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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.25 no.3 São Paulo maio/dez. 2020
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i3p568-575
10.11606/issn.1981-1624.v25i3 p568-575
RESENHA
A partir do impossível, educar é preciso
Laura Carrasqueira BecharaI
IPsicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro do Laboratório de Psicanálise, Saúde e Instituição (USP) e do Lugar de Vida Centro de Educação Terapêutica, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: lauracbechara@gmail.com
Inquietações políticas em psicanálise e educação: o caso da educação infantil. Fonseca, P.F. São Paulo, SP: Benjamin Editoria, 2019, 152 p.
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar! (Galeano, 1989/2020, p. 15)
Assim como anuncia na capa de seu livro, amparada pela bela pintura de Mondrian intitulada Sea after sunset, Paula Fonseca traça, em seu livro, um novo e original percurso no território-litoral entre a psicanálise e a educação. A obra é fruto de sua pesquisa de doutorado, sob a orientação do Prof. Dr. Rinaldo Voltolini. Parto da metáfora da viagem, também escolhida por Voltolini no prefácio, no qual faz referência ao percurso entre Cila e Caribde, dois males a serem evitados. Um entre instável, que exige atenção.
Fonseca guia o leitor, de forma generosa, por entre terras e trilhas sinuosas, que abarcam a complexidade do primeiro ao último ensino de Lacan, abordando correlações com o perspectivismo ameríndio, de Viveiros de Castro (2014, citado por Fonseca, 2019, p. 106), retomados por Christian Dunker (2015, citado por Fonseca, 2019, p. 106), para chegar ao ápice do percurso: às políticas relativas ao caso da educação infantil.
A escolha da palavra "caso", presente no título, merece atenção, por seu valor significante. A leitura e a interpretação realizadas a partir dos 4+1 operadores discursivos lacanianos, nos lembram a concepção de escrita do caso clínico com a qual Vorcaro (2010) trabalha: o que o "analista grafa e apaga" evidencia que o "ato de escrever está regulado pela responsabilização quanto ao seu ato" (pp. 16-17).
Nesse ponto, fica evidente que não se trata d'A Educação Infantil direcionada À'criança1, mas do caso que a autora, enquanto pesquisadora-psicanalista, pode escutar, ler e construir. A direção do tratamento da pesquisa é, evidentemente, fruto de investigações minuciosas, que resultam no recorte cirúrgico de citações de autores consagrados. Ou seja, nossa guia de fato precisou de, como diria um bom caiçara-pesquisador de campo, "galochas e facão", para abrir caminho ao suprassumo das florestas e mares que o leitor irá explorar, com algum fôlego. Um surpreendente e animador percurso para quem gosta de percorrer relevos diversos.
Sem perder o cuidado de quem conduz, por vezes, um recém-explorador, é nítida a preocupação de Fonseca em clarear a rota que escolhe. Antes de aprofundar seu objeto de estudo, informa os instrumentos de que seu leitor precisa para enxergar melhor a paisagem em questão. Como em resposta à criança do conto de Galeano, que pede ao pai "me ajuda a olhar!", Fonseca ensina que, para perguntas complexas, não se pode dar respostas simples. E se há algo que fica ressaltado no livro é que A resposta não existe, a não ser quando transformada em um ponto de interrogação.
Entretanto, isso não quer dizer que o leitor fica à deriva. Remetendo ao que Fonseca diz, em sua introdução: "cabe ao leitor, ... colocar algo de si" (p. 26), o que Dom Casmurro diria como: "E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderáÌ cuidar que a obra é sua." (Assis, 1899/2010, p. 11), é possível que, ao seguir o caminho, o leitor decida fazer uma parada e adentrar mais por certa rota. Como uma boa pesquisa, espera-se que as inquietações de Fonseca se tornem outras, as de seu leitor. Das produtivas inquietações!
Diante desse primeiro relato de viajante, entremos propriamente no mapa do livro, para quem desejar conhecer um pouco mais dessa aventura. Após os agradecimentos afetuosos de Fonseca, encontram-se duas prestigiosas leituras: a de Rinaldo Voltolini e a de Christian Dunker que apresenta o livro. Os dois notáveis pensadores e pesquisadores contemporâneos, respectivos orientador e arguidor da tese que dá origem à obra, ressaltam seus pontos de ancoragem e de trajeto.
Voltolini (2019) salienta o trabalho implicado da autora em construir um bem dizer a partir da pergunta disparadora "O que faz o psicanalista da política quando se debruça sobre a educação?" (p. 11). Para abordar a discursividade das políticas públicas de educação infantil, deve-se considerar as diferenças entre o que é de ordem estrutural ou contingente. Em nossa leitura, algo análogo a se trabalhar com o pensamento e o ato (Miller, 2014), em harmonia (im)possível. Como indica Voltolini (2019), "entre aparelho ideológico e aparelho de gozo" (p. 13), o objeto de estudo de Fonseca resiste com a sua verdade e com o seu limite.
Na apresentação, Dunker (2019) aponta a atualidade da temática abordada: "momento agudo das relações entre psicanálise e brasilidade, ocorrido entre os anos de 2016 e 2018" (p. 17). Mais especificamente, o que nessas relações pode depreender uma análise sobre como a teoria é utilizada em função da mudança e da manutenção de políticas públicas na educação.
Junto com isso, há uma problematização acerca da ética e da política da psicanálise, que não se demite, como ressalta Dunker (2019), de seu compromisso com a polis. Assim como a ética e a política estão em articulação moebiana, estão também, o educar e o cuidar (Mariotto, 2009, citada por Fonseca, 2019, p. 116), ponto-chave na interpretação que Fonseca fará acerca das políticas discursivas na educação.
Agora embarcados, nos deparamos, no instante de ver de cada capítulo, com belas epígrafes, em especial, o poema de Julio Cortázar, que dá a dica ao leitor no início da introdução: "Para leer en forma interrogativa" (Fonseca, 2019, p. 23). De modo intimista, a autora nos aproxima do encontro não à primeira vista com a psicanálise lacaniana, para chegar a seu compromisso: a implicação com a política. Parafraseia o poema de Pessoa, "psicanalisar é preciso, viver não é preciso" (p. 25), que aqui meta-parafraseio no título da resenha, incluindo o "educar é preciso".
Temos uma importante contextualização acerca de qual política e de qual educação se trata na obra. A autora opta por descobrir a política, posto que a ética da psicanálise é dimensão bastante explorada na fronteira entre psicanálise e educação. Para o desafio de Fonseca, Lacan (1958/1998, citado por Fonseca, 2019) adverte, em "A direção do tratamento e os princípios de seu poder", que a política é onde o psicanalista é menos livre. Também é ressaltada pela autora uma intervenção de Lacan, realizada em 1973, na qual reforça a ideia de que o buraco da política estaria sempre fadado a ser tamponado. Tais colocações lacanianas acerca da política tornam- se alicerces importantes sobre os quais Fonseca constrói seu raciocínio acerca das políticas públicas nas instituições de educação infantil.
No primeiro capítulo, "Educação (im)possível e a ética da psicanálise", é evidenciada a premissa de que um sujeito só advém a partir do ato educativo realizado pelo Outro. Nesse sentido, conforme as ideias de Arendt (2005, citada por Fonseca, 2019), aquele que educa é responsável por um mundo compartilhado, que é tanto delimitado por suas tradições, quanto aberto para que o novo o transforme. Um mundo necessariamente feito de e por humanos. Humano, aqui, próximo à concepção psicanalítica de sujeito, na medida em que "a humanidade começa nos que te rodeiam" (Mãe, 2014, citado por Fonseca, 2019, p. 33).
Ainda que uma visão de sujeito possa contribuir com o campo educativo, inferindo o "aluno- sujeito" (Kupfer, Patto e Voltolini, 2017), isto não é, de forma alguma, equivalente a tomar a psicanálise enquanto método e, muito menos, à salvação da educação e de suas práticas. Ou seja, não se trata de uma psicopedagogia ou da oferta de um protocolo educativo que inclua o sujeito, mas dos efeitos que a posição discursiva do analista, no campo da educação, pode suscitar.
O impossível, clareado por Freud (1925/2011a, citado por Fonseca, 2019, p. 39), permeia três profissões, segundo o inventor da psicanálise: educar, governar e psicanalisar. O impossível, justamente, aponta para o conflito constitutivo do psiquismo: só há desejo com lei; ou: não há relação de complementaridade entre o sujeito e o Outro. É justamente a incompletude a parcialidade da satisfação que faz com que o sujeito passe a desejar e, assim, ser autor daquilo que diz. Assim, é inerente ao ato e ao pensamento educativo, advertido da castração, promover condições para a subjetivação da criança.
A atenção à singularidade do sujeito, balizada pela ética da psicanálise,
impele que a ação do educador não vise conformar e erigir uma criança de modo que ela responda aos ideais imaginários impregnados na educação, mas permitir que, diante dos ideais pulsionais, narcísicos, institucionais e ideológicos, ela possa existir para além desses ditames (o que não é o mesmo que dizer sem os ditames). (Fonseca, 2019, p. 47)
Sintetizadas as premissas sobre uma educação que opera a partir de um limite estrutural, evidenciado pela ética psicanalítica, Fonseca prossegue com o capítulo "Políticas discursivas", onde irá discorrer sobre a metodologia de estudo de seu objeto de investigação. Faz uso, de forma genial, do ensinamento freudiano sobre o unheimlich, o infamiliar, como paradigma de sua pesquisa em psicanálise; traduzido por: "buscar o estranhamento" (Fonseca, 2019, p. 50). Tal estranhamento serve não só em relação ao que é externo à psicanálise, mas também, se não principalmente, ao que está presente na mesma. Ressalva bastante importante, para que a psicanálise não sirva de "oráculo que professa sua verdade e seu destino, mas para trazer à luz algo destinado a ser oculto, que causa estranheza inclusive por sua familiaridade" (Fonseca, 2019, p. 51).
Tal metodologia é também articulada por Fonseca quando convoca outros autores, como Mezan, Pommier e Calligaris, que trabalham o social, a partir da psicanálise. Conclui, a partir da colocação já citada de Lacan, com Calligaris (1991, citado por Fonseca 2019, p. 54), que o que vem tapar o buraco da política é o discurso político. A partir disso, chegamos aos quatro discursos de Lacan, cada qual uma forma específica de laço social, enquanto operadores que respectivamente engendram "uma política que lhe é própria" (p. 29) e, assim, suscitam também a pluralidade da política.
Não irei me deter, nesta resenha, em cada um dos 4+1 discursos de Lacan, didática e criticamente trabalhados, um a um, por Fonseca no capítulo dois. Vale ressaltar que seu ensino é feliz, no que toca à transmissão de seus eixos de interpretação lógico-históricos sobre as políticas públicas na educação infantil. Para além de cada um dos discursos, a autora salienta a "disjunção" entre ensinar e educar, e mostra que a educação, de acordo com suas variantes de contextos e intenções, pode ser agenciada pelo discurso do mestre, pelo discurso universitário e, até mesmo, pelo discurso do capitalista.
Neste ponto, Fonseca (2019) retoma o que parece ser o objetivo do livro:
refletir acerca dos modos como as políticas públicas são agenciadas dentro de determinadas políticas discursivas, de modo a depreender elementos para discutir a singularidade da política da psicanálise e as consequências para os psicanalistas que atuam nesse campo de fronteira com a educação. (p. 47)
Para a política da psicanálise, Fonseca destina seu terceiro capítulo: "Do político na psicanálise". Neste, será recolhida, a partir de outros autores, como Mannoni, Soler, Levy, Miller, Checchia, Askofaré, Alemán, uma definição de política ancorada em discussões psicanalíticas contemporâneas. O debate contribui para além da pesquisa empreendida por Fonseca: parece mesmo importar a todo psicanalista que atua mirando o horizonte de uma atualidade regida pela economia neoliberal e pelo discurso técnico-científico. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que ambos escancaram a desigualdade social, visam à homogeneidade de indivíduos-objetos. Poderíamos afirmar que a política da psicanálise aparece em seus efeitos, contrários às pretensões veladas do discurso do capitalista, como o apagamento do laço social e, consequentemente, do sujeito.
Fonseca ensina que tornar-se sujeito é também separar-se do todo e eleger o que do campo do Outro faz eco e passa a ser material de construção de sua própria morada. Nesse sentido, há sempre um resto em relação ao que vem do Outro e o que fica para o sujeito; na mesma esteira, um resto entre o que é ensinado ao aluno e o que é transmitido a ele.
Em relação à política da psicanálise, a autora nos oferece um referente instável, no melhor sentido do termo, que diz respeito à sustentação do analista em sua falta-a-ser, apresentando-se em posição de objeto a mais-de-gozar e direcionando-se ao sujeito dividido. Nesse sentido, é diferente da política do discurso do mestre, que "busca que as coisas andem e, para tanto, vai encontrando respostas que possam fazer essa função de manutenção do movimento e tamponamento do buraco" (Fonseca, 2019, p. 71) e tem, assim, acentuada sua "face alienante" (Askofaré, 2005, citado por Fonseca, 2019, p. 71).
Diante de tais considerações acerca do que é político em psicanálise, Fonseca (2019) encerra seu terceiro capítulo com a pergunta: "teria a psicanálise um papel político?" (p. 79). Voltolini (2019) nomeia a questão como "fotografia pitoresca da praia em que desembarca" (p. 12): as políticas públicas da educação infantil e suas respectivas discursividades.
O capítulo quatro "Educação infantil à brasileira: proposições políticas" se inicia com a apresentação de dois dos principais marcos regulatórios na história da educação infantil: "a Constituição Federal de 1988, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996" (Fonseca, 2019, p. 81), além do "Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990" (Fonseca, 2019, p. 81). Frente a esse contexto, Fonseca pode agora se aprofundar no que interpreta como três eixos lógico-históricos das políticas engendradas na educação infantil: as políticas assistencialistas, as políticas diagnósticas e as políticas preditivas. Cada um dos três é iniciado com uma vinheta, emblemática e disparadora, de uma situação vivida em campo.
Em "políticas assistencialistas", Fonseca (2019) aborda a problemática polarização entre o "caráter educativo e o assistencial" (p. 83) na educação infantil brasileira e sua relação intrínseca com o país, de origem escravocrata, extremamente desigual socialmente, e refém, em diversos momentos de sua história, de movimentos higienistas ancorados no saber médico, assistencial e pedagógico. Referenciando diversos estudiosos do tema (Kuhlmann Jr., Merisse, Costa, Souza e Kramer, Rosemberg, Haddad), sobressai-se nessas políticas: "o cunho moral das práticas vigentes, totalmente consonantes com a prática assistencial-educativa higienista da época" (Fonseca, 2019, p. 85). Junto a isso, estabelece-se uma visão normativa de que a educação infantil, suprindo as carências da criança, garantiria seu bom desempenho escolar futuro, de forma que se esse não fosse bem-sucedido, seria facilmente atribuído a um desajuste de feitio individual, seja da criança ou de sua família.
Fonseca (2019) ressalta, nessa lógica, o discurso do mestre, em que o discurso higienista e moralizante
se dirige ao profissional da creche como sendo aquele que saberá fazer com que a criança se desenvolva de forma saudável. Mas o que fica inacessível ao agente desse discurso é sua própria divisão, uma vez que ele sustenta um saber como se fosse uno. (p. 89)
De outro lado, Fonseca indica um desdobramento da polarização do debate entre a assistência e a educação, ou o cuidar e o educar, em relação ao lugar dos professores da educação infantil. Há, segundo a autora, uma queixa, por parte desses, de que os pais tomariam a creche como lugar de cuidado, e não como lugar educativo, motivo para a desvalorização do trabalho realizado por esses profissionais. São os professores, agenciados pelo saber pedagógico, que acabariam por culpar os pais pelo que não vai bem com a criança. A situação que se enquadraria na lógica do discurso universitário, que toma o outro "como objeto de seu saber" (Fonseca, 2019, p. 94). São ressaltadas, também, outras situações agenciadas pelo discurso universitário, nas quais profissionais, movidos por um saber científico que, inclusive, pode ser a teoria psicanalítica , tomam o outro como objeto de seu saber para produzir algo da ordem do sucesso.
Antes de abordar as políticas diagnósticas, próximo eixo a ser trabalhado, a autora ressalta que não se trata de uma ordem diacrônica de organização de seus eixos, mas sim de uma organização lógica. Sendo assim, sabe-se que as políticas previamente trabalhadas podem seguir operando simultaneamente ou alternadamente às outras apresentadas. Sobre as políticas diagnósticas, Fonseca apresenta o alcance de seu estudo e de sua capacidade argumentativa.
Apresenta, então, uma das respostas criadas frente ao que evidenciamos acima, aos alunos "desajustados". O diagnóstico médico, ou a busca por ele, passa a servir como motivação para um encaminhamento à área da saúde e como explicação única para aquilo que destaca2Â o aluno de sua turma. Irrompe, no campo da educação infantil, uma lógica "acachapante de certo ideário desenvolvimentista" (Fonseca, 2019, p. 98), descrita nos trabalhos de Lajonquière (2009, 2010, citados por Fonseca, 2019, p. 98-99), o que tem efeitos na relação entre professor-aluno e também escola-aluno, que não são de ordem complementar.
Mas de qual apelo se trata na ávida busca pelo diagnóstico? Fonseca (2019) resume:
O diagnóstico se configura . . . como uma necessidade, pois uma vez conhecendo o quadro seria possível fazer um planejamento de como trabalhar e a quais saberes recorrer. Aparece o que chamamos de demanda de nomeação. Se, por um lado, o nome aplaca a angústia . . . por outro, ele opera como um ponto de estofo na relação que o professor estabelece com o aluno. (p. 99)
Temos aí a face controladora dessa discursividade, que Fonseca retoma a partir da biopolítica foucaultiana: ao retirar a possibilidade de questionamento acerca do sofrimento ou da singularidade sintomática de uma criança, ela é inserida na série de objetos "dos próprios saberes tecnocientíficos que os geraram" (Fonseca, 2019, p. 107). Aqui, abre-se caminho para seguirmos à última interpretação de Fonseca acerca das políticas na educação infantil: as políticas preditivas.
Esta última parece implicar, com precisão ainda maior, debates frescos, não só no campo educativo, mas também no psicanalítico. A autora demonstra, em sua arguição, firmeza e coerência, difícil em uma proposta com tantas nuances e próxima a um tema "controverso e amplamente discutido" (Fonseca, 2019, p. 119), que é a avalição na educação. De acordo com ela, a lógica preditiva-avaliativa na primeira infância pode povoar a ideia de prevenção, proveniente do campo da saúde.
A autora retoma, a partir de uma análise crítica, dois marcantes movimentos nesse campo: a pesquisa, a validação e a metodologia dos "Indicadores Clínicos de Riscos para o Desenvolvimento Infantil" (IRDI), encabeçadas por Maria Cristina Kupfer e uma equipe de psicanalistas que são referência na área da infância, e o documento "Diálogos sobre avaliação na primeira infância" (Fundação Maria Cecília Souto Vidigal et al, 2014, citado por Fonseca, 2019, p. 116), que tem como um de seus instrumentos o "Age and Stages Questionaries" (ASQ- 3), validado no Brasil como ASQ-BR.
Em uma discussão interessante e abrangente, sobressai o olhar para as consequências de ações preventivas amparadas em diferentes arcabouços teóricos no campo das políticas públicas na educação. Estas, por vezes com ótimas intenções, se não forem problematizadas e seus instrumentos utilizados de maneira precisa e cuidadosa, correm o risco de ter efeitos opostos à pretensão com a qual foram criados. A consequência é poder fomentar tanto o "discurso universitário, universalizante e replicável" (Fonseca, 2019, p. 114), quanto o discurso do capitalista, embasado pela lógica urgente e econômica de produção.
Fonseca, como norte de leitura, evidencia uma proposição de Mariotto (2009, citada por Fonseca, 2019, p. 116), que diferencia a prevenção ética aquela que olha de forma não determinista para o processo de subjetivação na criança, sem sucumbir à lógica preditiva de uma prevenção técnica, pautada por ideais normativos, que, supostamente, garantiriam qual o destino final da criança. Sendo assim, Fonseca (2019) ensina: é possível haver prevenção ética desde que esta seja
efeito de ações de cuidado. Ou seja, ela não se configura como objetivo principal, mas como consequência de uma atenção que, ao inclinar-se em direção ao sujeito, apreende-o como fenômeno concomitantemente singular e coletivo, estando assim alinhada à ideia de promoção de saúde e não à de predição. (p. 122)
Como tempo último de compreender, no quinto capítulo, "A política do psicanalista em seu encontro com a educação", Fonseca não livra o leitor de mais uma lembrança, fundamental, agora sobre o inconsciente. Este não só é axioma teórico psicanalítico, como também motor das produções humanas. Entre elas, temos a psicanálise inventada por Freud, como relembra Fonseca. Nesse sentido, não há esforço de formalização possível que antecipe ou garanta o que cada um pode ou deve fazer com a psicanálise. Ao mesmo tempo, é justamente isso que põe em relevância a transmissão de Fonseca, a partir de Lacan, sobre a política do psicanalista onde ele é menos livre. No caso da pesquisadora, na educação infantil.
Assim, Fonseca ilumina o que pode um psicanalista3Â diante da educação, suportada pelas importantes precipitações, no sentido químico, de seu longo e aprofundado estudo. Com Cifali (2009, citado por Fonseca, 2019, p. 129), relembra que, apesar do impossível estrutural e dos impossíveis contingentes, "a impotência não é a única resposta" (Fonseca, 2019, p. 129). É preciso cri-atividade! Algo evidente neste livro, que merece a leitura de quem pretende uma prática séria e comprometida com o social, seja ela balizada pela psicanálise ou não.
Fica o alerta da autora, com Lacan, de que não só o discurso político acaba por tampar o buraco da política, mas também, como mais uma metafísica, a ciência que alcança, como trabalhado no livro, as políticas públicas na educação infantil. Mas... como aquilo que não cessa de se escrever, "Não há garantias de uma boa educação. Não há certeza de que, sejam os alunos, sejam os professores, escolherão implicar-se subjetivamente em seus percursos. O trabalho está em promover condições para que, contingencialmente, isso aconteça" (Fonseca, 2019, p. 134). Para concluir, temos um panorama dos alcances do livro em "A interrogação como ponto de basta (?)", que nomeia também a poética e a originalidade da autora no decorrer dessa longa porém fluida jornada, que impulsionou a escrita desta resenha. O caminho conduzido pela pesquisadora produziu efeito de descoberta e abertura para a leitora. E é, a todo tempo, atualizado pelo desejo de saber. Cabe agora, ao leitor da resenha, embarcar nessa viagem e recolher, na trilha de Paula Fonseca, aquilo que pode inspirar sua ação.
Referências
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Dunker, C. I. L. (2019). Apresentação. In Fonseca, P.F. (2019), Inquietações políticas em psicanálise e educação: o caso da educação infantil (pp. 17-21). São Paulo, SP: Benjamin Editorial. [ Links ]
Fonseca, P. F. (2019). Inquietações políticas em psicanálise e educação: o caso da educação infantil. São Paulo, SP: Benjamin Editorial. [ Links ]
Galeano, E. (2020). O livro dos abraços (E. Nepomuceno, trad.). Porto Alegre, RS: L& Pm. (Trabalho original publicado em 1989) [ Links ]
Kupfer, M.C.M; Patto, M.H.S; Voltolini, R. (Orgs). (2017) Práticas inclusivas em escolas transformadoras: acolhendo o aluno-sujeito. São Paulo, SP: Escuta. [ Links ]
Miller, J.-A. (2014). Jacques Lacan: observações sobre seu conceito de passagem ao ato. Opção Lacaniana On-line, 5(13), 1-13. Recuperado de http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_13/passagem_ao_ato.pdf [ Links ]
Moretto, M. L. T. (2001). O que pode um analista no hospital? São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Voltolini, R. (2019). Prefácio. In Fonseca, P.F. (2019), Inquietações políticas em psicanálise e educação: o caso da educação infantil (pp. 11-15). São Paulo, SP: Benjamin Editorial. [ Links ]
Vorcaro, A. (2010). Psicanálise e método científico: o lugar do caso clínico. In Neto, F. K., Moreira, J. O. (Orgs.), Pesquisa em psicanálise: transmissão na universidade (pp. 11-23). Barbacena, MG: EdUEMG. [ Links ]
Recebido em agosto de 2020 Aceito em setembro de 2020.
1 Referência ao termo de Lajonquière (2010, citado por Fonseca, 2019, p. 101).
2 Termo utilizado por Rinaldo Voltolini em aula proferida no Lugar de Vida - Centro de Educação Terapêutica, em 2019.
3 Referência ao título do livro de Moretto (2001): O que pode um analista no hospital?
Revisão gramatical: Anna Carolina Lementy
E-mail: lementy.anna@gmail.co