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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427
Mental vol.9 no.16 Barbacena jun. 2011
ARTIGOS
Clínica psicossocial: articulando saúde mental e a estratégia saúde da família
Psycho-social clinic: articulating mental health and public family health
Nilson Gomes Vieira FilhoI; Miriam Debieux RosaII
IProfessor Doutor (Pós-Doutorado) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Pós-Graduação em Psicologia
IIProfessora Doutora da Universidade de São Paulo (USP), Pós-Graduação de Psicologia Clínica. E-mail: debieux@terra.com.br
RESUMO
Trata-se de um estudo de caso em clínica psicossocial sobre um usuário em tratamento, articulando saúde mental e a estratégia saúde da família. Recorte de uma pesquisa participante realizada em um centro paulista de atenção psicossocial com apoio matricial à estratégia saúde da família. Os resultados evidenciam itinerários fragmentados antes de seu tratamento nesse centro em contraste com os percursos articulados no tratamento interativo. Os sentidos da experiência de sofrimento do usuário passam por sua visão de mundo místico-pentecostal repercutindo-se nesses diferentes itinerários. Nas considerações finais, salienta-se que não se observaram discursos de poder nas relações de cuidados nesse último tratamento. Entretanto, haveria uma tendência do usuário para a construção de um projeto de vida no qual a aposentadoria parece ser uma meta importante.
Palavras-chave: Clínica psicossocial; reforma psiquiátrica; rede substitutiva; saúde mental; saúde da família.
ABSTRACT
This article is a clinical psycho-social case study about a patient in treatment, which connects mental health and the family health strategy. It is part of a participant research conducted in a psychosocial care center providing matrix support to the family health strategy. The results show fragmented itineraries before treatment in this center, in contrast with the pathways articulated in the interactive treatment. The senses of the user's experience of suffering are associated with his mystical Pentecostal worldview, echoing on these different itineraries. The final considerations highlight that no power discourses were observed in care relationships during the interactive treatment. However, there would be a tendency of the user to build a life plan in which a retirement pension seems to be an important target.
Keywords: Psycho-social clinic; psychiatric reform; alternative network; mental health; public family health.
1 INTRODUÇÃO
No contexto da reforma psiquiátrica, o movimento de desinstitucionalização tem se caracterizado como um processo sócio-histórico de mudanças das práticas de hegemonia psiquiátrica e da cultura manicomial, concomitante com a construção da cidadania do sujeito/usuário e de cuidados à saúde mental no território (BARRETO, 2005). São mudanças que implicam, sobretudo, na criação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico e de práticas de atenção psicossociais (BRASIL, 2002), onde existe a possibilidade de conexões com a atenção básica e a Estratégia Saúde da Família (ESF), denominada de "apoio matricial" (BRASIL, 2004, p. 25), isto é, o atendimento conjunto de casos complexos em corresponsabilidade terapêutica.
Por conseguinte, mostram-se de fundamental importância as pesquisas sobre a evolução das conexões dessas novas práticas em saúde mental, que focalizem principalmente como estas ocorrem no cotidiano. O objetivo principal deste artigo foi, portanto, investigar, por meio de um estudo de caso de um sujeito/usuário, em experiência de sofrimento/adoecimento de característica dita "esquizofrênica", como determinadas práticas interativas entre saúde mental e a ESF acontecem, analisando-as.
O foco deste estudo não tem como ponto de partida a doença psiquiátrica e a aplicação de uma lógica teórico-dedutiva para explicação do referido "caso clínico". Parte, sim, da experiência de sofrimento/ adoecimento do sujeito/usuário em situações relacionais e socioculturais cotidianas, nos percursos terapêuticos diversos e, particularmente, em suas passagens pelo processo terapêutico nas referidas práticas interativas. O estudo é oriundo de uma pesquisa participante realizada em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS, II) e numa Unidade de Atenção Básica - Estratégia Saúde da Família (BRASIL, 2006), no município de São Paulo, organizações que realizavam o referido "apoio matricial" (VIEIRA FILHO; ROSA; VIDAL, 2008).
2 CLÍNICA PSICOSSOCIAL: O FOCO NO SUJEITO E EM SEUS PERCURSOS TERAPÊUTICOS
A noção de transtorno mental é reconhecida pelos próprios autores do CID-10 como não demonstrável pela lógica etiológica do modelo médico tradicional, a exemplo do diabetes mellitus. Por essa razão, recorrem para demonstrá-la à estratégia de observação de estudos de casos clínicos (USTUN et al., 1998). Não pretendemos discutir aqui a respeito dos pressupostos desses estudos; o que queremos é chamar atenção para o risco de "etiquetamento" do transtorno mental (BASAGLIA, 2005 [1973]), pois a leitura administrativa do CID-10, na prática hospitalar e ambulatorial, tende a enfatizar o procedimento da classificação sintomatológica linear em vez de centrar o estudo na experiência de sofrimento/adoecimento do sujeito/usuário, buscando relativizar e contextualizar sua problemática de saúde mental no âmbito do tratamento territorial.
O foco clínico é aqui reorientado para o sujeito/usuário, singular e social, situado na prática de cuidados em rede social, em relação de poder contratual. Nossa análise clínica psicossocial se desloca do eixo no "transtorno" para enfocar o sujeito/usuário em sua experiência de sofrimento/adoecimento nos itinerários terapêuticos que percorre. Centramos a atenção nas dinâmicas relacionais cotidianas do sujeito (subjetivas e intersubjetivas) vivenciadas no acontecer desses percursos (VIEIRA FILHO, 2005). Inicia-se quando ele, e/ou pessoas de suas relações significativas, elabora(m) alguma demanda de cuidados à saúde e inicia(m) a busca de alguma resposta a sua experiência de aflição (GIANNICHEDDA, 1983) em organização(ões) oficial(ais) ou não referente(s) à assistência à saúde (HELMAN, 2000). Nesses itinerários, ele vai construindo sentidos e significados contextualizados de sua experiência de aflição/adoecimento, relacionados (conscientemente/inconscientemente) à sua visão de mundo e inserção ou exclusão social e projeto de vida, que supõem alguma representação da dimensão temporal de futuro inscrita em sua história pessoal.
Se a experiência de sofrimento do sujeito-usuário em estudo se manifesta ligada à sua visão de mundo mística (pentecostal), sua crença religiosa estaria sendo sentida arraigada ao sentimento de evidência, de certeza dogmática, de convicção íntima pessoal e também compartilhada com seu grupo religioso local. Esse sentimento aparece como uma espécie de "colagem da emoção e da inteligência com o informulavel" em palavras (BARUS-MICHEL, 2004, p. 153).
As principais diferenças principais entre essa crença mística e a crença dita "delirante", ambas percebidas na experiência de sofrimento do usuário, são que a segunda é individual, sem compartilhamento grupal/cultural, apresentando-se com sentimento de evidência personalizado, com um discurso suscetível de polarização quando contestado, além de uma vivência pessoal emocional intensa, mas sem uma clara perspectiva transcendental que possibilite uma mediação simbólica adequada com seu grupo de referencia religioso.
Em todo caso, no processo dialógico entre profissional e usuário, qualquer elemento interpretativo da parte do profissional pode ser compreendido pelo sujeito-usuário como ligado à sua visão de mundo, que estaria ainda correlacionada às suas condições existenciais, corporais, sociais e ao seu projeto de vida. Essa compreensão pode incidir em seu equilíbrio psíquico/somático, em mecanismos de defesa pessoal e no reconhecimento sociocultural, aspectos suscetíveis de interagirem na globalidade de sua experiência de sofrimento/adoecimento.
3 METODOLOGIA
A observação participante realizada nas referidas organizações sanitárias enfatizou o experiencial-clínico em Psicologia na construção do saber, articulando teoria e prática (RHÉAUME, 1993), no esforço constante de se evitar que esquemas teóricos pré-fixados fossem colocados a priori, superpondo-se e direcionando as descrições interpretativas advindas dessas situações vivenciadas pelo pesquisador na prática.
O pesquisador, primeiro autor, não tinha um vínculo terapêutico direto com o usuário. Participava como colaborador em atividades de consulta, visita domiciliar, reunião de usuários e/ou de familiares, conversação no espaço da instituição e assim por diante. Foram situações diversas que possibilitaram o diálogo com o sujeito/usuário, a coleta do material por meio de notas investigativas, a consulta a seu prontuário e discussões com os profissionais durante a fase de campo - que durou seis meses. O segundo autor participou da elaboração, discussão e redação deste artigo.
Este estudo de caso é um recorte do material coletado nessa pesquisa participante (aprovada por Comitê de Ética), sistematizado na fase posterior ao campo, sendo acrescido de informações bibliográficas complementares. Na escolha do usuário Josué (nome fictício), houve negociação com a equipe do CAPS, considerando a contrapartida solicitada pela Prefeitura, para que essa pesquisa contribuísse para a qualidade dos atendimentos dessa instituição. Sendo assim, a categoria do diagnóstico administrativo de esquizofrenia (paranoide), classificação do CID-10, foi destacada, visto que se tratava de uma tipologia não rara no CAPS e que poderia ajudar na compreensão de outros casos semelhantes.
Josué, pai de família numerosa, era trabalhador urbano estável há mais de 20 anos. Sua esposa era doméstica e ele morava com a família em bairro de periferia paulistana. Outros critérios: não ter nenhuma internação em hospital psiquiátrico ou hospital geral (enfermaria psiquiátrica); estar usufruindo do apoio matricial entre o CAPS-II e sua Unidade Básica de Saúde da Família (UBS-ESF) possibilitando, deste modo, o acompanhamento simultâneo do sujeito/usuário nessas duas organizações sanitárias.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1 Antes do tratamento no CAPS (II): itinerários terapêuticos fragmentados
Segundo as informações existentes, o usuário realizou itinerários fragmentados antes do seu atendimento no CAPS, isto é, em cada organização de saúde isoladamente e sem que as mesmas funcionassem em sistema articulado. Ele recorreu primeiramente à igreja evangélica, sendo o pastor a figura principal que lhe deu assistência espiritual para sua aflição, referente à escuta de "vozes" do inimigo de Deus, durante seis ou sete anos antes de recorrer aos serviços oficiais de saúde.
Uma vez que essa assistência religiosa teria se mostrado insuficiente, foi buscar ajuda no pronto socorro (PS) de um hospital geral regional, cujo atendimento incluía também a saúde mental. Por mais três ou quatro anos, teria sido atendido ainda por mais duas UBS, sem o Programa de Saúde da Família. Os familiares não participavam desses tratamentos, pois estes não os incluíam.
4.2 Visão de mundo religiosa e compreensão de sua experiência de sofrimento
Josué frequentava uma igreja pentecostal em seu bairro há cerca de dez anos; por isso, segundo ele, deixou de fumar 20 cigarros diários, de beber socialmente e de jogar bilhar. Estava convicto que eram "erros" que cometia praticando essas ações e que já os tinha "consertado". A sua visão de mundo mostrava-se intimamente ligada à sua concepção religiosa pentecostal de caráter místico, em que "o cotidiano é realçado pelo sagrado ou ainda, se quiser, o discurso profano do cotidiano é traduzido para uma linguagem sagrada" (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 2002, p. 242).
Afirmou em consulta que: "a religião é tudo para mim". Afirmação totalizante, sendo a religião o fundamento principal de explicação de sua condição existencial, de saúde e de doença (PAIVA, 2007). Teria sido por essa razão que, bem antes de procurar qualquer serviço oficial de saúde, buscou o pastor de sua igreja, o qual lhe deu assistência espiritual quando surgiram os primeiros sinais de sofrimento referentes à escuta de "vozes", atribuídas por ele e seu grupo religioso ao "inimigo" de Deus.
Para Josué, na vida existe o bem e o mal, o primeiro vem de Deus, o segundo vem do inimigo de Deus. Na vida haveria, então, uma batalha entre a força do bem e a força do mal. E, segundo ele: "o diabo é o inimigo, inimigo mortal do ser humano". Essa argumentação místico-religiosa é fundamentada na Gênesis bíblica, na qual Adão transgrediu as normas divinas, sendo, então, expulso do paraíso. Seguindo os ensinamentos de sua igreja, Josué deduz que, por causa dessa transgressão primordial, o ser humano contemporâneo tem que trabalhar e estar sujeito a doenças.
As "vozes" que ele escutava, geralmente masculinas e raramente femininas, eram de conteúdo negativo; assim, não eram do bem e só podiam ser do "inimigo", segundo ele. Dizia que as "vozes" e tudo que acontece de mal com a gente é da parte do "inimigo" e não do ser humano. Eram "vozes" que o atormentavam: conversavam entre si, chamavam-lhe dizendo que queriam seus filhos, faziam ameaças dizendo que elas iriam prejudicá-los, pediam-lhe para praticar o mal e ainda ocasionavam-lhe insônia. Em várias ocasiões, quase lhe fizeram provocar acidentes no trabalho e estes não ocorreram "porque me agarrava nas orações... Foi Deus que não permitiu", afirmou. Eram "vozes" que também o intimidavam, diziam para ele não tomar a Santa Ceia (na Igreja): "Se tomar vai ficar pior... não é para tomar". Mas o pastor o orientou a tomar a Santa Ceia e resistir a esses apelos, dizia-lhe ainda que "a voz é um engano".
Todavia, essa primeira fase da assistência religiosa vai se mostrando insuficiente com o passar do tempo para aliviar seu sofrimento. Durante cerca de três ou quatro anos, começou a piorar dessas "vozes", recorrendo ao pronto socorro de um hospital geral da região onde morava, como também a mais duas Unidades de Atenção Básica, sem o PSF. Teria havido, nesse percurso, uma modificação na compreensão dessas "vozes"? Tudo indica que, mesmo fazendo uso da medicação neurolética, ele as assimilava a explicação místico-religiosa anterior.
O corpo parece ressentir da dor provocada por uma entidade externa, o "inimigo" de Deus, sendo o remédio do médico uma espécie de anestésico carnal. Assim, ele explica que, se toma remédio, não tem tempo para ouvir essas "vozes", dorme e depois fica normal. Continua dizendo que "Deus deixou os médicos e os remédios para cuidar da gente... se não tomar (os remédios) a gente enfraquece e o inimigo ataca mais". Podemos supor que ele tomava a medicação para aliviar essas sensações dolorosas atribuídas ao "inimigo" e, quando melhorava, talvez deixava de tomá-la, voltando à consulta psiquiátrica ambulatorial quando a aflição retornava.
Com o passar do tempo, sua rede de relações começou a ser mais afetada. Tinha medo que os amigos descobrissem que ele escutava essas "vozes". Desentendeu-se com colegas de trabalho achando que eles evitavam contato, conflitos que resultaram em seu remanejamento de setor. Às vezes, dizia em casa que ia morrer, que iriam lhe dar um tiro durante o trabalho e, por isso, preparava a esposa para uma futura situação dramática, não apenas gerando também para ela sofrimento, como também agravando seu estado de saúde, pois esta é portadora de hipertensão arterial. Os filhos suspeitavam de algo errado, mas não havia diálogo nem explicação satisfatória em saúde mental sobre essa problemática nesse período.
Seu sofrimento se agravava. Além das "vozes", começou a ter "visões" que deduzia serem também do "inimigo". E assim descrevia: "um anão parecido com gente", e "aquela coisa expulsou o vulto branco", deu-lhe uma pancada na cabeça e nessa ocasião "aquela coisa", ficou toda a noite, até as 6 horas da manhã, no quarto de sua casa. Quando acordou, o "anão" ainda estava lá, no canto. Para ele só podia ser "coisa do inimigo", pois não teria dado pancadas em ninguém para ser objeto de retaliação.
Tais relatos eram sentidos como reais; ele sentia medo e ansiedade, constatando-se aumento de sua pressão arterial em situações emocionais dessa natureza (FONSECA et al., 2009). Nessas circunstâncias, recorreu primeiramente à UBS-ESF, procurando o médico de família por essa alteração na pressão, mas o mesmo não percebeu que se tratava de um caso em saúde mental, não o encaminhando ao CAPS.
4.3 A partir do tratamento no CAPS e ESF: itinerários terapêuticos integrativos
Foi na situação de agravamento de seu sofrimento relatada acima que Josué procurou o CAPS II, voluntariamente, acompanhado de sua irmã, com quem tinha intimidade para contar o que estava sentindo, sem que se saiba onde se informou sobre essa instituição. Diferentemente do hospital psiquiátrico, o CAPS funciona em uma casa de bairro de classe média paulistana e em sistema aberto de atendimento (open door). A construção cotidiana de seu projeto terapêutico iniciou-se com o atendimento de acolhimento, passando por modificações pragmáticas de acordo com a evolução de sua situação de sofrimento/adoecimento, sendo constantemente reavaliado nas reuniões de equipe.
O usuário tinha três terapeutas de referência (psiquiatra, psicóloga, auxiliar de enfermagem), como de costume para a clientela em geral, e na UBS-ESF o contato principal era com o agente de saúde do usuário e seu médico de família. Essa rede significativa de apoio terapêutico foi fundamental nesse trabalho em rede social (VIEIRA FILHO; NÓBREGA, 2004). Sua esposa estava também incluída no tratamento, sobretudo fazendo parte das reuniões semanais com familiares de outros usuários e do atendimento familiar dito "nuclear" junto com o esposo.
Seu tratamento no CAPS teve início em regime de atenção de cuidados "intensivos" ou hospitalidade diurna, com frequência diária, e durou cerca de quatro semanas. Depois, quinzenalmente, em regime de atenção de cuidados "não intensivos", até o final desta pesquisa. Simultaneamente, estava se tratando de hipertensão arterial e diabetes 2 na UBS-ESF e se beneficiando também do trabalho de "apoio matricial" desse serviço com o CAPS, sem interação direta destes serviços com a igreja pentecostal, mas havendo respeito na condução do tratamento entre todas essas instituições.
4.4 Durante o período de atenção de cuidados "intensivos"
Nesse período, as atividades terapêuticas da equipe foram mais voltadas para o interior do CAPS. A equipe do CAPS iniciou os primeiros contatos com a equipe da UBS-ESF. Ele ia sozinho ao CAPS (cinco dias da semana) e retornava da mesma forma no final do segundo expediente. Ficava inserido nas relações socioterapêuticas diurnas, cuja programação pessoal incluía principalmente os atendimentos individual, familiar e em grupo(s), a convivência com outros usuários e o pessoal do CAPS nos espaços da casa, além de uma caminhada, uma vez por semana, com um desses grupos coordenados por profissional, a um parque de lazer da região. Ele frequentava mais o grupo de contos (literários) e o grupo "entrada e saída", isto é, onde se dialogava sobre a saída e entrada dos usuários antes e após o final de semana que passavam em casa.
Na assembleia geral semanal dos usuários e em diferentes atividades do CAPS, a voz e reclamações de Josué e familiares eram, de regra, escutadas. Ademais, nenhuma tarefa lhe foi imposta. O usuário teve mais tempo para ver e conversar com os filhos em casa, os quais ficaram mais tranquilos quando esclarecidos sobre seu tratamento no CAPS. Com poucos dias nesse regime de tratamento "intensivo", sentia-se melhor e mais tranquilo, além de ficar distante das tensões do trabalho.
Sua compreensão sobre o seu sofrimento passava novamente por algumas modificações, agora sob a influência da Psiquiatria. As "vozes" e os "vultos" passaram a ser nomeados por ele de "alucinações" (auditivas e visuais) que teriam origem praticamente cerebral, mas eram incluídas como partes de um todo de sua visão de mundo mística pentecostal, pois entendia que essas "coisas", por não serem do bem, vinham sempre do "inimigo" de Deus.
Após três semanas de tratamento, as alucinações visuais, segundo ele, já haviam passado, embora este ainda demonstrasse algum medo de voltar a ver "vultos" no quarto de dormir em sua casa. Quanto a essas diferentes alucinações, comentava que não eram "reais" porque derivadas da doença. Porém, afirmava, elas eram "reais" no sentido em que ele, de fato, viu o "anão" e ainda escutava "vozes". Narrou que, quando passou perto de um bar, escutou uma "voz" que lhe dizia que iria prejudicar sua família. Destacou que, se tivesse sido antes do tratamento no CAPS, teria tido medo, mas agora não era a mesma coisa, visto que a entendia como consequência da enfermidade.
Manifestava relativa capacidade crítica em relação ao processo alucinatório e começava a lidar melhor com essa situação, tanto consigo mesmo como em expressar essas questões com a equipe e com sua esposa. A impressão que se tinha é que a crença dita "delirante" se justapunha à sua crença mística pentecostal, mas ele saberia distinguir uma da outra, na medida em que atribui a primeira à doença esquizofrênica Em todo caso, esse seu modo provável de entendimento ter-lhe-ia ajudado na adesão ao tratamento no CAPS, possibilitando mediações no diálogo com os profissionais e seu grupo religioso, com efeitos positivos referentes ao alivio de seu sofrimento.
4.5 No período da atenção de cuidados "não intensivos"
Ele ia sozinho à consulta psiquiátrica no CAPS a cada 15 dias, a qual se mostrava mais como atendimento ambulatorial, devido ao número importante de usuários em atendimento psiquiátrico, sendo o acompanhamento da medicação um dos aspectos de destaque, entrando, assim, em contradição com a orientação interdisciplinar da equipe.
Por exemplo, em um desses atendimentos com o psiquiatra, o usuário revelou que frequentemente vinha tendo pensamentos de morte em relação a si mesmo e a seus familiares, que estavam lhe impedindo de se concentrar; seu sono, porém, estava relativamente tranquilo. Uma das respostas mais imediatas do psiquiatra a esses "pensamentos" de característica depressiva foi prescrever fluoxetina, acrescentando-a à medicação neuroléptica (não atípica) e ao biperideno que já vinha tomando. O conjunto da medicação incluía também aquela do médico de família: Hidrocloratiazida (diabetes 2) e Captopril (hipertensão arterial).
Duas semanas depois, em uma outra consulta psiquiátrica, ele dizia que ainda escutava "vozes", mas menos frequentemente e com temas menos violentos. Os pensamentos de morte em relação a si mesmo tinham passado, ao menos naquela ocasião, e o sono continuava normal.
Porém, algumas semanas depois, Josué compareceu com sua esposa ao CAPS, solicitando um encontro com a coordenação do estabelecimento para reclamar das limitações desse tipo de atendimento, que deixava a desejar quanto à melhora de seu estado de saúde. Suas reclamações foram atendidas, proporcionando, inclusive, discussões sobre essa problemática na equipe em relação a outros usuários em situação semelhante. Daí por diante, seus atendimentos se diversificaram: individual com o psiquiatra e com a psicóloga (incluindo também consultas com o casal, quando necessárias). Por outro lado, sua esposa voltou a frequentar as reuniões semanais com familiares de outros usuários.
4.6 Articulações entre a equipe do CAPS e da Estratégia Saúde da Família
As interações entre a equipe do CAPS e a da estratégia saúde da família se qualificaram durante o tratamento "não intensivo", incluindo visita domiciliar conjunta. O usuário podia também se beneficiar de exames de hipertensão e diabetes entre outros realizados nos laboratórios da própria UBS-ESF, assim como do acesso à medicação gratuita sem atrasos, fatos não sempre comuns no Sistema Único de Saúde (SUS).
Durante esse período, houve discussões amistosas entre o psiquiatra do CAPS e o médico de família, principalmente no que diz respeito às associações medicamentosas (psiquiátrica e generalista) e ao aumento da pressão arterial de Josué durante os momentos alucinatórios persecutórios que lhes causavam muita ansiedade, correlação sintomatológica até então desconhecida pelo médico de família.
Sendo Josué também portador de diabetes 2, não havia naquela ocasião uma hipótese adequada que pudesse correlacionar essa enfermidade com os sintomas referentes à esquizofrenia (paranoide). Entretanto, observamos que, durante o período de tratamento em regime de atenção de cuidados "não intensivos", o usuário se retraiu dos contatos sociais no bairro e dos colegas de trabalho, ficando a maior parte do tempo sem sair de casa, estando mais ocioso e um pouco mais obeso, situação que poderia influenciar no reforço ao diabetes.
Nesse sentido, em visita domiciliar do médico de família, juntamente com o primeiro autor-pesquisador participante, Josué foi aconselhado a fazer caminhadas matinais e/ou no final da tarde com a esposa e a ampliar suas relações sociais, além da família e companheiros da igreja evangélica. Para reforçar essas orientações de cuidados à saúde, tanto os agentes de saúde como a enfermeira da ESF dialogavam com ele e seus familiares, em domicílio, sobre a aquisição de hábitos de vida saudáveis referentes à alimentação, atividade física e uso correto das medicações.
Na visita domiciliar acima referida, Josué afirmou que as "vozes" e "visões" tinham passado, mas naquele momento tinha "pensamentos preocupantes", sobretudo relativos à sua situação econômica e de trabalho, que para ele não eram comuns. Esses "pensamentos" estariam relacionados ao seu projeto de vida, principalmente no que diz respeito à possibilidade de perder a condição de trabalhador (CARRETEIRO, 1999) depois de mais de 20 anos de atividade ininterrupta. Essa situação social de "doente mental", em construção bem antes de seus atendimentos no CAPS, estava apresentando efeitos excludentes nas suas redes de relações, com rupturas em seus laços sociais de trabalho e com alguns companheiros do bairro, possibilitando a emergência de sinais depressivos, talvez não tão graves, haja vista toda rede de apoio assistencial e familiar que se mostrava protetora na sua recuperação.
O usuário foi informado que o CAPS poderia orientá-lo a entrar em contato com sua empresa no sentido de tentar uma modificação de sua função no trabalho. Mas este acreditava não poder mais voltar a cumprir seus compromissos anteriores devido a sua "doença mental" agravada, mostrando-se ainda pessimista quanto a essa proposta de mudança de função na empresa - uma opinião plausível considerando-se preconceitos existentes em alguns setores empresariais brasileiros em relação às "doenças mentais" (DELEVATI; PALAZZO, 2008). A impressão que se tinha era de que o usuário estaria buscando, como alternativa, o planejamento de sua futura aposentadoria, ficando como trabalhador-doente, pois faltavam aproximadamente três anos para consegui-la.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo colocou em evidência um cotidiano terapêutico de rede no qual o sujeito/usuário em sofrimento psicótico seguia um tratamento de saúde mental articulado com a ESF que estaria dando resultados relativamente positivos, considerando o período de observação participante de duração de seis meses.
Antes de seu tratamento no CAPS, seu itinerário terapêutico seguiu duas lógicas de cuidados em dicotomia. Primeiramente, a religiosa pentecostal, que interpretava os sinais de seu sofrimento como manifestação do "inimigo" de Deus, dando lugar a uma assistência religiosa que tentava liberá-lo desse incômodo. Quando seu sofrimento não teve o alívio esperado, foi buscar ajuda em serviços de caráter ambulatorial (SUS), que enfatizavam o tratamento psiquiátrico praticamente medicamentoso, mas sem abandonar a ajuda de seu grupo religioso.
Entretanto, essas ações fragmentadas de cuidados evoluíram negativamente e teriam desencadeado um tipo de processo de cronificação (PASTORE; DEBERNARDI; MARSILI, 1984) ligado a atendimentos em precariedade e à lógica social sutilmente excludente derivada do sistema manicomial (reciclado) ainda vigente na realidade paulistana. Os efeitos desse processo tornaram-se manifestos na medida em que este prejudicou as habilidades profissionais do usuário na empresa (BRANT; MINAYO GOMES, 2007) e difundiu estereótipos nas relações de trabalho, além de gerar sobrecarga familiar (PEGORARO; CALDANA, 2006), com momentos de muita ansiedade e incompreensão entre os membros desse grupo em relação às "reações estranhas" do pai de família que não parecem ter sido trabalhadas nessas práticas.
As novas práticas interativas possibilitaram a integração dos percursos terapêuticos entre saúde mental e a ESF, incidindo gradualmente sobre esses efeitos cronificantes, principalmente aqueles derivados das intervenções fragmentadas e reducionistas anteriores, mas dentro dos limites possíveis. Permitiram ainda ao sujeito/usuário circular e articular suas construções de sentidos diante dos discursos que se apresentavam para interrogá-lo.
A compreensão que ele ia construindo sobre seu sofrimento/adoecimento nesses novos contextos relacionais estaria dando-lhe condições de possibilidade para articulação de vários discursos. Embora houvessem surgido, às vezes, contradições entre os discursos médico, religioso e outros, não se observou um discurso dominante nas instituições substitutivas ao manicômio e imposto artificialmente. Notou-se, ao contrário, um trânsito peculiar em que o sujeito/usuário acolhe esses discursos enquanto mantém uma percepção crítica em relação a estes. Quebrou-se, então, uma hegemonia discursiva e abriu-se um espaço de liberdade de ser com, entre e apesar desses discursos. Assim, Josué expressa uma posição própria frente ao que lhe acomete: suas alucinações, comenta, não são reais porque são derivadas da doença, mas são reais pois ele, de fato, viu o "anão" e escuta as "vozes". Essas alucinações não estariam sendo entendidas acriticamente por ele. Josué, ao "alucinar", não estaria privado de entendimento, mas consciente de que sua realidade vivenciada diferencia-se daquela do(s) outro(s) que o "observa(m)" e, de certa maneira, parece fazer apelo para que esse(s) outro(s) o compreenda(m).
Informações mais recentes sobre o usuário indicam que a perspectiva de sua aposentadoria estaria em vias de concretização. Durante o período desta pesquisa, não retornou mais ao trabalho, continua seu tratamento no CAPS em regime de atenção de cuidados "não intensivos", recebendo o benefício-doença. Estaria apresentando um quadro clínico dito "estabilizado", com uma configuração de experiência de sofrimento/adoecimento não muito diferente da que foi descrita neste artigo.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos pelas discussões com os colegas Tereza C. M. Vidal, Kikuko I. Toyoshima, Sebastião C. Coutinho e Renato M. Bruni.
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Artigo recebido em: 07/04/2010
Aprovado para publicação em: 02/04/2011