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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.3 n.4 Barbacena jun. 2005

 

RESENHAS

 

 

Anália Tatiana Oliveira*

UNIPAC-Ubá

 

 

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 248p.
ISBN 85-7396-394-8.

 

 

Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pelo departamento de Psicologia Clínica da PUC/SP e clinica, desde 1981, em consultório particular. É conferencista, ensaísta e poeta. Escreve artigos sobre cultura, comportamento, literatura, cinema, televisão e psicanálise para a imprensa. É autora de diversas obras, entre elas, Processos primários e Sobre ética e psicanálise.

Em Ressentimento a autora apresenta ao público o resultado de suas longas pesquisas sobre o tema. Com inteligência e ousadia, a psicanalista constitui vínculos entre seus conhecimentos e os textos que a orientaram. Ela constata que, em primeiro lugar, o ressentimento é o que se pode chamar de constelação afetiva, própria do homem contemporâneo. Segundo a autora, o ressentido é um fraco, é aquele que remoe uma vingança que nunca será executada por se tratar de um sentimento de agressão imaginária ou real que não foi defrontada, o que tornou impossível a felicidade imediata do sujeito.

Ao longo de quatro capítulos, Kehl articula o tema por meio de pontos de vista diferentes e tece uma análise crítica do ressentimento e seus ganhos secundários. Ao introduzir sua obra, expõe a relevância do tema. O ressentimento é uma discussão pertinente tanto à clínica quanto à esfera política.

No primeiro capítulo, a autora une a psicanálise ao ressentimento, apesar de este último se tratar de um afeto que pertence ao senso comum e não à uma estrutura clínica. Apesar de Freud não ter tratado diretamente do tema, a psicanálise fornece instrumentos para a compreensão do processo de formação e instalação do ressentimento. Kehl relata o comportamento do paciente que, ao procurar o analista, coloca-se no lugar de vítima inocente de um mal causado por um outro, muito mais poderoso que ele, e se coloca como alguém "coberto de razão". A repetição da queixa como meio de gozo e de defesa, que garante a integridade narcísica do eu, ressalta a importância da retificação subjetiva para que possa ser iniciado o processo analítico.

Há consideráveis semelhanças entre ressentimento e melancolia. Por meio dos conceitos freudianos, a autora descreve a formação da estrutura melancólica e da participação, mesmo que secundária, do ressentimento. O analista é de fundamental importância para o aspecto emocional do melancólico, já que ele é usado como testemunha da sua impotência perante o outro. Kehl retoma o conceito de Freud de narcisismo primário que nos fornece uma pista sobre o núcleo no qual se funda o ressentimento e sobre o lugar que o ressentido perde, ou melhor, que ele acreditava ser seu por direito. A psicanalista aplica a expressão freudiana "covardia moral" para caracterizar o ressentimento que, mesmo sintomaticamente diferente da melancolia, participa da histeria e da neurose obsessiva. Ela exemplifica esta teoria com o caso de Felipe, um sujeito que, como todos os ressentidos, tem a pretensão de que é possível "ganhar o jogo sem jogá-lo".

No segundo capítulo, a autora focaliza as idéias do filósofo Nietzsche - aquele que, verdadeiramente, despiu a patologia do ressentimento. Indissocia sua teoria a respeito desse afeto, em uma crítica ao desempenho do Estado Moderno - o grande responsável pela submissão voluntária dos indivíduos, que se tornam fracos e sem coragem para lutar. Nietzsche relata, em sua obra, conceitos como moral escrava, má consciência, rejeição a tudo o que é "não - eu" e o despertar da culpa no outro como aspectos definidores do ressentimento. Evidencia-se a influência de Baruch de Espinosa no pensamento de Nietzsche, e se percebe uma grande proximidade entre suas filosofias. Mas se eles se uniram, outros se afastaram. Mesmo com a afinidade entre os pensamentos de Nietzsche e Freud, o pai da Psicanálise manteve-se distante da obra do filósofo e das suas indagações sobre o ressentimento.

No terceiro capítulo, Kehl faz um passeio pela literatura que trata do ressentimento, na qual o leitor / espectador acaba por identificar-se com o personagem ressentido que, diga-se de passagem, não pode, em momento algum, ser nomeado com tal. O personagem torna-se moralmente autorizado pelo espectador a ter a constelação de afetos negativos como raiva, desejo de vingança, inveja, desde que sejam direcionados a alguém "pior que ele". A autora ressalta a diferença da literatura melodramática com a das grandes tragédias e os romances dos séculos XIX e XX, em que a primeira é a autêntica representante do que ela denominou de "a estética do ressentimento", que é justamente essa identificação do leitor / espectador com a pureza das intenções do personagem. Para essa exposição, Kehl utiliza-se de quatro obras: Ricardo II, de Shakeaspeare, Crime e Castigo, de Dostoiévski, São Bernardo e Uma Vingança Invertida, de Graciliano Ramos e a novela As Brasas, do húngaro Sandor Márai.

No quarto capítulo, faz uma reflexão sobre o ressentimento, sob o ponto de vista da política. Diz da suposta igualdade entre os sujeitos que o Estado Moderno prega, o que gera o ressentimento social, nos casos em que a desigualdade é sentida como injusta perante essa ordem simbólica. Neste contexto, gera-se também o uma revolta submissa, expressa em atos reativos individualistas com caráter de competição. O Estado é usado como protetor narcísico dos cidadãos.

A memória e o trabalho psicanalítico são de extrema importância para a superação de traumas individuais e coletivos; eles mostram a necessidade que o sujeito ressentido tem de incluir um terceiro como testemunha. É o que geralmente acontece em livros e documentários que relatam fatos de caráter traumático como o holocausto. Kehl descreve a sociedade brasileira que, por uma identificação com outras nações, acaba por rejeitar suas origens, para que, desta forma, a imagem de felicidade constante e sensualidade sobressaia à imagem de povo ressentido. Os brasileiros vêm, nessa renúncia, uma maneira de garantir um reconhecimento internacional.

Ressentimento é uma proposta de leitura irrecusável para se conhecer um tema que, apesar de popular, não é compreendido mais profundamente. O livro apresenta uma abordagem de fácil entendimento, que convida o leitor a se aventurar por caminhos desconhecidos, guiados pela autora. Trata-se de uma obra de raízes psicanalíticas que floresce em abordagens do cotidiano e cujas sementes devem ser germinadas pelo mundo inteiro.

 

 

*Aluna do 3º período curso de Psicologia da UNIPAC-Ubá

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