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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.12 no.2 São Paulo dez. 2011

 

SEÇÃO ESPECIAL

 

Desaprender para ensinar os princípios (ou um outro modo de enfrentar a orientação)1

 

Unlearning to teach the principles (or another way of dealing with orientation)

 

Desaprender para enseñar los principios (o otra forma de hacer frente a la orientación)

 

 

Maria Eduarda Duarte2

Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa, Portugal

 

 

"Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em que não fazemos, apenas duramos". É no Padre António Vieira, citado de memória, que procuro o argumento para justificar que, na segunda década do século XXI, o conceito tradicional de orientação profissional pode ser redutor e conduzir a práticas de intervenção sustentadas em modelos pré-definidos, que podem condicionar e limitar o desenvolvimento e a criatividade individual, e, consequentemente, delimitar o papel que cada indivíduo deve assumir na construção do bem-colectivo. Intencionalmente, referi a segunda década do século XXI, porque sabemos todos que estamos em tempo de mudança, quer no modo de estar na vida, quer na maneira de encarar as áreas de saberes científicos; mas também sabemos que estes saberes valem apenas enquanto valem, a certeza de hoje nada mais será que um efémero passado logo que uma nova certeza se imponha.

E a certeza de hoje é a incerteza e a insegurança. Das organizações e instituições do século XX pouco sobra da garantia de trabalho, da estabilidade e da promoção; pouco sobra para enredar o desenvolvimento da vida no tecido do trabalho como fonte de satisfação, de certeza, de estabilidade. Do envolvimento e adesão ao trabalho passou-se para a flexibilidade; da estabilidade, para a mobilidade; do projecto a longo termo, para os projectos de curto prazo. Assiste-se, portanto, a um outro arranjo social, de globalização da economia e da distanciação cada vez maior da globalização social. Se esta é a verdade da segunda década do século XXI, então o estudo sobre as carreiras, os métodos e as práticas de intervenção também devem mudar (Savickas, et al., 2009).

Então, como é possível que cada indivíduo encontre um rumo para desenvolver a sua vida, incluindo a sua vida de trabalho, sem perder a sua marca identitária e o sentido de si-próprio?

Depois de uma breve análise em torno do passado histórico que moldou a maneira de pensar sobre a orientação, passa-se para a tentativa de encontrar e desenhar outras formas de reflectir sobre a orientação enquanto processo de auto-construção.

 

A compartimentação da orientação

A primeira teoria do comportamento vocacional (Parsons, 1909) tomou corpo porque procurou responder a necessidades de cariz social, como, por exemplo, a industrialização e a emigração; a montante estava a pergunta: como ajustar os indivíduos, eficientemente, ao seu trabalho? Frank Parsons (1909) institucionalizou o modelo de traço e factor. Nas cinco décadas seguintes, o modelo de Parsons foi evoluindo até se enquadrar na teoria pessoa meio. John Holland e a teoria da congruência da escolha vocacional (1997) consagraram o modelo de adequação pessoa/meio.

A "Psicologia Vocacional", que anteriormente designava a psicologia aplicada à preparação para a entrada e permanência no mundo do trabalho, feita na perspectiva do trabalhador, ocupou durante algum tempo um terreno que, posteriormente, viria a fragmentar-se - através da instituição de fronteiras sub-disciplinares - em pequenos habitats definidos por dicotomias do tipo 'investigação' vs. 'prática', 'escolha' vs. 'ajustamento', 'orientação' vs. 'selecção', 'diferencial' vs. 'desenvolvimentista', 'individual' vs. 'organizacional', e 'educação' vs. 'indústria' (Savickas, 2005, p. 45). Estas fronteiras, talvez demasiado rígidas para o tipo de terreno a que se aplicavam, acabariam por contribuir para um certo distanciamento da psicologia que estuda o comportamento de escolhas profissionais e as respectivas repercussões na carreira, face a outras psicologias que, tradicionalmente, se colocavam mais ao serviço das organizações.

A noção de carreira surge no início do século XX e entronca numa das consequências mais características da revolução industrial e das mudanças sociais então verificadas: a proliferação e a diversificação de profissões. Este fenómeno fez surgir, por arrastamento, a necessidade de ajudar as pessoas a encontrar e negociar um emprego pago, o que contribuiu para a definição de terrenos férteis para o crescimento de modelos explicativos do comportamento e do desempenho no trabalho, e, consequentemente, das escolhas profissionais, sobretudo a partir dos anos 40 do século XX. Assim, o mundo do trabalho modelou (e continua a modelar), efectivamente, o desenvolvimento do conceito de carreira, enquadrado por determinadas condições históricas e pelas respectivas consequências sociais, políticas e éticas.

As mudanças verificadas, que em muitos aspectos foram mesmo radicais, e o surgimento da Psicologia Vocacional, obrigam a considerar esta relação carreira/mundo de trabalho num contexto social mais alargado, e não exclusivamente no nível da evolução psicológica do próprio conceito de carreira. De resto, o conceito de carreira deve ser visto como integrando a trama da evolução da psicologia aplicada ao trabalho, que por sua vez decorre, também ela, da evolução da psicologia fundamental, quer do ponto de vista teórico quer do experimental (Duarte, 2006).

A sociedade, construída depois da Segunda Guerra, basicamente caracterizada pela explosão de uma classe média trabalhadora, instalada em organizações altamente burocratizadas, permitiu o surgimento de teorias de desenvolvimento vocacional, com o expoente máximo em Donald Super (1957, 1990). Procurava-se ajudar os indivíduos a desenvolver tarefas vocacionais em cada uma das fases da carreira, a admitirem a importância e significado de tarefas desenvolvimentistas, e a considerarem competências para lidar com essas mesmas tarefas.

Porém, nem tudo caminhava no sentido da complemetaridade de saberes. Já se confrontavam duas grandes perspectivas: uma do ponto de vista das práticas de gestão, a outra do ponto de vista do indivíduo. Na primeira, dominava a organização, que de certo modo ignorava a singularidade e sublinhava a passividade e a ausência de identificação do indivíduo com o seu trabalho; na segunda, entravam as linhas de investigação e de intervenção psicológicas: a corrente da psicologia vocacional, que investigava as características pessoais determinantes para a satisfação no trabalho, e procurava promover a liberdade de escolhas livres porque fundamentadas em necessidades individuais, acentuando assim a individualidade em detrimento do colectivo. Quase como uma postura conceptual premonitória do que viria a acontecer no virar do século XX: a sociedade de indivíduos analisada por Elias (1991) e tão bem aproveitada por Guichard (2009) para sustentar o modelo das formas identitárias subjectivas, isto é, a abordagem possível para o processo de auto-construção. Mas a noção de carreira assumia unicamente a possibilidade de progressão em escada, ou seja, só o aprendiz que chega a mestre tem a possibilidade de afirmar a sua promoção social e económica, e deste modo ser "dono" de uma carreira, mas longe se estava ainda de conceptualizar a carreira envolvida pela integração psico-social dos auto-conceitos e dos papéis sociais (Duarte, 2006).

A compartimentação da orientação, da psicologia vocacional, da orientação vocacional, vivida longe do meio organizacional, aplicada quase exclusivamente em ambiente escolar, empobreceu e arredou da psicologia das organizações o estudo que se pretende retomar nesta década do século XXI: dar uma maior importância ao desenvolvimento de competências individuais e à aquisição de novas aprendizagens; trazer o estudo de outras dimensões psicológicas, como a qualidade de vida em função dos contextos socioculturais em que se vive, para a psicologia da construção da vida; tentar eliminar habitats referidos por Savickas (2005) - serão, provavelmente, desafios para um futuro próximo. Psicologia da construção da vida no caminho da transformação para (re)integrar investigação e acção, escolhas e ajustamentos, orientação e selecção, estudos diferenciais e desenvolvimentistas, estudo do indivíduo e da organização, estudo da educação e da indústria.

Trata-se, afinal, de devolver o ecletismo, tal como foi a Psicologia Vocacional no início do século XX.

É fundamental que todos os interessados, e sobretudo aqueles que estão envolvidos na promoção do indivíduo, entendam que sem procedimentos de promoção do auto-conhecimento não se pode avançar para os processos da transitoriedade: a orientação é hoje um processo auto-construtivo, onde as técnicas de intervenção podem e devem contribuir para os processos de aprendizagem de competências, como algo em constante adaptação à vida, às circunstâncias, ao mundo que o envolve e que determina parte da nossa civilização.

E para tal , como Vieira o diz, é preciso fazer para encorparmos o que somos, ou seja, para existirmos. E se continuarmos a encarar a orientação como se de um compartimento da psicologia se tratasse, se não atentarmos ao significado e importância da sociologia, da economia, ou dos aspectos políticos, estamos fatalmente a orientar para o abismo. Por que?

Antes do por que... questiono-me: até que ponto a nossa "supercivilização", tal como dizia Eça de Queiroz, é diferente, no final do século XX, da do final do século XIX? Ela é tão diferente como as que geralmente são encontradas em todos os fins-de-século; porém, julgo dever acrescentar-se um aspecto que até agora quase não esteve presente: a troca de saberes científicos, a necessidade de criar outras necessidades dentro da mesma ciência, em paralelo com as necessidades de procurar informações noutras ciências que procuram processos explicativos do comportamento humano, são e constituem tecidos conceptuais fundamentais para quem se compromete profissionalmente a considerar a orientação como uma forma de partilha de cidadania.

O mundo de hoje precisa urgentemente da variedade do humano como contrapoder da artificialidade do tecnológico. Assim sendo, os principais desafios que se colocam na pesquisa em orientação passam pela necessidade de criar modelos que sustentem os contextos, a diversidade e a individualidade. Portanto, assumir que a orientação é um processo de construção.

 

A orientação é um processo de construção

É ponto assente que o conhecimento é fundamental para o desenvolvimento quer das sociedades, quer dos indivíduos; e também é ponto assente que foi a tecnologia que permitiu a disseminação desse mesmo conhecimento. Mas mais ainda: da importância do capital intelectual, isto é, aquilo que permite criar valor, e do qual decorrem as mudanças estruturais quer na economia, quer no conhecimento, quer nos sistemas de comunicação, surge a grande diferença entre os conceitos, que aqui se pretende operacionalizar, de crítica e de criticismo.

Na sequência do pensamento de Immanuel Kant (1724-1804), a partir da sua crítica ao empirismo e ao racionalismo, e perante a necessidade de reflectir sobre o processo de estruturação do pensamento, o criticismo caracteriza-se pela análise crítica da possibilidade, da origem, do valor, das leis e dos limites do conhecimento racional, com vista a determinar aquilo que o entendimento e a razão podem conhecer. Ou seja, é uma posição filosófica, de princípio, e não dependente do indivíduo, nem sobretudo da experiência sensível e dos limites que esta impõe ao conhecimento.

Por seu lado, a crítica - que tem origem no termo latino critica, desenhado a partir da expressão grega kritikê tékhne, "arte crítica", que designava a capacidade de separar, julgar, decidir - é um acto voluntário da esfera do engenho individual, uma actividade da razão que procura distinguir o verdadeiro do falso. Em suma, é um acto de espírito que parte da dúvida perante uma situação concreta - é falso?, é verdadeiro? - para chegar à afirmação - é falso!, é verdadeiro! -, excluindo tudo aquilo que ultrapassa os limites do seu domínio directo de aplicação, inscrevendo-se assim na categoria da liberdade individual, do arbítrio. É uma actividade sectorial, por excelência: não há crítica em geral, há crítica sobre aspectos particulares. Temos a crítica estética, se aplicada a obras de arte (literatura, cinema, artes plásticas, música, espectáculos); a crítica lógica, se envolve modelos e práticas de raciocínio (política, por exemplo); a crítica intelectual, se aplicada a conceitos, teorias ou experimentações; e a crítica moral, que tem por objectivo a avaliação das condutas do indivíduo perante os parâmetros sociais, culturais ou religiosos. Neste quadro, a crítica tem como principal objectivo a discussão e o comentário, pelo indivíduo, de qualquer assunto, comportando sempre uma avaliação intelectual, digamos mesmo espiritual, e tendo em conta os ensinamentos recolhidos da experiência, face a um parâmetro e a um limite previamente definidos.

Parece simples, assim, conseguir encontrar-se a "moral da história" que aqui interessa: a importância de desenvolver o pensamento crítico, que é o único gerador de capital intelectual (Dumay, 2009). Porém, a grande questão é saber como é que isso se faz. Considere-se alguns pontos de referência. O primeiro, admitamos a palavra, é o sudden insight no sentido utilizado por W. Kohler (1925): a resolução de problemas através da relação da compreensão das várias partes do problema (tal como observou nos estudos feitos com chimpanzés), em vez de procurar a resolução por tentativa e erro; correndo o risco de abordar a questão de forma algo simplista, o insight pode associar-se à pergunta "qual é a tarefa?", e à maneira como se há-de demonstrar a adesão de cada um aos objectivos hermenêuticos e etnográficos dos contextos em que cada um de nós actua; mas isto só se consegue com uma forte ligação à vida real das pessoas e das situações. Então, o insight talvez possa ser visto como uma tentativa de compreender o impacto do observado sobre o capital intelectual. Por outras palavras, já não interessa saber "o que é", mas sim "como é". Tome-se como exemplo, no quadro das intervenções que se suportam em teorias e técnicas de predição baseadas na estabilidade do emprego e dos ambientes, e na noção de fases da carreira (Super, 1957) e as intervenções que procuram colocar o indivíduo num processo contínuo de integração nos seus contextos, em congruência com a perspectiva crítica, e veja-se qual delas é potenciadora de gerar mais valor na sociedade actual caracterizada pela incerteza e insegurança do mercado de trabalho. Por outras palavras, enquanto o construtivista procura a construção de si como uma fonte de satisfação, um psicólogo desenvolvimentista preocupa-se em munir o indivíduo com um conjunto de processos que, eventualmente, lhe permitem antecipar e lidar com decisões (Duarte, 2011). E perguntar-se de seguida: onde pára o indivíduo, esse agente operacional que, funcionando sob o impulso da sua própria arte crítica, interage com os restantes indivíduos, e todos no contexto sistémico em que actuam, procurando transformar a sociedade, que não deve ser vista como uma estrutura administrativa, seca e cega, mas num organismo vivo, que de certa maneira reflecte, mimeticamente, os organismos singulares que o constituem? Aplicadas à sociedade no seu abstracto, a pergunta "o que é?" refere-se à estrutura existente, enquanto ao "como é?" outra coisa se não poderá responder que não seja a marca de quem a constitui, isto é, o somatório dinâmico da sua massa crítica.

O segundo ponto de referência encaixa ainda na própria noção de crítica. Veja-se como: um dos problemas contemporâneos tem a ver com o facto de que as ideias e as terminologias são habitualmente desenvolvidas como o resultado de um pensamento tradicional: pensamos quase sempre as mesmas coisas porque estamos habituados, por influência da escola formativa e da sociedade que a modela, a relacionar a informação de uma determinada maneira - enformando o pensamento individual, condicionando assim a liberdade do arbítrio a parâmetros pré-definidos, onde geralmente não entra a crítica nos termos em que aqui é entendida -, e por isso é difícil mudar - desenformando-o - o nosso pensamento.

Alguns neurocientistas (Rizzolatti & Corrado, 2006) defendem que os circuitos neuronais se foram desenhando em forma de redes todas ligadas, obrigando a que o organismo produza respostas estereotipadas que constituem comportamentos fixos e invariantes. Neste contexto, poderemos entender, por analogia, que o pensamento, ou melhor, a linha do pensamento, se define por combinações de sinapses, em cujo alinhamento não deixarão de interferir factores externos e contextuais. Interromper, ou alterar o percurso de tal alinhamento, será sempre uma tarefa muito difícil: é mudança. E mudar, forçosamente, significa desmantelar para construir de novo, permitindo-se assim que um sistema de comunicação mecânico seja impregnado de sensação, de arte crítica, e não exclusivamente de informação. Sem a arte da crítica, a informação é uma carga improdutiva. Sem um processo de auto-construção, a orientação pode correr o risco de se tornar num somatório de estereótipos.

E aqui concorre o terceiro ponto de referência: a vontade. Santo Agostinho (354-430), o homem amargurado contra os professores que o castigaram ferozmente na infância, afirma: "Quando eu deliberava (...) era eu o que queria e era eu o que não queria; era eu mesmo" (2001, p. 235). Também Schopenhauer (1788-1860), na sua obra O mundo como vontade e representação (1818), aborda a vida como companheira inseparável da vontade: a sombra não segue mais necessariamente o corpo; e em todo o sítio onde há vontade, haverá vida, um mundo, enfim. O mundo enquanto objecto representado oferece à vontade o espelho em que ela toma consciência de si mesma (1818/1968). Para o mundo filosófico, trata-se de uma vontade de ser; para o mundo contemporâneo, trata-se de um esforço pessoal; mas para o mundo psicológico, trata-se da capacidade para manter livremente um esforço continuado e persistente até se alcançar os objectivos previamente delineados. Trata-se, afinal de motivação inteligentemente dirigida, ou seja, trata-se mais de um processo do que de um conceito. E a verdade desta década é que a orientação, até para sobreviver como domínio científico, tem que atender mais ao processo e não tanto à discussão muitas vezes inútil do conceito. Também Shakespeare (1564-1616), quando põe na boca do Príncipe Hamlet a célebre frase "To be or not to be - that is the question", refere, afinal de contas, a vontade de ou pegar em armas para lutar e fazer frente às calamidades, e sobreviver enquanto ethos (portador de credibilidade, de identidade positiva), ou sofrer os golpes da má fortuna; em qualquer dos casos, produzindo um discurso consistente (logos) que dê conta das emoções próprias e as transmita aos outros (pathos, apelo emocional) (1967). Aristóteles andava por aqui, ao definir as categorias ethos, logos e pathos como os meios principais da persuasão, ou seja, da capacidade de um indivíduo convencer os outros acerca da bondade das suas próprias ideias. Se, como diz Schopenhauer, a vida é companheira inseparável da vontade, o ser humano nunca deve desistir de interferir no desenrolar do seu próprio fatum (fado, destino), e de dele fazer relato.

Consciente do seu ethos, o indivíduo, recusando o papel de agente passivo do seu próprio destino, transforma-se em agente activo do mesmo destino, interpretando-o intelectualmente (logos), e constrói o percurso por onde se esvai: há um destino a cumprir, há um paradigma a respeitar, mas há sempre a possibilidade de o indivíduo condicionar um e outro, nele deixando as suas próprias marcas (pathos). Ou seja, não abdicando da sua arte crítica: "já que tenho de ir, é como quero que eu vou; e quero que tal se saiba, e seja assim entendido".

Em síntese, lançar um olhar sobre a grande questão da orientação na abordagem da crítica, implica identificar a narrativa e fazer a sua revisão; implica defini-la através da informação que é individualmente processada; implica substantivar o contexto; implica um contexto e o conhecimento dele; implica entender os factores motivacionais; e mais, implica um olhar atento sobre cada um. Portanto, a construção de um processo de auto-construção.

Uma outra reflexão pode ser feita perspectivando a orientação, enquanto processo de construção, como se de uma jornada se tratasse. Uma jornada vista como alguma coisa no tempo, tida como uma experiência que continua, e considerada como alguma coisa que traz coisas boas e más. Portanto, facilitadora de mudança. E para tal, julga-se que dois dos possíveis pontos de partida são: (a) decifrar a linguagem dos mitos e dos arquétipos; e (b) encarar o falhanço e a frustração como necessários e inevitáveis. Por outras palavras, identificar e perceber as razões que moldaram o estado em que actualmente o mundo se encontra, incluindo aquelas que resultam de modelos culturais que são por natureza moldadores da personalidade e condicionadoras do conhecimento, e identificar e perceber as condições em que, nas actuais circunstâncias, se poderá interferir no processo histórico de que cada um parte e de que a ideia de jornada funciona aqui como metáfora: uma relação do tempo com o espaço, em que nada é linear, nem garantido, nem sequer espectável. Falhar, é uma condição para vencer. E por vezes, vencer também é falhar.

Enfrentar o falhanço e a frustração implica fazer escolhas difíceis. As decisões da persistência, e a noção do detalhe (Bryant & Allen, 2009), estão ligadas à procura de respostas para perguntas difíceis: (a) o conselheiro (ou se se quiser, o orientador) tem força interior e uma estratégia para articular a tradição com o dia de hoje, o modelo herdado com a necessidade de o alterar ou mesmo desmantelar, e lidar com situações inesperadas? (b) O conselheiro consegue enfrentar a sua própria solidão, fazendo prevalecer o seu ethos em articulação positiva, não conflituosa, com o daqueles com quem vive e trabalha? (c) Qual o esforço feito para pensar, para afirmar o seu logos? (d) Como se fortalece o sentido de si-próprio? (e) Qual o contrabalanço entre a necessidade de responder depressa e o tempo necessário para a reflexão, uma e outra condicionados pelo pathos?

O que com isto se pretende expressar, é que é fundamental transformar a ideia em realidade, ou seja, transformar o conceito em objecto real, que é feito pelo indivíduo, ele próprio o instrumento da construção (Duarte, 2009a). E entra-se assim na motivação, porque a construção do que quer que seja está baseada na motivação, a motivação conduz à acção, e a acção é decisão. Em suma, não existem estratégias de implementação: só há decisão de implementação, de escolha e de envolvimento. Se alguém procura implementação como competência está, com certeza, a ignorar os aspectos não-racionais, não-formuláveis da condição humana. Todas as fórmulas e todas as descrições são conceitos, ideias, palavras, teorias. Então o que torna a orientação real? É o envolvimento, a adesão e o compromisso, é uma escolha pessoal e não uma decisão de natureza política ou estratégica. Quer se queira, quer não, as teorias e os conceitos que cada um quer tornar reais, e o EU que existe em cada um de nós, pertencem a dois mundos diferentes, ou maneiras diversas de abordar os problemas: o que é que pode ser descrito, e por isso existe? O que é "o quê" e o "isto"? Por exemplo, numa relação de trabalho entre o conselheiro e o cliente não se trata de conceitos, mas de histórias contadas ao vivo. De discursum, ir e voltar. Em suma, de competência narrativa.

Quantas vezes as pessoas se deparam com um planeamento que, embora fazendo todo o sentido, ninguém o levou a sério? A razão parece simples: o ser humano não é uma ideia, é-o porque está vivo, e o que está vivo pode morrer quando se transforma numa ideia desencorpada. Portanto a chave para o sucesso pode também ser fazer com que algo aconteça, isto é, construir. E construir é ter visão, mas, de facto, não se sabe nada do futuro (veja-se o filme de Kubrick, 2001 Odisseia no Espaço): entenda-se que os especialistas por vezes não vêem para além do seu próprio logos (conta-se que, no princípio do século XX, o chefe do gabinete de patentes, em Nova York, se despediu com o argumento de que já estava tudo inventado...). E para que qualquer processo de aquisição de aprendizagens tenha sucesso, há que considerar a importância do vigor, ou seja, dos níveis mais ou menos elevados de energia e resistência mentais; há que considerar a importância da dedicação, isto é, a participação activa no trabalho, e experimentar um sentido parcial de entusiasmo; há que considerar a importância da concentração no trabalho; há que considerar a importância da oportunidade, ou, parafraseando John Lennon, a vida é aquilo que nos vai acontecendo embora nos empenhemos em fazer outros planos.

Em síntese, lançar um olhar para a orientação considera as características e as capacidades de cada um para, não perdendo a sua condição de elemento activo e solidário numa cadeia histórica de onde emerge, nela se alimentar para depois, com o conhecimento assim obtido, e integrando as suas próprias experiências e as leituras que delas faz, dar continuidade à mesma cadeia, projectando-a para o futuro.

Continuando a mesma linha de pensamento, procurando reflectir sobre a orientação enquanto processo de construção, procure-se agora entender como a orientação pode ajudar a tirar partido da experiência de cada um.

Olhe-se um pouco para as relações humanas. O antropólogo Greogory Bateson (1904-1980) afirma que "a relação não é interior à pessoa individual: não tem sentido falar de dependência, agressividade, orgulho, etc. Todas estas palavras têm a sua origem no que acontece entre os indivíduos" (1979). Também aquele que é por muitos considerado o fundador da terapia da gestalt, Fritz Perls (1893-1970), afirmava, ironicamente (e cito de memória), que 80% das relações é uma projecção, e 20% ... também. O que pode levar a dizer, acompanhando-o, que uma pessoa é ela e também aqueles com quem se relaciona: com efeito, quando o conselheiro se encontra com alguém, essa pessoa não está separada dele/dela, antes pode condicionar os seus comportamentos, e o conselheiro os do cliente. Cria-se uma relação de interdependência, na qual nada do que com uma se passa, e que seja perceptível, é indiferente à outra. O conselheiro com uma palavra, um gesto, pode despertar emoções, reacções no cliente e o mesmo pode acontecer com o conselheiro.

Pense-se na facilidade com que qualquer indivíduo pode causar sofrimento no outro, na subtileza com que pode destruir pessoas, e verifique-se o óbvio: a identidade é um processo social de construção que emerge de um contínuo, que se molda e segue uma nova direcção à medida que se vão edificando outras construções. Então, pergunte-se, como é possível pensar em orientar um indivíduo de acordo com um modelo pré-definido em prejuízo das suas características e capacidades pessoais? Como é possível pensar que o bem colectivo depende da necessidade de o indivíduo abdicar da sua personalidade, e da obrigação de ser encerrado, contra vontade e contra natura, numa forma rígida que, sendo operacional, é, no entanto, condicionadora e limitadora da criatividade? Alguns neurocientistas (Bear, Connors, & Paradiso, 2002) defendem que cada pessoa dispõe de uma memória semântica e episódica na qual associa factos a palavras, o que nos leva ao entendimento que a atribuição de sentido depende da experiência prévia de cada um, isto é, também do seu conhecimento. Como George Steiner (1929-) o diz, a ambiguidade é inerente à palavra. Todos utilizam o "idiolecto" (1978), isto é, uma selecção pessoal da linguagem de que dispõe (que é um sistema colectivo) com dados, conotações e referências individuais, que emergem em contexto de fala, que o receptor do diálogo, se não estiver no mesmo contexto, pode não interpretar, ou não interpretar correctamente, o que implica a necessidade de tradução ou, pelo menos, de concertação ou afinação de códigos. O linguista Ferdinand de Saussurre (1857-1913) explicou tudo isso quando definiu os conceitos de língua e fala: o primeiro, como um sistema abstracto de linguagem adoptado por uma dada comunidade linguística, e o segundo como o acto individual de utilizar essa mesma língua, cuja expressão máxima se encontra no idiolecto (1916) (e não vale a pena ilustrarmos o que muitas vezes acontece com a nossa língua comum e a nossa fala diferente!).

As pessoas orientam a sua conduta através das suas crenças, princípios e valores, sendo que a hierarquização da escala é individual, transmitem-nas pela linguagem, e uma das funções da linguagem é influenciar, manipular e seduzir: ou seja, criar pathos. Um outro aspecto pode ter a ver com a noção de "meta-programas" (Bandler & Grinder, 1989) para organizar a informação: uns vão pelas semelhanças, outros pelas diferenças, uns orientam as decisões segundo um critério (eu), outros por aquilo que os outros desejam (tu), e outros dependem do momento ou situação (contexto); portanto, cada pessoa sente à sua maneira, e é à sua maneira que o diz. O que se pretende salientar é que, para que qualquer tipo de orientação possa ser produtiva e compreensiva, tem que se ter em linha de conta (a) a indicação - a reflexividade - que o significado da palavra depende do contexto; (b) a interpretação de que as descrições não se limitam a representar uma faceta do mundo, mas que intervêm nesse mundo; e que (c) a compreensão do sucesso e das acções é feita em função das expectativas, dos modelos e das ideias prévias.

Recorrendo ao Evangelho de São Marcos (4:22) - "Não há nada escondido que não venha a ser descoberto, e tudo o que é feito em segredo virá a ser conhecido" -, para ir um pouco adentro da maneira como os indivíduos convivem e que assenta nas suas crenças mais íntimas; e que a necessidade de comunicação dessas crenças, voluntária ou não, é o resultado de um estado interno que cada indivíduo cria. As crenças são uma criação do ethos, (de cada um) e cada um convive comunicando aos outros aquilo que é.

Assim sendo, o sentido de orientar é também o sentido de desenformar o próprio eu: vemos o outro segundo nós próprios e não como ele é; perdemos muitas vezes a capacidade de darmos conta do que realmente queremos; as causas que os outros atribuem aos nossos actos são as suas crenças e não as nossas. Ou seja, projectam-nas em forma de crenças. Por isso é importante aprender a calar e a escutar. Ou seja, criar condições para que o cliente se possa afirmar na sua especificidade, sentir-se bem na sua pele de elemento activo, e assim contribuir para a construção do colectivo.

 

A orientação enquanto construção de nós próprios e do colectivo

O livro do Génesis encerra com uma das mais belas histórias da Bíblia: a do jovem José, um rapaz que tinha a mania de sonhar e de interpretar os sonhos que lhe narravam, e que além disso tinha o hábito de contar ao pai os maus comportamentos dos irmãos, tal como contava a eles os seus próprios sonhos. Ele era o filho preferido do pai e por isso despertava ódio e inveja nos irmãos, o que cedo conduziu a que com eles se incompatibilizasse. Pela sua personalidade e comportamentos, José era, na verdade, uma brecha no sistema familiar, e os irmãos decidiram matá-lo - mas acabaram por o vender a uns comerciantes ismaelitas que o levaram para o Egipto. Depois de muitas peripécias, José teve oportunidade de interpretar um sonho que atormentava o Faraó - o sonho das sete vacas magras que devoravam outras sete vacas gordas, e das sete espigas gradas que eram devoradas por outras sete espigas vazias - e de lhe dar conselhos úteis de política económica, o que trouxe como resultado que o reino se preparasse para um período de sete anos de fome, guardando enormes quantidades de alimentos durante um período de sete anos de grande fartura que antecederam aquele. Desta maneira, José não só se tornou na segunda figura mais importante do Egipto, como perdoou aos irmãos, os socorreu no período da fome mesmo sem eles o reconhecerem, acabando por os trazer para junto de si, acumulando-os de favores e riquezas. Mas, quando morreu com cento e dez anos de idade, apenas manifestou um desejo: que os seus descendentes, quando um dia regressassem à Terra Prometida, com eles levassem os seus ossos.

Os argumentos desta história são vários e produtivos: tem-se o homem diferente, com personalidade própria, enredado no drama da sua individualidade, que começa por não ser aceite pelos restantes membros da sociedade - o que, no texto bíblico, é representado pelo sonho em que, estando José com os irmãos a atar feixes nos campos, o seu se levantara e ficara de pé, enquanto os dos irmãos se inclinavam à sua volta. Tem-se a reacção negativa dos indivíduos não diferenciados (os irmãos) perante aquele que deles se destaca (José), gerando neles a necessidade de o eliminar. Tem-se o conhecimento do indivíduo diferenciado (José) que, transposto para uma nova sociedade mais aberta à diferença e ao entendimento da necessidade de mudar (o Egipto), porque bem gerida (um Faraó inteligente, que sabe avaliar os seus colaboradores e distingui-los), nela se consegue impor e se fazer respeitar, e assim, percebendo o novo contexto e com ele interagindo, ajudando o líder a obter excelentes resultados na economia da sociedade. Tem-se a solidariedade que, valorizando os afectos e compreendendo as razões daqueles que falharam (os irmãos de José, que buscam apoio e a quem ele perdoa), ultrapassa os diferendos em nome do interesse comum. E tem-se, finalmente, o apelo da memória, em cujo nome se encerra o aro da narrativa de vida do indivíduo: José nunca deixou de ser o filho do pastor que, apesar de se ter tornado valido de um rei estrangeiro, nunca abandonou a identidade que lhe foi desenhada pela história cultural que o formou.

Aquilo que com esta história bíblica se pretende salientar é que, recorrendo a Alfred Adler (1870-1937), mesmo para interpretar é preciso aprender tudo (1933/1950). Mas aprender como? O sociólogo Norbert Elias (1897-1990), no seu livro A sociedade dos indivíduos, coloca a questão de forma clara: nós somos uma sociedade de indivíduos. Existe uma forma tradicional do que somos enquanto indivíduos, e temos uma ideia mais ou menos precisa do que entendemos por sociedade. Mas estas duas representações, isto é, a consciência que se tem de si próprio enquanto sociedade, e a consciência que se tem de si próprio enquanto indivíduos, nunca ou quase nunca coincidem. Toda a sociedade humana é composta por indivíduos isolados (Elias, 1991), e todo o indivíduo só é verdadeiramente humano a partir do momento em que aprende a agir, a falar e a exercer a sua sensibilidade na sociedade dos outros. Portanto, a diferença entre a concepção de homem enquanto indivíduo e enquanto membro da sociedade. Volte-se à adivinhação, recordando a arte de José para interpretar sonhos estranhos: ela ajuda a tornar mais "doce", através de pensamentos e actos fantasmáticos, o carácter intolerável de situações difíceis em que o indivíduo se pode sentir de "mãos e pés atados" (a ameaça de um período de crise que se adivinha mas contra a qual nada se pode fazer - a não ser quando aparece um logos que interpreta os sinais e os transforma em actos). As fórmulas e as práticas mágicas permitem dissimular e banir da consciência a angústia da situação, a insegurança e a vulnerabilidade. O importante é entender que é a partir do momento em que a crença e a eficácia dessa "fórmula mágica" é partilhada por todos os membros de um grupo, que ela assume uma força poderosa e vencedora.

Na sociedade actual, assiste-se a um elevado grau de racionalidade, a uma objectividade factual e a uma adaptação do pensamento e do poder do controlo dos acontecimentos. Mas o que é mais importante realçar são os fenómenos sociais gerais (as crenças, as representações colectivas), e também os modos de organização do trabalho, a formulação e as perspectivas de emprego (Duarte, 2008).

O papel da psicologia é determinante na medida em que consiste em se perceber como é que os indivíduos interpretam e representam a realidade e executam as tarefas que o contexto lhes coloca, qual o significado que lhe dão, e como interagem essas representações (Guichard, 2009) na sua história pessoal. É a integração de três grandes perspectivas: a personalidade naquilo que respeita às diferenças individuais dos traços, a montagem de estratégias promotoras de adaptabilidade (o desenvolvimento decorre de uma adaptação aos contextos), e os temas de vida para a procura de motivação. Tome-se como exemplo o conceito multidimensional de adaptabilidade (Savickas, 2005; Savickas et al., 2009): um indivíduo preocupado com o futuro da sua vida de trabalho, que pretende assumir o controlo da sua própria vida, que tenha curiosidade sobre si e sobre o meio que o rodeia, que tenha o sentido de cooperação e que manifeste confiança no seu futuro, tem, quase seguramente, maior facilidade em encarar o futuro, que é incerto, e está melhor preparado para enfrentar transições nos diferentes papéis que desempenha ou desempenhará. Como dizia o Prémio Nobel da Física, Erwin Schrodinger (1887-1961), o que é verdadeiramente importante é nunca perder de vista qual é o nosso papel, é manter contacto com a vida e manter a vida em contacto connosco (1992).

 

Conclusão

Cada um dos elementos de definição pode dar acesso a uma certa realidade, mas nunca em simultâneo. Em teoria, mas também na prática, nunca se conhecem todos os elementos de definição de um sistema. Portanto, o que é importante é fazer, "nós somos o que fazemos", mas também reflectir sobre o que se faz ("só existimos nos dias em que fazemos"); assim sendo, a orientação tem que ser cautelosa para que o indivíduo não "dure" apenas.

Será necessária a construção de um modelo para sustentar e enfrentar esta outra forma de pensar a orientação? Ou, antes, a construção de modelos?

O conjunto das reflexões apresentadas parece sustentar que, para a construção de modelos, que visem a orientação enquanto processo de auto-construção, não se deve perder de vista um conjunto de variáveis. Um possível desenho de modelo deverá considerar quem são os actores, que estrutura adoptar, que estratégia se há-de definir, qual o processo que se desenvolve, e que resultados se pretendem obter. Para que se dê corpo a estes substantivos, há que identificar os obstáculos, há que formular o acordo de orientação, e há que trabalhar os detalhes (Duarte, 2009b).

Um outro modelo? - Nunca perder de vista os contextos, as estruturas que existem, e as que se podem criar, as culturas locais, e a estratégia, e o processo. No centro de ambas as abordagens? Claro que o indivíduo - sem esquecer a importância dos aspectos cognitivos, conativos e culturais.

Um modelo utilizado como um instrumento de estudo; um modelo utilizado como ferramenta de diagnóstico. Na sociedade actual, a adequação dos modelos depende do contexto. Por exemplo, para os trabalhadores-colaboradores que são habitualmente designados como trabalhadores nucleares, para esses, o aconselhamento-coaching de carreira terá que incidir na aprendizagem de investimento pessoal e de desenvolvimento de outras competências para conseguirem sobreviver num mercado sem fronteiras. Para os que são habitualmente designados os trabalhadores temporários, a incidência do aconselhamento-coaching de carreira deverá ser nos ciclos de aprendizagem e na capacidade de lidar com transições, e ainda na promoção da empregabilidade (respostas consubstanciadas em novas competências e assunção de novas responsabilidades). Para ajudar os mais marginalizados os que têm trabalho precário, a aposta deverá ser na preparação para a flexibilidade, para encararem projectos de curto prazo, ou orientá-los no sentido de encontrarem enquadramentos de natureza social, ou ainda apoiá-los na reinvenção de outras formas de trabalho, que poderão ser determinadas pela sua empregabilidade (Duarte, 2009b).

A força e o sucesso de qualquer actividade de orientação residem na possibilidade de responder a um conjunto de questões diferentes das formuladas da maneira mais clássica e tradicional de abordar a orientação; a grande questão é entender quais os processos de construção de si, ou seja, como é que as pessoas, cada pessoa, pode construir as suas vidas, nomeadamente a sua vida de trabalho nesta sociedade de indivíduos em que cada um de nós actua e se procura desenvolver.

A orientação, na actualidade, deverá ser encarada como se de um texto dinâmico se tratasse, mas um texto dinâmico, que só por si, mas sem esquecer a sua relação com o contexto, é gerador e condicionador de outros textos - porque a história humana, e portanto a narrativa conjunta e solidária dos indivíduos em diálogo permanente com o tempo e com as circunstâncias, será sempre uma história interminável, que a cada momento e circunstância identifica problemas e para eles engendra soluções.

No final, evoca-se Homero. No original grego, a primeira palavra da Odisseia é "homem". Trata-se de um herói humano, Ulisses. E a narrativa começa com o concílio dos deuses (a informação de que Ulisses está em Ogígia, a ilha de Calipso), onde se faz o elogio do herói - um homem - que se realiza na sua relação com os outros. Não por altruísmo, mas porque se tem a noção clara de que um indivíduo se define na sua condição de ser "o outro" de alguém:

Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou, depois que de Tróia destruiu a cidade sagrada. Muitos foram os povos cujas cidades observou, cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar os sofrimentos por que passou para salvar a vida, para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.

Porque afinal, como afirmou um outro grego antigo, Protágoras, o homem é a medida de todas as coisas. Basta que, depois de sabermos como foi formado, o saibamos ajudar a desenformar, e assim entender que a orientação é, hoje, um processo de auto-construção.

 

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Recebido:19/08/2011
Aceite final:26/09/2011

 

 

Sobre a autora
Maria Eduarda Duarte é Doutorada em Psicologia, Área de Orientação Escolar e Profissional pela Universidade de Lisboa, é Professora Catedrática (Professora Titular) da mesma Universidade, coordenadora do Programa de Mestrado e de Doutoramento em Psicologia, Área de Psicologia dos Recursos Humanos.
1 Conferência de abertura proferida no I Forum de Pesquisa em Orientação Profissional e de Carreira da ABOP realizado de 19 a 22 de Julho de 2011 na Universidade de S. Paulo (USP), Brasil.
2 Endereço para correspondência: Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia. Alameda da Universidade, P-1649-013 Lisboa, Portugal. E-mail: mecduarte@fp.ul.pt

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