar com palavras, com pensamentos que burlam nossa vigilância, nosso estado de alerta” (p. 201).
Lacan fala que um computador pensa, mas não sabe. No computador, coloca-se um saber e ele pensa melhor até do que nós. Os elementos dessa lógica não são equívocos, isto é, o computador não lida com significantes, mas com conceitos uníssonos. Para ele, sua lógica é completa.
Porém, “como construir um saber que é definido como aquilo que nos sabe? Como falar do inconsciente se é o inconsciente quem diz? (...) Lacan parte desse fato, de que aquilo de que se fala opera, sempre, aí mesmo, no ato de falar” (Rocha, 2002, p. 135). Lacan fala das conseqüências daquilo que enuncia possa operar. Segundo ele, o ensino universitário é aquele que não leva a conseqüências, não ocasiona desordem:
Aqui se enuncia algo que bem que poderia quem sabe? ter conseqüência. (...) O princípio do ensino que nós qualificaremos, para situar grosseiramente as coisas, de ensino de Faculdade, é precisamente que o que quer que seja de tudo o que diz respeito aos temas mais ardentes, até mesmo da atualidade, política, por exemplo, tudo isto seja apresentado, posto em circulação, precisamente de forma que não leve a conseqüências. Pelo menos é a função à qual satisfaz há muito tempo, nos países desenvolvidos, o ensino universitário. (...) É que ela tem isso de tolerável: o que quer que nela se profira, não ocasionará desordem (1967-1968, p. 26).
No discurso universitário, o agenciamento é feito por um saber que se toma por inteiro, um saber que se sabe, assentado em um saber absoluto. Não está em jogo a transmissão, mas uma relação pedagógica, a qual visa à repetição de enunciados, no intuito de não permitir a irrupção de fissuras, mas o embotamento das questões= (Andrade, 1992, p. 187).
Ao ser indagado por que os estudantes de Vincennes não poderiam se tornar analistas, Lacan afirma: “a psicanálise não se transmite como qualquer saber. O psicanalista tem uma posição que pode ser eventualmente a de um discurso. O psicanalista não transmite aí um saber, não que ele não tenha nada a saber, contrariamente ao que se avança imprudentemente” (1969-1970, p. 228). A prática universitária regida pelo discurso universitário caracteriza-se por não trazer conseqüência alguma, nenhuma mutação, afastando-se da dimensão do ato. Ele, no entanto, não afirma a impossibilidade de que uma prática na universidade possa fazer outra coisa. Entendemos que um trabalho na universidade pode não significar necessariamente discurso universitário.
Freud, em Deve-se ensinar a psicanálise na universidade?, comenta que a incorporação da psicanálise na universidade é motivo de satisfação para os analistas, sem deixar de ressaltar que estes podem prescindir da universidade sem qualquer dano para sua formação. Ele afirma que à orientação teórica o analista pode ter acesso por meio da bibliografia respectiva. Freud chega a levantar a questão das sessões científicas das associações analíticas, nas quais ele pode ter contato com seus membros mais experientes. Já a prática é alcançada mediante sua análise pessoal e a supervisão de psicanalistas mais reconhecidos (1919, p. 169).
O autor diz que a universidade pode apenas se beneficiar ao incorporar a psicanálise em seus planos de estudos. Entretanto, esse ensino só pode acontecer mediante aulas teóricas, pois somente em casos muito especiais poderá experimentar a prática. Finaliza seu texto com a objeção de que o estudante na universidade nunca poderá aprender totalmente a psicanálise, encarada a partir do exercício prático da análise. No entanto, valoriza a importância de que o aluno aprenda algo da psicanálise e o assimile. Na tradução francesa encontramos: “será suficiente que ele aprenda algo sobre a psicanálise e alguma coisa vinda da psicanálise” (Freud, 1919/1984, p. 242).
Da redução da verdade ao campo do saber
Alguma coisa vinda da psicanálise é algo que pode trazer conseqüências, que pode causar uma mutação no que está estabelecido, pois vai contra sua paralisia. Lacan afirma que “não seria mal se a análise lhes permitisse perceber a que se deve a impossibilidade, ou seja, o que faz obstáculo ao cercamento, ao estreitamento do que poderia, talvez, em última instância, introduzir uma mutação, a saber, o real nu, nada de verdade” (1969-1970, p. 202). Na análise, segundo ele, não se trata de amor à verdade, o qual faz escapar essa impossibilidade do que se mantém como real, uma vez que tenta encobri-lo “se há algo que deva lhes inspirar a verdade se querem sustentar o Analysieren, certamente não é o amor” (p. 200).
Melman (1987) afirma que não se pode tratar, no amor à verdade, do amor como seus critérios comuns, próximos do amor à fragilidade, pois é esta que o desperta. Não se trataria de amor à fragilidade, pois a verdade não é forte nem fraca; simplesmente não é desse registro. Tampouco se pode tratar de amor em termos de narcisismo, uma vez que a verdade como tal, a verdade nua, só poderia constituir uma injúria. A verdade oferece apenas seu meio-corpo, na condição de parar no meio-dizer, não nos propõe nada que possa ser investido. Resiste em ser o suporte habitual do amor porque é muito mais do lado do gozo que nos faria alguma promessa. A verdade também não é terapêutica, já que o terapêutico é o que dá o (bom) sentido à vida. A propriedade da verdade é a de desfazer o sentido, e podemos nos perguntar em benefício de quem ou do quê.
Na análise, lançar mão do saber não traz solução alguma. O fato de Freud algumas vezes apelar para a teoria com o Homem dos Ratos (1909), dizendo-lhe o que se passava com ele, não trouxe nenhuma solução. Em Sobre o início do tratamento, pergunta-se: “o paciente não padece por causa de seu não saber e não compreender, e não é um dever torná-lo ciente o mais rápido possível, quer dizer, quando o analista o perceba?” (1913, p. 141) Fala, então, do significado do saber e do mecanismo da cura em psicanálise. No início da técnica analítica, em uma atitude de pensamento intelectualista, atribuía-se grande valor ao saber do paciente sobre o esquecido por ele. Obtinha-se informações dos familiares sobre o trauma infantil recalcado e apressava-se em comunicá-lo ao paciente, com as provas de sua exatidão, na expectativa segura de levar a neurose e o tratamento a um rápido final. Isso se mostrou um sério engano, pois o êxito esperado não se produzia “como podia ser que o paciente, conhecendo agora sua vivência traumática, se comportava, no entanto, como se não soubesse mais do que antes?” (p. 142). Nem mesmo a recordação do trauma recalcado aparecia com sua comunicação e descrição. Ele relata brevemente o caso de uma paciente que exteriorizava uma violentíssima resistência a um saber que lhe era imposto. Por fim, simulou uma total perda de memória para se proteger das comunicações de Freud “foi preciso, então, obstar ao saber como tal o significado que se pretendia para ele e salientar as resistências que em seu tempo tinham sido a causa do não saber e agora estavam prontas para protegê-lo” (p. 142).
Logo, o que está em jogo, na experiência analítica, não se refere ao conhecimento, uma vez que a verdade é meio-dizer, a qual surge como enigma “o que a verdade, quando surge, tem de resolutivo, isso pode às vezes ser feliz e, em outros casos, desastroso. Não vemos porque a verdade seria forçosamente sempre benéfica. Tem que se ter o diabo no corpo para imaginar coisa parecida, quando tudo demonstra o contrário” (Lacan, 1969-1970, p. 122). Importante marcar, nessa passagem, que Lacan fala do que a verdade tem de resolutivo e não de solução, e que não se trata, em seu discurso, de buscar uma solução: “então, não esperem do meu discurso nada mais subversivo do que não pretender a solução” (p. 80).
Ou seja, a posição analítica não visa ao amor à verdade ou a tomar a meia-verdade como verdade toda, tampouco a buscar o sentido ou pretender a solução. Se Lacan fala de resolutivo, Melman (1987) usa a palavra mutação. Resolutivo (de resolutus) indica desamarrar. Mutação refere-se a mudança de forma. É interessante que resolutivo remeta a desamarrar, romper com o que está atado, paralisado, que passa a idéia de movimento, movimento do desejo, por oposição à fixação do objeto. O que a verdade quando surge tem de resolutivo, talvez pudéssemos pensar no que ela vem aí romper com o atado, e nessa desamarração, um movimento. A verdade não está do lado do sentido; não se trata de conhecê-la ou sabê-la. Pelo contrário, a verdade vem desfazer o sentido. Não se trata de dar o bom sentido, como terapeutas, tentando impedir que o real apareça. Na ótica do terapêutico, afastamo-nos da dimensão da verdade. Isto é, a verdade não está junto ao sentido, ao todo, pois só temos acesso a ela como meio-dizer; e tomá-la como toda é uma tentativa de tamponar o real, o que permanece como impossível. Tentativa continuamente fracassada por se referir ao meio-dizer, a verdade sempre escapa.
Do sonho obsessivo do saber pleno
Essa visada terapêutica responde ao sonho obsessivo de preencher todo furo, na via da compreensão e do sentido como plenitude. A relação que o obsessivo tem com o saber é a mesma que tem frente ao objeto. O sujeito em uma posição obsessiva na vida tem uma boca aberta para o sentido: ele encampa e digere.
O obsessivo não quer ceder, pois se o Outro pede algo, deve ser porque isso é precioso, e portanto, é melhor guardar. Ele constrói uma fortaleza para não ceder o objeto. Melman aponta o primeiro circuito econômico com o Outro, fundado em uma troca de bens (o objeto cedido em troca, entre outras coisas, da nutrição), cujo resultado é a criança se ver como objeto suscetível de satisfazer o Outro. A cessão do objeto relaciona-se com o erotismo anal, tão importante na estrutura obsessiva, apresentando-se na oblatividade e na dadivosidade, ou seja, no estádio anal, no doar ou não o objeto que a mãe demanda: as fezes. Ainda, no ceder a mãe como objeto de amor, aceitando sua interdição, para que possa mover o desejo na direção de outros objetos, não se fixando, não se mantendo colado ao objeto que está, desde sempre, definitivamente perdido. O obsessivo é um constipado, por definição. Ele não quer dar o objeto porque acredita ser o do gozo supremo, o que causa uma erotização da zona anal e ele quer guardá-lo para poder reter o que há de mais precioso.
Vemos, no caso do Homem dos Ratos (Freud, 1909), que na escolha por uma mulher há a perda. Se o objeto não é cedido, a cadeia não anda, fica-se fixado, girando sempre em torno do mesmo. Para o obsessivo, a ambivalência é para não ter a divisão: é ter e não ter, e desse modo, ficar com as duas no caso, amada rica e amada pobre. Sua tapeação é como se a escolha fosse uma ou outra, quando o que se trata é de fazer cair o dilema. Essa repetição no mesmo lugar é uma tentativa de evitar a perda e o vazio. O neurótico obsessivo pode estar em uma posição de negar que não há como recuperar o significante e que não existe melhor escolha: ele quer fazer a melhor escolha. Mas o acossamento da castração provoca angústia, mal-estar no sentido freudiano, e estruturalmente ele é convocado a essa divisão e a ceder o objeto. É justamente o não ceder que está em jogo na dúvida e na ambivalência, e não o conflito amor e ódio. Ele quer olhar todas as possibilidades para escolher a verdade. Para ele, existe a verdade dada pelo Outro não barrado desde sempre, e desse modo, não teria que se confrontar com o desejo, pois a verdade o dispensaria de desejar. O obsessivo teme perder o objeto e o que faz com isso? Quer saber sobre ele. Encontra-se, assim, na ótica do saber, amando a verdade (como se ela pudesse se reduzir ao campo do saber), e não na ótica do desejo.
Ele pode se achar em uma posição de ter que produzir uma solução. Para ele, não só há solução, como há Um que a tem. A crença, esse sentimento de que há alguém, em algum lugar, que sabe, tem destaque na neurose obsessiva. Por isso, se ele se acha em defasagem, se há Um que tem, ele poderia obter. Esse há alguém existe não por um fenômeno alucinatório, mas por razões de estrutura. É importante enfatizar que esse tipo de manifestação faz parte do funcionamento neurótico; estamos em um terreno familiar, presente em nossa vida cotidiana (Melman, 1999). Em certa medida, somos concernidos por isso, por essa crença nesse Um que sabe, por esse amor à verdade que viria trazer a solução. A solução, que o obsessivo se acha em posição de ter que produzir, que é o que dispensaria o sujeito de desejar, estaria no saber. O obsessivo é apegado a ele, está o tempo todo buscando e produzindo saber, fascinado por ele. Trata-se de um saber aprisionado, fechado, completo, que visa a se confundir com a verdade. Ele ama a verdade para impedir que ela apareça e não sofrer seus efeitos. Ele defende a meia-verdade, contanto que aquilo que se refira à verdade não apareça.
Nessa direção, vale uma breve menção ao uso do tempo como estratégia, que incide sobre a relação do neurótico obsessivo com o saber. O corte na sessão é necessário para que o analista faça uma pontuação. Esta dá sentido ao texto e pode determinar sentidos distintos. Isto é, parar a fala de um paciente em um ou outro ponto pode dar um efeito de sentido completamente diferente a uma sessão. Logo, o tempo é uma pontuação. A interrupção do analista pode fazer significar para o paciente o que havia de desejo engajado em sua fala e que a pontuação pôde lhe permitir escutar.
Da digestão obsessiva do saber
Na clínica, não temos o saber do mestre sobre o que se passa com o paciente. A dificuldade da neurose obsessiva é justamente o lugar em que nos colocamos para estudá-la. Não se pode estar na posição histérica da antipatia de opor neurose obsessiva e histeria. É raro a posição histérica considerar a posição obsessiva com uma neutralidade benevolente (Melman, 1987). Quando se está em uma posição obsessiva, a dificuldade concerne ao fato de que, como sujeito, estamos implicados demais no movimento próprio da neurose para ter o distanciamento necessário para observar seu movimento. Pelo fato da neurose obsessiva estar tão próxima do funcionamento de nosso pensar consciente, ao contrário do que se poderia pensar, ela é mais difícil de ser compreendida do que a histeria, justamente porque impede o afastamento necessário.
Não é coisa fácil entender uma neurose obsessiva; é muito mais difícil do que um caso de histeria. Na verdade, esperaríamos o contrário. O meio pelo qual a neurose obsessiva expressa seus pensamentos secretos, a linguagem da neurose obsessiva, é por assim dizer apenas um dialeto da linguagem histérica, mas um dialeto a respeito do qual se deveria conseguir mais facilmente a empatia, pois parece mais a expressão de nosso pensar consciente do que o dialeto histérico. Sobretudo, não contém o salto do anímico para a inervação somática a conversão histérica que nunca podemos acompanhar conceitualmente (Freud, 1909, p. 124).
Se consideramos a neurose obsessiva um dialeto da histeria, podemos pensar que “o obsessivo fala através do discurso da histérica” (Andrade, 1992, p. 188). Tanto na histeria quanto na neurose obsessiva é um sujeito desejante que está em jogo. Na histeria, a barra trespassa o sujeito escancaradamente. Na neurose obsessiva, ela é disfarçada e envergonhada. O obsessivo quer se oferecer como objeto para o outro, ser seu escravo, afligido por se configurar como desejante. Mas trata-se, inexoravelmente, do desejo como efeito de uma falta. Os destinos da neurose desenrolam-se na tentativa obsessiva de encobrir o vazio (p. 188-189). É por meio do discurso histérico que o obsessivo fala. Mas ele se vê fascinado, em sua empreitada de tamponamento do vazio, pela promessa do discurso universitário de um saber sabido e absoluto sobre o objeto, que o dispensaria de desejar.
Melman ressalta a facilidade obsessiva à exegese, à multiplicidade de sentidos possíveis, sem chegar ao fim (1987, p. 18). Há uma tendência a saber sobre o objeto como tentativa de não ser por ele atingido, uma espécie de compulsão de querer saber e de ter o saber sobre o objeto. A tendência à exegese não é exclusiva do obsessivo, mas inerente à neurose. Frente a isso, é importante buscar não operar uma redução e colar o que não se encaixa, na via da compreensão, para evitar a angústia da suspensão, mas tentar suportá-la. Ainda, não se trata de abrir infinitamente o leque das possibilidades, porque assim não se chegaria nunca ao fim exatamente ao modo do eterno adiamento do sujeito obsessivo.
“Com efeito, a interpretação dos textos de Lacan tem um fim, como a análise: é o fim que Lacan colocou, porque era um racionalista. E é este fim, f.i.m. sempre, de que se trata para nós de ressuscitar” (Melman, 1987, p. 19). Há passagens em que Lacan, explícita e intencionalmente, escreveu como enigmas. Quando os psicanalistas tentam comandar o saber, ficam na impotência, ou seja, a impotência específica do discurso analítico é a impotência de comandar o saber. Diferentemente da aspiração a uma eterna exegese e da degustação infinita dos textos lacanianos, o fim da análise não está no comando do saber.
O que torna difícil o estudo de Lacan é que nunca chegamos a capturar nada porque seu ensino é organizado em torno de um vazio, de um furo. Isso significa que “os significantes apenas circulam em torno desse furo e é isso que ele quer ensinar a seus alunos” (Melman, 2004, p. 33). A existência do sujeito toma lugar nesse furo e não há nada que a sustente “cada um de nós sabe que a verdade que o habita, sua própria verdade não é aquela que organiza sua aparência; que a sua verdadeira verdade está alhures. E, no entanto, todo mundo tenta esquecer esta verdade, que é a do inconsciente. Quer dizer que passamos nossa existência a nos defendermos contra esse furo, que é central para nossa vida” (p. 34).
Lacan nunca dava a impressão de que tinha o saber do que se passava com o analisando, mas que deveria sem cessar construir seu saber a partir do que este lhe dissesse; em Lacan havia esse furo, o mesmo que havia no analisando. Ele escutava seus pacientes sempre como se tivesse a necessidade de constituir seu saber, inventar o tipo de saber capaz de responder à sua singularidade, e não com um saber capaz de tudo decifrar.
Evitar o confronto com o impossível de tudo saber, eis o objetivo do obsessivo, sua visada da acumulação do saber, na posição do amor à verdade, como acesso à verdade toda. No discurso universitário, esse impossível é elidido. Lacan aponta diferentes modalidades de confronto com o vazio: a tentativa obsessiva é sua evitação, enquanto a do discurso universitário é sua rejeição (Lacan, 1959-1960, p. 155). O sucesso da neurose obsessiva seria um pensamento totalizante e, portanto, totalitário pois visa ao absoluto, em nome de seu suposto Bem. A psicanálise, em contrapartida, não segue a via da evitação nem da rejeição desse vazio, mas de permitir que o sujeito se confronte com isso.
O obsessivo pretende saber tudo e ter sempre a boa resposta. Quer ser o melhor e quanto mais tenta, mais sofre: quanto mais moral busca ser, mais é parasitado por pensamentos obscenos. Ele tem um sofrimento que dissimula, pois isso significaria demonstrar que há uma falha nessa felicidade perfeita que quer mostrar. É um sujeito que se defende contra a castração, o que tem sempre conseqüências patológicas. O impossível é nosso motor, nossa fonte de energia e todas as formas pelas quais tentamos suturá-lo custam muito caro, de um modo ou de outro.
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Endereço para correspondência
Juliana de Miranda e Castro
Rua Visconde de Pirajá, 411 / 802 22410-003 Ipanema Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21) 3813-7478
E-mail: ju.castro@terra.com.br
Recebido em 01/06/05
Versão revisada recebida 05/02/07
Aprovado em 12/02/07
Notas
IEspecialização em Psicanálise (UFF); Mestrado em Teoria e Clínica Psicanalíticas (UERJ); Doutoranda em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica.
1“O Inconsciente é o que diz não à consciência de si enquanto privilégio” (Milner, 1996, p. 55).