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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. v.6 n.2 Florianópolis dez. 2006
ARTIGOS
Pesquisa participante como opção metodológia para investigação de práticas de assédio moral no trabalho
Participant research as methodological option for the inquiry of harassment at work
Leandro Queiroz SoaresI; Mário César FerreiraII
IMestre em Psicologia Social e do Trabalho, Universidade de Brasília (leandrosoares@unb.br)
IIDoutor em Ergonomia, Universidade de Brasília (mcesar@unb.br)
RESUMO
o presente artigo tem como objetivo principal a proposição da pesquisa participante como uma apropriada opção metodológica para a investigação de práticas de assédio moral no trabalho. Secundariamente, objetiva apresentar, de maneira sintética, revisões acerca do fenõmeno assédio moral no trabalho e da abordagem metodológica pesquisa participante. Problematiza, fundamentando-se em reflexões acerca das características do assédio moral no trabalho, a predominância instrumental em alguns dos principais estudos, e destaca, baseando-se em pressupostos da pesquisa participante, algumas das vantagens e contribuições ímpares que a referida abordagem pode trazer para os estudos da temática em questão.
Palavras-chave: assédio moral no trabalho; pesquisa participante; instrumentos de pesquisa.
ABSTRACT
Participant research as Methodological Option for the Inquiry of Harassment at Work. The present article has as main objective the proposal of the participant research as an appropriate methodological option for the inquiry of harassment at work. Secondarily the article objective to present revisions concerning the harassment at work and the methodological approach researches participant in synthetic way. Basing on reflections concerning the characteristics ofthe harassment at work. it is discussed the instrumental predominance in some ofthe main studies, and beingbased on estimated of the participant research, they are detached some of the advantages and uneven contributions that the related approach can bring for the studies of the thematic.
Keywords: harassment at work; participant research; research instruments.
1. Introdução
Objetivamos. no presente texto. propor a pesquisa participante como uma apropriada opção metodológica para a investigação de práticas de assédio moral no trabalho. Para tanto, recorreremos, inicialmente, à apresentação sintética de alguns dos principais elementos oriundos da revisão acerca do assédio moral no trabalho e, igualmente. acerca da pesquisa participante, para. em seguida. expor argumentos que visam a sustentar a nossa proposição.
Breve revisão acerca do tema assédio moral no trabalho O assédio moral no trabalho constitui uma das modalidades de violência no trabalho (Chappel; Di-Martino 1999,2000; Jacobs, 2000; Di-Martino. 2002; Di-Martinho; Hoel; Coopero 2003). Embora se configure como um fenômeno social vetusto, chegando a ter suas origens emparelhadas por alguns com as origens do próprio trabalho (Leymann, 2000; Hirigoyen, 2002, 2003; Aguiar, 2003; Guedes, 2003; Heloani, 2004; Abajo-Olivares, 2004), a primeira publicação a fazer oficialmente referência a esse tema surgiu somente em 1976, nos Estados Unidos, intitulada The Harassed Worker. de autoria de Brodsky (Einarsen, 2000; Hirigoyen, 2002; Cowie et al., 2002). Entretanto, somente no início da década de 80 do século passado é que o fenômeno passou a ser considerado mais recorrentemente, quando o psicólogo alemão radicado na Suécia Heinz Leymann adotou o termo mobbing. Esse termojá havia sido empregado anteriormente pelo etólogo austríaco Konrad Lorenz (Lorenz, 2001) e pelo médico sueco Heinemann (apud Hirigoyen, 2002) com outras conotações para fazer referência ao assédio moral que identificou em contextos organizacionais, denominando-o também de psicoterror ou terror psicológico (Leymann, 1996; Leymann; Gustavsson apud Leymann, 2000; Einarsen, 2000; Hirigoyen, 2002).
Seguiram-se à referida proposição diversos estudos acerca do fenômeno, algumas vezes sob nova terminologia e com algumas especificidades conceituais. Dentre os termos mais comumente empregados, além de mobbing e assédio moral no trabalho. destaca-se o bullying (Olweus apud Schuster. 1996). Porém, além desse, diversos outros termos que apresentam considerável grau de correlação com o fenômeno foram propostos: scapegoating, proposto por Thylefors; health endangering leadearship, proposto por Kile; workplace trauma, proposto por Wilson; petty tyranny, proposto por Ashforth, todos eles são citados por Einarsen (2000); whistleblowing (Krull, 1996; Kondro, 2000; Mc Donald; Ahern, 2000; Bucka; Kleiner, 2001; Hirigoyen, 2002), coacção moral (Di-Martinho; Hoel; Cooper, 2003), ijime (Hirigoyen, 2002), moleste psicologiche (Di-Martino; Hoel; Cooper, 2003), collana mobbing (Ege apud Guedes, 2003), acoso psicológico (DiMartino; Hoel; Cooper, 2003; Abajo-Olivares, 2004), acoso moral (Abajo-Olivares, 2004), maltrato psicológico (Di-Martino; Hoel; Cooper, 2003) e harassment (Brodosky apud Cowie etal., 2002). Foi com a tradução desse último termo para o francês (harcélement moral), realizada por Hirigoyen (2002, 2003), que informações sobre o fenômeno se disseminaram mais amplamente, não somente na França, mas também em diversos outros países. No Brasil, esse termo foi oficializado por intermédio do Projeto de Lei de número 0425/1999 - transformado posteriormente na Lei Municipal de São Paulo de número 13.288 - e pelos estudos iniciados por Barreto (2003).
Diversos autoresjá propuseram distintas definições para o assédio moral no trabalho, tais como Leymann (1996), Einarsen (2000), Brodsky apud Einarsen (2000), Björkqvist; Österman; Hjelt-Bäck apud Einarsen (2000), Adams apud Einarsen (2000), Vartia apud Einarsen (2000), Hirigoyen (2002), Olweus apud Cowie etal. (2002), Piñuel y Zabala (2003), Guedes (2003), AbajoOlivares (2004), dentre outros. Não obstante reconhecermos a relativa validade de todas elas, cujos autores destacam-se como alguns dos mais referenciados na literatura especializada, realizarmos uma análise de conteúdo categorial temática (Bardin, 2002) do conjunto das 11 proposições citadas e constatamos alguns "limites conceituais" quanto ao sentido do fenômeno. Dentre as principais justificativas para tal conclusão, destacamos: (a) muitas das definições não explicitam os objetivos do assédio moral no trabalho; (b) dentre as que apresentam os referidos objetivos, ora os relacionam de maneira incompleta, ora os confundem com algumas das repercussões provocadas aos assediados; (c) algumas delas estipulam uma periodicidade rigorosa para que determinada situação possa se enquadrar como assédio moral no trabalho - ao menos uma vez por semana e no transcorrer de no mínimo 6 meses; dentre outras. Em face de tais "limites conceituais", portanto, propomos a definição a seguir, buscando abarcar os elementos que entendemos como fundamentais para a compreensão do assédio moral no trabalho, a saber: fenômeno em si mesmo; meios de manifestação; principais protagonistas; periodicidade; objetivos e etapas; repercussões para os assediados. Assim, a expressão assédio moral no trabalho refere-se a um conjunto de ações violentas (de natureza psicológica ou física) infligidas, de maneira freqüente, por um(a) ou mais trabalhadore(a)s contra, principalmente, um(a) outro(a) trabalhador(a), com o objetivo de isolá-lo(a), desestabilizá-lo(a) e (ou) difamá-lo(a) e, por fim, excluí-lo(a) do contexto de trabalho, podendo lhe causar consideráveis danos de natureza física, afetiva, cognitiva e (ou) social.
Explicitada a definição proposta e adotada aqui para a compreensão do assédio moral no trabalho, cabe apresentar, nos parágrafos seguintes, algumas das principais características desse fenômeno, comumente apontadas na literatura.
Do ponto de vista tipológico, grande parte dos estudos tem apontado para a existência de basicamente três modalidades de assédio moral no trabalho: (a) o assédio moral descendente (também denominado vertical e estratégico), que ocorre em situações nas quais um (ou mais de um) trabalhador, que se encontra em uma posição que lhe confere certo nível de poder dentro da escala hierárquica, assedia moralmente um outro (ou outros) trabalhador que se encontra subordinado direta ou indiretamente a ele; (b) o assédio moral horizontal, que ocorre nas situações em que um (ou mais) trabalhador assedia moralmente um outro (ou outros) de nível hierárquico similar; e (c) o assédio moral ascendente, que ocorre quando um (ou mais) superior hierárquico é assediado moralmente por um (ou mais de um) subordinado (Leymann, 1996; Hirigoyen, 2002, 2003; PiÍÍue! y Zabala, 2003; Guedes, 2003; Aguiar, 2003; Abajo-Olivares, 2004). Salientemos que Hirigoyen (2002) sugere, ainda, a existência de uma quarta modalidade de assédio moral no trabalho: o assédio misto, que se daria quando todo o grupo de trabalho, incluindo simultaneamente superiores e colegas de mesmo nível hierárquico, assediam moralmente um determinado trabalhador.
No que diz respeito às causas, evidencia-se um consenso entre diversos estudiosos do assunto acerca do fato de o assédio moral no trabalho, tal como outras modalidades de violência no trabalho, caracterizar-se por uma complexa teia causal. Dentre algumas das causas mais recorrentemente mencionadas, podemos citar: inveja, por parte do assediador, de características como beleza,juventude, riqueza, relações influentes e nível de escolaridade do futuro assediado (Hirigoyen, 2003); decisão por parte do assediador de impedir a ascensão do futuro assediado na escala hierárquica, muito provavelmente em função da suposta ameaça que o último representaria na percepção do primeiro (Abajo-Olivares, 2004); "estratégia empresarial", motivada por razões diversas, com vistas a provocar demissões voluntárias (Piñuel y Zabala, 2003; Guedes, 2003; Abajo-Olivares, 2004); dificuldade, por parte do assediador, em aceitar diferenças, sejam referentes à idade, ao gênero, à raça, à nacionalidade, às posições políticas, às opções religiosas etc.; antipatia pessoal provinda de razões diversas (Guedes, 2003); retaliação contra trabalhadores que questionam as políticas de gestão (Barreto, 2005), bem como as longas jornadas e a sobrecarga de trabalho (Barreto, 2003); dentre outras.
Uma vez manifestado o assédio moral no trabalho, independentemente da causa que o tenha promovido, graves repercussões podem advir não somente para os assediados submetidos a tais práticas, mas também para a sociedade e para os contextos de produção nos quais elas ocorrem.
As repercussões do assédio moral no trabalho, para os assediados, podem se subdividir em quatro grandes grupos, não obstante poderem estar inter-relacionadas em diversas situações: fisicas, afetivas, cognitivas e sociais. Dentre as mais recorrentemente apontadas em diferentes estudos, podem ser destacadas: (a) fisicas: sintomas nervosos (como palpitações, sudoração, hipertensão arterial, sensação de falta de ar e sufocamento), distúrbios psicossomáticos (como gastrites, colites, úlceras de estômago, problemas de tireóide, falta de apetite, vertigens, náuseas, vômitos e diarréias), fraqueza, fadiga crônica, tremores, repercussões na saúde músculo-esquelética, transtornos do sono, desmaios, dores diversas; (b) afetivas: melancolia, apatia, sociofobia, hostilidade, irritabilidade, hipersensibilidade, depressão, isolamento, ataques de pânico, ansiedade, sentimentos de cólera e de insegurança, desamparo, desespero, sentimentos de vitimização, insônia; (c) cognitivas: dificuldade de concentração, perda de memôria; (d) sociais: frente aos adversos danos psíquicos provocados pelas práticas de assédio moral no trabalho, é compreensível que o mesmo sobrepuje à esfera individual e produza danos "colaterais" na vida relacional do assediado (quer seja no tocante à família, ao cônjuge, aos colegas de trabalho ou aos amigos), redução da empregabilidade do assediado, prostração econômica (advinda das dispensas continuadas ou do abandono voluntário do emprego) (Leymann, 1996,2000; Einarsen, 2000; Bjorkqvist; Osterman; Hjelt-Bäck apud Einarsen 2000; Brodsky apud Einarsen 2000; Einarsen et al. apud Einarsen, 2000; Hirigoyen, 2002, 2003; Pinuel y Zabala, 2003; Guedess, 2003; Abajo-Olivares, 2004; Barreto, 2005; Caixeta, 2005). Ainda fazendo referência às repercussões do assédio moral no trabalho sobre a saúde dos assediados, vale ressaltar que, independentemente de o assediado superar quaisquer das repercussões relacionadas acima que por ventura venha a sofrer, ele tende a carregar consigo, após a situação de assédio, uma verdadeira "ferida psíquica" de dificil cicatrização. Tal "ferida" pode vir acompanhada de tamanha dor que, conforme ressaltam muitos dos estudiosos, o assediado pode chegar a atentar contra a própria vida (Leymann, 1996; Chappel; Di-Martino, 2000; Hirigoyen, 2002, 2003; Barreto, 2003; Abajo-Olivares, 2004).
As repercussões do assédio moral no trabalho para os contextos de produção de bens e serviços (Ferreira; Mendes, 2003), tão comumente administrados por gestores ávidos por produtividade e lucratividade exacerbadas, poderiam ser bem retratadas ao se considerar um único fato: um trabalhador abatido pelo assédio moral no trabalho tende a produzir menos ou, até mesmo, deixar de produzir (quando afastado por doença ocupa cional, por exemplo). De qualquer forma, é valido se computarem alguns dos números que configuraram custos financeiros para algumas empresas. Conforme os dados de uma pesquisa conduzida pela National Safe Workplace Institute em 1992, a violência no trabalho representou, nos Estados Unidos, um custo de mais de 4 bilhões de dólares americanos. Outra pesquisa, conduzida pela National Crime Victimization Survey entre os anos de 1987 e 1992 no mesmo país, estimou um custo de aproximadamente 1,8 milhões de dias perdidos por ano; na Alemanha, uma única empresa, com um montante de mil trabalhadores, calculou o custo de 112 mil dólares americanos oriundo da violência psicológica no ambiente de trabalho; outra pesquisa realizada na Alemanha estimou como custo total do mobbing um montante de 2,5 bilhões de dólares americanos; no mesmo país, sabe-se que a Volkswagen teve de pagar, há poucos anos atrás, o equivalente a 300 mil dólares para indenizar vítimas de assédio moral no trabalho (Chappel; Di-Martino, 1999, 2000; Guedes, 2003). No Brasil, em 2006, a empresa Companhia de Bebidas das Américas (Ambev) foi condenada pelo Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Norte a pagar uma indenização de um milhão de reais por dano moral coletivo, decorrente de assédio moral perpetrado contra alguns de seus empregados que não atingiam cotas de vendas estipuladas (TRT, 2006). Já no que diz respeito às repercussões do assédio moral no trabalho para a sociedade, alguns autores têm relacionado: elevado custo com saúde pública e aposentadorias precoces, redução da população ativa, aumento do índice de suicídios, dentre outros (Leymann, 1996; Chappel; Di-Martino, 2000; Guedes, 2003; Abajo-Olivares, 2004).
Conforme procuramos evidenciar por meio da definição proposta, o perpetrador do assédio moral no trabalho visa a atingir, geralmente, os seguintes objetivos: (a) isolar, (b) desestabilizar, (c) difamar e, por fim, (d) excluir o assediado do contexto de produção. Os três primeiros objetivos configuram justamente, em nosso entender, as fases que permeiam o processo de assédio moral no trabalho, cada qual caracterizada por uma diversidade de ações que expressam a intenção violenta do assediador. Sublinhemos, entretanto, que tais fases não se dão necessariamente de maneira seqüencial, bem como que não precisam ocorrer necessariamente todas para que o assediador atinja o seu recorrente objetivo último, ou seja, a exclusão do assediado do contexto de produção. Mencionemos, ainda, que certas ações podem "transcender empiricamente" à categoria teórica a que pertencem, já que, ao serem empregadas por determinado(a) assediador(a), podem responder simultaneamente, por exemplo, às intenções de desestabilização e difamação.
Nos quadros que seguem, apresentamos a caracterização que estabelecemos para cada uma dessas fases, bem como algumas das principais ações que lhes são correlatas e que têm aparecido com freqüência na literatura (Leymann, 1996; Hirigoyen, 2002, 2003; Piñuel y Zabala, 2003; Abajo-Olivares, 2004):
Para concluir esta breve revisão acerca do assédio moral no trabalho, ressaltemos, ainda, que, se tal fenômeno se manifesta e perdura em contextos de produção, é porque os indivíduos neles inseridos e impregnados por suas culturas organizacionais o permitem, seja por omissão ou participação ativa em tais situações de violência. Por esses aspectos não serem objeto do presente estudo, não nos aprofundaremos sobre eles, mas cabe ressaltar que entendemos que a lógica socioeconômica, sobre a qual se edificou a maioria de nossos contextos de produção e, conseqüentemente, se estabeleceram as complexas interações socioprofissionais (Soares, 2006), não somente favorece a manifestação do assédio moral no trabalho, como exerce papel fundamental na condução dos indivíduos para a posição de permissividade ou, em outras palavras, de banalização do mal (Ardent, 1999; Dejours, 2001). De forma a justificar parcial e brevemente tal argumentação, basta recordar que o sistema socioeconômico que submeteu o trabalho ao capital (Dobb, 1987; Marx, 2003) desenvolveu-se, em grande parte, por meio da mais brutal violência, caracterizada por genocídios, escravizações, torturas, assassinatos, rapinas, expropriações, racismo, xenofobia, imposições de culturas, ideologias, crenças etc. (Magdoff, 1979; Beaud, 1999; Delpla, 2000; Durand, 2000; Marx, 2003).
Breve revisão acerca da pesquisa participante
A pesquisa participante, como o próprio nome sugere, implica necessariamente a participação, tanto do pesquisador no contexto, grupo ou cultura que está a estudar, quanto dos sujeitos que estão envolvidos no processo da pesquisa. A expressão pesquisa participante é tida por muitos autores, conforme pontuam Brandão (1988), Silva (1991) e Harguette (2001), como portadora da mesma acepção de outras expressões, tais como pesquisa-ação, pesquisa participativa, investiga-ação, investigação participativa, investigação militante, auto-senso, estudo-ação, pesquisa-confronto, investigação alternativa, pesquisa popular, pesquisa ativa, intervenção sociológica, pesquisa dos trabalhadores, enquete-participação, dentre outros. Porém, em razão de algumas particularidades correlatas às modalidades citadas e do fato de todas apresentarem como exigência principal a participação de todos os envolvidos no processo de pesquisa, parece-nos mais razoável a sustentação de Thiollent (1986, 1987, 1997) de que existem diferentes formas de pesquisa participante, dentre as quais a pesquisa-ação, por exemplo, é uma delas.
Não há consenso em relação às origens da pesquisa participante, fato que se explica, provavelmente, em vista das diversas contribuições históricas ao seu desenvolvimento.
Thiollent apud Silva (1991) situa a aplicação da enquete operária, por Marx, em 1880, como uma das primeiras experiências de pesquisa participante, no sentido de ter sido o primeiro exemplo histórico, conforme o autor, de uma pesquisa que permitia ao pesquisador não somente se associar ao grupo investigado, mas também "inserir-se" na rede de comunicação informal do grupo, em vista da "produção" de auto-conhecimento por meio de uma problematização explícita que desvelava a dimensão política da investigação. Em outro texto, Thiollent (1987), referindo-se à origem da pesquisa-ação, menciona que a mesma tem início, no contexto da psicossociologia norte-americana, na década de 1940. Harguette (2001), por sua vez, aponta a "psicologia social de Kurt Lewin" como a desencadeadora da pesquisa participante. Alguns autores, tais como Gajardo (1986), Brandão (1988) e Silva (1991), afirmam que, especialmente na América Latina, a pesquisa participante desenvolve-se inicialmente no âmbito educacional, cujo marco pode ser ligado a uma experiência-piloto de pesquisatemática criada e implementada por Paulo Freire na década de 60 do século passado (Gajardo, 1986). Outra possível "raiz" da pesquisa participante pode ser encontrada nos estudos etnográficos (Thiollent, 1987; Brandão, 1987a; Silva, 1991), dentre os quais merece ser reconhecido como um dos primeiros e mais importantes exemplares o realizado pelo polonês Bronislaw Malinowski com os nativos de Nova Guiné, no início do século passado (Malinowski, 1976), que chega por vezes a "coroar" Malinowski como o "inventor" da observação participante (Brandão, 1987b; Laplatine, 2000; Durham apud Haguette, 2001), ou, ao menos, apontá-lo como o responsável pelo "estabelecimento científico" de tal modalidade de observação: "... o estabelecimento da observação participante intensiva como uma norma profissional teria de esperar as hostes malinowskianas." (Clifford, 1998, p. 25).
Dentre os principais pressupostos e características da pesquisa participante, alguns se destacam como essenciais, razão pela qual os apresentaremos, de maneira sintética, nos três parágrafos que se seguem.
Configura-se como alicerce de um dos pressupostos primogênitos e mais importantes da pesquisa participante a crítica que a mesma dirige ao tradicional postulado, nas ciências sociais, de "neutralidade" ou de distanciamento entre o sujeito e o "objeto" da pesquisa ("objeto" esse que, conforme Brandão (1987b) adverte, significa o outro sujeito "dissolvido" em dado). Por meio de tal crítica, consolida-se, na pesquisa participante, a prescrição não somente da inserção do pesquisador no grupo, comunidade ou cultura que pretende compreender, mas também a participação efetiva daqueles que estão a ser pesquisados no transcorrer de todo o processo de pesquisa (DEMO, 1982; Thiollent, 1986; Gajardo, 1986; Brandão, 1987a, 1987b; Le Boterf, 1987; Gianotten; De Wit, 1987; Freire, 1988; Oliveira; Oliveira, 1988; Borda, 1988; Silva, 1991; Haguette, 2001), envolvimento esse que dá a esses últimos a titulação literal de co-autores da pesquisa (Silva, 1991). Observe-se que, quando utilizam a denominação co-autores, os teóricos da pesquisa participante não estão somente a pensar nas informações que naturalmente serão fornecidas pelos membros do grupo pesquisado no transcorrer da pesquisa, mas também estão se referindo ao fato de que o processo de diagnóstico dos problemas ocorre de forma interativa ou, em outras palavras, que a problemática da pesquisa é construída em conjunto com os membros do grupo pesquisado, numa construção conjunta que aponta para mais um dos pressupostos essenciais da pesquisa participante (Le Boterf, 1987; Thiollent, 1997).
Outro aspecto-base das pesquisas de natureza participante refere-se ao fato de as mesmas possuírem, necessariamente, um caráter aplicado, já que, além de ocorrerem in loco, tratando sempre de "situações reais" (Le Boterf, 1987), demandam a . devolução do conhecimento obtido junto aos grupos com os quais se trabalhou, na perspectiva de transformação "positiva" da realidade (Gajardo, 1986, 1987; Oliveira; Oliveira, 1988; Borda, 1988; Brandão, 1988; Silva, 1991; Thiollent, 1997). Esse compromisso de modificação "positiva" da realidade assume tamanha importância no contexto da pesquisa participante, que leva Silva (1991, p. 25), fazendo referência à leitura que realizou dos Cuadernos de Investigación-Acción (n. 2), publicados pelo Centro Latino-americano de Trabajo Social, a salientar que"... se admite que a investigação participante, investigação militante, investigação comprometida etc. surgem da necessidade de produzir conhecimentos, não só para conhecer a realidade, mas também para transformá-la".
Ainda dentre os principais pressupostos da pesquisa participante que entendemos pertinente salientar aqui, destaquemos que, conforme alerta Thiollent (1987), não se trata de um enfoque unidisciplinar, mas, ao contrário, interdisciplinar, já que ela abre espaço para o entrosamento de diferentes especialidades, tais como, por exemplo, sociologia, psicologia, economia, educação e comunicação.
No que diz respeito aos instrumentos para coleta de dados adotados por pesquisadores participantes, podemos relacionar como mais recorrentes as entrevistas semi-estruturadas (coletivas e individuais), a análise documental e a observação participante. Entretanto, também podem ser encontradas pesquisas que se utilizam de entrevistas estruturadas (Gajardo, 1986), da técnica de sociodrama (Thiollent, 2005) e mesmo do questionário (Gajardo, 1986; Thiollent, 2005), sendo esse último, no contexto da pesquisa participante, rejeitado por alguns, tal como Oliveira, ao sustentarem que o formato desse instrumento"... bloqueia o surgimento de dados novos e inesperados" (1988, p. 29).
Retornando à observação participante, considerando que alguns teóricos têm se preocupado em "distanciá-la" da pesquisa participante, em razão de uma pretensa dissonância, tal como Grossi apud Demo (1982), faz-se oportuno justificar nossa posição. Embora não cheguemos a nos posicionar de acordo com a opinião de Silva (1991) de que pesquisa participante e observação participante sejam sinónimas - uma vez que compreendemos a primeira como abordagem metodológica e a segunda como instrumento - cabe salientar que, ao adotarmos a observação participante simultaneamente como um instrumento de captação de dados e de possível modificação social do meio estudado (Schwartz; Schwartz apud Haguette, 2001), estamos a entender, conforme Gajardo (1986) e Thiollent (2005) já haviam sugerido, que esta se refere à modalidade de observação comumente utilizada pelos pesquisadores participantes, mesmo porque, independentemente das críticas que alguns deles possam dirigir a esse instrumento, todos invariavelmente fazem uso de observação e necessariamente se inserem (ou já estavam inseridos) no contexto que se propõem a pesquisar.
Dessa forma, sustentamos que o problema não está no instrumento, mas sim nas intenções e na postura do observador participante, que pode perfeitamente ter como preocupação priorirária uma mudança "positiva" de situações adversas que esteja a investigar, bem como pode estar a relacionar-se sinceramente com os participantes da pesquisa de maneira "horizontal" e igualitária, e não de forma "vertical" e autoritária, encarando-os, assim, como literais co-autores da pesquisa, e não como meros informantes.
Algumas das principais razões que justificam a adoção da pesquisa participante em investigações acerca do assédio moral no trabalho
Considerando que, excetuando-se uma pesquisa que realizamos entre os anos de 2004 e 2006 (Soares, 2006), não identificamos nenhum trabalho anterior que tenha feito uso da pesquisa participante para a investigação do assédio moral no trabalho, cabe expor o percurso e as razões que nos conduziram a vislumbrá-la como uma opção apropriada para tanto.
Inicialmente, tomamos o cuidado de realizar uma análise meticulosa das adoções metodológicas habituais de alguns dos principais estudos acerca da temática. Tal percurso analítico resultou na emersão da predominância instrumental dos referidos estudos, o que, por sua vez, nos conduziu a duas constatações: (a) em sua maioria, tais estudos se bastam no uso de instrumentos de viés quantitativo (como escalas psicométricas), tais como, por exemplo, os de Masson-Maret; Steiner (2004), Fox; Stallworth (2005), GilMonte; Zurriaga (2005), além dos seguintes citados por Cowie et al. (2002): Einarsen e Skogstad; Björkvist, Österman e Lagerspetz; Baron, Nauman e Geddes; Leymann; Niedl; Zaft, Knortz e Kulla; Vartia; Einarsen e Raknes; Björkvist, Österman e Hjelt-Bäck; Einarsen, Raknes e Matthiesen; (b) dentre alguns dos principais instrumentos tipicamente utilizados, como os de Piñuel y Zabala (2003), Abajo-Olivares (2004), González de Rivera, Knorz e Zapf; Van-Dick e Wagner apud Abajo-Olivares (2004), e mesmo o renomado Leymann Inventory of Psychological Terrorization - LIPT de Leymann apud Abajo-Olivares (2004), pudemos constatar a existência de alguns "limites psicométricos" que ferem os critérios recomendados para a construção de itens, tais como os seguintes enumerados por Pasquali (1999): (a) critério da simplicidade, que prescreve que um item deve expressar uma única idéia; (b) critério de variedade, o qual estabelece a necessidade de variação da linguagem na redação dos itens; (c) critério de amplitude, o qual sustenta que o conjunto dos itens referentes a um mesmo atributo deve cobrir toda a sua magnitude; (d) critério de clareza, o qual sugere, dentre outros detalhes, evitar o uso de frases longas ou negativas, que facilmente incorrem em falta de clareza; e (e) critério de relevância, que prescreve que as frases ou expressões utilizadas devem ser consistentes com o atributo definido e com outras frases que cobrem o mesmo atributo.
Ponderando acerca das duas constatações expostas acima, chegamos a uma terceira: mesmo que todas as escalas psicométricas analisadas estivessem devidamente construídas e validadas, em estudos que visam a desvelar práticas de assédio moral no trabalho e (ou) as repercussões que tais práticas desencadeiam nos assediados e espectadores, tais como muitos dos acima referidos, a utilização exclusiva de instrumentos de natureza quantitativa é, minimamente, insuficiente. Em nossa opinião, tal modalidade de instrumento, quando utilizada em estudos com o objetivo mencionado, cumpre tão somente o papel de sinalizar a possibilidade de existência do assédio moral no trabalho. Isso significa que sustentamos ser fundamental, em tais estudos, a adoção de instrumentos de viés qualitativo, tais como entrevistas semi-estruturadas, pois, em concordância com a sustentação de González-Rey (2002, p. 1) de que "o qualitativo [ ... ] constitui via de acesso a dimensões do objeto inacessíveis ao uso que em nossa ciência se tem feito do quantitativo", cremos que somente tais instrumentos viabilizarão a possibilidade de adentrar nas sutilezas do fenômeno.
Entretanto, essa terceira constatação não nos bastou. Conforme a revisão de literatura havia nos sinalizado, uma das preocupações prioritárias - nesse ainda efêmero espaço temporal de produções acerca da temática - continua sendo a necessidade de se pôr em evidencia a "materialidade" do fenômeno. Em razão da usual "sutileza" intrincada às práticas que o configuram, diversas situações sob as quais ele, de fato, ocorre não são identificadas ou, quando evidenciadas, tendem a comportar dubiedade, já que, comumente, se baseiam nas declarações post factum do assediado e, quando muito, no relato de testemunhas que, por temerem retaliações em decorrência do testemunho sincero, ou mesmo por banalizarem a situação, acabam por não fazer "leituras" e descrições satisfatórias acerca do ocorrido. Portanto, a aplicação exclusiva de entrevistas, por maior que seja a profundidade, ainda poderia deixar resquícios de dúvidas, tanto ao pesquisador quanto aos demais atores envolvidos na pesquisa.
Foi, então, esse conjunto das análises e reflexões, em paralelo à revisão da literatura empreendida, que nos instigou a idéia de que urna investigação de cunho participativo poderia ser bastante útil para serem identificadas e testadas situações autênticas de assédio moral no trabalho e, ainda mais, que tal abordagem metodológica proporcionaria, em tal categoria de estudo, vantagens que provavelmente nenhuma outra abordagem poderia oferecer. Dentre essas vantagens, evidenciam-se como principais:
(a) Desvelar, por intermédio da observação participante, no transcorrer da convivência como membro efetivo do grupo, as práticas que configuram, de fato, assédio moral no trabalho. Lembremos que tais práticas só se caracterizam como tal pela repetição, ou quando analisadas em conjunto com uma série de outras ações do mesmo caráter, além do fato de que, se vistas isoladamente, essas ações poderiam dar a impressão, ao observador externo, por exemplo, de que se trata de "brincadeiras" despretensiosas. Com tal ressalva, queremos destacar que determinados atentados perversos só poderiam ser percebidos corno tais por membros do grupo que não somente os presenciassem no decurso do tempo, como também estivessem aptos a categorizá-los como assédio moral no trabalho (tal como um pesquisador especializado na temática e os participantes do estudo, após a "tornada de consciência" "estimulada" no transcorrer da pesquisa).
(b) Compartilhar experiências, felicidades, conquistas, tristezas, decepções, frustrações, sobrecarga de trabalho, dentre outras vivências, com os participantes do grupo estudado, o que permite, em momento posterior, uma "leitura" das "realidades" vividas como alguém de "dentro" do grupo.
(c) Estabelecer uma concreta relação de confiança e segurança, entre o pesquisador e os participantes, indubitavelmente essencial em pesquisas que tratem da "delicada" temática em questão, relação essa que certamente minimiza o risco, salientado por Gaskell (2003), de os participantes, quando na posição de entrevistados, se portarem de maneira hesitante e, com isso, expressarem opiniões superficiais ou relatos distorcidos acerca das situações transcorridas.
(d) Validar o relatado pelos assediados e testemunhas que, por diferentes razões, tal como o provável desconhecimento das características do fenômeno, poderiam apresentar informações insuficientes e interpretações equivocadas.
(e) Estimular a "tomada de consciência", por parte dos assediados e das testemunhas - como co-autores da pesquisa -, em relação à concretude das situações adversas vividas, lembrando que, conforme a literatura especializada tem destacado com freqüência, tanto os assediados quanto os espectadores geralmente não se dão conta facilmente de que estão a vivenciar uma situação de assédio moral no trabalho. Portanto, para que se libertem dessa "realidade opressora", conforme sugeriria Paulo Freire (2005), torna-se necessário emergir dela, o que é viabilizado por uma reflexão teórica acerca da mesma, para, somente então, uma "re-inserção crítica sobre" ela com os devidos elementos para uma ação transformadora.
Por fim, julgamos oportuno frisar que a proposição que configura o objetivo do presente artigo não se limitou à especulação, já que tivemos a oportunidade de testá-la empiricamente numa pesquisa que perdurou aproximadamente dois anos - de maio de 2004 a abril de 2006 (Soares, 2006). Portanto, com o intuito de reforçar as sustentações apresentadas acima, sugerimos a leitura do referido trabalho, que teve como principal contribuição científico-acadêmica justamente um teste empírico da proficiência da pesquisa participante em estudos que estejam a tratar do assédio moral no trabalho.
Conclusão
O presente artigo, ao sustentar a pesquisa participante como uma apropriada abordagem metodológica para a investigação do assédio moral no trabalho, não objetivou o estabelecimento de conclusões fechadas, mas sim a suscitação de mais indagações e reflexões de cunho metodológico para o estudo do fenômeno. Considerando o ainda incipiente tempo de estudos acerca do assédio moral no trabalho e, principalmente, o registro de um único trabalho que adotou a pesquisa participante para a investigação desse tema, evidencia-se como fundamental a realização de um maior número de pesquisas empíricas símiles. Entretanto, perante o "cruzamento" das características do assédio moral notrabalho com os pressupostos da pesquisa participante, julgamos razoável a suposição de que, talvez, somente mediante esse árduo percurso metodológico, com todos seus inegáveis desafios inerentes, se torne viável a comprovação da autenticidade de manifestação desse fenômeno. Assim, poderíamos deixar a posição de investigadores e redatores de probabilidades para a posição de combatentes desse processo desumano, que tende a reduzir trabalhadores à condição de " ... peregrinos de consultórios, em busca de alívio para a 'dor de existir'." (Barreto, 2003, p. 38).
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