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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.3 n.4 Barbacena jun. 2005

 

SESSÃO CLÍNICA - ACOLHIMENTO E TRATAMENTO DA PSICOSE EM INSTITUIÇÕES

 

Sessão clínica: efeitos de intervenção institucional

 

Clinic session: about the effects of institutional intervention

 

 

Cristiana Miranda Ramos Ferreira*

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo terá como objeto, a Sessão Clínica do IRS, com ênfase na repercussão institucional desde trabalho - a discussão do caso Marlene, um exemplo paradigmático de interpelação à instituição, que coloca o questionamento: o que fazer com um sujeito em crise, em um quadro complexo o bastante para impossibilitar sua liberação, mas sem gravidade suficiente para justificar uma internação? Tomar essa questão, não pela vertente da discussão teórica, mas sob a perspectiva da construção de um caso clínico, levou a equipe a interrogar a lógica de funcionamento do setor e introduzir uma mudança de perspectiva a respeito da função da urgência, assim como da articulação da equipe.
Mostraremos as questões que foram suscitadas neste primeiro encontro, e o efeito de mudança que pôde ser constato, ao longo do ano, em outros casos levados para a Sessão Clínica pela equipe da urgência.

Palavras-chave: Psicanálise, Instituição, Intervenção institucional.


ABSTRACT

This article aims the IRS Clinic Session, emphasizing the institutional repercussion of this work. The discussion about Marlene Case brought us a question: what we should do with a patient in crises, in a complex situation where could not be discharged, without major seriousness which wouldn't justify an admission at the hospital?
Considering this question, not by the theoretic discussion, but for the construction of a clinic case, it led the group to question the sector logical function, introducing a change in the perspective about the urgency factor, as well as the group procedure.
We will show the questions which were brought in this first meeting, and the effect of change that was noticed, through the year, in other cases brought to the clinic session, by the urgency group.

Keywords: Psychoanalyses, Institution, Institutional intervention.


 

 

Psicanálise e instituição - esta é uma relação que não se dá sem polêmicas e discussões. Na realidade, o problema não é com a instituição enquanto local público de trabalho, mas antes, com a instituição1 enquanto um espaço tradicionalmente ordenado pelo discurso médico. Podemos supor que essa dificuldade se dê em função da radical diferença entre a Psicanálise e a ordem médica, ao valor atribuído à fala do paciente.

Como nos aponta Clavreul (1983), ao discurso médico interessa extrair da fala do paciente aquilo que pode ser inscrito no seu campo de saber, ou seja, os elementos necessários para enquadrá-lo nas classificações definidas por um saber previamente constituído sobre as doenças.

Dessa forma, na prática médica, toma-se o paciente como objeto, ao qual se aplica um saber prévio - o diagnóstico define a terapêutica. Sendo o médico aquele que sabe nomear e apaziguar o sintoma, acredita que o saber está ao seu lado, o que lhe permite responder, dessa forma, à queixa do paciente. Para determinado sintoma irá corresponder uma terapêutica, o que poderá alienar o doente de seu saber próprio e deixá-lo entregue à prescrição do saber médico.

Em contrapartida, a psicanálise surge, antes, enquanto resposta ao mal-estar gerado pela dificuldade que experimenta o sujeito, em se adequar à unidade da classe em que ele se nomeia (TEIXEIRA, 2004). À psicanálise interessa o saber do sujeito, o que ele pode trazer da sua singularidade, do seu modo de gozo. Segundo Celso Rennó (1994), o analista esvazia o lugar de mestria, deixando em questão o próprio sujeito, possibilitando, assim, que ele mesmo produza algo para suportar seu mal-estar, seu sofrimento. Podemos dizer que a Psicanálise possibilita ao próprio sujeito produzir um saber sobre essa questão.

Dessa forma é possível pensar que os discursos médico e psicanalítico operam de maneira inversa: enquanto o primeiro exerce uma função silenciadora, o segundo faz falar. Como conseqüência dessa forma de intervenção psicanalítica, temos que sua incidência nesse campo médico implica na introdução de um saber que favorece a singularidade no interior da instituição, cuja lógica é, essencialmente, universal. Sendo o discurso médico hegemônico, fica a questão de como introduzir essa lógica. Como produzir essa inversão? Como operar com esse saber do paciente, com essa dimensão da singularidade do sujeito em uma instituição?

Diante dessa problemática, o analista pode se perguntar se realmente é possível, ou não, praticar Psicanálise dentro da instituição2. Entretanto, Alfredo Zenoni (2000) nos indica que, na realidade, a pergunta que se deve fazer não seria exatamente essa, mas sim, uma outra: é possível se utilizar do discurso do analista para orientar uma prática institucional, para orientar uma prática que é feita por muitos?

Não se trata, então, de transpor a psicanálise para a instituição, mas sim de utilizar o discurso psicanalítico para dar voz ao paciente. A psicanálise contribui com o paradoxo de não se prescrever a si mesma; ao entender que cada profissional tem sua formação e sua especificidade, o discurso psicanalítico opera abrindo espaço na instituição para o sujeito da palavra, possibilitando que a direção do tratamento seja ordenada pelo saber do paciente.

 

Sobre a sessão clínica

Com o objetivo de fazer com que a fala do paciente ressoasse no universo institucional, como nos diz Carlo Viganò: "Colocar no centro do trabalho institucional o ato da palavra, mais precisamente o ato que cria a palavra [...]" (1998:246), a direção clínica do IRS3, inaugurou a Sessão Clínica4 - um espaço clínico-institucional, aberto a todos os profissionais (de diferentes especialidades, formações teóricas e setores, tanto de nível superior quanto de nível médio), interessados em contribuir na construção de um caso clínico5. A partir da apresentação do caso pelo próprio paciente por meio de uma entrevista, ou pelo relato feito pelos técnicos envolvidos no tratamento, procurava-se estabelecer a lógica do funcionamento subjetivo do paciente em questão para, a partir da particularidade de seu caso específico, estabelecer as principais coordenadas de seu tratamento e rediscutir o manejo transferencial, as hipóteses diagnósticas, a intervenção da equipe, a interação com a rede...

Se a sessão clínica surgiu como um espaço para se discutir os casos mais complicados (de pacientes que colocavam em questão a própria capacidade de a instituição se ver como clínica da saúde mental), ela acabou por configurar-se como um espaço privilegiado para buscar novas formas de se lidar tanto com as dificuldades do tratamento como com as questões e impasses institucionais.

Podemos dizer que, mais que um lugar de discussão sobre a direção do tratamento, a sessão clínica tornou-se uma possibilidade de ponderação que produz efeitos sobre o paciente, a equipe e a instituição. Em diversas situações pudemos mesmo intervir na fragmentação institucional e seus conseqüentes impasses operacionais - não sob o olhar burocrático das normas, mas pelo inusitado da escuta clínica.

O efeito produzido por esse dispositivo pôde ser constatado quando observamos que, mesmo os profissionais de formações distintas da psicanalítica, passaram a demandar esse dispositivo diante de dificuldades clínicas. Dessa forma, o encaminhamento de um caso para discussão, ou de um paciente para entrevista, se faz menos pelo interesse na prática e teoria psicanalítica, do que pelo interesse na discussão de um tratamento.

É assim que podemos acolher a demanda de equipes compostas por profissionais de diferentes especialidades e formações teóricas, que se encontram diante de um impasse comum: o que fazer com um determinado paciente. Dessa forma, os casos que vêem para uma apresentação, geralmente, são os mais difíceis, complexos e implicam questões tanto em relação ao diagnóstico quanto em relação ao manejo da transferência, aos impasses quanto ao encaminhamento, enfim, sobre a direção de um tratamento.

E, efetivamente, como efeito do trabalho na Sessão Clínica, é possível fazer uma apreciação mais cuidadosa dos casos. O esclarecimento do diagnóstico, as indicações de premissas de uma transferência e de perspectivas de estabilização são exemplos de aspectos que podem ser esclarecidos ou redefinidos. Isso gera, com freqüência, efeitos muito positivos nos tratamentos, pois favorecem tanto a implicação da equipe como as intervenções dos diversos profissionais envolvidos no tratamento, de forma mais articulada e integrada, uma vez que podem ser orientadas por um cálculo feito coletivamente.

Podemos dizer que esse efeito articulador das intervenções, reordenador do tratamento, decorre do objetivo essencial desse trabalho que é, justamente, buscar os aspectos do caso que escapam a um saber previamente estabelecido. Ou seja, o que se busca é o saber que o próprio paciente produz sobre sua história, a interpretação que faz de seu sofrimento e as saídas que inventa para tratá-lo.

 

Aprendendo com a prática

Foi nesse contexto que o setor de urgência levou para a sessão clínica o caso Marlene - não por seus impasses ou grau de dificuldade, mas por se tratar de mais um caso, como muitos outros, que colocam o setor de urgência diante de uma mesma questão: o que fazer com um sujeito em crise, em um quadro complexo o bastante para impossibilitar sua liberação, mas sem gravidade suficiente para justificar uma internação?

É certo que para tais casos a rede criou o CERSAM6, serviço de atendimento de crise que, até certo ponto, resolve. Mas e aqueles casos que, por um ou outro motivo, lhe escapam?

Marlene é um deles. Ela tem 39 anos, é solteira, não trabalha e mora com os pais e duas irmãs. Os relatos, tanto da família, quanto da paciente, são de uma convivência difícil. A família se queixa da agressividade, da falta de limite e da manipulação de Marlene que, por sua vez, se queixa de que todos implicam com ela e que, em sua casa, tudo está trancado para ela. "Televisão tem cadeado, armário tem cadeado, geladeira tem cadeado, os quartos ficam trancados, tudo tem cadeado por causa dela. Até o banheiro tem cadeado porque ela entra no banheiro, abre as torneiras, deixa a água toda ir embora. Então tem que trancar tudo."7 De acordo com a família, tudo permanece fechado, exceto o quarto de Marlene, que não tem porta. Ou seja, "A família se tranca longe dela, ela fica trancada do lado de fora - dentro e fora ao mesmo tempo e, de qualquer maneira, sem ter acesso".8

Em uma crise de agitação, ela quebra a porta de sua casa e é levada para o HGV9. Marlene é, então, tratada de acordo com a lógica do trabalho em rede, que só permite a internação em caso de extrema necessidade. Após ser medicada e mostrar-se mais tranqüila, é liberada, no dia seguinte, da observação daquele serviço. No entanto, ao chegar em casa, passa por outro momento de agitação, quebra o vidro do banheiro e é levada ao serviço de urgência do IRS.

Um sujeito em crise, que necessita de intervenções mais incisivas, com uma importante questão familiar a ser trabalhada, seria um caso típico para o CERSAM, mas Marlene se recusa, terminantemente, a ir para lá. Relata que num momento anterior, já havia freqüentado aquele serviço, não se adaptou e interrompeu o tratamento. Sua referência é um centro de saúde, onde vai a cada 40 dias para atendimento ambulatorial - dispositivo insuficiente para aquele momento de crise.

A questão que se colocava era: o que fazer com a paciente? Por um lado, uma dúvida diagnóstica e a necessidade de se fazer alguma intervenção com a família não seriam suficientes para justificar sua internação. Por outro lado, ao tomar como exemplo o que se passara após a liberação do HGV, entendia-se que deixá-la durante um tempo na observação e liberá-la após melhora do quadro seriam medidas ineficientes, pois já se sabia que ela não iria continuar voluntariamente o tratamento; seria o mesmo que tirar nossa própria responsabilidade pelo caso.

Tomar esse caso em discussão, deter nosso olhar e escuta sobre ele, possibilitou-nos perceber que operávamos com uma lógica totalmente equivocada. O imperativo de dar um encaminhamento rápido para os casos, fosse pela necessidade de dar vazão à sala de observação (sempre cheia), ou mesmo pela pressa do automatismo institucional, acabava por levar a um estrangulamento do tempo de elaborar e à uma precipitação do momento de concluir. Assim, no lugar de recolher informações e construir o caso para dar uma direção ao tratamento, a ênfase se deslocava para o desempenho do papel a nós atribuído na rede - dar destino ao paciente: internar /não internar, decisão pautada na situação encontrada no momento da avaliação, no instante do olhar dos plantonistas.

Uma primeira pergunta que Marlene nos incitou a fazer foi sobre a função da sala de observação:

"Por que é que para fazer uma intervenção na paciente e em sua família, no sentido de trabalhar sua adesão e suporte ao tratamento, a paciente vai ter que ir para a enfermaria, ser do CERSAM ou do centro de saúde e não da própria urgência? A sala de observação não pode ser de tratamento de crise?"10

Mais além da sala de observação, Marlene colocava em questão não apenas a instituição, mas o próprio funcionamento da rede. "A cena que localiza a gente no caso é a cena dos cadeados: Marlene tinha cadeados na casa e tinha o quarto dela aberto. Isso, de uma certa, forma foi reproduzido no sistema como um todo - todas as portas da rede eram fechadas para ela. Embora ela passasse aqui pelo serviço de urgência várias vezes, fosse ao CERSAM, ambulatório, centro de convivência e tal, ela pode circular, mas ela não adere a nenhum tratamento; os lugares não fazem cabê-la, ou seja, ela não cabe em nenhum dos projetos institucionais. Então ela está totalmente solta no sistema, está sem lugar. Marlene não cabe em sua casa, como não cabe no IRS, nem no sistema. A pergunta que ela traz é: 'qual o lugar que vai me caber'."11

"A nós, cabe perguntar: é ela que tem que caber no que a gente propõe, em termos de tratamento, ou é possível a gente fazer uma certa mudança para atender de forma diferente o pedido desesperado, desorganizado que ela faz? [...] Como é que a gente pode se preparar para escutar a demanda dessa pessoa e dar uma resposta para ela, de acordo com o que ela pede?"12

O que podemos perceber é que tanto o IRS como a rede oferece diferentes serviços. Cada um tem sua proposta e lógica de trabalho, entretanto, o resultado final, ao invés de ser uma diversidade é uma fragmentação. A questão não se trata de qual serviço deva ser oferecido à Marlene, mas de atendê-la de acordo com sua necessidade de ser acolhida, dentro de sua singularidade.

Não sabemos se se trata de paranóia ou de histeria, mas sabemos que se sente excluída, sem lugar em casa - as portas estão fechadas para ela. O mesmo se passa na rede de saúde, onde Marlene não cabe em serviço algum: os locais que aceita freqüentar, como o posto de saúde, não possuem estrutura para responder à gravidade de seu quadro no momento de crise; os que têm estrutura, como o CERSAM, ela não aceita. Na observação do IRS, a paciente fica bem, mas o tempo é insuficiente; já na enfermaria o tempo é excessivo.

Acolhê-la em sua singularidade é interrogar: "Até que ponto ela não exerce um certo manejo sobre o Outro para que ela não caiba em lugar nenhum? Para que nunca tenha lugar no Outro, ao mesmo tempo deixando o Outro aprisionado em seu jogo, sem saber como sair dele?"13

Não se trata, portanto, neste primeiro momento, de definir um diagnóstico ou encaminhamento, afinal, incluir a paciente nas classificações e prescrições do saber médico se mostrou um procedimento insuficiente. Trata-se, antes, de tentar verificar qual a posição do sujeito na relação com o Outro. É o que Carlo Viganò vai chamar de diagnóstico de discurso: "O diagnóstico de discurso, o diagnóstico preliminar, serve para encontrar o lugar no qual o sujeito, em potencial, torna-se sujeito da palavra."(1997)

Ou seja, o foco da intervenção não se restringe aos fenômenos que o paciente apresenta - alucinação, delírio, agressividade... O sintoma que nos interessa é a forma com que o paciente se relaciona com o Outro. Isso é um sintoma porque, como nos diz Éric Laurent:

"Ao mesmo tempo em que Lacan destaca que o sintoma tem de literal, aquilo que constitui seu 'envelope formal' - como ele dirá - ele ressalta que o sintoma é um endereçamento ao Outro. Acrescenta-se então uma dimensão própria da demanda que subverte todas as classificações, que atravessa a extensão dos sintomas e que faz com que o psicanalista seja o destinatário da mensagem do sofrimento humano, numa extensão que desafia a classificação." (2000:156)

É, portanto, um diagnóstico anterior ao diagnóstico clínico14, estrutural, da classificação. Assim, fazer um diagnóstico de discurso é perceber os movimentos do sujeito, verificar como ele se endereça ao Outro e como demanda o Outro. É extrair de seus atos e relatos, as indicações de sua posição nas relações, as indicações de seu modo de gozo.

O sujeito tem uma forma de relação com o Outro, relação imaginária que se repete, como no exemplo: "estão me perseguindo" - em um momento, esse perseguidor pode ser o pai, figura que pode ser sucedida pelo chefe, pelo enfermeiro, pelo médico... É preciso entender que a instituição tem que intervir na posição desse sujeito em relação ao Outro. Por um lado, fazer isso é intervir no sintoma do sujeito, por outro, recuar diante disso, fazer esse corte, a ruptura nessa forma de resposta ao endereçamento do sujeito é correr o risco de ser colocado como mais um na série.

É fundamental que nos perguntemos sobre o lugar que a instituição ocupa para o sujeito. Saber qual é seu papel e seu lugar na condução desse caso é o que possibilita que nós, enquanto operadores institucionais, coloquemos-nos como uma exceção no circuito das relações do sujeito, fazendo um "menos-um" na série do paciente.

Wellerson Alkmim nomeou esta operação de 'Instituição enquanto exceção'15:

"Ao operar o ato que cria a palavra, estamos no tempo de uma clínica de exceção, da instituição enquanto exceção, ou seja, estamos tomando a instituição enquanto lugar do Outro que pode responder, de maneira diferente e única, à demanda reiterada do sujeito. É a possibilidade de se instituir a surpresa." (2003: 44)

O que temos nesse caso? Uma paciente querelante, em uma situação de conflito permanente com a família. Alega que o pai não gosta dela por ser a única das irmãs que nunca conseguiu emprego. Como não tem dinheiro, ela compra uma blusa e quer que o pai pague. Coloca-se "vitimosa" dizendo que não tem "eira" para nada, não conseguiu trabalho, não conseguiu dinheiro e acha que o pai deveria dar tudo isso para ela. Acha mesmo que o pai tem obrigação de lhe dar uma mesada. "Se instala num lugar de doente e quer o ganho [...] tem que ser compensada por isso."16 Marlene opera com o campo do Outro, de forma com que ela não caiba em lugar nenhum. Por meio da querelância e da agressividade, coloca o outro para trabalhar para ela, numa tentativa infrutífera de fazê-la caber.

Para intervir enquanto exceção, nosso ponto de partida é acolher sua queixa de que "em casa está insuportável" e propor que permaneça alguns dias no hospital, enquanto juntos, ela, a equipe da observação e sua família verificam a forma melhor de Marlene voltar para casa e estar em casa - o IRS atua como intermediador de sua relação com a família.

Se Marlene sempre coloca o Outro para trabalhar para ela, o IRS precisa inverter essa questão. A proposta foi fazer a colocação:

"Não estamos te segurando, não estamos te prendendo. Estamos te oferecendo um lugar que você pode recorrer sempre que você precisar, porque estamos vendo que lá na sua casa a coisa está complicada para você. Não precisa quebrar. Estamos de portas abertas para te receber. Você vem na hora que quiser e pode ir embora quando se sentir melhor."17

Dessa forma, é Marlene quem vai trabalhar, que vai à instituição para falar de seu mal-estar.

E foi o que aconteceu: Marlene foi liberada da sala de observação, mas continuou sendo atendida, nos dias seguintes, pela equipe da urgência. Enquanto isso foram feitas intervenções na família, até que um encaminhamento, com maior implicação dos familiares e da paciente fosse possível. A passagem dela pelo Instituto teve um efeito de apaziguamento tanto sobre a paciente como sobre a família. Pode ter sido um efeito pontual, mas trouxe uma possibilidade de mudança. Se Marlene se utilizava da agressividade, da querelância e da briga para manipular o outro, naquele momento a Instituição não 'fez o seu jogo' e não houve manipulação. Houve uma mudança de discurso, pois a Instituição, ao rejeitar sua manipulação, colocou-se na posição de causa. Ao falar sobre si, é ela, Marlene, quem ficou na posição de produzir.

Obviamente, mudar as rotinas de um setor não é fácil. Como dificuldades iniciais de intervenção nesse caso, foram colocadas inúmeras dúvidas acerca da condução do tratamento, entre elas, a de quem seria o responsável pelo tratamento e como se daria a continuidade de escuta se a urgência tinha o costume de trabalhar em regime de plantão.

O resultado mais importante dessas discussões, no entanto, foi a mudança de perspectiva sobre qual deveria ser a função do setor de urgência - a de responder ao seu lugar (na rede) de acolhimento da crise e encaminhamento, mas privilegiar o acolhimento. Dessa forma, a equipe propôs que sua função deveria ser a de:

"estar sustentando um pouco mais o tratamento do paciente na sala de observação até poder fazer um direcionamento que seja um pouco mais eficaz, para que haja uma adesão, para que a pessoa consinta em se tratar, para que ela também possa pensar que aquilo é uma solução para ela. Mesmo que isso, muitas vezes, sobrecarregue a sala de observação."18

Esses encontros foram surpreendentes, não apenas pelas questões que puderam ser discutidas e os efeitos surtidos na condução do caso Marlene, mas por terem levado um desafio a Instituição. Para sustentar a sala de observação, enquanto lugar de tratamento da crise, evidenciou-se a necessidade de modificar a lógica de funcionamento da equipe. a possibilidade de se operar a partir da clínica de muitos foi colocada.

 

Intervenção institucional

O caso Marlene foi tomado como um exemplo paradigmático de interpelação institucional e um desafio foi lançado: "O Hospital pode, se a gente quiser, ter sido um - até esse caso - e outro, depois dele."19

E, realmente, o setor da urgência aceitou o desafio. A equipe, a fim de sustentar este e outros casos que se seguiram, teve que fazer pequenos ajustes em seu funcionamento e grandes mudanças em sua lógica de trabalho. A atividade isolada do plantonista foi substituída pelo trabalho de equipe: todos os seus integrantes trocaram informações, construíram o caso, operaram de acordo com a mesma lógica, e o paciente se referenciou na equipe. Ao adotar, como estratégia principal, a criatividade, a equipe conseguiu fazer encaminhamentos mais eficazes, mais responsáveis e com maior envolvimento dos pacientes e de suas famílias.

Tal esforço pôde ser constatado cerca de seis meses depois, em outras participações da equipe da observação, em reuniões da Sessão Clínica, nas quais surpreenderam a todos os relatos de casos atendidos de acordo com a lógica da singularidade. O setor de urgência mostrou, com seu trabalho, que uma equipe articulada e envolvida no tratamento de seus pacientes, ao participar da construção do caso e utilizar a criatividade pode subverter o automatismo institucional20.

Tivemos, por exemplo, o caso do Sr. Veloso21. O uso da internação esporádica como um recurso habitual do tratamento foi interpelado e colocado em questão. Como o paciente era do interior, buscou-se o apoio de parentes que viviam em Belo Horizonte, o que possibilitou sua permanência em casa, ao invés da internação. Esse procedimento permitiu que ele fosse atendido pelo serviço de urgência, o que funcionou como uma espécie de ambulatório de crise. "Já tem um mês que ele está aqui na urgência, indo e voltando, e a gente está fazendo um movimento direcionado para fora, mas deixando ele chegar."22 Após um mês, o paciente se sentiu mais seguro para retornar à sua cidade , onde iria continuar o tratamento.

Outro exemplo interessante é o caso de Mariana23. Ela chegou ao IRS em crise de agitação extrema, sem condições de se comunicar. Na ocasião, uma tia informou que Mariana morava em Ouro Preto e tinha ido a Belo Horizonte para encontrar o namorado e, como não tinha tomado a medicação, acabou entrando em crise. A dúvida de diagnóstico entre dissociação histérica e psicose, associada à pressão familiar para que ela fosse internada, justificariam sua permanência no hospital. Apesar das condições do adversas daquele momento - feriado prolongado, sala de observação superlotada e o quadro de agitação intensa do paciente, a equipe optou por mantê-la na sala de observação, até que ela mesma pudesse falar sobre seu caso. Em meio à agitação, Mariana questionou: "Vim namorar. Não posso namorar?"24 Ao que a assistente social respondeu: "Pode namorar, mas tem que tomar o remédio, senão, como é que você vai namorar?"25 Essa colocação possibilitou à paciente elaborar sobre sua situação. O efeito da medicação, associado à possibilidade de ser escutada pelos técnicos da equipe, a intervenção firme junto à família e a busca por seu suporte permitiu que, em três dias, ela fosse liberada para tratamento externo.26

Esses encaminhamentos só foram possíveis graças à forma de trabalho integrada e articulada da equipe. Sob o olhar e escuta atenta dos vários profissionais que, por meio de anotações em prontuário e discussões freqüentes, fizeram circular a palavra da paciente "Foi possível ter mais informações e, conseqüentemente, encurtar o tempo de elaboração para concluir o trabalho num tempo mais rápido, dando uma perspectiva mais eficaz e particular para cada caso."27

Não há dúvida, portanto, de que tomar a palavra do paciente para orientar a direção de seu tratamento permite, como conseqüência, uma intervenção no automatismo institucional.

É claro que essa intervenção implicou, algumas vezes, em alterações das normas e burocracias do Hospital. Podemos propor que a idéia de "instituição enquanto exceção" não se restringe em se fazer menos-um na série de relações do paciente; ela faz exceções em suas próprias regras e padrões de funcionamento - posição que exige trabalho e coragem. Mas como Freud já antevia, esta deve ser também uma das atribuições da psicanálise. Em suas próprias palavras: "Em outros casos, nossa teoria etiológica pode ajudar o médico encarregado da instituição, lançando luz sobre a fonte dos fracassos que ocorrem na própria instituição, e pode sugerir-lhe meios de evitá-los."(1898: 301)

Este foi o trabalho que uma direção norteada pelo discurso psicanalítico, que tomou como prioridade absoluta a clínica do sujeito, pôde realizar.

De qualquer maneira, como efeito deste trabalho, tivemos na Instituição momentos extremante profícuos: elaborações teóricas, intervenções clínicas e mudanças de lógica, mas o que se tornou ainda mais importante é que conseguimos produzir uma instituição dinâmica, mais viva e mais ativa.

Infelizmente, com as mudanças administrativas, o discurso clínico foi substituído por uma orientação gerencial, burocrática, que amortizou o processo de mudança, silenciou novamente os pacientes e abafou a criatividade dos profissionais. Entretanto, algo permaneceu: cada pessoa que participou deste processo hoje sabe que este trabalho - 'Construção do caso clínico, Clínica feita por muitos e Instituição enquanto exceção' - é possível!

 

Referências

ALKMIM, Wellerson. Construir o caso clínico, a instituição enquanto exceção. Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental. Belo Horizonte, no 9, p. 43-46.        [ Links ]

CLAVREUL, Jean. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Brasiliense, 1983.        [ Links ]

FREUD. S. (1898) A sexualidade na etiologia das neuroses. In: FREUD. S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Vol. III        [ Links ]

LAURENT, Eric. Há algo de novo nas psicoses. Curinga - Há algo de novo nas psicoses. Belo Horizonte: EBP-MG, n.14, abr., 2000.p. 152-163.        [ Links ]

RENNÓ, Celso. Do Sintoma à clínica. Belo Horizonte: FUNED - ESMIG. 19/09/94 (Mimeog.)        [ Links ]

TEIXEIRA, Antônio. Do conformismo canalha à paixão da besteira. In: Fazer Análise - Quando, porquê e como. XIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, Rio de Janeiro: EBP, 2004, p. 29-33.        [ Links ]

VIGANÒ, Carlo. Da instituição ao discurso. In: Primeiro congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Barcelona: Relatório das Escolas- EBP. Sl. Cultura. 1998        [ Links ]

ZENONI, Alfredo. Qual a instituição para o sujeito psicótico? In: Abrecampos. Psicanálise e Instituição - A Segunda clínica de Lacan . Instituto Raul Soares - FHEMIG, ano 1, n. 0, 2000. p. 11-31.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
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Recebido em 30/9/2004
Revisado para publicação em 24/03/2005

 

 

* Mestranda em Psicanálise - UFMG, especialista em saúde mental - clínica.
1A intenção é marcar a diferença entre instituição enquanto espaço, local de trabalho que reúne práticas diversas, constituído por uma diversidade de profissionais e discursos, e instituição médica, enquanto discurso instituído, discurso hegemônico, nos estabelecimentos de atendimento à saúde mental.
2Podemos acompanhar essa discussão no trabalho de pesquisa desenvolvido por Ana Figueiredo, nos ambulatórios do Rio de Janeiro. Ela discute como questões do setting analítico, do pagamento e do divã impunham impasses a essa prática. Foi um momento em que se tentou aplicar a Psicanálise à instituição. cf. FIGEUIREDO, Ana C. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997, p. 57-97.
3Instituto Raul Soares - hospital psiquiátrico da Rede FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais).
4Este projeto teve início em agosto de 2000, sendo realizado semanalmente, sob a orientação do Dr. Wellerson Alkmim - psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Minas, diretor clínico do IRS de 1999 a 2001 e diretor geral do IRS de 2001 a 2003.
5Sobre o assunto, conferir em VIGANÒ, Carlo. A construção do caso clínico em saúde mental. In: Curinga - Psicanálise e Saúde Mental. Belo Horizonte: EBP-MG, n.13, set., 1999, p.50-59.
6Centro de Referência em Saúde Mental (Serviço destinado ao atendimento de crise - equivalente ao CAPS).
7Informações apresentadas por Hilda Mesquita (ass. social do setor de urgência), recolhidas nos atendimentos à família e à paciente. - Sessão Clínica de 20/9/2001.
8Dr. Marco Túlio Pellegrini (psiquiatra, plantonista do setor de urgência) - Sessão Clínica de 20/9/2001.
9Hospital Galba Velloso - hospital psiquiátrico da rede FHEMIG.
10Dr. Marco Túlio Pellegrini - Sessão Clínica, 20/9/2001.
11Dr. Wellerson Alkmim - Sessão Clínica, 20/9/2001.
12Dr. Wellerson Alkmim - Sessão Clínica, 20/9/2001.
13Dr. Wellerson Alkmim - Sessão Clínica, 20/9/2001
14Certamente que o diagnóstico clínico é fundamental na direção do tratamento, mas por vezes, só quando se intervém na posição do sujeito na relação com o Outro, é que, por meio de sua resposta, podemos extrair os elementos que nos possibilita verificar se tal forma de endereçamento resulta de uma fantasia histérica ou de um delírio psicótico, por exemplo.
15Formulação desenvolvida por Wellerson Alkmim durante os trabalhos da Sessão Clínica e que foi tomada como norte de trabalho nos três primeiros anos de realização dessa atividade.
16Ana Denise (psicóloga da 1a enfermaria, que atendeu a paciente em internação anterior) - Sessão Clínica, 4/10/2001.
17Dr. Wellerson Alkmim - Sessão Clínica, 20/9/2001
18Dr. Marco Túlio Pellegrini - Sessão Clínica, 20/9/01
19Dr. Wellerson Alkmim - Sessão Clínica, 20/9/2001.
20Este texto foi baseado no material recolhido durante os encontros da Sessão Clínica, realizadas nos dias 20/9/01, 4/10/01, 4/4/02, 25/4/02 e 27/6/02. Este processo de rediscussão da lógica institucional, com ênfase na clínica teve início em 2000, quando tivemos um psicanalista na direção do hospital. O processo perdeu a continuidade após mudanças políticas em 2003.
21Caso atendido por residentes e relatado por Dr. Marco Túlio Pellegrini - Sessão Clínica, 25/4/2002.

23Sessão Clínica, 4/4/2002.
24Intervenção realizada e relatada por Hilda Mesquita.
26Caso a paciente tivesse sido encaminhada para a internação, possivelmente ficaria um bom tempo no hospital, visto que a média de permanência é de 40/50 dias.
27Dr. Wellerson Alkmim - Sessão Clínica, 27/6/2002.

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