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IGT na Rede
versão On-line ISSN 1807-2526
IGT rede vol.14 no.26 Rio de Janeiro jan./jun. 2017
ARTIGO
Os Atravessamentos Vividos por um Gestalt-Terapeuta em Formação em Clínicas de Hemodiálise
The Tracks Experienced by a Gestalt-Therapist in Training in Hemodialysis Clinics
Rosileia Pereira Rodrigues Alves*
IGT - Instituto de Gestalt Terapia e Atendimento Familiar - Rio de Janeiro - RJ.
RESUMO
O objetivo do presente artigo é dividir minhas experiências como psicóloga inserida em unidades de hemodiálise, enquanto aluna do curso de Especialização em Psicologia Clínica – Gestalt-Terapia (Indivíduo, Grupo e Família) realizado no IGT – Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar. Uma das relevâncias do trabalho parte da escassez de bibliografia de psicólogos ancorados na Gestalt-Terapia inseridos na clínica de pacientes que têm doença renal crônica. A proposta visa também contribuir na reflexão e na prática clínica de outros psicólogos gestalt-terapeutas que vivem inquietudes e incertezas a respeito dos atendimentos que são realizados na Unidade de saúde de hemodiálise, cujos pacientes obrigatoriamente precisam realizar um tratamento regularmente, por muitos anos, com piora de sua saúde e qualidade de vida. Destacam-se conceitos da Abordagem Gestáltica, que auxiliam na compreensão das possíveis contribuições da Gestalt-terapia nesse contexto, que são: Contato, Relação Terapêutica, Aqui e Agora e Experimento. A vivência destes conceitos, com os pacientes no dia a dia de uma Clínica de hemodiálise, são os mais desafiadores, por este motivo, a escolha dos mesmos.
Palavra-chave:Formação do Gestalt-terapeuta; Hemodiálise; Doença Renal Crônica.
ABSTRACT
The objective of this article is to divide my experiences as a psychologist inserted in hemodialysis units, as a student of the Specialization Course in Clinical Psychology - Gestalt-Therapy (Individual, Group and Family) held at IGT - Gestalt Therapy and Family Care Institute. One of the relevance of this work is the scarcity of bibliography of Gestalt-Therapy anchored psychologists inserted in the clinic of patients who have chronic kidney disease. The purpose of this proposal is to contribute to the reflection and clinical practice of other gestalt-therapist psychologists who have concerns and uncertainties regarding the care given at the hemodialysis health unit, whose patients are obliged to have a regular treatment for many years with Worsening of their health and quality of life. We emphasize concepts of the Gestalt Approach, which help in understanding the possible contributions of Gestalt therapy in this: Contact, Therapeutic Relationship, Here and Now, and Experiment. The experience of these concepts, with the patients in the day to day of a Clinic of hemodialysis, are the most challenging, for this reason, the choice of the same ones.
Keywords:Gestalt Therapist Training; Hemodialysis; Chronic Kidney Disease.
INTRODUÇÃO
Durante os dois últimos anos da minha graduação em psicologia, estagiei no Hospital Federal de Bonsucesso na Cidade do Rio de Janeiro no setor de nefrologia. Esta é uma especialidade que cuida de doenças dos rins. Neste setor de nefrologia, deparei-me com um contexto do qual, até então, nunca havia ouvido falar, a clínica do indivíduo que tem uma doença renal crônica1 (DRC). Por se tratar de um hospital de alta complexidade, atende pacientes quando a doença renal está no nível agudo e/ou crônico, também conhecida pela nomenclatura – Doença Renal Estágio IV e V. Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia, na fase aguda, o rim tem a sua função comprometida, mas com dieta e medicamentos específicos o paciente consegue prolongar a função renal por muito tempo. Já na fase crônica, a pessoa tem um comprometimento acima de 80% em sua função renal, necessitando da substituição do mesmo. Esta patologia no grau V não contempla uma expectativa de cura, mas sim a manutenção do estado crônico submetendo o paciente a modalidades terapêuticas de substituição renal, que são: diálise, hemodiálise e transplante2.
Assim que me formei, fui convidada para ser a psicóloga responsável do setor Transplante Renal do Hospital São Francisco de Assis, também na Cidade do Rio de Janeiro. Neste trabalho, vivi situações com a tríade, “saúde-doença-morte”, que reverberavam tanto em mim como em toda a equipe. Estas experiências geraram em mim a necessidade de capacitar-me, de buscar recursos técnicos e pessoais para lidar com este contexto supracitado. A princípio, fiquei em dúvida entre cursar a Especialização de Psicologia hospitalar ou a de Gestalt-Terapia. No entanto, escolhi fazer a Especialização em Psicologia Clínica – Gestalt-Terapia (Indivíduo, Grupo e Família) realizado no IGT – Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar, por considerar as ferramentas da mesma, substanciais e amplas, oferecendo-me suporte para atender, além do indivíduo adulto, a grupos e famílias.
Após esta experiência de trabalho no Hospital São Francisco de Assis ingressei na rotina de três clínicas que oferecem o serviço de hemodiálise, nas quais estou até o momento. Nestas clínicas os pacientes realizam o tratamento hemodialítico três vezes semanalmente por quatro horas. O presente trabalho parte de minhas experiências numa população de uma média de 300 pacientes inseridos em clínicas em bairros diferentes na Cidade do Rio de Janeiro. Clínicas situadas na Zona Norte, Zona Oeste e Centro da Cidade, redundando em desafios e peculiaridades diversas. Cito por exemplo, como um desafio, o desgaste emocional do paciente pelo fato de sua moradia ser distante da clínica. Este problema afeta sua adesão ao tratamento, ou seja, as faltas começam a ocorrer e consequentemente, comorbidades surgem mais rapidamente. Outro fator relevante é o poder aquisitivo do paciente. A maioria passa a depender de benefício do INSS (Instituição Nacional do Seguro Social) ou se aposenta. A preocupação financeira constante, a escassez de recursos para alimentar-se, comprar suplementos e medicações diversas, causam a sensação de vulnerabilidade no paciente e em sua família.
Joseph C. Zinker (2001, p.286) me aguçou com suas perguntas: “Por que escolhemos a abordagem gestáltica em vez de outras numerosas terapias? O que significa ser um Gestalt-terapeuta? O que dentro de nós ressoa com a Gestalt-terapia?” A escolha da abordagem da Gestalt-terapia, como opção de referência para o trabalho clínico, veio como resposta a estas perguntas fundamentais. Então, dizer que sou uma psicóloga Gestalt-Terapeuta e que meu cliente faz psicoterapia na abordagem citada é afirmar que:
"Nossa prioridade é a busca de uma totalidade perdida, uma vez que problemas mentais são disfunções de uma totalidade não vivenciada [...] Fazer Gestalt não é tentar cicatrizar feridas antigas, mas olhar para elas e a partir delas fluir para uma nova pessoa que mora dentro de nós, deixando de lado e para trás velhos olhares, cheiros antigos, sensações perdidas, toques que não significam mais nada, pois o remédio da cicatrização é fluir para um amanhã apesar de todos os riscos"(PONCIANO, 2006, p.137-138).
JUSTIFICATIVA
Antes de apresentar os argumentos para justificar a construção deste artigo, necessário se faz destacar que, no corpo textual, o uso da primeira pessoa do singular será constante neste trabalho, como já escrito desde a introdução. Apesar de essa opção ser contrária ao que é apregoado na maioria dos manuais acadêmicos (ALMEIDA e MIRANDA, 2009, p.81), optei por esse caminho por me parecer a proposta mais adequada para denotar a pessoalização e, por conseguinte, aproximar o leitor do que foi vivido nas clínicas de hemodiálise. Bem como, marcar uma escrita coerente com as características retóricas próprias da abordagem teórica adotada pelo autor (ALMEIDA E MIRANDA, 2009, p.82). Neste caso, o artigo em questão é de base teórica da abordagem gestáltica e exige um discurso menos objetivista e mais pessoal. Cito como exemplo o artigo de Nilma Soares Barros (2015) e a dissertação de mestrado de Marcelo Pinheiro da Silva (2015, p.20-21) que fizeram esta escolha.
Barriceli e Oliveira (2009, p.89) sinalizaram para o fato de que essa escolha é encontrada em alguns textos acadêmicos, mas é uma decisão que precisa ter o aval do (a) orientador (a), o que ocorreu no presente artigo.
É comum o psicólogo ser inserido na rotina de uma Clínica de Hemodiálise, sem ter tido treinamento suficiente para trabalhar. Este preparo não diz respeito a tempo de formação e sim a escassez de uma correlação de material escrito com a prática de forma sistematizada na referida área. Eu sofri esta angústia no início do período de meu estágio no Hospital Federal de Bonsucesso. Mas por se tratar de estágio, as dúvidas e erros eram inerentes e aceitáveis ao processo de aprendizado. Neste período busquei material escrito sobre o trabalho neste tipo de ambiente nos indexadores Pepsic e Scielo baseados na abordagem Cognitivo Comportamental, que era a teoria que embasava o trabalho de minha supervisora à época. Naquele momento não encontrei artigos que me satisfizessem a curiosidade e necessidade de mais embasamento. Participei de supervisões em que foram ensinados a mim conhecimentos oralmente e li algumas apostilas redigidas pela própria supervisora. Esta forma de aprendizado, por assim dizer quase que artesanal, do mestre para o aprendiz (AUGRAS, 1986) não é multiplicador de conhecimento de forma maximizada, ou seja, apesar de ser rico e consistente, o seu alcance é limitado. A publicação de artigos em revistas científicas poderia favorecer essa multiplicação de conhecimento.
Durante o estágio, por estar em um hospital de alta complexidade, com inúmeras demandas, não havia tempo suficiente para estudos e reflexões teóricas aprofundadas. Este contexto favoreceu que à época nós também não produzíssemos trabalhos para serem publicados, que poderiam servir de auxílio para colegas de outras instituições.
No momento em que fui contratada como psicóloga responsável do Transplante Renal do Hospital São Francisco de Assis, como relatado acima, minha complacência com os erros (característica presente no estágio) perdeu o sentido. Minhas crenças, indagações, expectativas mudaram. Tanto eu como a instituição que me contratou esperava de mim, no exercício da profissão, um conhecimento mais sedimentado e maior segurança. Eu precisava de um suporte, de uma visão mais clara do meu trabalho, do que era ou não possível no meu dia-a-dia no hospital. Já no meu percurso do trabalho concomitantemente com a Pós-Graduação em Gestalt-terapia tive dificuldade de encontrar material escrito referente à prática com o viés da abordagem recém-escolhida por mim. Pois, diante da experiência vivida com a abordagem cognitivo comportamental, percebi minha necessidade de um olhar mais flexível e singular diante de cada cliente, e que valorizasse a relação terapêutica. O que encontrei na Gestalt-terapia.
Desafiada a colocar em prática a Gestalt-terapia apreendida, tentei, errei, encontrei, desencontrei, construí e registrei. Pretendo compartilhar minhas reflexões e acredito que as informações contidas aqui venham a ser úteis e somar para que outros psicólogos enriqueçam o seu olhar e se encantem com as possibilidades propostas aqui.
Por ter encontrado apenas um artigo sobre o tema proposto, de Adriana de Carla Silvestre Krüger (2008) com o título “O Olhar do Gestalt Terapeuta numa Unidade de Diálise”, ousei fazer sozinha a priori, para em seguida amadurecer e lapidar as minhas ideias com a minha orientadora. Acredito que dividir minhas experiências irá auxiliar na reflexão e na prática clínica de outros psicólogos que vivem inquietações e dúvidas com os atendimentos em um ambiente que tem uma rotina tão singular e com pacientes com aspectos específicos.
OBJETIVO
O objetivo deste artigo é relatar a minha experiência no trabalho em unidades de saúde com indivíduos que têm uma doença crônica nos rins ao mesmo tempo em que curso a Especialização em Gestalt-terapia. Dividir com os leitores o meu conhecimento e desta forma, dilatar o entendimento da prática de um Gestalt-terapeuta. Relatar como o curso ajuda-me, oferecendo ferramentas para dar suporte emocional a mim, aos pacientes e à equipe de saúde, estabelecendo intervenções mais consistentes e mais ricas que promovam a transformação dos indivíduos, assegurando a autonomia e dignidade dos mesmos.
METODOLOGIA
Para construção deste artigo respaldei-me na leitura dos textos e livros indicados pelos professores durante a Especialização em Gestalt-Terapia, bem como de artigos e monografias publicados na Revista Virtual IGT na Rede. Minha pesquisa incluiu revisão bibliográfica nos indexadores Scielo, Pepsic, Periódico Capes, Latindex, Clase, Psicodoc, Google acadêmico e também nas revistas virtuais de Gestalt-terapia a seguir: Revista IGT na Rede, Revista da Abordagem Gestáltica (Goiânia) e Aware (Florianópolis) com as palavras chaves: “Gestalt-terapia, Hemodiálise e Doença Renal Crônica”. Estes levantamentos apontaram a escassez e insuficiência de bibliografia de psicólogos atravessados pela Gestalt-Terapia inseridos na clínica do DRC. Encontrei apenas um artigo, citado acima que tinha um olhar gestáltico sobre este tema.
Também utilizei para a construção do presente artigo minha experiência enquanto aluna do curso de Especialização em Gestalt-Terapia. Os “workshops”, supervisões e a minha relação com a turma, contribuíram significativamente para o meu crescimento pessoal e como Gestalt-terapeuta, influenciando os meus atendimentos. Por isso, o artigo, quase em sua totalidade, é uma “costura” dos conceitos da Gestalt-terapia e minhas experiências com a vivência como aluna do curso de especialização. Ou seja, em como afetei e em como fui afetada ao longo deste período. Farei isso a partir de informações retiradas do prontuário de cada paciente que é lançado no sistema do computador das clínicas (sistema do EuCliD e Nephosys), bem como dos registros da Especialização que são: avaliação de módulo, relatórios de atendimentos e avaliação de “workshop”.
Neste artigo descrevo o meu trabalho com DRC a partir de quatro conceitos básicos da Gestalt-Terapia: contato, relação terapêutica, aqui-e-agora e experimento para favorecer a compreensão do tema.
O presente artigo tem três seções. Na primeira trago a importância do contato na relação terapêutica para o desenvolvimento do paciente e do próprio psicólogo na DRC. Em seguida explano sobre o tema do aqui e agora na clínica do DRC e na terceira seção apresento possibilidades de experimentos. Por último, as considerações finais.
Em todo o artigo incluo relatos de experiências vividas com os pacientes, bem como alguns dados técnicos relevantes da área de hemodiálise e da medicina. Para manter o sigilo, modifiquei dados referentes aos pacientes para manter a identidade dos mesmos preservada.
1 - RELAÇÃO TERAPÊUTICA, CONTATANDO QUANTO É POSSÍVEL
Para que o leitor possa compreender melhor os desafios da prática clínica e a importância do contato na relação terapêutica, apresento a seguir, de forma breve, o funcionamento básico de uma Unidade de Saúde que trabalha com DRC.
De maneira geral, o trabalho de um psicólogo em uma clínica de hemodiálise acontece conjuntamente com uma equipe multidisciplinar (Médico, Enfermeiro, Assistente Social, Nutricionista entre outros). A organização mais comum é que os pacientes sejam subdivididos em três turnos, de segunda a sábado, perfazendo uma média de 20 a 30 pacientes em cada turno. Cada paciente faz quatro horas de hemodiálise por três vezes na semana. Uns fazem o tratamento as terças, quintas e sábados e outros que fazem as segundas, quartas e sextas-feiras.
Os espaços que a equipe tem para trabalhar são: o consultório (onde os horários de atendimento são divididos entre os profissionais), a sala onde o tratamento de hemodiálise acontece (mais conhecida como “sala branca”) e a sala de espera (que é a recepção, onde ficam os pacientes que aguardam para serem chamados para dar início à hemodiálise).
Cada início de plantão, acessamos a informações sobre os pacientes, tais como: se houve óbito, transplante, internação, falta à hemodiálise, entre outras. A seguir, devemos nos conduzir à sala onde ocorre a hemodiálise para passar visita. Neste momento, onde acontece abordagem individual, e em algumas oportunidades de grupo, cada paciente tem a oportunidade de falar sobre suas demandas. Não raramente, as notícias sobre o tratamento dos pacientes afetam profundamente toda a equipe, inclusive a mim.
O paciente permanece dentro da clínica uma média de cinco meses por ano, mais de 160 dias (somando os dias de sua hemodiálise) e esta realidade acaba criando proximidade e laços afetivos entre ele e nós da equipe. Percebi que das três clínicas onde retirei os meus relatos, a média de óbito/suicídio é de cinco por mês e esta notícia é a mais impactante e que tem potencial para gerar mobilizações em mim, na equipe e nos pacientes.
Uns dos acontecimentos que mais me afetam nas Clínicas são a dor física e/ou emocional prolongada, morte/morrer e suicídio. Neste contexto o local onde o paciente dialisava encontra-se agora vazio ou com outro paciente. A história não é mais contada por ele, o sofrimento não é mais compartilhado, o medo não mais dividido, enfim, emoções e sentimentos que se foram com o paciente, mas que ainda reverberam acarretando revisitação de subjetividades atreladas à finitude e a condição que a doença crônica impõe. Segundo Pinker(2001,p.271),a morte tem muitas faces, mas sua expressão imutável é sempre de perda: do trabalho, do orgulho, do amor, da estima, da segurança, da terra natal. Para o DRC, perde-se a saúde, perde-se a funcionalidade no ambiente de trabalho, perde-se financeiramente, perde-se o papel dentro da família, perde-se a liberdade de viajar na hora que tem vontade, perde-se o vigor, perde-se a qualidade de vida.
Testemunhar este contexto de sofrimento, vivenciar a dificuldade de expressão e da fala referente à morte e ao processo de morrer cursando a Especialização em Gestalt-terapia, e fez pensar na importância das pessoas se darem conta de fazerem contato com as suas escolhas e vivências de perdas, vivências estas que são proeminentes. Joseph C. Zinker reflete sobre o papel do psicoterapeuta e escreve:
"É tentador negar a insuportável dor da perda quando nos defrontamos com ela, ou quando ficamos perdidos na escuridão e no desespero da dor. Queremos ver a dor, mas também queremos fugir dela. A pessoa que está morrendo oscila entre estes dois processos [...] O que o terapeuta faz? A afirmação e o apoio muitas vezes vêm de simplesmente se estar presente como ser humano – testemunhando plenamente os acontecimentos, sentindo e demonstrando compaixão, mas mantendo os próprios limites" (ZINKER, 2001, p.273).
O formato do curso de especialização em Gestalt-terapia ajudou-me a ampliar e aprofundar o contato comigo e com o outro. O diálogo, a troca entre os alunos sempre incentivados e acolhidos pelos coordenadores nas aulas, supervisões, “workshops”, e avaliações dos módulos, entre outros momentos preciosos do curso. Dentre os “workshops” do curso temos os que são fora do Rio de Janeiro, onde a turma juntamente com os professores fica um final de semana em uma pousada, trabalhando de forma prática e mais livre (no tempo e no espaço), assuntos pertinentes ao período da Especialização. No último “workshop” da minha turma o tema em voga foi o término do curso: fim dos encontros semanais, fim da história da turma 23, fim das dores e delícias juntos. Fomos incentivados também a revisitarmos nossas perdas no decorrer de nossa vida. Foi um momento de crescimento ímpar, pois pude me aproximar do meu olhar sobreo luto e a dor. Revisitar os meus limites e minhas dificuldades me instrumentalizou para trabalhar com as perdas de meus pacientes na clínica de hemodiálise, me ajudou a contatar o próximo que está sofrendo a dor do fim, fortaleceu-me para suportar a angústia das não respostas.
A definição de contato, como substantivo masculino, para o dicionário Aurélio é: “estado dos corpos que tocam um no outro; relação desta comunicação; proximidade, influência”. O conceito de contato para a Gestalt-terapia difere do senso comum. A teoria postula que:
"A palavra “contato” tem sido utilizada para definir o intercâmbio entre o indivíduo e o ambiente que o circunda dentro de uma visão de totalidade, visto que o organismo e o meio são um todo indivisível. Contato, desse modo, refere-se aos ciclos de encontros e retiradas no campo organismo/meios" (SILVEIRA, 2007, p.59).
A Gestalt-terapia tem uma prática psicoterápica que trabalha o “entre”, ou seja, a relação terapêutica. A melhor ferramenta de trabalho do Gestalt-terapeuta é a relação e este conceito está atrelado ao conceito de contato. Fazer contato, segundo Jorge Ponciano Ribeiro (2006, p.91) é estar presente a si mesmo. A essência do contato mais que estar em contato com o outro, é estar em contato consigo mesmo. E é impossível falar em contato sem pensar em diálogo, seguindo a mesma premissa do contato: da fala consigo sendo proporcional ao diálogo com o outro. Ponciano postula:
"Diálogo, encontro humano por intermédio da palavra. [...] Diálogo interno é aquele mediante o qual, por aproximações lógicas, caminhamos à procura das melhores soluções [...] Somente quando aceitamos nossos diálogos internos [...] estamos preparados para pronunciá-los, para deixá-los sair à campo aberto à procura do outro [...] Diálogos externos, estão em íntima conexão com nossos diálogos internos. Diálogo é entregar minha palavra para o outro e receber a dele, sabendo que a única coisa que torna duas pessoas iguais é a aceitação da diferença existente na presença viva de ambas [...] É neste sentido prático que a Gestalt-terapia pode ser definida como uma terapia que faz do diálogo o seu principal instrumento de encontro consigo, com o outro e com o mundo" (PONCIANO, 2006, p. 104-106).
A experiência, o sentimento do psicólogo na relação terapêutica é fundamental para o trabalho e é comum psicólogos fazerem uma analogia com um artista que pinta o seu objeto para descrever o afeto. (POLSTER, E; POLSTER, M.,1973).
"[...] do mesmo modo que o artista que pinta uma árvore tem de ser afetado por essa árvore específica, também o psicoterapeuta precisa estar ligado à pessoa específica com quem ele está em contato. É como se o terapeuta se transformasse numa câmara de ressonância para o que está acontecendo entre ele e o paciente" (POLSTER, E; POLSTER, N, 1973, p.35).
"Quando o terapeuta entra em si mesmo, não está apenas tornando disponível ao paciente algo que já existe, mas está também auxiliando a ocorrência de novas experiências baseadas em si mesmo e também no paciente. Isto é, ele se torna não só alguém que responde e que dá feedback, mas também um participante artístico na criação de uma nova vida" (POLSTER, E; POLSTER, 1973, p.37-38).
No decorrer do Curso, com as ferramentas apreendidas por conta da configuração da Especialização e da turma 23, foi possível o meu crescimento pessoal e profissional. Fui tendo maior habilidade para perceber os meus limites e minhas competências, causando um desabrochar para novas concepções nas relações e na dinâmica da clínica de hemodiálise.
Fui entendendo que o meu contato com os pacientes poderia oscilar em sua profundidade e possibilidade. Na minha experiência, percebendo-me esgotada, busco alguma atividade prazerosa objetivando revigorar as minhas forças, ainda que seja apenas por minutos e nos próximos atendimentos dos outros turnos, escolho contatar de uma forma menos intensa, ou seja, dentro do meu possível. E que o fato de alguns encontros serem superficiais não significa um mau trabalho e sim do quanto eu posso estar inteira.
"A Gestalt-terapia faz do conceito de contato sua auto definição instrumental e essencial. Trabalhar o contato nas e das pessoas no mundo é o caminho a fim de que a relação cliente-terapeuta tenha visibilidade e se torne funcional e operacional. Mediante a observação cuidadosa de como as pessoas fazem contato, poder-se-á chegar a perceber quem elas são. O contato é, portanto, o existencial que nos leva à essência mesma da pessoa, na medida em que mostra como as pessoas fazem as suas escolhas e por meio delas revelam o mais íntimo de seu ser. É do contato consigo mesmo que nascem todas as possibilidades de contatos com o mundo. Quando bloqueamos o contato em nós mesmos, perdemos a dimensão do outro, que é quem primeiro nos revela nossos lados ocultos. [...] O terapeuta precisa estar inteiro com o cliente e também percebê-lo em sua inteireza" (PONCIANO, 2006, p.93-94).
Abaixo, relatarei a história de um paciente que acompanhei ao longo de nove meses transcrevendo a fala de alguns atendimentos de forma condensada, para que o leitor compreenda o trabalho de um Gestalt-terapeuta que se utiliza do contato para a psicoterapia.
Sr.Carlos, 45 anos, conta:
“Fui abandonado pela minha mãe aos três anos de idade. Vivi minha infância e adolescência em orfanatos. Todas as crianças recebiam a visita de sua família no final de semana, com exceção de três, e eu estava incluído neste número. As demais crianças ficavam me humilhando dizendo que nem minha mãe me queria e isso devastava o meu coração.”
“... eu tinha tanta vontade de comer um biscoito recheado que pegava o saco de biscoito vazio que as crianças tinham ganho de suas respectivas mães e ficava cheirando e imaginado que estava me deliciando com uma bolacha crocante e apetitosa”.
“Eu fiquei renal crônico porque passei uma época da minha vida sendo mendigo, comia o que tinha. Num determinado dia, cansado da rua, pedi oportunidade a um açougueiro para eu aprender a profissão e um teto para eu dormir em troca da minha força de trabalho. À noite, quando sentia fome eu fritava as gorduras das carnes e comia, e foi aí que eu acabei de destruir os meus rins, porque fiquei hipertenso e cardiopata de tanta gordura em meu sangue.”
O Sr. Carlos estava há nove meses tendo intercorrências com o seu acesso vascular3, dado muito preocupante, porque a pessoa que faz hemodiálise necessita de um acesso vascular definitivo, chamado fístula4, para se conectar a uma máquina onde o seu sangue é filtrado por quatro horas. Toxinas e liquido são eliminados do corpo e este processo garante que a pessoa permaneça viva. Não havia mais nenhum lugar em seu corpo com veias e artérias “boas”. Nesta situação o médico lança mão de um cateter de diálise5 que é provisório, porque se este cateter permanece muito tempo em seu corpo uma série de problemas pode ocorrer levando o paciente à morte.
Em nosso último encontro (antes de seu falecimento), que foi realizado no consultório, a condição clínica do paciente é esta: com um cateter provisório dando problemas, sem veias e artérias para fazer uma nova fistula e possivelmente com pouco tempo de vida.
Psicóloga: Como você está hoje?
Carlos: Estou apavorado, com muito medo e desanimado.
Psicóloga: Impactada com a condição do paciente o observo por alguns instantes e lembro-me de que ele falou na sessão anterior que o seu medo é da morte. E inclino levemente em sua direção e digo que tenho a impressão de que a pele de todo o seu corpo se encontra tremendo, que suas mãos não param quietas que seus olhos estão transmitindo profunda tristeza.
Carlos: É verdade, estou com tanto medo que não consigo parar de tremer.
Psicóloga: Você gostaria de expressar este medo em um desenho?
Carlos: Sim, eu gostaria de fazer isto.
Psicóloga: O paciente escolhe cores sóbrias na caixa de lápis de cor oferecida e numa folha de papel ofício branca desenha duas pessoas de mãos dadas. Pergunto quem são.
Carlos: Somos nós dois. “Quando eu entrei aqui, o medo parecia que ia me engolir, mas depois que comecei a conversar com você ele diminuiu. Te Sinto comigo...sei que não estou sozinho...sinto-me fortalecido para enfrentar novas cirurgias para tentar fazer um novo acesso vascular”.
Psicóloga: Carlos, eu estou emocionada... fico feliz de vê-lo com esperança e motivado para seguir naquilo que você precisa fazer.
O Sr.Carlos pôde contatar emoções dolorosas porque tinha certeza que havia alguém caminhando ao lado dele de forma respeitosa e amorosa. A troca na relação terapêutica transparente possibilitou Carlos experimentar novos caminhos para si.
Poder caminhar ao lado do Sr. Carlos em suas últimas horas de vida, quando o medo e incerteza eram presentes e saber que minha companhia foi reconfortante, me dá extrema satisfação de ser psicóloga gestalt-terapeuta, de ter podido contatar emoções tão difíceis para o ser humano. Mas nem sempre foi fácil ser Gestalt-terapeuta para mimo o início da Especialização surgiu o medo de perder-me de mim. Receio de não perceber o que me afetava, prejudicando o meu diálogo interno, e consequentemente o meu contato com os pacientes. A rotina de uma Clínica de hemodiálise é agitada, desgastante, sobrecarregada de tarefas e com situações inesperadas. Vale lembrar, que existe também a pressão de alcançar as metas da empresa. Os resultados precisam aparecer, que são pacientes aderentes ao tratamento proposto e consequentemente, com qualidade de vida e prontos, para se quiserem, transplantar. É um desafio administrar as exigências diárias da clínica, dos pacientes mais o cuidado comigo mantendo a minha saúde mental.
2 - O AQUI E AGORA, EXPERIENCIANDO
Segundo Jean Clark Juliano (1999, p.39), o trabalho no aqui e agora tem como objetivo interromper o desgastado processo de estar preso a uma condição antiga e inacabada que está sempre retornando, ou, ainda, de estar num eterno ensaio do que tem de ser realizado. Perls postula que:
"A terapia gestáltica é uma terapia experiencial, mais que uma terapia verbal ou interpretativa. Pedimos ao paciente para não falar sobre seus traumas e problemas da área remota do passado e da memória, mas para reexperienciar seus problemas e traumas – que são situações inacabadas no presente – no aqui e agora. Se o paciente vai fechar o livro de seus problemas passados, deve fechá-lo no presente. Porque deve entender que, seus problemas passados fossem realmente passados, não seriam mais problemas e, certamente, não seriam atuais.
Além disso, como uma terapia experiencial, a técnica gestática exige do paciente que ele experiencie a si mesmo tanto quanto possa, no aqui e agora. Pedimos ao paciente que se dê conta de seus gestos, de sua respiração, de suas emoções, de sua voz, e de suas expressões faciais, tanto quanto dos pensamentos que mais o pressionam" (PERLS, 1988, p.76).
Meus atendimentos (antes da Especialização) eram extremamente tensos, porque eu ficava dando extrema atenção às histórias. Com um volume extenso de informações eu acabava perdendo o momento em que o paciente estava com energia, ou seja, em como era o seu funcionamento perceptual. Quando comecei a ficar com o que surgia nos encontros seguindo o fluxo do momento, como por exemplo, alterações no ritmo da respiração, incongruência na fala com uma expressão física, os atendimentos se tornaram prazerosos, leves, ricos e até fáceis.
Na minha experiência acompanhando indivíduos que têm DRC, tendo a me deparar com uma questão que se repete: a dificuldade para estar sensível a si e consequentemente responsabilizar-se por quem ele é e pelo que faz no tempo que se chama agora. Percebo uma tendência a permanecer ficar falando sobre o seu passado, descrevendo o porquê ficou doente, por exemplo, e pensando em seu futuro - transplante, tempo de vida, tratamento hemodialítico. Parece muito difícil experimentar-se sensorialmente, aproveitando o seu momento presente refletido no “aqui” e no “agora” com o psicoterapeuta.
Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia, as doenças que mais destroem os rins são: a hipertensão sanguínea e a diabetes. Patologias, ditas silenciosas, que evoluíram para a falência renal, possivelmente por conta de pouca atenção aos sinais e sintomas iniciais, ou seja, pouco olhar e atenção para o seu organismo e para a sua realidade subjetiva. No contexto da DRC, é comum o sujeito se “distrair” com a doença, colocando-a como figura, explicando-se e prendendo-se em seus desconfortos, nas tristezas, angústias, agitação e limitação. No entanto, sua dinâmica intrapsíquica é subjacente à doença renal.
Além, de o paciente ter limitações para perceber-se no processo vivido no contexto de “saúde-doença”, ainda tem o “setting” terapêutico quentão propicia o paciente experienciar o aqui e agora. É um ambiente em que o sujeito se encontra realizando um tratamento complexo, delicado e que mexe com o organismo de forma agressiva, requerendo uma forma de cuidar específico conhecimento técnico também diferenciado tanto do indivíduo quanto do entorno. São ruídos, instabilidade física, preocupações reais quanto a qualidade de sua diálise e interrupções constantes por outros profissionais. São dificuldades que afetam o paciente e a mim a se presentificar.
Relatarei abaixo duas histórias de pacientes que condensam o que foi escrito acima. A primeira aconteceu no consultório da Clínica antes do paciente entrar para a hemodiálise. Nestes encontros as interrupções são bem menores, mas há o telefone que toca, outros pacientes e profissionais que batem à porta, mesmo com o aviso de que não devem entrar, e sem contar a pressão do tempo, porque não pode haver atraso de forma alguma para o início de sua hemodiálise. Também existe a condição clínica do paciente que pode não estar ideal para um trabalho psicoterapêutico. Como por exemplo, se o paciente aumenta muito o seu peso de uma sessão para a outra, causando falta de ar nele por conta de muito líquido em seu organismo.
Samuel é um rapaz de 37 anos, solteiro, faz hemodiálise há dois anos e é cadeirante há sete anos por conta de um câncer que teve na coluna. Sempre foi aderente ao tratamento hemodialítico, otimista, resiliente e aparentemente sem demandas psicológicas. No entanto, nos últimos quatro meses desenvolveu insônia, rinite, pânico em vários momentos do dia e da noite e angústia que lhe dava a sensação de algo o engolir como se fosse uma onda. Mas este último assunto achava que era espiritual, coisas de vidas passadas.
Os sinais e sintomas foram aumentando até que o paciente teve a coragem de dividir comigo seus temores. O médico da clínica já não sabia mais o que fazer com o seu quadro de rinite que agravava quando dialisava, por conta do ar condicionado forte da sala branca. Foram realizados quatro atendimentos de aproximadamente30 minutos cada um. Na primeira sessão paciente encontrava-se visivelmente tenso, todo o seu corpo enrijecido. Fala sobre a sua falta de sono, do medo que o invade todos os dias e de como suas relações interpessoais estão comprometidas. Sua angústia parece ser imensa e o acolho em suas dores e pontuo o que observo: seu sofrimento, seu corpo tenso e sua respiração picotada. Após a minha intervenção o paciente continua falando sobre suas tristezas, porém de uma forma mais profunda, como se estivesse tocando em sua alma. Conta como é difícil ser cadeirante e fazer hemodiálise e o interrompo, pedindo para descrever-me como estava sentindo no seu corpo o que estava compartilhando comigo verbalmente. Samuel descreve suas sensações compenetrado e com muito choro.
Na sessão seguinte (uma semana depois) o paciente relata que há dois dias está conseguindo dormir e conversar com os seus familiares. Proponho um experimento onde o paciente tem a oportunidade de ampliar a percepção de suas sensações (respiração, tato, audição, imaginação). Divido com o Samuel minhas impressões. Falo que observei que quando pedi para ele presentificar os joelhos e a cintura, ele mexeu muito com os olhos parecendo desconfortável. O paciente responde que sente dores em suas pernas e cintura o tempo todo. Neste momento, Samuel tem o seu rosto tomado pela dor e compartilho com ele o que estou observando, bem como minha vontade de chorar ao vê-lo com tanta dor. Pergunto se ele gostaria de dividir comigo como estava sendo sentir a dor naquele momento. Samuel me descreve com pormenores onde dói, como o dói que sente e como ele se encontra no processo de perceber-se nesta dor intensa.
Em nosso terceiro encontro, que foi apenas de 10 minutos, o paciente fala que está conseguindo dormir otimamente, que voltou a passear e não se vê mais com medo de sair de casa.
No quarto encontro, confirmo as suas conquistas e toco no assunto da sensação de algo se avolumando sobre ele. Samuel conta que até isso ele não tem mais e que numa conversa com a sua irmã, ela contou que uma de suas sobrinhas havia ido à praia mostrando a foto a seguir para o meu paciente. Numa fração de segundos, ele conta, veio à sua mente a memória de quando era criança e que quase se afogou. Falou do medo desenvolvido no dia por conta das grandes ondas e que hoje ele não precisa mais ter medo, porque afinal, ele é grande e sabe que as ondas não podem engoli-lo. Samuel, com um sorriso largo em seu rosto, diz que nossos encontros foram os causadores de tal melhora e que até tenta lembrar-se de como era este tal de volume sobre ele e que não consegue. Dou gargalhadas com o Samuel e vibro com as suas conquistas. A rinite do paciente, segundo o doutor, acabou inexplicavelmente.
Em todas as sessões Samuel ressalta a satisfação e privilégio de poder “botar pra fora” aquilo que estava como um nó dentro dele. Pontuou também a confiança depositada em minha pessoa. A escuta interessada, disponível e atenta no fenômeno tal qual aparecia (JULIANO, 1999, p.26), mais o incentivo para que o paciente presentificasse suas sensações descrevendo-as no aqui e agora criou condições para a sua cura.
O segundo relato de experiência com um paciente que desejo compartilhar, aconteceu no ponto de diálise. Eu atendi Samara por um ano, sempre no ponto onde fazia o seu tratamento. Solteira, 39 anos, fazendo hemodiálise há 03 anos, diabética desde os nove anos por ocasião da morte de sua vó. Perdera a sua visão aos 21 anos quando fazia o ensino superior na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Teve o seu noivado desfeito logo a pós a perda da visão. Conseguiu graduar-se com a ajuda da mãe que a acompanhava nas aulas, mas nunca chegou a trabalhar na área em que estudou. Tem relações familiares bastante conturbadas. Discussões entre os seus pais são frequentes e o pai não as apoia nos inúmeros tratamentos que Samara precisa realizar para manter-se viva. A paciente não se conforma em fazer hemodiálise, sente-se triste e com raiva todas as vezes em que vai para a Clínica. Parece canalizar a sua raiva em críticas aos menores desconfortos e contrariedades dentro da clínica. A temperatura do ar-condicionado que está baixa, o médico que fala sem respaldo, o profissional que não dá atenção devida às suas queixas, a demora na sala de espera sem motivo. Esta minha percepção, sobre a sua raiva, foi pontuada junto à paciente e ela a reconhecia e escolhia falar sobre o estudo de células tronco que iriam beneficiá-la, sobre o transplante duplo (pâncreas e rim) e em como a sua vida um dia voltaria a ficar boa e leve. Em muitas sessões eu louvava a sua competência em acreditar no futuro e a convidava a viver o momento presente até as cirurgias chegarem. Samara me respondia que sua vida era tão desesperadora e tão triste, que tinha de se concentrar nos seus planos, focar em seu futuro. Em um de nossos encontros, enquanto conversávamos eu aqueci a mão do braço onde tem a fístula. Senti a sua mão ficando aquecida e perguntei como ela se sentia. Samara responde que a temperatura da minha mão é gostosa e diz que se sente agradecida por eu ser generosa em aquecê-la e se importar com detalhes de seus desconfortos. Incentivei Samara a descrever suas sensações e sentimentos em virtude de sentir a minha mão aquecendo a dela e me utilizei desta experiência para propor para que em algum momento de sua rotina difícil ela entrasse em contato com suas sensações. Concluímos juntas que a hora do banho era um bom momento – e único – em que ela sentia um pequeno grau de prazer. Combinamos que ela tentaria dar atenção para cada um de seus gestos de autocuidado, presentificando cada gesto e se possível percebendo que emoções surgiam. Semanas depois, a paciente disse que preferia viver da forma que ela sempre viveu desde os 21 anos, planejando o seu futuro e não entrando em contato com o seu presente.
Sempre respeitando o ritmo emocional e físico de Samara, buscava em nossos encontros focar no fluxo presente, e Samara, em seu tempo próprio entrava em contato com as suas sensações, mas nunca se aprofundava nas suas emoções. Não tive tempo para dar continuidade à psicoterapia. Minha paciente faleceu de repente aos 40 anos de idade. Samara fez escolhas que lhe eram possíveis, e eu procurei estar ao seu lado até o fim.
3 - EXPERIMENTOS
O paciente, no ponto onde realiza a sua hemodiálise, recebe visita do médico e conta de seus sinais e sintomas sobre o seu estado físico, fala à nutricionista de suas dificuldades com a dieta discorre sobre a condição de sua fístula à enfermeira e por fim, divide comigo assuntos pertinentes à sua subjetividade.
A maioria das pessoas se acomoda na atitude de “falar sobre” como seu modo costumeiro de abordar a solução de problemas. (POLSTER, 2001, p.237). Em Gestalt-terapia usamos a ferramenta do experimento durante o atendimento. Propositalmente deixei para explanar por último sobre o conceito do experimento porque ele só é possível quando existe o contato, a relação terapêutica e o trabalho com o aqui e agora.
"[...] experimento é uma tentativa de agir contra o beco sem saída do falar sobre, ao trazer o sistema de ação do indivíduo para dentro do consultório. Por meio do experimento o indivíduo é mobilizado para confrontar as emergências de sua vida, operando seus sentimentos e ações abortados, numa situação de segurança relativa" (POLSTER, 1973, p. 238).
O experimento não pode ser confundido com exercício porque este é programado e fixo e aquele, surge dependendo da situação, do momento e da relação terapêutica. O experimento é qualquer coisa que aumente a consciência, e pode ser bem pequeno como espelhar de um gesto, o esclarecimento de algo que foi dito, uma simples pergunta ou comentário. (JULIANO, 1999, p.42). As metas do experimento, segundo Zinker são:
"[...] expandir o repertório de comportamentos da pessoa; criar condições para a pessoa se perceber criadora de sua vida e de sua terapia; estimular uma aprendizagem experimental da pessoa e elaboração de novos conceitos sobre si mesma a partir de elaborações no plano do comportamento, terminar situações inacabadas, superar bloqueios no ciclo consciência-excitação-contato, integrar compreensões intelectuais com expressões motoras, descobrir polaridades desconhecidas, integrar forças pessoais em conflito [...]" (ZINKER, 1979, p.106).
No contexto do trabalho na clínica de hemodiálise, a proposta de experimentos baseados na Gestalt-terapia, segundo os autores acima citados, vai à direção de oportunizar momentos de ampliação de percepção de sentimentos presentes. Eles emergem como proposta a partir do campo psicólogo – usuário a cada momento. Nunca como uma proposta a ser repetida com todos os pacientes indiscriminadamente. Bem longe da ideia de treinamento para o alcance de metas pré-fixadas e rígidas, que tanto me incomodavam quando estagiava.
No decorrer deste artigo fui descrevendo o ambiente das Clínicas de Hemodiálise onde trabalho e os atravessamentos que os pacientes e eu vivemos. Portanto, escrever sobre os desafios vividos no processo de experienciar neste momento do artigo fica mais fácil. Os desafios permanecem nas características ambientais e no excesso de atendimentos ao longo do dia e em suas repercussões sobre mim.
Invariavelmente, nos atendimentos realizados na sala branca, sento-me entre o espaço de uma máquina e outra, com as pernas encolhidas em um banquinho desconfortável, ou em pé, tentando me posicionar entre os galões de banho utilizados na hemodiálise e mais os fios dos equipamentos. O meu desconforto físico acaba por ser uma variável relevante e significativa, pois a proposta do experimento feita ao paciente parte da minha percepção do que está acontecendo no aqui e agora. Após cuidar de mim procuro construir com o paciente um momento aconchegante e favorável para tecer com ele um experimento.
O melhor momento de propor um experimento ao paciente precisa levar em conta, além de sua escolha em fazê-lo, algumas características do tempo em que se encontra o tratamento hemodialítico. Há momentos de sonolência, de maior instabilidade física, momento da aferição da pressão sanguínea (que se dá de duas em duas horas), da aplicação das medicações. Se o paciente estiver realizando a hemodiálise por um cateter no pescoço ou no peito não pode respirar profundamente diante de uma forte emoção, chorar, sorrir, conversar muito, pois pode comprometer a qualidade de seu tratamento.
Quanto à escolha do experimento, parto de informações surgidas na relação e de pressupostos importantes. Um deles é sempre o estado clínico do paciente. Outro fator relevante e comum é a “escolha” dos sintomas: de depressão, ansiedade e pânico para expressar o esgotamento que a hemodiálise causa. O tratamento prolongado não significa cura e nem melhora, e esta informação ocupa a mente do paciente podendo causar desesperança. Ele necessita administrar a sua rotina de trabalho, lazer, religiosa, “hobbies”, diversas consultas médicas nos quatro ou três dias da semana livres. O controle rígido da quantidade de líquido ingerido também causa preocupação. Precisa ser proporcional ao que é expelido pela urina e faz o sujeito calcular cada copo de líquido que põe à boca, incluindo caldos e sopas. A qualidade do alimento e sua forma de fazê-lo minuciosamente podem comprometer as relações sociais do paciente. Estes dois últimos itens citados fazem o DRC pensar na doença e em seu tratamento a todo instante, e associados a pouco lazer, têm potencial para deflagrar estresse e ansiedade. Existe a percepção de aprisionamento pelo fato de não poder viajar sem restrições, e quando o passeio é possível, o paciente intercala a hemodiálise com as suas atividades da viagem. O fato de ficar instalado em uma máquina por 4 horas sem interrupção, também dá a sensação de enclausuramento e de vulnerabilidade acarretando em alguns pacientes medo e pânico.
No que diz respeito à prevenção, faço um trabalho (com apoio da equipe) em nível de grupo na sala de espera. Aproveito datas comemorativas para propor um experimento aos pacientes e cuidadores onde podem utilizar materiais oferecidos, tais como: lápis de cor, tinta, desenhos para pintar, cola, “gleater” e etc. Incentivo os participantes a entrarem em contato com emoções que emergem na hora da atividade, a trabalharem com os recursos disponibilizados para se expressarem e interagirem uns com os outros dentro da possibilidade de cada um. Fico atenta às mobilizações emocionais para se necessário, realizar um atendimento individual no consultório. Nos atendimentos individuais não realizo o trabalho de prevenção, trato do paciente à medida que ele, ou alguém da equipe e/ou familiar me sinaliza.
O experimento no contexto de uma clínica de hemodiálise tem sido extremamente propício e rico como descrito nos relatos de caso acima. O convite a experimentar-se é feito ao paciente geralmente em um momento de dor, perda, morte, tristeza, revolta desespero. Não raramente, o que é sentido não é possível ser somente verbalizado de tão profundo e complexo. “Viver é experimentar sempre, e não haveria nenhuma razão para que a sessão de terapia fosse algo diferente daquilo que ocorre na vida” (PONCIANO RIBEIRO, 2006, p.110).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O convite, desde as primeiras linhas deste artigo, é caminhar comigo em meu dia a dia. Uma psicóloga cursando a Especialização em Gestalt-terapia concomitante ao trabalho em três clínicas de hemodiálise. Pensando em como o formato do curso favoreceu o meu crescimento pessoal e profissional para dar conta das demandas diárias. O objetivo foi de ampliar a compreensão da prática de um Gestalt-terapeuta na clínica do DRC através de minhas experiências. Principalmente, quando o cuidar está acima do curar, uma vez que as intervenções em muitas situações não são para resultar em uma transformação total, mas sim, garantir que o paciente mantenha a sua dignidade e autonomia. Esta aventura deu-se de forma solitária, “a priori”, em virtude da bibliografia nesta área ser quase inexistente e também pela falta de um grupo maior de psicólogos para partilhar as dúvidas, dores e delícias. Por conta desta realidade bibliográfica, o presente artigo apresenta possibilidades e experiências neste universo pouco explorado e visa mobilizar os psicólogos para a importância das partilhas com seus pares.
Ser um Gestalt-terapeuta em clínicas de hemodiálise requer do psicólogo conhecimento da rotina da clínica, da DRC, de suas comorbidades, e, acima de tudo, desenvolvimento pessoal. A escolha dos conceitos da Gestalt-terapia abordados nesta obra foram os mais trabalhados em minha pessoa. Aperfeiçoados de forma deliciosa e respeitosa por meus professores e colegas da turma 23. Diante da fragilidade e do morrer do paciente, entro em contato no aqui e agora com minha impotência e limitação, o que causa proximidade e energia na relação. Dois humanos se tocando dá a sensação de que a vida é rara. Abre caminho tanto para o paciente quanto para mim, de ver beleza no mínimo e de superar as adversidades com resiliência. Atualmente, nos atendimentos, sinto-me segura para compartilhar minhas inseguranças, se necessário. Tenho liberdade para falar da possibilidade de suicídio com o paciente e de compreender as suas escolhas. Experienciando e apreendendo os princípios gestálticos restou a vontade de multiplicar o meu conhecimento e a meu jeito de ser com os meus pacientes e com o mundo acadêmico.
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NOTAS
* Rosileia Pereira Rodrigues Alves: Psicóloga, Pós graduanda em Gestalt-terapia pelo IGT-Instituto de Gestalt-terapia e Atendimento Familiar (Individual, Grupo e Família)
1 Durante todo o artigo “DRC” se refere a Doença Renal Crônica ou Doente Renal Crônico dependendo da frase.
2 Diálise é uma opção de tratamento através do qual o sangue é filtrado das toxinas. Este processo ocorre dentro do corpo do paciente, com auxílio de um filtro natural como substituto da função renal. Esse filtro é denominado peritônio. É uma membrana porosa e semipermeável, que reveste os principais órgãos abdominais. O espaço entre esses órgãos é a cavidade peritoneal. Um líquido de diálise é colocado na cavidade e drenado, através de um cateter (tubo flexível biocompatível). Hemodiálise é um procedimento através do qual uma máquina limpa e filtra o sangue, ou seja, faz parte do trabalho que o rim doente não pode fazer. O procedimento libera o corpo dos resíduos prejudiciais à saúde, como o excesso de sal e de líquidos. Também controla a pressão arterial e ajuda o corpo a manter o equilíbrio de substâncias como sódio, potássio, ureia e creatinina. No transplante renal, um rim saudável de uma pessoa viva ou falecida é doado a um paciente portador de insuficiência renal crônica avançada. Através de uma cirurgia, esse rim é implantado no paciente e passa a exercer as funções de filtração e eliminação de líquidos e toxinas. A média da duração deste rim, chamado enxerto, dura uma média de 10 anos. O transplante não é uma cura e sim uma alternativa de tratamento, ou seja, o paciente precisa ter acompanhamento médico por toda a sua vida. (Sociedade Brasileira de Nefrologia)
3 Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia, na hemodiálise o sangue do paciente é levado de seu corpo para uma máquina para ser filtrado. Para ocorrer este processo é necessário fazer uma conexão do sistema circulatório do paciente com a máquina de diálise. Esta conexão dá-se o nome de acesso vascular.
4 Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia,uma fístula arteriovenosa (FAV), pode ser feita com as próprias veias do indivíduo ou com materiais sintéticos. É preparada por uma pequena cirurgia no braço ou perna. É realizada uma ligação entre uma pequena artéria e uma pequena veia, com a intenção de tornar a veia mais grossa e resistente, para que as punções com as agulhas de hemodiálise possam ocorrer sem complicações. A cirurgia é feita por um cirurgião vascular e com anestesia local.
5 Segundo a Sociedade Brasileira de Nefrologia, cateter de diálise é um “tubo” em forma de Y que é usado para fazer diálise quando não há uma fístula funcionante. O cateter é introduzido numa grande veia do pescoço ou da coxa ficando de fora os dois ramos do cateter, para permitir ligar o doente à máquina de diálise.
Endereço para correspondência
Rosileia Pereira Rodrigues Alves
Endereço eletrônico:roselebe@yahoo.com.br
Recebido em: 20/12/2016
Aprovado em: 08/12/2017