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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.26 no.1 São Paulo jan./abr. 2021

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v26i1p1-3 

10.11606/issn.1981-1624.v26i1 p1-3

EDITORIAL

 

Outra clínica, outra escola: psicanálise e educação em tempos de pandemia

 

 

Ana Beatriz Coutinho LernerI; Rinaldo VoltoliniII

IPsicanalista. Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: anabcoutinho@yahoo.com.br
IIPsicanalista. Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: rvoltolini@usp.br

 

 

Em final de fevereiro de 2020, fomos tomados de assalto pela notícia da chegada e rápida disseminação do novo Coronavírus em território brasileiro. Passados muitos meses dos fatídicos primeiros casos brasileiros, assistimos, desde então, a uma crise sanitária sem precedentes em nosso país, à derrocada de uma situação econômica já desastrosa e à intensificação da desigualdade social, agravadas por políticas públicas ineficientes, inexistentes ou mesmo criminosas.

Frente ao número alarmante de mortes e contágios, que não cessa de atingir picos impensáveis massivamente divulgados nos noticiários de TV, o Estado brasileiro vem se debatendo com a falsa dicotomia entre a proteção à saúde e a salvaguarda da economia. A partir de movimentos políticos e discursivos erráticos e, nem sempre com critérios científicos claros, abrem-se e fecham-se estabelecimentos comerciais, restaurantes, clubes, escolas e espaços públicos, o que, como não poderia deixar de ser, vem produzindo intenso sofrimento e impactando sobremaneira os campos da saúde e da educação.

É indiscutível a necessidade conter o avanço da pandemia, ainda que a melhor forma de fazer isso gere inúmeras controvérsias e muito desespero.

No que tange ao campo educativo, o fechamento das escolas ensejou debates sobre diferentes formas de ensino remoto - a adoção de uma enorme variedade de plataformas online, aplicativos de encontros virtuais, videoaulas gravadas, materiais digitais disponibilizados via redes sociais ou TV - com todas as limitações e possibilidades de sua implementação.

A entrada abrupta da virtualidade como sistema transformou ampla e subitamente a realidade das escolas instituindo novas bordas à sala de aula: menos inclusivas por um lado – afinal muitas crianças não conseguem a acessibilidade – e, paradoxalmente, mais "inclusivas" por outro – já que se começou a ver pais, irmãos e parentes adentrarem o espaço das aulas. A intimidade e singularidade dos alunos literalmente "pularam na cena", aparecendo nas telas de modo evidente e borrando a fronteira entre o público e privado tão cara à instituição escolar.

Acrescentam-se a esse cenário o aumento do estresse docente, num quadro de incertezas, expansão e esgarçamento de suas atividades, e o crescimento do assédio da indústria tecnológica à educação, que parece ter visto no cenário atual uma oportunidade ímpar para a promoção da tecnologia educativa. Tudo isso, em uma condição de "transitoriedade" que se arrasta há mais de quatorze meses.

No campo da saúde mental, a observância da quarentena significou a passagem dos atendimentos clínicos não emergenciais para o formato à distância. Não foram poucos os efeitos observados diante da experiência de confinamento: desamparo, solidão, incremento de sintomas de depressão, ansiedade, fobias, aumento de violência doméstica e da exposição ao estresse tóxico e toda sorte de efeitos sobre a subjetividade daqueles que passaram a ser escutados nos novos consultórios no Zoom, Skype ou WhatsApp. Para psicanalistas, o tradicional setting analítico, bem como conceitos caros à teoria – tais como transferência, corporeidade, atenção flutuante, resistência, ou mesmo o brincar na clínica com crianças - precisaram ser revisitados de forma a dar sustentação ética à escuta online do sujeito.

Porge (2020) nos lembra que, no enfrentamento da pandemia, pode haver algo de universal que escamoteia a demanda singular endereçada ao analista, isentando o sujeito de falar de sua posição particular. Para ele, apesar de estarmos todos confinados, não estamos concernidos da mesma maneira, pois "nos confins do confinamento, há o sujeito da enunciação", diante do qual não podemos recuar.

Do mesmo modo, poderíamos pensar que "A" pandemia – este universal do qual deveríamos desconfiar - não atinge as escolas da mesma maneira, uma vez que se impõem tanto a particularidade da situação – há escolas com mais recursos adaptativos do que outras – como a singularidade da enunciação – não se sofre o problema sempre do mesmo jeito. Talvez caiba à psicanálise, com sua démarche avessa a toda cosmovisão, incomodar a universalidade presente no prefixo Pan, não, obviamente, para negar a extensão do contágio do vírus e de seu impacto social, mas para abrir espaço à singularidade irredutível no sofrimento.

Do ponto de vista da presença da psicanálise na polis, que abarca sua interface com o campo da educação, talvez seja a oportunidade de fazer cair por terra de uma vez por todas uma visão reducionista que privilegia a cura (ou adaptação) individual e desconsidera a dimensão política da praxis psicanalítica no corpo social, adiando a importante reflexão sobre a articulação entre clínica e cidadania. Para Magos (2020), a crise mundial provocada pelo coronavírus nos convida a dar um passo além da metáfora do ouro e do cobre – muitas vezes utilizada por psicanalistas para distinguir o trabalho clínico daquele mais amplo com o social -, dando testemunho de nossas práticas, reflexões e invenções de forma a contribuir para o desconfinamento da própria psicanálise.

Este número da Revista Estilos da Clínica, primeiro que compõe o Dossiê "Outra clínica, outra escola: psicanálise e educação em tempos de pandemia", reúne textos em torno da temática escolar, enquanto o segundo número, a ser publicado em agosto, se dedicará à temática clínica. Ambos dão mostras de como psicanalistas, educadores e pesquisadores das ciências humanas foram interpelados a produzir um saber acerca dos efeitos da pandemia sobre suas práticas. Os textos em torno do eixo escolar trazem reflexões sobre o lugar do corpo no ensino não presencial, ressonâncias psíquicas para educadores, alunos e suas famílias, bem como intervenções clínico-políticas e modalidades de escuta construídas para fazer face ao mal-estar diante da pandemia. Por último, mas não menos importante, o dossiê nos convoca a pensar sobre as consequências da virtualidade para a diluição das fronteiras entre a escola e a família - a domesticação da experiência escolar – e para a necessária sustentação da função social e humanizante da escola como um espaço-tempo de coletividade, alteridade e cuidado com o mundo que está por vir.

Boa leitura!

 

Referências

Magos, V. (2020). Pour déconfiner la psychanalyse: lettre ouverte à mes collègues. Recuperado de: https://www.oedipe.org/article/pour-deconfiner-la-psychanalyse-lettre-ouverte-mes-collegues         [ Links ]

Porge, E. (2020). Aux confins du confinement, le sujet. Recuperado de: https://www.oedipe.org/newsletter/20200327/oedipe-info-un-texte-derik-porge        [ Links ]

 

 

Recebido em março de 2021 – Aceito em março de 2021.

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