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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.10 no.18 Barbacena jun. 2012

 

ARTIGOS

 

Quando a invenção pede passagem: ritmo e corpo nas oficinas de teatro do Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) Noroeste de Belo Horizonte

 

When invention asks for passage: rhythm and body in theater workshops of Center for Mental Health Reference (CERSAM) northwest of Belo Horizonte

 

 

Natália Alves dos SantosI; Roberta Carvalho RomagnoliII

IPsicóloga. Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas)
IIPsicóloga, Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Professora Adjunta III da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-graduação da PUC-Minas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata da pesquisa acerca dos processos de subjetivação nas oficinas de teatro do Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) Noroeste de Belo Horizonte, articulando arte e saúde mental. Pautadas nas ideias de Deleuze e Guattari e no método cartográfico, investigamos esses processos, cartografando os dispositivos que operam tanto para a reprodução quanto para a invenção. As oficinas de teatro semanais construídas a partir das demandas dos usuários e atentas à potência dos encontros nos permitiram rastrear linhas duras, linhas flexíveis e linhas de fuga que compuseram o rizoma-oficina-subjetividades. Nesses encontros destacamos dois acontecimentos: o acontecimento-ritmo e o acontecimento-corpo. Esperamos contribuir para as práticas em saúde mental insistindo na potência e invenção que existem na loucura.

Palavras-chave: Processos de subjetivação; saúde mental; oficinas de teatro; esquizoanálise; cartografia.


ABSTRACT

This article focuses on subjective processes research in theater workshops of the Center for Mental Health Reference (CERSAM) northwest of Belo Horizonte, linking art and mental health. Based on the ideas of Deleuze and Guattari and the mapping method, we investigated these processes in these workshops, charting devices that operate both for reproduction and invention. The weekly drama workshops built from users demands and attentive to the power of meetings allowed us to track hard lines, flexible lines and escape lines that made up the rhizome-workshop-subjectivities. In these meetings we highlight two events: the rhythm-event and the body-event. We hope our study contribute to mental health practices in insisting that there is power and invention in madness.

Keywords: Subjectivation processes; mental health; theater workshops; schizoanalisys; cartography.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Antes de iniciarmos a exposição sobre o tema, propomos uma breve reflexão a respeito do texto que será apresentado. Nossa pesquisa quis ser e fazer rizoma, realizando conexões, cartografando a experiência da loucura, modificando paisagens enrijecidas. A ideia de rizoma foi retirada da botânica por Deleuze e Guattari (1995), em sua proposta esquizoanalítica e corresponde a uma rede que estabelece conexões entre diversos elementos que possuem dimensões próprias e conservam suas diferenças, driblando a ideia de unidade e de hierarquia. Dessa maneira, o rizoma não se reduz a uma causalidade ou a um sentido, sendo composto por uma complexidade, por passagens e cortes em constante movimento. O campo rizomatizado da loucura e de nossa pesquisa nos coloca diante da constatação de que ao falar do que realizamos na prática, precisamos construir outros e novos rizomas. Dessa maneira buscamos escapar dos decalques, construir saídas, possibilitar a flexibilização das possíveis linhas duras que habitam o "ser leitor".

O texto aqui escrito é texto-trajetória, trajeto-rizoma, rizoma-experiência, que realiza a difícil tarefa de convidar o leitor para se abrir à imanência. Acreditamos que toda produção de conhecimento é circunstancial e provisória, portanto convocamos à leitura de nossa transitória produção-roteiro de uma peça teatral em atos, e de atos-alfabeto. Dois atos-alfabeto são os atores que protagonizam a pesquisa: o primeiro ato-alfabeto que aqui chamamos de Ato R ou Ritornelo apresenta o primeiro acontecimento que marcamos no território das oficinas, o acontecimento-ritmo. O segundo ato-alfabeto ou Ato O diz respeito ao Corpo-Sem-Órgãos, segundo acontecimento que se destaca no decorrer da pesquisa, o acontecimento-corpo.

E por que ato-alfabeto? Porque o teatro que realizamos no campo fez-se alfabeto. Um conjunto de letras era formado a cada dia nas oficinas e cada uma dessas letras formava novas palavras, mas palavras que não estavam coladas em representações, mas palavras potência, à cata de novos sentidos, rompendo com velhos significados. Falemos então de atos-alfabeto-invenção. As letras embaralhadas que encontramos no discurso dos usuários, em algumas circunstâncias foram fazendo rizoma e criando um alfabeto próprio, movediço, galopante, puro devir. Cada letra carregando consigo a riqueza da experiência. Um alfabeto em que as letras que antes formavam palavras como o estigma e o preconceito formaram novas palavras como a possibilidade e a alegria. "O alfabeto é movediço, diferenciando-se sem cessar, ao passar de virtual para atual, ou de um domínio expressivo para outro: pequenos deslocamentos de termos" (GIL, 2006, p. 26).

Convidamos então o leitor a participar deste texto-trajetória, e dos atos desse espetáculo, produzindo leitura rizoma, que inventa a si própria, que é intercessora. Intercessão que, como nos lembra Deleuze (1992) permite sair de si mesmo e abrir-se para a processualidade da vida e que corresponde a algo que deve ser criado a partir dos encontros, do desgarrar dos territórios que estamos acostumados a habitar. Apresentamos a seguir nossos bastidores rastreados no Figurino-Oficina, no Adereço-Metodologia e no Cenário-Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) feito de dois atos-alfabetos: ato-alfabeto R ou sobre sonhos cavalgantes e ato-alfabeto O e suas tramas/tentáculos/tessituras.

1.1 Figurino-oficina

A palavra oficina, de origem latina, designa

[...] o local onde se produzem ou se reparam manufaturas ou produtos industriais, tais como oficina mecânica, oficina de marcenaria, oficina tipográfica. (REZENDE, 2009, p. 1).

Outro significado para o termo corresponde à oficina pedagógica, que diz respeito a estabelecimentos, organizações e centros que têm por principal objetivo promover habilidades e aptidões "mediante atividades laborativas programadas" (REZENDE, 2009, p. 1). Podemos inferir, a partir de tais considerações, que, ao referimos às oficinas, estamos dizendo de uma determinada forma de trabalho. No nosso caso, as oficinas de teatro, nas quais enxergamos a possibilidade de se apresentarem como uma forma de trabalho inventivo, que desloca subjetividades e as faz circular e transitar por novas maneiras de existir. Embora em alguns momentos possam assumir:

[...] um lugar na engrenagem cotidiana, que, ao invés de dar passagem para outros mundos possíveis, realimenta a máquina de produção de subjetividades que agencia a ocupação das mentes no intuito de exercer uma vigilância produtiva e contínua, uma ortopedia moral fundamental para sustentar os padrões de sociabilidade vigentes e de controle social contemporâneos. (CEDRAZ; DIMENSTEIN, 2005, p. 315).

Saraceno (1996, p. 127) já afirmava que "[...] o trabalho em manicômio é tão antigo quanto o próprio manicômio". Conhecida como "tratamento moral", a terapia através do trabalho muitas vezes era utilizada como um modo de manter o indivíduo dentro do hospital. Aos chamados doentes mentais eram oferecidas maneiras de ocupar o tempo ocioso através de um trabalho não remunerado, repetitivo, ministrado por equipes multidisciplinares que seguiam um modelo biológico e organicista. Um trabalho alienado, exercido sem autonomia, em que a valorização da singularidade dos indivíduos e da possibilidade de invenção de novos territórios existenciais não era levada em conta. Formas, linhas duras capturando a loucura no fazer estéril e árido. Com o passar do tempo a Psiquiatria transforma o trabalho em terapêutica e "[...] surge uma associação entre o ato de trabalhar e a saúde" (CEDRAZ; DIMENSTEIN, 2005, p. 303).

Com o processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, inicia-se outro formato de atenção em Saúde Mental, que introduz diferentes instrumentos e dispositivos na tentativa de um novo modelo assistencial. A clínica amplia sua atuação, assumindo um novo compromisso de tratar os sujeitos de modo singular, buscando conhecimentos em diversificados setores para ampararem suas práticas, equilibrando o chamado "combate à doença" com a produção de vida (BRASIL, 2004). Para levar a cabo suas propostas, a Reforma Brasileira sustenta-se nos serviços substitutivos de Saúde Mental, dentre eles os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Os serviços substitutivos de Saúde Mental possuem, dentre outras atribuições, atividades destinadas aos usuários intituladas oficinas terapêuticas. De acordo com a Portaria nº 189 do Ministério da Saúde, datada de 19 de novembro de 1991, uma oficina caracteriza-se enquanto uma atividade grupal "que receba entre 5 e 15 usuários" de socialização, expressão e inserção social, executada por profissionais de nível médio e de nível superior, através de atividades como:

[...] carpintaria, costura, teatro, cerâmica, artesanato, artes plásticas, requerendo material de consumo específico de acordo com a natureza da oficina. (BRASIL, 1991).

As oficinas, então, começam a fazer parte dessa nova noção de tratamento, entendidas enquanto modalidade de atenção em Saúde Mental e "[...] intimamente ligadas a um [...] paradigma que ampara a Reforma Psiquiátrica no Brasil: a reabilitação psicossocial (CEDRAZ; DIMENSTEIN, 2005, p. 306). Trata-se também de uma tentativa de resgatar o louco como cidadão, de fazer das oficinas:

[...] dispositivos que sejam catalisadores da produção psíquica dos sujeitos envolvidos, facilitando o trânsito social deles na família, na cultura, bem como sua inserção ou reinserção no trabalho produtivo. (RIBEIRO, 2011).

Nesse contexto, e já passados alguns anos podemos nos perguntar se estariam estas oficinas, de fato, servindo como espaços de invenção e de produção de novas formas de existência ou reproduzindo uma antiga lógica de preenchimento do tempo no espaço do serviço? Isso porque um procedimento não é em si bom ou ruim, de fato, é necessário rastrear seus efeitos e usos. Acerca dessa problematização, Lima (2004) afirma:

Atividades podem ser utilizadas para a manutenção de instituições totais, sem que se coloque em questão a exclusão social que estas exercem e realizam. Mas podem, também, paradoxalmente, ser importantes aliados das propostas de transformação institucional e da construção de novas instituições em saúde mental. (LIMA, 2004, p. 1).

O que se vislumbra, no momento atual, de acordo com Cedraz e Dimenstein (2005), é que muitas dessas oficinas propostas pelos serviços substitutivos têm se tornado meros equipamentos de preenchimento do tempo, oficinas pedagógicas, em que se estabelecem relações do tipo mestre-aluno, que "[...] servem de veículo de transmissão de valores socialmente legitimados como certos" (CEDRAZ; DIMENSTEIN, 2005, p. 301).

Desta maneira, as oficinas perdem o caráter reabilitador, e, ao invés de criar espaços para que fluxos inventivos circulem e promovam novas formas de se vivenciar a loucura, acabam por aprisionar os loucos nas antigas grades dos manicômios. Retira-se do louco a autonomia, deixa-se de acolher as singularidades. Eis o desafio da mudança do paradigma assistencial: deslocar e tirar a reprodução do foco dos trabalhos desenvolvidos através das oficinas.

Dessa maneira, vale pontuar que as oficinas muitas das vezes possuem efeitos de reprodução, cabendo salientar ainda que as linhas duras não esgotam as linhas flexíveis e tampouco as linhas de fuga, assim as oficinas podem ser também um dispositivo de invenção. Essa justaposição de processos e funcionamentos se dá pela imanência que conjuga essas linhas, formas e força coexistindo nas oficinas e na realidade.

1.2 Adereço-metodologia

Nossa investigação é pautada na pesquisa-intervenção cartográfica que nos dá condições de analisar não só o campo, mas também a implicação do pesquisador em relação às práticas produzidas. Esta modalidade de pesquisa leva em conta a heterogeneidade das relações, partindo do pressuposto de que a realidade é em si complexa e de que há uma indissociabilidade entre teoria e prática, entre sujeito e objeto, entre pesquisador e campo.

Uma vez que coloca em xeque as concepções e formas hegemônicas de se investigar, a pesquisa-intervenção:

[...] afirma, assim, seu caráter desarticulador das práticas e dos discursos instituídos, inclusive os produzidos como científicos, substituindo-se a fórmula conhecer para transformar por transformar para conhecer. (COIMBRA, 1995).

Nessa substituição, esse tipo de pesquisa aparece como um dispositivo que busca a processualidade esforçando-se por descobrir as forças presentes nas circunstâncias, para assim produzir conhecimento. O conhecimento emerge exatamente da sustentação do plano de forças que compõe a realidade ora operando em prol do já estabelecido, ora operando a favor de agenciamentos produtivos, inventivos. E é o pesquisador que experimenta essa pressão.

O pesquisador ganha, então, espaço no processo de pesquisa, não sendo mero mediador ou captador de dados e informações para análise. Ele está, o tempo todo, incluído no processo, participando de forma ativa, construindo e desconstruindo juntamente com as subjetividades pesquisadas, a investigação a que se propõe. Emprestando seu corpo ao campo, moldando e deixando se moldar pela experiência. Alterando e sendo alterado pela relação que estabelece com seu campo de estudo, articulando dessa maneira pesquisador e pesquisado, de uma maneira participativa e micropolítica. A respeito da pesquisa-intervenção, Paulon e Romagnoli (2010) fazem o seguinte questionamento: "por que intervir"?

Ao pesquisador que conceba a subjetividade à luz de um paradigma ético-estético, que se proponha a observar os efeitos dos processos de subjetivação de forma a singularizar as experiências humanas e não a generalizá-las, que tenha compromisso social e político com o que a realidade com a qual trabalha demanda de seu trabalho científico, não é dada outra perspectiva de investigação que não a pesquisa-intervenção. (PAULON; ROMAGNOLI, 2010, p. 8).

Para rastrearmos essas articulações, apresentamos o cenário em que as oficinas de teatro ocorreram: o Cenário-CERSAM Nororeste, um CAPS III que, segundo o Ministério da Saúde, é implantado em municípios com mais de 200.000 habitantes, que possuam uma rede básica com ações de Saúde Mental e capacitação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) (BRASIL, 2004). É o CAPS referência em Belo Horizonte, que funciona 24 horas oferecendo serviço de pernoite para os casos mais graves. O serviço trabalha a partir dos princípios da lógica da desospitalização e pauta seu atendimento em consonância com os paradigmas da Reforma Psiquiátrica.

Foi neste cenário que as oficinas de teatro aconteceram. Oficinas realizadas semanalmente, todas as quintas-feiras, em que participavam os usuários que estivessem no serviço e demonstrassem interesse. Ao todo ocorreram 20 encontros, cuja duração variava de 30 minutos a 1 hora. Oficinas de portas abertas, livre entrada, adesão voluntária, sem a utilização de técnicas preestabelecidas, descompromissada com a representação e preocupada com a potência dos encontros; território em que as atividades eram construídas em conjunto e a partir da demanda dos usuários. Realizávamos diversas atividades, dentre elas: exercícios de voz, de corpo, interpretação. Todas construídas pelo coletivo ao longo do processo.

Tentamos trabalhar com as oficinas de teatro de forma rizomática, tanto na coleta quanto na análise dos dados. Assim, as linhas que emergiram desse encontro foram desenhadas perseguindo o "entre", as relações que afetaram as subjetividades dos usuários, da pesquisadora, da equipe, território-pesquisa tecido singularmente em cada encontro. Território sustentado por relações que circularam ora de foram reprodutiva, segmentar, ora de forma fluida, inventiva, e a partir do qual tentamos traçar uma cartografia.

Partimos do rizoma, na tentativa de mapear as inúmeras linhas que compunham o território/cenário das oficinas, criando uma espécie de traçado geográfico-subjetivo, em que foi possível apontar os momentos em que a subjetividade era capturada e endurecida e os momentos em que ela criava caminhos que levavam ao novo, à invenção.

1.3 Cenário Centro de Referência em Saúde Mental

1.3.1 Ato-alfabeto R ou sobre sonhos cavalgantes

A ideia de trabalharmos com uma oficina de teatro parte do pressuposto que o teatro é algo que faz com que aqueles usuários se desloquem do lugar da doença, e inventem novas maneiras de estar ali. As oficinas funcionam, assim, como vetores de subjetivação.

A subjetivação [...] é um processo eminentemente político: só acontece quando estes indivíduos ou coletividades escapam tanto aos saberes constituídos quanto aos poderes dominantes, para constituir uma 'espontaneidade rebelde'. (LOBOSQUE, 2003, p. 183).

Nesse contexto, a proposta objetivou ainda produzir conhecimento e intervir, atuar para quem sabe produzir invenção, e assim colaborar com a Reforma Psiquiátrica. E foi acolhida pelo CERSAM Noroeste de Belo Horizonte.

Na primeira oficina, somente três usuários participaram. Uma usuária que ali estava, se colocou depressiva e que, por isso, achava que não daria conta de participar. A sugestão foi que ficasse sentada, apenas assistindo às atividades, e ela assim o fez. Outra usuária que estava em crise, por inúmeras vezes apontou o dedo para outro usuário que ali estava, disse que não gostava dele, que ele a estava deixando nervosa. Afirmava que não queria saber de teatro e foi colocado a ela que tinha total liberdade para entrar e sair da oficina conforme sua vontade. Nesse momento, a usuária escreve em um quadro que fica bem no meio de uma das paredes do auditório onde as oficinas acontecem e se propõe a dar uma aula de matemática. Por ali ficou, deu sua aula de matemática e o outro usuário também se dirigiu ao quadro e durante alguns minutos fez desenhos variados.

A outra usuária, certamente aprisionada ao seu diagnóstico, quase não consegue falar direito, afirma que gosta de cantar, mas, como era depressiva, talvez não conseguisse. Como no teatro a música é muito importante, a sugestão foi que cantasse. Ela começou a cantar versos religiosos e, à medida que cantava, sua voz ficava cada vez mais alta. Começamos a bater palma no ritmo de sua música e ela sorriu. Naquele momento, a oficina havia proporcionado àquela usuária a oportunidade de se libertar, mesmo que momentaneamente, daquele diagnóstico, daquela depressão que havia se apoderado inclusive de sua voz. O corpo intensivo sobressaindo-se sobre o organismo, ultrapassando-o. Lembro-me de uma referência que Deleuze faz a Francis Bacon trazendo a seguinte frase do pintor: "[...] o rosto humano ainda não encontrou sua face" (DELEUZE, 2007, p. 24). Mas ali, naquele momento, uma face parecia estar surgindo: a face do ritmo.

E como se busca a unidade do ritmo? "Onde o próprio ritmo mergulha no caos" (DELEUZE, 2007, p. 51). O ritmo da vida começava a pulsar, burlando a inércia, o aprisionamento. O território da loucura começava a se dissolver, a abrir-se e algo circula. Aquela prisão que dominava sua voz encontrou naquele espaço a possibilidade de se conectar com algo diferente, novo. A música "[...] atravessa profundamente nossos corpos e nos põe uma orelha no ventre, nos pulmões" (DELEUZE, 2007, p. 60). Música-sensação que faz do corpo um corpo dançante e cantante, abrindo caminhos para que percorram forças, delineiem-se realidades não representativas, campo de sensações.

Nesse contexto, a sensação não corresponde ao sentimento, mas sim a algo que nasce "entre", nas experimentações que efetuamos e nos conduzem a outras formas de perceber, sentir o mundo. Uma possibilidade de pensar esse "entre", essa dimensão que se constitui quando corpos se relacionam, é através do conceito de ritornelo (DELEUZE; GUATTARI, 1997). Esse conceito abarca a ideia de ritmo, de marcação e nos permite pensar os meios que deslizam pela subjetividade e os meios que a compõem. Por um lado o ritornelo possui centro estável, um ponto de fixidez que comporta certa estabilidade no meio do caos, por outro lado, o ritornelo é a própria força do caos. Dessa maneira contém, de forma imanente, um território, uma forma organizada, um agenciamento territorial e uma conexão com o "fora", com o caos.

Assim a repetição funda uma forma de se colocar no mundo, uma maneira de ser louco, estável e cristalizada. No entanto, esse território habitado e conhecido não se esgota em somente uma maneira e pode ser tocado, convocado pelas forças, servindo desse meio para tornar-se outro, para dissipar a reprodução. Nesse processo, o que há em comum entre o ritmo, que funda um território, e o caos é o "entre", os meios, que são abertos ao caos, na interface com a repetição. O ritornelo apresenta, portanto, ritmo e melodia em forma territorializada, embora não perca sua possibilidade de expressão, sua capacidade de movimentar-se. Deleuze e Guattari (1997) salientam ainda a importância da arte para a liberação dessa matéria de expressão, para o movimento da territorialidade. Intercessão que buscamos fazer com nossas intervenções, no cotidiano de nossas oficinas.

Outro usuário aparece na oficina e imediatamente se dirige ao quadro, apaga toda a aula de matemática e escreve seu nome. A "professora" fica bastante nervosa, e dividimos o quadro em duas partes para todos ali escrever e desenhar. Este usuário que escreveu seu nome logo sai do auditório e a usuária retoma sua escrita em números. Uma reflexão: seria mesmo necessário dividi-lo em duas partes, ou poderíamos socializar o espaço? Essa divisão não remete à necessidade de classificar, ordenar, própria de um funcionamento dicotômico e não heterogêneo da realidade? Não diz de uma urgência em dar forma, a algo que insiste em ser fluido? Devemos pensar que há em todos nós um desejo de dominação, de classificação, de controle e de subjugar o próximo - os "desejos de manicômios" (MACHADO; LAVRADOR, 2001, p. 46) - e é preciso estarmos atentos a eles, para não nos deixarmos seduzir pelas armadilhas dos códigos, das "territorializações e rostidades" (VIESENTEINER, 2009, p. 9).

Mesmo que as oficinas tentassem que novos mapas fossem traçados, que novos territórios ganhassem consistência, havia também, imanentemente, endurecimentos, a serem traídos.

Traidor de seu próprio reino, de si mesmo, das próprias convicções, das verdades absolutas, dos desejos mesquinhos, pois quem possui é possuído. O traidor é capaz de criar e, portanto, de resistir. (VIESENTEINER, 2009, p. 11).

Eis mais uma das difíceis tarefas do cartógrafo. Ser rizoma-subjetividade, subjetividade rizomática, conexão e heterogeneidade, multiplicidade e ruptura, traição e invenção. "[...] é preciso perder sua identidade, seu rosto. É preciso desaparecer, tornar-se desconhecido" (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 58). Esse teatro se torna, em alguns momentos, aquele que Machado (2010) descreve como o da não representação, por engendrar uma espécie de consciência minoritária, atualizando uma potencialidade. Em certas circunstâncias as oficinas de teatro são vivenciadas por esses usuários como resistência. Resiste-se a toda forma de enclausuramento, de normalização. Como já dizia Domingos de Oliveira em sua obra Do tamanho da vida: reflexões sobre o teatro, buscávamos nesse território "[...] um teatro que lançasse um grito de alegria, que mesmo que estivesse enclausurado apontasse uma saída" (OLIVEIRA, 1987, p. 12). Os usuários começam a resistir à moldagem de suas "subjetividades psicóticas" fazendo a música que cantam todas as quintas-feiras extravasar por todo o serviço, atraindo a atenção de profissionais que chegam assustados ao auditório perguntando o que está acontecendo ali. Alguns trabalhadores do serviço afirmam que todo cuidado é pouco, que qualquer barulho estranho deve ser entendido como um alerta. Muitos profissionais dizem se assustar com o barulho no espaço das oficinas acreditando ser algum paciente em crise, que pode oferecer algum risco.

Mas o alerta já está sendo dado. Os corpos-vozes-subjetivação-despertando precisam ser ouvidos, mas aos poucos inventam um novo modo de fazer isso. Atraem sim olhares espantados, que em poucos segundos de uma suposta observação se rendem e até entram, pela mesma porta que os loucos entram, ali naquele mesmo auditório, e participam das oficinas.

E as vozes se encontram, sobrepõem-se, sobressaem-se. Gritamos, damos gargalhadas, cantamos e somos cantados por uma nova música que ali compomos: o canto da vida! "Os dois grandes momentos da música seriam o ritornelo e o galope, dois polos não simétricos: o cavalo e o pássaro" (CRITON, 2000, p. 498). O galope enquanto um vetor linear com precipitação e o ritornelo como o canto dos pássaros, ligado à polifonia. Ritmo e marcação conduzindo ora à homogeneização, ora à heterogeneidade.

E em meio a cavalos e pássaros resistimos àqueles "desejos de manicômios" que existem em todos nós. Outra usuária, afetada por todo aquele fluxo produtivo, escreve diversos vocalizes e leva até a oficina para serem utilizados nos exercícios de voz. Frases como: "Canta com o vento/ Um canto com sabiá/ Sambalelê a rodo/ Sem limite em você vem/ Lambada a moda com/ Lanção o rei Arthur Menezes/ Moda amadação/ A chuva começou" tornam-se uma melodia que ecoa pelas paredes do serviço. De repente, essa usuária lidera os exercícios de voz e todos circulamos pelo auditório cantando o que um deles inventou, invenção-resistência, invenção-alegria, invenção-movimento. Vocalizes-ritmo, ritmo-som, que ao mesmo tempo trazem repetição e diferença. "Canta com o vento/Canta com o vento/ Canta com o vento/ Canta com o vento". Frases soltas, que talvez, ouvidas de longe, pudessem parecer algo sem sentido. Mas o sentido é construído ali. É processual.

1.4 Ato-alfabeto O e suas tramas/tentáculos/tessituras

Ao longo do trabalho com as oficinas, o corpo foi se tornando uma importante ferramenta, que os usuários sabiam utilizar, fazendo com que seus corpos saíssem dos aprisionamentos diagnósticos e medicamentosos que, muitas das vezes, os atravessava dentro do serviço. Ferramenta que nos remonta à "caixa deleuziana", caixa de ferramentas, lançando esses corpos-subjetividades em outras direções e territórios. Com o decorrer dos dias, esses corpos se despertaram, libertados pelo suor da loucura.

Certa quinta-feira uma usuária espera na entrada e diz: "Hoje nós vamos fazer ginástica?" Como o trabalho com o corpo dentro das oficinas repercute de maneira intensa nas subjetividades dos usuários. Sempre havia comentários parecidos e muita energia, muita potência naquelas loucas-máquinas-corpos. Nas oficinas os corpos promoveram acontecimentos singulares, potentes, através dele muitas forças circulavam. Conforme Deleuze e Guattari (1996), o acontecimento se constitui por agenciamentos que produzem alianças e passagens entre o que está sedimentado, cristalizado e o devir. É ainda imprevisível, e conduz à invenção através da conjugação de forças heterogêneas. Realmente, experimentamos nesses espaços a possibilidade de inventar e reinventar esses corpos.

E o que é um corpo? Segundo o dicionário da língua portuguesa Silveira Bueno (2007), o corpo é um "[...] conjunto de órgãos; o esqueleto humano revestido de músculos" (BUENO, 2007, p. 67). No entanto, o corpo acima descrito, de acordo com a leitura esquizoanalítica, remete ao corpo representação, corpo estratificado, preenchido por partes que devem funcionar harmonicamente para que gozemos de boa saúde, corpo dos órgãos. Na desconstrução desse corpo-cristalizado, tentamos fazer, dos corpos-subjetividades presentes nas oficinas, corpos-mutação, corpos-invenção. Nessa tarefa, nos guiamos pelo conceito do corpo-sem-órgãos (CsO) para darmos vida a uma nova forma de deslocarmos, de "ginasticarmos" a loucura.

A noção de CsO foi tomada, por Deleuze e Guattari, de Antonin Artaud e corresponde a uma intensidade, a potências que se ligam com as forças exteriores para fazer novas composições (DELEUZE; GUATTARI, 1996). Estes autores, ao se apropriarem da ideia de um CsO, fazem uma ressalva, afirmando que o mesmo "[...] não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas" (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 9).

Essa ideia aposta em um corpo que não é de um sujeito, no caso, os usuários do CERSAM, e nem dividido e recortado em órgãos que delimitam e atuam especificamente de maneira reprodutiva e perene. O CsO corresponde a uma corporeidade que sustenta forças incorporais que se estabelecem nas relações, a uma potência que dá consistência aos fluxos da vida e se abre para as multiplicidades (DANTAS, 2006). Dessa maneira, o CsO dribla os segmentos fixos e homogeneizados da realidade e faz vazar o intensivo, a potência que acompanha as situações. Ou seja, nessa perspectiva o território da loucura possui variações que se dão em dimensões, ora sustentando esses segmentos, ora voltando-se para o CsO. Estrato-corpo anestesiado, precarizado, suporte de uma subjetividade reprodutiva e desvitalizada, povoada de sintomas, e também fluxos-conexões, corpo-vida, potente e intensivo, dependendo das conexões que são estabelecidas ou não. Estrato-corpo e fluxo-conexão presentes nas oficinas, fazendo composições que privilegiavam ora a reprodução, ora a invenção.

A oficina era o encontro desses mais variados corpos. Corpos que, no início, eram corpos do padecimento. Corpo-doença, corpo-diagnóstico, corpo-anestesia. Cada um deles trazia consigo uma história, uma memória e um traço ou ferida bem abertos. Corpos impossíveis de não se notar. Em nossos encontros destacamos o corpo-cadeira, o corpo-inchado, o corpo-convulsão, o corpo impregnado, o corpo-grávido-de-gêmeos e o corpo-joelho.

O corpo-cadeira chega à oficina tímido, em uma cadeira de rodas, com muita dificuldade de se deslocar. Olhar triste, olhar curioso, mas sempre sentado sobre suas quatro rodas, rodas-freios, rodas sem rumo, rodas que impediam o caminhar para a construção de outro território. Este usuário sofre de uma osteomielite grave em uma das pernas, processo inflamatório do tecido ósseo causado por bactérias, e não consegue ficar de pé. Está sempre em uma cadeira de rodas. Era convidado a participar da oficina e sempre dizia que não conseguiria. Que partisse dele, então, essa vontade de estar ali conosco.

Certo dia de oficina um vigilante do serviço chega à porta do auditório. Ele pede para falar comigo e pergunta se aquele usuário que estava na cadeira de rodas poderia participar.

Neste dia todos brincamos de carnaval. Máscaras, plumas e alguns acessórios faziam parte daquele espetáculo que ali improvisamos. E quando pensava que seria impossível, aquela cadeira de rodas havia saído de cena. E aquele usuário que padecia por não conseguir andar estava de pé.

O corpo-cadeira resolve se soltar de suas rodas. Pede ajuda para se levantar. Muitas foram as mãos que, naquele momento, quiseram desprender o corpo-cadeira de suas rodas-freios. E, quando o corpo-cadeira estava de pé, não se viam mais órgãos formatados, seus pés não precisavam mais ser pés, suas mãos encontraram novas formas de estar ali, mãos virando pés, pés sambando no chão. Este corpo se apoia em uma das pilastras do auditório, corpo se embrenhando no espaço, pilastra-corpo, corpo-saci, que pula de um pé só, compondo uma partitura corporal ímpar. O corpo-cadeira havia se transformado, naquele momento, no corpo saci, em um "corpo vibrátil", intensivo do CsO, potência do "entre", emergindo na intensidade do encontro, ligando-se ao heterogêneo no molecular.

O corpo-inchado estava na oficina toda semana. Chegava sempre alegre, disposto, repetindo de maneira alta seu nome e sobrenome e acrescentando: "isso aqui está uma beleza!" Mas apesar de sua alegria estava inchado. Pés, mãos e pernas. Dizia ser efeito da medicação e de sua idade - aproximadamente 56 anos. Muitas vezes, dizia-se velho demais para realizar os exercícios, principalmente os exercícios com o corpo. O corpo-inchado, no decorrer das oficinas, levantava-se e sentava-se, em um ritmo que parecia indicar uma inquietação, um desassossego. As pernas e os pés eram os depósitos dos edemas, as mãos o espaço da fraqueza muscular. Estaria este corpo inchado demais para inventar? Aumentado demais para viver e não somente sobreviver?

Esse corpo, que naquele momento estava impossibilitado de se movimentar, é convidado a escrever, a desenhar. E todos os corpos da oficina sentam em uma grande mesa e começam a produzir. Inúmeros são os desenhos, muitas são as cores, diversas são as histórias. Na tentativa de flexibilizar as linhas duras do inchaço, o desenho torna-se uma possibilidade de construir uma linha de fuga. De acordo com Deleuze e Parnet (1998), a subjetividade é constituída de múltiplas linhas e planos de forças que atuam ao mesmo tempo. Nesse emaranhado de linhas, as linhas de fuga driblam as linhas duras que nos classificam e nos limitam, e nos arrastam para o novo, o desconhecido. O corpo inchado faz do papel e do lápis de cor sua fórmula diurética e é partindo do desenho e da escrita que o corpo desincha, murcha de forma potente e, ao final da oficina, dança com os outros corpos, liberando mãos, pés e pernas. A leveza ganha consistência.

O corpo-convulsão, também presente nas oficinas toda semana, era um dos corpos mais animados. Dizia-se artista dançarino e cantor nato. Mas era o corpo da medicação acumulada, da prescrição não engolida e estava sempre a se queixar disso. Via-se impedido de movimentar seu corpo, porque havia sofrido várias convulsões e já não conseguia realizar sua antiga performance de artista. Dizia-se também diretor. E, sempre que propúnhamos a interpretação de algum texto, ele queria dirigir o grupo. Talvez o fato de poder dirigir o grupo colocasse esse corpo-convulsão em seu lugar da forma, afinal, poderia o corpo que treme, que desmaia e que engole tantas pílulas ser capaz de se movimentar?

Em um dos dias da oficina, somente o corpo convulsão apareceu. Muito cansado, prostrado, convulsionado. Relatava uma convulsão recente, dizia-se fraco. Mas estávamos só nós dois na oficina. E o corpo-convulsão quis me dirigir. Lugares marcados do especialista e do usuário começam a se desmanchar. O corpo-convulsão solicita uma música. Ligo o rádio. Corpo-convulsão e corpo-pesquisador começam a se movimentar. O corpo-pesquisador sai de cena, de maneira ligeira, e o corpo-convulsão se torna o corpo-suor. De repente, o palco que ali criamos se torna ainda maior. Esse corpo começa a suar de maneira impressionante, ao mesmo tempo em que dança, declama poemas e canta, e o suor passa a não caber mais nele, vai tomando proporções maiores e o corpo-convulsão vai se despindo da doença e de suas roupas. Aquele usuário parecia, naquele momento, libertar-se das amarras da loucura. Inventando seus próprios movimentos, eu via aquele corpo vibrar.

O corpo-impregnado também estava sempre presente. Mas estava impregnado. O que a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1997) intitula de Síndrome Neuroléptica Maligna, uma forma de toxicidade provocada pelo uso de antipsicóticos, que traz uma série de efeitos colaterais. O corpo-impregnado chega à oficina sem conseguir falar direito, a boca torta, a cabeça se movimentando rapidamente para um lado, o corpo em desequilíbrio. Era difícil se movimentar e se manter de pé. Mas algo o mantinha ali. Como flexibilizar essas linhas duras do diagnóstico e da medicação? Impregnado estava esse corpo e não só ele, mas essa subjetividade. Subjetividade impregnada de saberes, de estereótipos, de estigmas, de química medicamentosa. Em determinado momento da passagem do corpo-impregnado nas oficinas, peço e todos se sentam em roda para realizarmos um exercício de contar histórias. Um de nós iniciava uma história e os demais a continuavam. É nesta hora que o corpo-impregnado começa a falar de sua trajetória no serviço de saúde mental. Conta que está ali há alguns meses e que, recentemente, estava sofrendo com a impregnação. Ele fornece todos os detalhes sobre seu estado, diz de todos os efeitos colaterais, e de como convive com isto. Relata da dificuldade de se movimentar, mas ali, naquela roda de subjetividades, algo começa a girar.

Ao final do exercício das histórias, todos de pé finalizamos aquele dia de oficina com uma dança, criada por cada um deles, cada um no seu momento e da sua maneira. O que, no teatro, chamamos de criação de partituras corporais. Cada um cria uma sequência de movimentos de corpo, que, como na música, se transforma em uma partitura, em uma composição. O corpo-impregnado se levanta, mesmo tremendo e debilitado fisicamente resolve participar. Começa a criar a sua partitura. Esse corpo vai se movimentando e impressionantes são seus movimentos. Ele faz do chão o seu apoio, de repente suas mãos o conduzem, em movimentos circulares e muito precisos. O corpo-impregnado estava ali, girando na roda dos fluxos, vivendo uma nova história, recontado aquela antiga impregnação através de uma partitura corporal.

O corpo-grávido-de-gêmeos é um corpo extremamente sofrido, que carrega marcas do sofrimento psíquico na pele, como cortes e cicatrizes. Um corpo que é recorrente nas discussões de caso do serviço, um corpo que sofre, um corpo que estava em crise, a chamada crise psicótica. Este corpo estava sempre a participar das oficinas, querendo ocupar o espaço com as músicas que trazia de casa, com sugestões de exercícios, com peças de teatro escritas. Um corpo que também produzia versos, cantos, histórias.

O corpo-grávido-de-gêmeos estava grávido. Mas não poderia estar "formalmente" grávido, porque havia realizado uma laqueadura tubária, obstrução contraceptiva das tubas uterinas. Um corpo que, apesar das formas, criava para si uma nova maneira de se habitar, de se entender, carregando consigo uma gravidez dupla. Esse corpo estava grande, inchado, a barriga bem crescida. Chegava à oficina com uma série de planos para o nascimento dos filhos, com roupinhas e brinquedos de bebê.

Em determinado dia da oficina, decidimos fazer o exercício do espelho. Um exercício teatral que consiste em trabalhar em dupla, imitando uma série de movimentos corporais que o parceiro cria. Como se ele estivesse diante de sua imagem refletida no espelho. O corpo-grávido me convida a realizar o exercício com ele. O corpo-grávido, então, começa a realizar o exercício, faz movimentos que meu corpo-pesquisador não conseguia acompanhar. E seria mesmo necessário acompanhá-los? Foi então que meu corpo-órgãos, corpo-formatação se transformou em outros, vários. Recordo-me de um trecho de Clarice Lispector sobre o espelho.

Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. (LISPECTOR, 1980, p. 62).

A qualidade-possibilidade de que Lispector fala estava sendo ali construída na nossa cartografia-oficina. A possibilidade de reescrever histórias, remodelar nossos corpos e reinventar nossas vidas. Aquele corpo-grávido, também corpo esterilizado provava a fertilidade do território em que estávamos.

O corpo-joelho era um corpo alegre. Um corpo que gostava de cantar. Mas um corpo que não se movimentava. Dois joelhos operados, uma cicatriz e uma subjetividade endurecida que impedia esse corpo de dançar. Quando chegava ao auditório onde eram realizadas as oficinas, sentava-se na mesa e assistia, sempre dizendo que os joelhos operados o impediam de realizar movimentos. Ao final de cada oficina ele me esperava, ficava ali comigo até que eu fechasse as portas do auditório e entregasse as chaves. Nesse trajeto íamos conversando e, em uma dessas conversas, ele me diz de sua predileção pela música sertaneja. Disse a ele que trouxesse um CD para a oficina.

Na semana seguinte esse corpo chega cantando, com vários CDs debaixo do braço. Sugeri que criássemos um espaço onde todos pudessem cantar alguma música que gostassem, interpretando-a como em um show musical. O corpo-joelho pega o som e coloca sua música. Dirige-se à frente do auditório e todos os demais ali presentes sentam-se como se montássemos uma plateia. E começa o show. Ritmo sertanejo e corpo vão se misturando, esse corpo-joelho vai se transformando em corpo-cantor, simula uma viola e com ela vai andando pela sala, pedindo que acompanhemos sua cantoria. Nesse momento me perguntava: onde estariam os joelhos operados? O que se via não eram mais joelhos com cicatrizes, mas uma subjetividade polifônica e múltipla, um verdadeiro "[...] exercício de composição de uma subjetividade produzida pelos elementos mais heterogêneos, um exercício otimista de afirmação da vida, que aproxima- se muito da criação artística" (DINIS, 2008, p. 356).

O CsO aproxima-se do corpo-arte, corpo que pulsa, vibra e que lança os usuários no coletivo. Ao livrar-se dos estratos, o CsO propicia, aos participantes das oficinas e à pesquisadora, que conexões se efetuem, estados impensados aflorem e ganhem consistência. Abandona-se uma forma, burla-se uma forma. Deslocamento, aceleração, passagem entre as coisas, a partir dos encontros que são feitos, sendo-se assim rizoma. Construção de linhas de fuga que convergem em processos que arrastam para outros territórios, outras sensações.

 

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na pesquisa-intervenção cartográfica que realizamos apostamos na produção de conhecimento como instrumento de transformação da realidade, sustentando as singularidades dos acontecimentos que atravessavam as oficinas, algumas delas relatadas nesse texto. Cartografar essa experiência nos permitiu problematizar o uso das oficinas terapêuticas e repensar nossas práticas no atendimento aos portadores de sofrimento mental. Mais do que intervir no campo, era preciso emprestar o corpo do pesquisador a esse território, e deixar com que o próprio campo fosse moldando esse corpo. Cartografar é fazer um convite à abertura, abrir nossos olhares para o novo, para a potência que existe em cada um daqueles corpos adoecidos, um convite ao traçado de novas linhas no grande mapa das subjetividades.

Sem dúvida, o contexto atual da Reforma Psiquiátrica nos coloca diante de uma série de desafios e impasses. Campo este que não é somente técnico assistencial, mas é, sobretudo, um campo de movimentos sociais, em que muitos atores e forças circulam. Nossa aposta é lutar para que os princípios desse movimento não se percam no cotidiano e na rotina dos serviços de saúde mental.

Dessa maneira, entramos na investigação com a tentativa de promover um circular de forças, um deslocamento de subjetividades. Ao utilizar a arte, mais precisamente o teatro, em um serviço substitutivo, tivemos o cuidado de não levar a esses usuários uma arte engessada, arte-reprodução, arte-representação. O cuidado de não empobrecer esta arte homogeneizando-a foi utilizá-la enquanto instrumento que pudesse contribuir para inventar novas maneiras de existir e de experimentar. Por isto também, a nossa aposta na construção das atividades coletivamente, sem técnicas prontas e formatadas, sustentando oficinas em que pesquisador e usuários construíam, criavam e recriavam o teatro ali, toda semana.

 

3 AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo de Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo custeio de parte dessa pesquisa. Em especial, ao Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) Noroeste de Belo Horizonte, pela possibilidade de produção de conhecimento/intervenção e à sua coordenadora Rosa Maria Vasconcelos, pelo empenho e pela disponibilidade.

 

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Artigo recebido em: 25/01/2011
Aprovado para publicação em: 14/04/2012