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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas
versão On-line ISSN 1806-6976
SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.17 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2021
https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2021.155433
ARTIGO ORIGINAL
Perfil sociodemográfico e de dependência química dos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial especializado
Perfil sociodemográfico y de dependencia química de los usuarios de un Centro de Atención Psicosocial especializado
Gliciane Vasconcelos SantanaI; Joyce Lorena Santana SantosI; José Marcos de Jesus SantosII; Letícia de Jesus AlvesI; Andreia Freire de MenezesIII; Carla Kalline Alves Cartaxo FreitasIV
IUniversidade Federal de Sergipe, Campus Prof. Antônio Garcia Filho, Lagarto, SE, Brasil
IIUniversidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
IIIUniversidade Federal de Sergipe, Departamento de Enfermagem, São Cristóvão, SE, Brasil
IVUniversidade Federal de Sergipe, Departamento de Enfermagem, Lagarto, SE, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: identificar o perfil sociodemográfico e de dependência química dos usuários de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas.
MÉTODO: estudo transversal e retrospectivo realizado por meio de consulta a 360 prontuários.
RESULTADOS: a maioria dos usuários era do sexo masculino (91,1%; n = 328), analfabeta/Ensino Fundamental (70,8%; n = 255), vivia sem companheira(o) (76,9%; n = 277) e morava na zona urbana (63,3%; n = 228). O uso simultâneo de múltiplas drogas foi encontrado em 43,5% (n = 157) e a dependência exclusiva de álcool em 40,4% (n = 146).
CONCLUSÃO: evidenciou-se predomínio de homens solteiros com baixa escolaridade e em dependência de múltiplas drogas e/ou de álcool. Esse conhecimento é relevante para propostas de estratégias baseadas em evidências.
Descritores: Perfil de Saúde; Usuários de Drogas; Drogas Ilícitas; Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias.
RESUMEN
OBJETIVO: identificar el perfil sociodemográfico y de dependencia química de los usuarios de un centro de atención psicosocial alcohol y otras drogas.
MÉTODO: estudio retrospectivo y transversal realizado por medio de consulta a 360 prontuarios.
RESULTADOS: la mayoría de los usuarios eran del sexo masculino (91,1%, n = 328), analfabeto/enseñanza fundamental (70,8%, n = 255), vivía sin compañera (76,9%; n = 277) y vivía en la zona urbana (63,3%, n = 228). El uso simultáneo de múltiples drogas se encontró en el 43,5% (n = 157) y la dependencia exclusiva de alcohol en el 40,4% (n = 146).
CONCLUSIÓN: se evidenció predominio de hombres solteros con baja escolaridad y en dependencia de múltiples drogas y/o de alcohol. Este conocimiento es relevante para propuestas de estrategias basadas en evidencias.
Descriptores: Perfil de Salud; Consumidores de Drogas; Drogas Ilícitas; Trastornos Relacionados con Sustancias.
Introdução
As drogas são substâncias psicoativas capazes de gerar alterações corporais, fisiológicas e comportamentais, assim como no grau de consciência de seus usuários, variando de acordo com a substância utilizada e com fatores intrínsecos ao indivíduo(1). A dependência dessas substâncias é complexa e de origem multifatorial(2).
Sabe-se que as drogas provocam danos severos à saúde. A Cannabis sativa (maconha), por exemplo, pode produzir déficit cognitivo e transtornos mentais, como a depressão e o comportamento suicida, além de doenças cardiovasculares e pulmonares(3). Há ainda a possibilidade de consequências mais graves, uma vez que a Organização Mundial de Saúde atribui mais de 450.000 mortes por ano ao consumo dessas substâncias(4).
Em nível global, destaca-se que os transtornos por uso de álcool são os mais prevalentes, com 100,4 milhões de casos estimados em 2016. Na sequência, observa-se a dependência da maconha (221 milhões) e a dos opioides (26,8 milhões)(5). A dependência entre homens e mulheres varia de acordo com o tipo de substância psicoativa, região e aspectos socioculturais. Na América do Sul e em outros locais, há um consumo maior de substâncias específicas entre homens se comparados às mulheres(6-7).
No Brasil, ressalta-se que os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPSad) são os principais dispositivos para o acolhimento de usuários que fazem uso prejudicial de drogas. A finalidade desses serviços é a de promover a reinserção social por meio do acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários(8).
Nesse sentido, pontua-se que os problemas advindos do uso das substâncias psicoativas estão relacionados também às questões sociais, culturais e econômicas de cada indivíduo(9), sendo essencial, portanto, o conhecimento de suas características para reajustes e/ou propostas de estratégias mais bem direcionadas à realidade social e clínica desse público. Ademais, justifica-se a realização do presente estudo pelo fato de ele ter ocorrido em um município do estado de Sergipe, no Nordeste brasileiro, cuja produção científica original sobre dependência química é incipiente e superficial em relação às especificidades regionais.
Frente ao exposto, objetivou-se identificar o perfil sociodemográfico e de dependência química dos usuários de um CAPSad localizado no Nordeste brasileiro.
Método
Trata-se de um estudo transversal e quantitativo, retrospectivo e descritivo, usando dados secundários de um CAPSad do Nordeste brasileiro, cujo levantamento de dados ocorreu entre os meses de agosto e dezembro de 2018 por meio de consulta aos prontuários de usuários ativos e inativos da instituição.
Segundo dados da direção do serviço de saúde, estimou-se a existência de 600 prontuários de usuários ativos e inativos no ano de 2017. A partir disso foi feito o cálculo amostral, sendo considerado um nível de confiança de 96% e um erro amostral de 4%(10). Acrescentou-se ainda uma margem de segurança de 15% ao número calculado, resultando em 360 participantes avaliados.
Dessa forma, após a obtenção de autorização da direção do CAPSad, os pesquisadores visitaram o serviço e, a partir do agrupamento de todos os prontuários do arquivo ativo e inativo disponíveis no Serviço de Arquivo Médico e Estatística (SAME) da instituição, realizaram a sua numeração (a lápis) e fizeram um sorteio dos 360 prontuários elegíveis à pesquisa, o que garantiu a seleção dos participantes por amostragem aleatória simples.
Participaram do estudo usuários que já tinham estado ("inativos") ou que ainda estavam em acompanhamento ("ativos") no CAPSad João Rosendo dos Santos, localizado em Lagarto, Sergipe, Brasil. Adotou-se como critério de exclusão usuários cujo prontuário apresentasse ausência significativa de informações. Destaca-se que o CAPSad estudado considera usuário "inativo" aquele que está há seis ou mais meses sem participação nas atividades terapêuticas oferecidas pela instituição.
O levantamento dos dados ocorreu por meio de um formulário composto por questões objetivas sobre as condições sociodemográficas, problemas psíquicos e características de consumo das substâncias psicoativas. Tal instrumento de coleta foi criado com a limitação de possuir apenas as variáveis existentes nos prontuários da instituição.
Para análise estatística foram utilizadas as técnicas univariada e bivariada para obtenção da distribuição dos valores das frequências absoluta e relativa entre as variáveis qualitativas nominais e ordinais. Calcularam-se também a média, desvio padrão e os valores mínimo e máximo das variáveis quantitativas. O pacote utilizado foi o IBM® SPSS - Statistical Package for the Social Sciences 20.0 Mac (SPSS 20.0 Mac, SPSS Inc., Chicago, Illinois, EUA).
Este estudo foi aprovado em julho/2018 pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe, sob Parecer nº 2.784.416 e CAAE nº 92400818.9.0000.5546. Os pesquisadores seguiram as diretrizes e normas regulamentadoras preconizadas na Resolução Nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde sobre as pesquisas envolvendo seres humanos.
Resultados
Participaram do estudo 360 usuários do CAPSad, sendo 177 considerados "ativos" e 183 "inativos" pela instituição. A média de idade dos participantes na primeira admissão ao serviço era de 33,8 anos (desvio padrão: 12,5; mínimo: 10; máximo: 73) e, à época da pesquisa, de 37,2 anos (desvio padrão: 12,8; mínimo: 10; máximo: 77). O público adolescente correspondeu a 4,4% (n = 16) da amostra e mais da metade possuía idade > 35 anos (56,4%; n = 203) (Tabela 1).
A maioria era do sexo masculino (91,1%; n = 328), analfabeta ou havia cursado apenas o Ensino Fundamental (70,8%; n = 255), vivia sem companheira(o) (76,9%; n = 277) e, dentre estes (n = 277), quase a totalidade morava com algum familiar (99,6%; n = 276). Quanto à zona de moradia, 63,3% (n = 228) moravam em zona urbana, 31,9% (n = 115) rural e 3,9% (n = 14) viviam em situação de rua (Tabela 1).
O uso simultâneo de múltiplas drogas foi de 43,5% (n = 157). As drogas mais ingeridas de forma isolada foram o álcool (40,4%; n = 146), o crack (6,9%; n = 25) e a maconha/Cannabis sativa (5,6%; n = 20), tendo uma frequência semanal de ingesta, sobretudo, de 6 ou 7 dias por semana (Tabela 2).
Em relação à forma de entrada no CAPSad, observou-se que 61,9% (n = 223) dos usuários procuraram o serviço espontaneamente e 34,7% (n = 125) foram encaminhados de outros serviços da rede de saúde mental do município (Tabela 2).
Ressalta-se que 26,4% (n = 57) dos usuários já praticaram alguma violência contra si e 44,7% (n = 97) contra outra pessoa (Tabela 3).
Discussão
Foi encontrado, no presente estudo, um predomínio de uso das substâncias psicoativas entre homens adultos. Esse achado corrobora um estudo realizado no Sul do Brasil(11), no qual 74,8% dos dependentes químicos eram do sexo masculino. Em relação à idade, acredita-se que, embora a iniciação às drogas ocorra ainda na adolescência, a procura pelos serviços de saúde, e em especial pelo CAPSad, geralmente ocorrerá mais tardiamente, quando os danos biológicos e socioeconômicos provocados pelo uso das substâncias psicoativas tornar-se-ão mais evidentes para o usuário e/ou família.
A baixa escolaridade foi outra característica muito presente entre os participantes. Esse resultado está de acordo com os de um estudo realizado em Maceió (AL) com 200 usuários de crack, em que 61,5% possuíam apenas o Ensino Fundamental(12). Ressalta-se que o nível de formação dos dependentes químicos é um fator importante a ser considerado na realização de atividades educativas/terapêuticas sobre drogas, uma vez que se faz necessária a readequação da linguagem e do nível de aprofundamento teórico do assunto a ser abordado.
Em relação à situação conjugal, a maioria dos usuários avaliados vivia sem companheira(o) à época da pesquisa. Resultado semelhante foi encontrado em um estudo com 123 dependentes químicos, no qual apenas 19,5% deles eram casados ou possuíam união estável(13). Atribui-se tal dificuldade em iniciar e/ou manter um relacionamento amoroso aos conflitos que são gerados a partir do uso de substâncias psicoativas.
A maior parte dos usuários residia com seus familiares. Autores discutem que a família pode ser um fator protetor e também agravante em relação ao uso de drogas, uma vez que lares conflituosos favorecem a experimentação das substâncias e ainda, nos casos em que o conflito familiar é um possível causador da dependência, isso também dificultará a reabilitação do indivíduo(14). Nesse sentido, reforça-se a importância de, ainda no acolhimento, tentar conhecer o sujeito em sua totalidade, compreendendo seu contexto familiar, as dificuldades enfrentadas na vida e os possíveis fatores desencadeantes do uso dessas substâncias psicoativas - a partir da perspectiva do próprio usuário.
Outro achado foi a alta prevalência de busca espontânea pelo CAPSad por parte dos usuários, que, por sua vez, pode ser justificada, dentre outros fatores, pelas dificuldades da Rede de Saúde. Esse resultado assemelha-se ao encontrado em um estudo realizado com 369 usuários de CAPSad da Região do Triângulo Mineiro, no qual quase metade dos participantes também referiram a busca espontânea a esses serviços de saúde(15). Acredita-se na possível influência do reconhecimento do serviço de saúde mental pelos munícipes dessas cidades, bem como no papel da família do usuário nesse processo, uma vez que pode ou não estimulá-lo a adotar tal comportamento de iniciativa para buscar ajuda/atendimento.
Quanto ao perfil de dependência química, observou-se que o uso simultâneo de múltiplas drogas e a dependência exclusiva de álcool prevaleceram na amostra. Explica-se o maior uso exclusivo do álcool por se tratar de uma droga lícita e de fácil acesso, além de suprir interesses econômicos e da grande mídia que estimula o seu consumo(16-17).
A dependência exclusiva do crack obteve a segunda posição neste estudo. Pontua-se que esta é uma substância com alto poder de degradação física e psíquica, que, em uso prolongado, pode levar ao comprometimento da qualidade de vida em âmbito geral(18). Autores sugerem que o crescimento de usuários de crack está associado à busca por efeitos mais potentes e ao baixo custo da substância(19).
A maconha e a cocaína ocuparam a terceira e a quarta posições de dependência exclusiva entre os participantes, respectivamente. Esse resultado difere daquele apontado por um estudo realizado em Porto Alegre com 1.125 usuários, no qual obteve-se uma inversão dessas posições: cocaína (19,5%) e maconha (14,4%)(20). Todavia, destaca-se que esses mesmos autores evidenciaram uso simultâneo de múltiplas drogas em 42% da amostra, sendo esse valor semelhante ao encontrado no presente estudo (43,5%).
Sabe-se que o Brasil é um país com grande número de mortes violentas comumente relacionadas à utilização de drogas(21). Nesse aspecto, observou-se que quase metade da amostra do presente estudo referiu já ter praticado violência contra outra pessoa. Isso pode estar associado à idade em que se inicia o uso da droga, à frequência e à dificuldade de tomada de decisão quando estão sob efeito de substâncias psicoativas e/ou em crise de abstinência(22).
Nesse aspecto, ressalta-se que, ao contrário das eventuais observações cotidianas, a obtenção dessas drogas não se dá necessariamente a partir de furtos ou atos violentos contra outras pessoas, mas à custa de recursos do próprio trabalho ou venda/penhora de bens pessoais ou dos familiares do usuário(23). Apresenta-se nesse grupo, portanto, a violência contra outras pessoas como sendo uma das possíveis consequências do uso de substâncias psicoativas, e não como a principal via para a obtenção das drogas.
As limitações deste estudo estão relacionadas, sobretudo, ao instrumento utilizado para o levantamento dos dados, uma vez que este teve a restrição de possuir apenas as variáveis existentes nos prontuários do CAPSad escolhido para a realização da pesquisa. Isso impossibilitou o aprofundamento de algumas questões sobre a dependência química dos usuários avaliados.
Conclusão
Evidenciou-se predomínio de homens solteiros, com baixa escolaridade, moradores da zona urbana e em dependência de múltiplas drogas e/ou exclusivamente de álcool. Em relação ao uso isolado das substâncias psicoativas, percebeu-se que, além do álcool, outras drogas também se destacaram: o crack e a maconha. Esse conhecimento é importante para a proposição de ações terapêuticas e de redução de danos na dependência química mais bem direcionadas à realidade dos sujeitos avaliados.
Nesse contexto, pretende-se inserir no CAPSad estudado uma rotina de ações de educação em saúde sobre os riscos e implicações biopsicossociais associadas a cada uma das substâncias psicoativas evidenciadas, no sentido de favorecer a colaboração dos respectivos usuários em seus Projetos Terapêuticos Singulares no serviço de saúde em questão.
Infere-se ainda uma propensão desses usuários à violência contra si e à praticada contra outrem, devido à complexidade que envolve o fenômeno da violência entre usuários de substâncias psicoativas. Sugere-se a realização de estudos complementares para um melhor entendimento das razões destas violências e dos fatores associados a tais desfechos.
Desse modo, acredita-se que os achados do presente estudo são relevantes para a formulação e/ou implementação de estratégias terapêuticas/de redução de danos baseadas em evidências. Torna-se essencial, portanto, que as instituições de saúde especializem-se para um melhor acolhimento desse público, já que sua problemática atinge também os familiares e até a comunidade na qual se encontram inseridos.
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Autor correspondente:
José Marcos de Jesus Santos
E-mail: jsmarcos@usp.br
Recebido: 27.03.2019
Aceito: 04.02.2021
Contribuição dos autores
Concepção e planejamento do estudo: Gliciane Vasconcelos Santana; Joyce Lorena Santana Santos; José Marcos de Jesus Santos; Andreia Freire de Menezes; Carla Kalline Alves Cartaxo Freitas.
Obtenção dos dados: Gliciane Vasconcelos Santana; Joyce Lorena Santana Santos; José Marcos de Jesus Santos; Letícia de Jesus Alves.
Análise e interpretação dos dados: José Marcos de Jesus Santos; Letícia de Jesus Alves; Andreia Freire de Menezes; Carla Kalline Alves Cartaxo Freitas.
Análise estatística: José Marcos de Jesus Santos.
Redação do manuscrito: Gliciane Vasconcelos Santana; Joyce Lorena Santana Santos; Letícia de Jesus Alves; Andreia Freire de Menezes; Carla Kalline Alves Cartaxo Freitas.
Revisão crítica do manuscrito: Gliciane Vasconcelos Santana; Joyce Lorena Santana Santos; José Marcos de Jesus Santos; Letícia de Jesus Alves; Andreia Freire de Menezes; Carla Kalline Alves Cartaxo Freitas.
Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
Conflito de interesse: os autores declararam que não há conflito de interesse.