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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.7 n.12 Barbacena jun. 2009

 

ARTIGOS

 

A alta progressiva como meio de reinserção social do paciente do manicômio judiciário

 

The progressive discharge as a social reintegration means of the judiciary asylum patient

 

 

Caroline Velasquez MarafigaI, * ; Elizabete Rodrigues CoelhoII, ** ; Maycoln Leôni Martins TeodoroI, ***

I UNISINOS
II ULBRA/Guaíba

 

 


RESUMO

A alta progressiva (AP) é um benefício concedido pela justiça a pacientes que estão cumprindo medida de segurança em manicômio judiciário. Trata-se de uma prática de desinternação que visa a reinserção social dos indivíduos considerados inimputáveis e que cometeram delitos. Este artigo tem como objetivo apresentar o histórico e os principais conceitos norteadores da AP, além de apontar as características desta prática, seus procedimentos e suas etapas. Serão abordados aspectos teóricos sobre o surgimento da AP, sua caracterização e sua relação com a Reforma Psiquiátrica. Essa desinternação gradual pode ser considerada como ferramenta terapêutica para o tratamento e para a avaliação dos pacientes, um meio de controle de reincidência delituosa, além de servir de modelo para os hospitais de custódia do País.

Palavras-chave: Alta Progressiva, Medida de Segurança, Manicômio Judiciário.


ABSTRACT

The progressive discharge (PD) is a benefit granted by the Judiciary to patients who are complying with security measure in a judiciary asylum. This is a discharge practice that aims the social reintegration of the individuals considered irresponsible and who committed delicts. This article aims to present the history and the main concepts guiding the PD, besides outlining the characteristics of this practice, its procedures and stages. It will be addressed theoretical aspects on the appearance of the PD, its characterization and its relationship to the psychiatric reform. This gradual discharge can be considered as a therapeutic tool for the treatment and evaluation of the patients, means of criminal recidivism control, and it serves as a model for the custody hospitals of the country.

Keywords: Progressive discharge, Security measure, Judiciary asylum.


 

 

Os manicômios judiciários foram instituídos no Brasil na segunda década do século XX, com a intenção de acolher os indivíduos considerados pela justiça como loucos e infratores (MENEZES, 2005a, SANTOS et al., 2006; CORREIA et al., 2007). Esse procedimento passou a ocorrer a partir do entendimento que o doente mental delituoso não pode ser considerado culpado pelos seus atos criminosos em função de sua psicopatologia. Além disso, observou-se que estes indivíduos não poderiam receber tratamento adequado para seus casos na convivência com criminosos em cadeias comuns (MENEZES, 2005b; CRESPO DE SOUZA; MENEZES, 2006; SANTOS et al., 2006; DANTAS; CHAVES, 2007; CORREIA et al., 2007; ALMEIDA, 2008; ROCHA, 2008). A partir dessa época, quando comprovada inimputabilidade ou semi-imputabilidade dos indivíduos diante de atos ilícitos que praticaram, eles passaram a ser internados em um hospital de custódia para tratamento e cumprimento de uma prática chamada medida de segurança (DANTAS; CHAVES, 2007; ALMEIDA, 2008; ROCHA, 2008).

A medida de segurança é configurada como um instrumento legal, imposto ao indivíduo que, em função de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou mesmo por perturbação da saúde mental, apre¬senta algum grau de periculosidade. Por essa razão, esse procedimento se difere da pena (medida imposta pela justiça para indivíduos que se encontram em cadeias comuns) por alguns motivos. Primeiramente, enquanto a pena tem caráter mais punitivo, a medida de segurança tende a se apresentar de forma mais preventiva (MENEZES, 2005b; CRESPO DE SOUZA; MENEZES, 2006; SANTOS et al., 2006; CORREIA et al., 2007; DANTAS; CHAVES, 2007). Em segundo lugar, a aplicação da pena se objetiva através da culpa, o indivíduo que comete delito torna-se culpado pelo ato praticado. Por outro lado, a medida de segurança opera em função da periculosidade, pela falta de entendimento que a pessoa tem em relação ao caráter ilícito do seu ato criminoso. Finalmente, a pena tem uma duração preestabelecida e não modificável, enquanto a medida de segurança tem seu tempo indeterminado, já que depende da evolução do tratamento da pessoa, portanto é passível de renovação anual (MENEZES, 2005b; SANTOS et al., 2006). Considerando o término da medida de segurança e o retorno do indivíduo para a sociedade, foram criadas algumas alternativas de acompanhamento do interno. Uma delas é conhecida como “alta progressiva” e foi desenvolvida no Instituto Psiquiátrico Forense Dr. Maurício Cardoso (IPF), no Rio Grande do Sul.

O IPF foi o segundo hospital de custódia a ser instalado no Brasil e se constitui em uma casa da rede prisional subordinada à Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) e à Secretaria de Justiça e de Segurança do Estado do Rio Grande do Sul. Intitulado “manicômio judiciário”, o IPF é o maior estabelecimento médico-penal do País, tanto em número de vagas quanto de ocupação (MENEZES, 2005c; LIMA; CRESPO DE SOUZA; MENEZES, 2006; TEIXEIRA; DALGALARRONDO, 2006; GAUER et al., 2007; CORREIA et al., 2007). No instituto, são realizadas atividades periciais e assistenciais, sendo o único local no Estado do Rio Grande do Sul onde são confeccionados laudos de avaliação de Responsabilidade Penal e de dependência toxicoló¬gica, além de exames anuais de verificação da cessação de periculosidade (MENEZES, 2005a; HENRIQUE, 2006; GAUER; COLS; 2007). Além disso, o IPF caracteriza-se por ser o principal estabelecimento para acolhimento, tratamento e ressocialização de indivíduos sentenciados com medidas de segurança, seja por internação ou mesmo ambulatorial (MENEZES, 2005c; GAUER et al., 2007).

Quando um paciente é internado no manicômio judiciário normalmente não apresenta boas condições mentais. Em muitos casos é bastante comum que os juízes de direito determinem a internação imediata, logo depois da ocorrência do crime, mesmo sem a conclusão do laudo pericial. Esses indiví¬duos chegam aos institutos em precária situação mental e física, necessitando de cuidados especiais. No IPF, cada caso é especificamente estudado e ava¬liado por toda equipe terapêutica, assim todas as decisões em relação ao paciente são tomadas coletivamente. Durante o cumprimento da medida de segurança o paciente é clinicamente estabilizado, recebendo tratamento medicamentoso e psicológico, sendo preparado para sua ressocialização (MENEZES, 2005d). Sabe-se que o processo de ressocialização é bastante complexo, tanto para os pacientes institucionalizados, quanto para suas famílias e até mesmo para a sociedade em geral. O momento da saída definitiva do manicômio é muito esperado, entretanto, na maioria dos casos, esse momento vem acompanhado de muita angústia e incertezas em relação à sua vida fora do ambiente institucional (SALLES; BARROS, 2006). Em função das carac¬terísticas de isolamento social e segregação que o modelo carcerário/asilar carrega há diversos anos, o tratamento de agentes inimputáveis é conside¬rado como excludente. As temáticas doença mental, medida de segurança e criminalidade são complexas, pois envolvem questões relacionadas a preconceito e estigmatização, já que muitas vezes esses pacientes são considerados pela sociedade doentes mentais criminosos (MESSIAS, 2006; SANTOS et al., 2006; BRAVO, 2007). Assim sendo, faz-se necessária a criação de medidas alternativas, que propiciem a esses agentes boas condições para a consolidação de uma reabilitação psicossocial efetiva. Pensando nisso, o Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso criou uma prática de desinter¬nação gradual para seus pacientes chamada alta progressiva (MENEZES, 2005d).

O regime de alta progressiva é configurado por se tratar de uma concessão que a autoridade judiciária designa aos internos do manicômio judiciário, que estão cumprindo medida de segurança. Durante esse período, os pacientes que recebem o benefício da AP passam a sair da instituição esporadicamente, mediante solicitação das equipes terapêuticas das unidades assistenciais, através dos laudos de verificação de periculosidade anuais. De acordo com o estágio do tratamento e dos objetivos terapêuticos, ou da avaliação que se destina, o regime da alta progressiva ocorre através de saídas da instituição por breves períodos. Essas saídas podem variar em fins de semana com a família, passeios ou visitas programadas e saídas diárias, semanais ou até mesmo por períodos mais longos do instituto (MENEZES, 2005d; PACHECO, 2006). Foi através de um acordo realizado entre o Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) e o Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul que os juízes passaram a decretar a associação da alta progressiva à medida de segurança. Este acordo permitiu aos médicos psiquiatras a obtenção de autorização para liberar os pacientes que estão aptos a se beneficiarem dessas saídas, não havendo assim a necessidade de longos e burocráticos processos adminis¬trativos (MENEZES, 2005d; PACHECO, 2006).

Em vista da relevância do tema, este artigo tem como objetivos apresentar o histórico e os principais conceitos norteadores da alta progressiva, apontar as características dessa prática, assim como seus procedimentos e suas etapas. Para isto, serão abordados alguns aspectos teóricos em relação ao surgimento do processo de alta progressiva, sua caracterização e sua relação com a reforma psiquiátrica.

 

SURGIMENTO DA ALTA PROGRESSIVA (AP)

O procedimento de alta progressiva (AP) teve seu início em 1966, no Instituto Psiquiátrico Forense, quando foi concedida a dois internos a circulação na área externa do instituto (MENEZES, 2005d; MESSIAS, 2006; PACHECO, 2006). Na época do seu surgimento, a AP apresentou-se como um elemento inédito e inovador no Brasil no que tange ao cumprimento de medida de segurança. Pacheco (2006) comenta que a implantação do regime de alta progressiva no IPF foi calcada por muitas dificuldades, como a falta de suporte legal para a prática e também pelos temores em relação à recuperação e reinserção social dos pacientes delituosos. O autor ainda afirma que, em 1971, foi criado um setor específico no instituto para atendimento dos pacientes escolhidos. Este setor destinava-se a tratar os internos que estivessem desempenhando atividades laborais e residindo fora do IPF. Os pacientes retornavam ao instituto somente para a efetuação de avaliações periódicas e tratamento, enquanto os demais internos que se encontravam no início do processo de alta progressiva seguiam acompanhados pelos técnicos em suas respectivas unidades de tratamento (PACHECO, 2006).

Em 19 de setembro de 1977, a alta progressiva foi oficialmente instaurada pelo regimento interno da instituição, em comum acordo com os juízes da Vara de Execuções Criminais (MENEZES, 2005d, e; MESSIAS, 2006; PACHECO, 2006). Desde 1977, a prática da AP vem se apresentando como um importante instrumento na passagem dos internos para a desinternação condicional. Essa desinternação gradual caracteriza-se como a etapa conclusiva das ações terapêuticas realizadas no IPF. Neste sentido, a alta progressiva contribui para que as medidas de segurança atinjam de forma mais eficaz o objetivo de reabilitar psicossocialmente o paciente deli¬tuoso, já que se trata de um local de custódia e tratamento que funciona para este fim (MENEZES, 2005d, e; PACHECO, 2006). Além disso, as questões referentes aos doentes mentais infratores são consideradas muito mais como um problema no campo da saúde, do que no campo prisional propriamente dito. Com o ingresso do regime de alta progressiva no campo do cumprimento das medidas de segurança, muito se ganhou em agilidade, pois diversos pacientes atualmente encontram-se mantidos em tratamento domiciliar (MENEZES, 2005d).

 

CARACTERIZAÇÃO DA ALTA PROGRESSIVA

Entendida pelo corpo clínico do IPF como uma ação terapêutica, a alta progressiva é caracterizada como uma desinternação gradual do manicômio, pela qual o indivíduo passa ao longo do cumprimento de sua medida de segurança. Quando o paciente recebe esse benefício, é dada a ele a possibi¬lidade de saídas esporádicas do instituto, iniciando com um simples passeio pelo quarteirão até as visitas, por um período maior, à sua família. Essas visitas têm duração determinada, que iniciam com saídas de finais de semana, passando por períodos nos quais o indivíduo chega a ficar semanas fora do instituto. O processo se encerra quando o paciente só retorna ao IPF anual¬mente, para a realização de exames (MENEZES, 2005d, 2006; PACHECO, 2006). Segundo recente pesquisa (GAUER et al., 2007), grande parte da população de pacientes do IPF (81,5%) encontra-se no regime da AP.

A alta progressiva é um processo que tem como finalidade a reinserção social do paciente delituoso (MENEZES, 2005d; COROCINE, 2006; PACHECO, 2006). Ao ser analisado em seu contexto histórico, esse procedimento apresen¬tou-se com grande ênfase na esfera médico-jurídica, principalmente por se tratar de um instrumento de avaliação pericial nos laudos de verificação de periculosidade. Ou seja, do ponto de vista da perícia, a alta progressiva proporciona uma avaliação mais completa em relação à propensão de atos violentos do paciente. Isso se torna possível porque a prática da alta progressiva ocorre em um ambiente extrainstitucional e a evolução da manifestação de psicopatologias é acompanhada diretamente pelos técnicos responsáveis (MENEZES, 2006). Entretanto, para que o benefício ocorra, os pacientes devem apresentar evolução em seu tratamento e diminuição de seus sintomas, bem como a evidência da capacidade de aceitação de suas famílias. Assim, é observada pela equipe técnica a adaptação do paciente às condições socioterápicas ou laborativas, que ocorre primeiramente dentro do IPF. Outro aspecto a ser analisado é o comportamento do paciente no início do processo, em saídas breves e também na área hospitalar interna, até a efetivação de saídas mais longas (MENEZES, 2005d; PACHECO, 2006).

A alta progressiva tem como objetivos o aprimoramento do sistema de avaliação dos pacientes, a complementação com mais um recurso terapêu¬tico na recuperação dos pacientes de manicômios judiciários e a modernização da estrutura tradicional de tratamento. Outro objetivo é a promoção da reintegração social dos pacientes, além de proporcionar subsídios para a tarefa pericial e prevenir a reincidência de seus delitos. Essa prática de desinternação também visa a diminuição da população hospitalar e a improcedência das teorias clássicas em relação à irrecuperabilidade dos doentes mentais que cometeram delitos (MENEZES, 2005d).

A permanência no regime de alta progressiva se dá em aproximadamente um ano. Durante este tempo, o paciente é preparado psicologicamente para o seu retorno à sociedade e, principalmente, para sua família. Com a reaproximação da família, a possibilidade da alta passa a ser viável, configurando as saídas terapêuticas como um dispositivo de diminuição da ansiedade no momento da alta definitiva (MENEZES, 2005d; MACHADO, 2006; PACHECO, 2006). Muitos desses pacientes, por conta dessa ansiedade diante da incerteza de como será sua vida em um contexto extrainstitucional e também por se depararem com fatores motivadores de sua internação, apresentam piora em seus sintomas psiquiátricos (GOFFMAN, 2003; ABDALLA-FILHO; BERTOLOTE, 2006; SALLES; BARROS, 2007). Desta maneira, ocorre a possi¬bilidade de manifestação e evolução intensificada de sua psicopatologia e de reincidência de atos violentos. Para isso, é imprescindível ressaltar a neces¬si¬dade de entrevistas regulares com os pacientes em função da oscilação dos seus estados mentais, físicos e sociais. Com base nisso, estabeleceu-se o prazo de 90 dias para a realização do exame periódico dos pacientes que estão em suas residências, durante a alta progressiva (MACHADO, 2006; PACHECO, 2006).

Para que a alta progressiva tenha continuidade, é necessário que o paciente apresente manejo de situações adversas, que poderão ocorrer ao longo de sua vida fora do IPF. Situações como dificuldades para arranjar emprego, ser despedido, nascimento de filhos, morte de algum familiar, abandono pelo cônjuge e tantas outras que eventualmente surjam podem causar desesta¬bilização no indivíduo. A regularidade no trabalho, assim como a tolerância familiar e sua disposição em auxiliar o paciente, quando este necessite, também é fator que dá continuidade ao processo de desinternação do paciente (MENEZES, 2005d; PACHECO, 2006).

Em contrapartida, existem alguns fatores que recomendam a internação imediata ou alguma medida-controle para os pacientes. Um deles seria o advento de episódios psicóticos nos indivíduos, outro seria o estabele¬cimento de situação litigiosa com familiares ou queixas frequentes com relação ao paciente, ou mesmo que essas queixas partam do próprio indivíduo. A incapacidade prolongada de se fixar em alguma atividade laboral remunerada também configura como um fator que propicia a reinternação do indivíduo no instituto. Do mesmo modo, em caso de troca frequente de emprego por razões consideradas ilógicas, que indiquem uma interpretação delirante ou mesmo ideias supervalorizadas em relação aos colegas de trabalho, empre¬gadores e outros, também é recomenda a internação. Episódios frequentes de alcoolismo, ausência nas entrevistas de acompanhamento ou atrasos assí¬duos às mesmas, sem causas justificáveis, também favorecem o retorno do paciente ao hospital. Outra ação que acaba inclinando o paciente para uma reinternação é o abandono efetivo do tratamento. Esses casos são judicialmente configurados como fuga e trazem grandes prejuízos aos indivíduos, tanto no âmbito jurídico quanto para seu tratamento. Em outros casos, os pacientes verbalizam frequentemente a preferência por ficar internado no instituto, sem razões claras. Quando isso ocorre, é preferível que se acolha novamente o paciente nos hospitais de custódia. Da mesma forma, paciente com atitudes que se assemelhem ao comportamento delituoso, ou mesmo que reincida no delito, é outra situação em que se recomenda reinternação imediata do paciente (MENEZES, 2005d).

A passagem do regime de alta progressiva para a liberdade plena do indivíduo ocorre mediante a apresentação de uma boa evolução psiquiátrica, com ausência de sintomas psicóticos agudos, por um longo e regular período. Este tempo não é estabelecido de forma enrijecida. Entretanto, ao longo da experiência exercida no IPF com alta progressiva, constatou-se que em um período de aproximadamente dois anos em regime de observação e trata¬mento externo é possível analisar a estabilização do paciente e a adaptação da vida social. Porém, é necessário ressaltar que para alguns casos este prazo mínimo é insuficiente, enquanto para outros é possível eliminá-lo. A iniciativa do paciente em assumir efetivamente sua vida fora do hospital, procurando oportunidades de trabalho, ou mesmo tendo uma boa adaptação profissional, com ausência de atritos frequentes com colegas e empregadores, configura uma grande chance para a não reinternação no IPF. Igualmente, uma boa aceitação familiar desse paciente e de sua patologia também possibi¬lita o sucesso em seu processo de desinternação (MENEZES, 2005d).

Em função disso, faz-se necessária uma avaliação criteriosa do paciente durante o período da alta progressiva, além da adesão ao tratamento na sua comunidade de origem ou na rede ambulatorial da região onde ele habitava anteriormente à internação no manicômio judiciário (PACHECO, 2006). Apesar das falhas e carências do sistema de saúde, vários municípios possuem equipes de saúde mental, o que acaba possibilitando, junto às comunidades de origem do paciente, a sequência do tratamento estabelecido no instituto. Essa medida é considerada um importante meio de controle de reincidência delituosa e de possíveis reinternações (PACHECO, 2006). Além disso, vem alicerçada nos novos moldes de organização do sistema de atenção à saúde mental, que tem a intenção de determinar importantes alterações no acesso ao tratamento ao doente, como o exemplo da Reforma Psiquiátrica (ABDALLA-FILHO; BERTOLOTE, 2006; GASTAL et al., 2007; SOUZA et al., 2007; OLIVEIRA; CONCIANI, 2009).

 

A ALTA PROGRESSIVA E A REFORMA PSIQUIÁTRICA

Menezes (2005e) afirma que o acesso a esses serviços de saúde depende de vários fatores, que juntos possibilitam ao usuário a motivação e o acolhimento necessários para a continuidade de seu tratamento (AMORIM; DIMENSTEIN, 2009). Dentre eles, as questões individuais dos pacientes são fundamentais, pois todo o tratamento depende da capacidade de aderência do usuário, do grau de autoconhecimento e do conhecimento adquirido sobre a sua doença. Além disso, o acesso também depende de fatores familiares, pois quando a família se encontra unida e engajada em prol da recuperação desse paciente, a superação das dificuldades do tratamento se torna mais fácil e suportável (BORBA, et al., 2006; GARCIA, 2006; PEGORARO; CALDANA, 2008; NAVARINI; HIRDES, 2008; SCHRANK; OLSCHOWSKY, 2008). Finalmente, associado a esses dois fatores está o contexto social. Deve-se considerar que de nada adianta existir motivação individual e uma família cooperativa, sem que haja um sistema de saúde eficaz e disponível para todos os cidadãos. O acesso ao tratamento depende fundamentalmente da forma como está organizado esse sistema, o que está diretamente associado ao grau de desenvolvimento do país e ao modo como a sociedade lida com as questões relacionadas à saúde mental, variando de cultura para cultura (MENEZES, 2005e).

Respeitar o doente mental como cidadão e pensar nele como uma pessoa que necessita ser compreendida e tratada em sua totalidade é uma conquista bastante recente (SANT’ANNA; BRITO, 2006; CORREIA et al., 2007). Mas, quanto mais a sociedade entende esse doente, maiores são os recursos psicos¬sociais que deve dispor para sua reabilitação (MENEZES, 2005c). Salles e Barros (2006) afirmam que a reabilitação psicossocial implica uma ética de solidariedade. Para que esta ética seja viável, o aumento da “readaptação” afetiva, social e econômica passa a ser uma peça fundamental, pois concede aos sujeitos portadores de sofrimento psíquico a autonomia necessária para a vida na comunidade. A reabilitação é considerada uma necessidade, um requisito ético. Pautada na lógica da inclusão, o processo de “cura” passa a ser entendido como estrutura de vida e possibilidades de escolha (SALLES; BARROS, 2007). Por isso, o processo de ressocialização engloba todos os atores do processo de saúde-doença, como pacientes, familiares, profissionais e a comunidade em sua totalidade. Pode-se dizer que esse processo é o conjunto de atividades capazes de maximizar oportunidades de recuperação de indivíduos e minimizar os efeitos da cronificação das doenças, através do fortalecimento da rede e de recursos individuais, familiares e comunitários (PITTA, 2001; NAVARINI; HIRDES, 2008).

Segundo Messias (2006), os hospitais de custódia ainda encontram muitas dificuldades institucionais para, de fato, efetivar a reforma psiquiátrica, devido à interseção entre as políticas públicas penais e de saúde. Para isto, é funda¬mental a construção de um trabalho intersetorial, dentro de uma perspectiva interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar, que deve ser pautado em uma visão humanizadora. Esta estratégia faz com que o profissional seja o agente que contribuirá para a garantia de direitos e para a transformação das relações historicamente estabelecidas entre a sociedade e o doente mental. Neste contexto, Menezes (2005d) afirma que é de grande importância para a ressocialização de pacientes envolvidos na esfera médico-judicial a disponibilidade de ferramentas terapêuticas como a alta progressiva, que reforçam a prática interdisciplinar, inclusive. O autor considera esse processo como uma evolução que a própria legislação deveria incorporar, por se tratar de um sistema de facilitação para o tratamento comunitário. Corocine (2006) acredita que, ao se pensar na situação da loucura associada à delinqüência, ainda existem barreiras na transformação da sociedade que estão mais solidificadas, como o preconceito e a marginalização dos pacientes de hospitais de custódia (SANTOS et al., 2006). Apesar disso, o autor ainda afirma que, em função da inquietação dos profissionais em relação ao trata¬mento despen¬dido aos pacientes de hospitais de custódia, foi implantado, em alguns institutos do País, o Programa de Desinternação Progressiva (TEIXEIRA; DALGALARRONDO, 2006). Com pressupostos semelhantes ao programa de alta progressiva utilizado no IPF, a desinternação progressiva também visa a reinserção psicossocial dos portadores de transtor¬nos mentais em conflito com justiça. Outrossim, o programa possui ações interdisciplinares que, de forma gradual, vão ampliando o espaço terapêutico fora dos muros das instituições, envolvendo o meio familiar e a comunidade (COROCINE, 2006).

Essas alternativas de reabilitação psicossocial dos pacientes que se encon¬tram internados em hospitais de custódia são as formas encontradas para que esse indivíduo não perca o vínculo com o mundo fora do ambiente institucional, já que, em função de sua hospitalização, a desadaptação ao meio familiar e social acaba sendo naturalizada (SALLES; BARROS, 2006; WEYLER, 2006). A relação de dependência com o local, principalmente nos casos dos pacientes que possuem características mais frágeis de personalidade, faz com que o indivíduo absorva essa forma de “cuidar”, aceitando assim o cotidiano institucional. Infelizmente, em função da institucionalização do paciente, hábitos que normalmente deveriam ocorrer de forma independente e que fazem parte do cotidiano das pessoas que vivem em sociedade, como escovar os dentes, tomar banho, alimentar-se com garfo e faca, lavar roupas, entre outros, perdem-se completamente (COROCINE, 2006; SALLES; BARROS, 2006). A subjetividade do indivíduo institucionalizado, muitas vezes, torna-se difícil, pois ele passa a aceitar o cotidiano institucional como algo presente em seu mundo interior, dificultando a retomada de iniciativa diante de hábitos corriqueiros do dia-a-dia. Com isso, a relação com sua família e com o contexto social torna-se cada vez mais difícil, por ser significantemente afetada pela falta de independência do indivíduo (COROCINE, 2006; WEYLER, 2006).

Moffatt (1991) afirma que mesmo incluindo tarefas muito variadas no cotidiano desses pacientes essas não são suficientes para ocupar um dia inteiro e, principalmente, ocupar a mente dessas pessoas durante o período de sua internação. Nesses locais, o paciente não possui nada que possa ser sentido como seu, nem sequer sua própria roupa. Mas o mais importante é a amputação da dignidade que ocorre, na maioria das vezes, em instituições desse cunho. O paciente se sente desqualificado e “coisificado”, perdendo seu sentimento de autonomia e de autorrespeito (MACHADO, 2006). A monotonia, o sentimento de solidão e o abandono levam a uma vida sem projeto de futuro, pois não é dono de seu destino quem não é dono de si (COROCINE, 2006).

Segundo Messias (2006),

“O poder de decisão que a instituição possui sobre a vida dos internos, atribuído pela família e sociedade, é autoritário, sem limites, não-sucetível a questionamentos por parte dos seus usuá¬rios, devido aos dispositivos institucionais utilizados para impedir que isso ocorra” (p. 73).

A convivência familiar é difícil e, na maioria dos casos, inexiste justamente pela situação relacionada ao delito do paciente, que muitas vezes ocorre dentro de sua casa, contra sua própria família. Outra situação que pode ocorrer é os familiares não saberem como lidar com essa convivência, pelo fato de o indivíduo estar em uma instituição desse cunho há algum tempo. O fator econômico acaba, muitas vezes, preponderando como justifica¬tiva para a ausência dos familiares. A dificuldade em custear os gastos com transporte para a realização das visitas é um ponto bastante considerável, já que a maioria dos pacientes é natural de cidades do interior do Estado, distantes do instituto (MENEZES, 2005d, 2006; MESSIAS, 2006). Infelizmente, isso é muito danoso, pois a família é um dos pilares da recuperação desses pacientes (DAY et al., 2003; COROCINE, 2006; SCHRANK; OLSCHOWSKY, 2008). Esse afastamento acaba acarretando uma série de problemas para este indivíduo, justamente por tornar impossível a retomada de seu projeto de vida fora dos muros do instituto. O sentimento de culpa e a autopunição fazem com que os pacientes se encontrem em uma posição de morte simbólica, alheios ao mundo que os circunda (COROCINE, 2006).

Apesar das dificuldades e dos empecilhos que a vida no ambiente institucio¬nal pode causar para o paciente, em grande parte dos hospitais de custódia se faz presente a utilização de atividades nas quais o paciente pode exercer sua autonomia de forma mais frequente (COROCINE, 2006). Essas atividades surgem de acordo com as habilidades dos pacientes, como terapia ocupacional (PACHECO et al., 2003), praxiterapia, horticultura, jardinagem, teatro, prática esportiva, trabalho na cozinha, no refeitório e na lavanderia, manutenção do prédio onde residem, entre outras. São estas alternativas de preparação para quando for decretada a saída oficial do paciente do local (CAPRA 2006; COROCINE, 2006; COELHO; RODRIGUES, 2006).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo pretendeu apresentar o histórico, os principais conceitos e as etapas da alta progressiva, prática de desospitalização que ocorre no Instituto Psiquiátrico Forense em Porto Alegre. Esse sistema de desinternação gradual do manicômio judiciário tem se mostrado uma ferramenta terapêutica muito importante para o tratamento e para a avaliação dos pacientes que cumprem medida de segurança. O desejo de liberdade contribui para que os indivíduos superem muitas dificuldades, principalmente quando são apoiados por seus familiares.

Não existe na legislação penal brasileira um estágio intermediário entre a internação judicial de um indivíduo e sua desinternação. Em função disso, o processo de alta progressiva configura-se como um sistema de facilitação no tratamento comunitário de extrema relevância, pois está alicerçado na defesa dos direitos humanos e na liberdade. Sua importância fundamental está pautada na inclusão social e seus benefícios têm sido reconhecidos cada vez mais nacionalmente. Neste sentido, o procedimento da alta progressiva oferece uma alternativa que pode servir de modelo para outros hospitais de custódia no Brasil.

Por ser pautada em uma política de reabilitação psicossocial, a alta pro¬gressiva pode ser considerada um relevante mecanismo, no sentido da des¬construção da loucura como signo de periculosidade, aprisionamento e isola¬mento. Entretanto, para que essa ressocialização ocorra de fato, faz-se imprescindível o acompanhamento psicológico desses pacientes e de seus familiares durante todo o processo de alta progressiva. A construção de uma vida para além dos muros institucionais é uma etapa um tanto sofrida para o paciente, pois ao mesmo tempo em que adquire a liberdade, ele perde a “proteção” que o manicômio representa. Estar em um meio social implica a construção de novas realidades e, também, a exposição do paciente a possíveis reincidências nos delitos e, muitas vezes, à discriminação social. Para isto, é fundamental que se acompanhe psicologi¬camente o paciente, desde a prepa¬ração que antecede a alta progressiva, até os momentos finais, quando o indivíduo já está reinserido em sua família e na comunidade. Essa preparação deve ocorrer tanto para os pacientes quanto para seus familiares. Entretanto, a falta de profissionais nos hospitais de custó¬dia dificulta que essa prática de desinternação ocorra da melhor forma possível. É necessário que os pacientes sejam assistidos desde as primeiras saídas do manicômio. Para isto, uma equipe completa de profissionais, que seja compatível com o número de pacientes em alta progressiva, torna-se fundamental. A alta progressiva é um importante meio para operar transformações de toda uma cultura, que sustenta a discrimi¬nação e o aprisionamento da loucura. Por essa razão que o aperfeiçoamento desta prática se faz necessário. Além de acrescer a quanti¬dade de profissionais, a utilização de acompanhantes terapêuticos nas saídas dos pacientes fortalece a estrutura do benefício da alta progressiva, pois quanto mais apoiado e preparado psicologicamente esse paciente estiver, mais segura e eficaz se torna a prática.

 

REFERÊNCIAS

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Artigo recebido em: 16/4/2009
Aprovado para publicação em: 13/5/2009

 

 

* Mestranda em Psicologia Clínica (UNISINOS). Especialista em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes (USP). Especialista em Administração e Elaboração de Projetos Sociais (Veiga de Almeida).
** Psicóloga (PUCRS), Especialista em Psicologia Clínica/Avaliação Psicológica (UFRGS), Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Psicóloga no Instituto Psiquiátrico Forense Maurício Cardoso e Professora e Coordenadora do Curso de Psicologia da ULBRA/Guaíba.
*** Maycoln Leôni Martins Teodoro Psicólogo e Mestre em Psicologia Social (UFMG), Doutor em Psicologia (ALUF, Alemanha), Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

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