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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. v.9 n.1 Florianópolis jun. 2009
ARTIGOS
Servidores públicos federais: uma análise do prazer e sofrimento no trabalho
Federal public service agents: an analysis of pleasure and suffering at work
Aline Vieira de Lima Nunes*; Samuel Lincoln Bezerra Lins
Mestrando em Psicologia Social - Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
RESUMO
O presente estudo teve como objetivo identificar fatores que proporcionam prazer ou sofrimento no âmbito do trabalho. Para tanto, questionou-se essa relação em trabalhadores de uma instituição federal, especificamente por ser pública, para conhecer como os colaboradores se sentem e reagem diante de tais situações no dia a dia do seu trabalho. Dessa forma, trabalhou-se com a teoria da Psicodinâmica do Trabalho de Dejours, a partir da prática vivenciada pelos trabalhadores desses ambientes do serviço público federal. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com sete servidores públicos federais e, através da análise dessas entrevistas pela técnica de análise de conteúdo, foi possível detectar os discursos que trabalhadores das instituições públicas apresentam. Como fator de sofrimento, eles expuseram dificuldades impostas pelo serviço público, o modo de gestão altamente hierarquizado e tomado pela racionalização burocrática, e, como fator de prazer, perceber o sucesso quando atingem metas, "apesar dos obstáculos", expressando a ambiguidade vivenciada no ambiente laboral.
Palavras-chave: prazer; sofrimento; servidor público.
ABSTRACT
The present study aimed at identifying factors that provide pleasure/suffering at the work environment. For that purpose, that relationship was questioned within workers of a federal institution, due to the fact that it was a public one, and to previous knowledge of how the collaborators feel and react to such situations in the everyday activities of their work. Dejours' Work Psychodynamics theory was employed from the experiences of those workers. Semi-structured interviews were conducted with seven federal public servants. Through content analysis of the interviews, it was possible to detect the discourses presented by public institutions workers. As a factor linked to suffering, difficulties imposed by public service and the highly hierarchical and bureaucratically taken management mode were exposed. Pleasure factors were the perception of success when goals are achieved "despite of obstacles", expressing the ambiguity that is experienced in the work environment.
Palavras-chave: pleasure; suffering; public servant.
1. Introdução
Muitos dos ingredientes essenciais de satisfação, saúde e bem-estar na vida estão intrinsecamente vinculados com o trabalho e a profissão. O trabalho pode ser considerado uma fonte de satisfação das mais diversas necessidades humanas, tais como autorrealização, manutenção de relações interpessoais e sobrevivência. Como fruto do trabalho, a compensação financeira permite que o sujeito atenda às suas necessidades básicas. Por outro lado, o trabalho também pode ser fonte de sofrimento, quando contém fatores de risco para a saúde e, de certo modo, o trabalhador não dispõe de instrumental suficiente para se proteger desses riscos (Tróccoli & Murta, 2004; Batista & cols, 2005; Rangel, 1993).
Ao ressaltar a questão prazer versus sofrimento no trabalho, foco de estudo da psicodinâmica do trabalho, fica possível observar que tal questão não se dá em apenas um ambiente específico de trabalho, mas nas diversas populações. Estudos recentes sobre a temática da psicodinâmica do trabalho trazem o problema (Assis & Macedo, 2008; Smeha & Ferreira, 2008; Almeida & Pires, 2007; Martins & Robazzi, 2006; Torres & Abrahão, 2006). Como exemplos do interesse atual sobre o tema, citam-se Sznelwar e Uchida (2004), estudiosos do contexto hospitalar, que mostram a visão específica de uma categoria dos profissionais de saúde no artigo "Ser auxiliar de enfermagem: um olhar da psicodinâmica do trabalho". Molinier (2004) traz uma análise interessante da relação entre a psicodinâmica do trabalho e a problemática de gênero no trabalho, com o artigo "Psicodinâmica do Trabalho e relações sociais de sexo: um itinerário interdisciplinar".
Diante dos pontos abordados, buscou-se traçar, neste estudo, uma breve conceituação da teoria Psicodinâmica do Trabalho e sua trajetória, contextualizando com o modo de gestão do serviço público, a fim de atingir o objetivo maior de conhecer os possíveis fatores geradores de sofrimento e prazer na categoria profissional do servidor público federal.
2. Servidor público e o modo de gestão técnico-burocrático
A denominação servidor público é utilizada, segundo Di Pietro (2003), para designar, em sentido amplo, as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos. Assim, são considerados servidores públicos: os servidores estatutários, ocupantes de cargos públicos providos por concurso público e que são regidos por um estatuto definidor de direitos e obrigações; os empregados ou funcionários públicos, ocupantes de emprego público também provido por concurso público, contratados sob o regime da CLT (Tavares Benetti & Ferreira de Araujo, 2008).
A maioria dos servidores presta um serviço do tipo intelectual (caracterizado no processamento de informações, negociações, fiscalização, ensino, pesquisa, policiamento, entre outras) e não-braçal (típico das lavouras ou das atividades repetitivas das linhas de montagem das indústrias). E, por mais que as rotinas sejam fragmentadas e estruturadas em ritos processuais rígidos, elas estão ainda alicerçadas sobre normas jurídicas complexas, por vezes contraditórias (Porto, 2006).
O contingente de servidores públicos ativos do Executivo Civil Federal do Brasil é de aproximadamente 528.000 servidores ativos, distribuídos pelos 27 estados da Federação. O Rio de Janeiro, antiga capital da República, é o estado com o maior número de servidores públicos federais, mais de 110.000 servidores, o que corresponde ao dobro de servidores da atual capital, Brasília.
Quanto aos cuidados com esse tipo de servidor diferenciado, segundo Carneiro (2008), especificamente na área da seguridade social do servidor público federal, o atual governo tem avançado não só na esfera normativa, que permite a operacionalização das diretrizes políticas nessa área específica de atuação, mas, fundamentalmente, tem se comprometido na implementação de ações interventivas que implicam melhoria na qualidade de vida e trabalho, com influência direta na realidade da administração pública federal, sobretudo no que tange a assistência à saúde suplementar e à saúde ocupacional do servidor público.
Apesar desses avanços na esfera nacional da categoria, pouco se tem estudado sobre a figura do trabalhador do serviço público por sua caracterização primordial: a ligação com o Estado e o modo de gestão peculiar que é utilizado em toda essa rede. Tal formatação demanda um olhar diferenciado por parte dos estudiosos da categoria profissional. A visão quanto ao servidor público vem sendo modificada pela necessidade do mercado atual, do aperfeiçoamento, e também pela perda do antigo "emprego vitalício", sempre tão exaltado como referência ao funcionalismo público.
As relações de trabalho entre os servidores públicos e o Estado sempre se deram de forma unilateral, de acordo com os interesses da administração pública. No final da década de 80, Fernando Collor e a imprensa proporcionaram um dos maiores ataques ao servidor público, insuflando a população contra os servidores públicos e realizando a "caça aos marajás", estigma que perdura até os dias de hoje. Para Matos (1994), esse desgaste da imagem do servidor na sociedade difama toda a categoria profissional.
A cena política do país frequentemente reforça o preconceito relacionado ao servidor publico. Especificamente, no período dessa atenção midiática, ocorreu o maior número de aposentadorias precoces da história, agravadas pelas reformas realizadas pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso. Reis (2008) informa que, durante esses governos, o neoliberalismo se manifestou na sua forma mais cruel para a reformulação da relação desses servidores com o Estado.
Historicamente, através do modelo técnico-burocrático utilizado pelas empresas estatais, instalou-se o termo "burocracia, como representação da primazia da racionalização e da rigidez quanto à utilização de regras. Weber (1997) foi um dos que buscou a melhor forma, ou o tipo ideal de burocracia, a fim de facilitar a dinâmica social em que se baseou.
Para Weber (1997), a burocracia representa o meio através do qual essa tendência à racionalização se mantém presente nas sociedades ocidentais. Esse pensador afirma que, em todas as instituições sociais, tenham elas fins materiais ou ideais, a burocracia está presente, e tais instituições se organizam atuando por intermédio de um instrumento cada vez mais universal e eficaz do exercício da dominação, que é a própria burocracia.
Como subdivisão da burocracia weberiana, a dominação racional ou legal ocorre quando o sistema de leis e normas aplicadas age judicial ou administrativamente de acordo com determinados princípios, que valem para todos os membros do grupo social. A organização fundamenta-se em normas, e a racionalização tende a reduzir a importância relativa de outras influências (riqueza, costumes, parentesco e amigos), substituindo-as por leis ou regulamentos de administração (Moraes, Filho & Dias, 2003).
O tipo do burocrata, na análise weberiana, pressupõe, por um lado, um indivíduo que age em cooperação com os outros, cujo ofício é separado de sua vida familiar e pessoal, regulamentado por mandatos, exigência de competência e conhecimento, bem como perícia. Por outro lado, a organização burocrática é hierárquica, e a admissão e a ascensão profissional se dão por meio de critérios objetivos, com predomínio da dominação racional-legal, sendo eliminados todos os elementos irracionais, não passíveis de cálculo.
Segundo Giddens (1998), o estudo de Weber sobre o tipo ideal da burocracia evidencia que o seu desenvolvimento não implica uma democratização ativa, podendo colocar-se a serviço de diversos interesses de dominação, o que o leva a propor estudos particularizados para a busca do sentido da burocratização, embora reconheça que o fenômeno burocrático e o cesarismo sejam, de certo modo, o destino inevitável de um povo governado num Estado de massas (a "jaula de ferro").
A partir da teorização de Weber, a burocracia passou a ser considerada como a causa primeira de todos os problemas que impedem o funcionamento adequado, eficiente e eficaz, das organizações, tais como bloqueio e inibição da criatividade dos empregados, atraso na tomada de decisões importantes, aumento da papelada por meio da utilização de documentos desnecessários ou inúteis, etc.
Caracteristicamente, o modelo técnico-burocrático nas organizações, derivado da adoção do modelo weberiano, corresponde basicamente à existência de normas escritas, da estrutura hierárquica, da divisão horizontal e vertical do trabalho e, finalmente, da impessoalidade do recrutamento de pessoal. Assim, os trabalhadores que se veem mergulhados no modo de gestão burocrático são influenciados, tomando para si características específicas, como morosidade e extrema regulamentação na dinâmica do trabalho.
Na atualidade, os sujeitos que trabalham em empresas estatais vivem os reflexos das transformações, as exigências do novo mercado de trabalho formal, e são impelidos a buscar outro perfil mais flexível. A demanda de estar empregável é real nessas empresas, porque ali se observa o movimento do Estado para enxugar e reduzir o quadro de vagas de trabalho.
A estabilidade no emprego, que era prerrogativa do setor público, é retirada pela alteração da sua legislação, e a política de desvalorização do sujeito é visível através do achatamento dos salários e das precárias condições de trabalho, evidenciadas na diminuição da quantidade e da qualidade dos materiais de consumo, da manutenção e compra de equipamentos, o que leva muitos a procurarem outras empresas para trabalhar (Rodrigues, Imai & Ferreira, 2001).
Apesar de vivenciarem relações menos instáveis de trabalho (menor exposição ao risco de demissão sumária), os profissionais do setor público estão expostos a outras formas de instabilidade e precarização do trabalho, tais como: privatização de empresas públicas seguidas de demissões, terceirização de setores dentro da empresa, deterioração das condições de trabalho e da imagem do trabalhador do serviço público, e responsabilização deles pelas deficiências dos serviços e por possíveis crises das instituições públicas, etc. (Lancman et al., 2007).
As empresas estatais apresentam, em sua estrutura, uma especificidade que lhes confere uma distinção nítida das empresas privadas. Elas, como outras quaisquer, possuem sua função produtiva, mas assumem contornos do Estado. Sua estruturação sempre será regida pelos planos políticos e econômicos do governo a que estão vinculadas.
Motta (citado por Lima, 1994) aponta para a centralização do poder pelo governo (federal, estadual ou municipal) e para a falta de autonomia por ele imposta. Assim, os objetivos das empresas estatais ficam sendo fixados por uma autoridade externa, e aqueles que dirigem a empresa têm dificuldade em saber o que deve ser feito e como deve ser feito, pois não são autônomos para definir os meios e os recursos financeiros, humanos e materiais necessários ao seu funcionamento. Dessa mesma forma, os empregados, em geral, possuem uma visão da organização diferente daquela dos funcionários de uma empresa privada, cujas peculiaridades diferem da realidade da instituição pública.
3. A Psicodinâmica do trabalho
O estudo dos efeitos do trabalho na vida dos indivíduos teve início logo após a Revolução Industrial e intensificou-se ainda mais nos últimos anos, depois da Segunda Guerra Mundial, adquirindo espaço, inclusive, na produção científica. O interesse dos pesquisadores por essa temática resultou na Psicopatologia do Trabalho (PPT), onde não era admitido "psicologizar" nem individualizar o problema do trabalho. Nesse período, o trabalho era considerado como uma desgraça socialmente produzida, que atingia os indivíduos, as vítimas em potencial desse processo (Athayde,1996).
Das vertentes e tendências que perpassam os estudos e pesquisas durante as últimas décadas - desde os clássicos estudos que focam síndromes que atingem a saúde mental, até a análise do campo da higiene mental do trabalho - , encontramos a contribuição de Dejours (1988), com seus estudos sobre as consequências mentais do trabalho, mesmo quando não se verificava o aparecimento de doenças mentais.
Dejours buscou responder como fazem os trabalhadores para não adoecer diante de situações de trabalho precário. Assim, a maioria dos trabalhadores consegue se manter na normalidade, buscando defesas para superar esse sofrimento, pois, mesmo quando não surgiam doenças mentais, eram constatadas consequências mentais. Esse efeito é denominado fator enigmático.
A partir dessa constatação, a investigação da psicopatologia do trabalho passou a concentrar-se na psicologia da normalidade, isto é, o objeto de estudo não mais é a doença mental, e sim o sofrimento, já que não se pode evitá-lo, e ele se fundamenta na vivência de cada sujeito. Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994) afirmam que:
O desafio real na prática para a psicopatologia do trabalho é definir ações susceptíveis de modificar o destino do sofrimento e favorecer sua transformação e não sua eliminação. Quando o sofrimento pode ser transformado em criatividade, ele traz uma contribuição que beneficia a identidade. Ele aumenta a resistência do sujeito ao risco de desestabilização psíquica e somática. O trabalho passa a funcionar como mediador para a saúde. Quando, ao contrário, a situação de trabalho, as relações sociais do trabalho e as escolhas gerenciais empregam o sofrimento no sentido patogênico, o trabalho funciona como mediador da desestabilização e da fragilização da saúde (p. 137-138).
Desse modo, a visão da Psicodinâmica do Trabalho é a de trazer as experiências de sofrimento e prazer que são expressas por meio de relações intersubjetivas, resultantes principalmente da organização do trabalho, nos aspectos relacionados mais com a atividade propriamente dita do trabalho e com as relações sociais e profissionais com a Instituição em que se está inserido. Dessa forma, aí se incluem os relacionamentos pessoais e vivências cotidianas, como também relações de subordinação.
Essa perspectiva teórica recebeu uma herança de duas outras vertentes da PPT: a ergonomia situada e a antropologia psicanalítica. Essa última, principalmente, forneceu bastante respaldo para a teorização dos mecanismos de defesas existentes entre os trabalhadores para evitar, ou até mesmo suportar, o sofrimento no trabalho.
Mecanismos como a autoaceleração da atividade (quando os empregados se sentem na obrigação de acelerar o seu desempenho para se "defender") e a "ridicularização" do medo e dos riscos presentes no trabalho (como ocorre, por exemplo, na construção civil) são costumes e hábitos que formam um sistema defensivo, dando origem ao fenômeno coletivo de trabalho (Athayde, 1996).
O coletivo de trabalho é composto por comportamentos regulados pelo grupo, fundados na cooperação e na confiança entre seus membros, para evitar que cada um por si só atribua suas regras. Cada coletivo de trabalho tem suas próprias características, que variam de acordo com a quantidade e a forma como tais condutas são reguladas e estabelecidas, e todos os membros são "obrigados" a participar, pois, afinal, são normas do grupo, e quem não se submeter a elas corre o risco de ser excluído do convívio.
Esse coletivo é um mecanismo que protege o trabalhador da loucura, ou seja, essa estratégia defensiva faz com que o trabalhador negue a realidade na qual está inserido devido à sua aceitação no grupo. Assim, todos ali estarão compartilhando das mesmas ideias, diluindo seu sofrimento, protegendo-o e, por fim, afastando-o dos problemas reais da organização, como forma de proporcionar uma sensação de bem-estar e demonstrar que o trabalho não é apenas fonte de sofrimento, mas também de prazer. Então, surge mais uma questão a ser investigada: em que condições a satisfação no trabalho é proporcionada? Esta análise das relações existentes entre o prazer e sofrimento no trabalho é o foco da Psicodinâmica do Trabalho (PDT).
Outra questão que a PDT tenta responder é como a subjetividade dos trabalhadores é solicitada e mobilizada no trabalho. Daí surge mais um conceito, o de inteligência prática, que se refere a uma inteligência atuante, ou seja, em ação. Esse conceito é expresso no próprio desempenho do trabalho, pelo trabalho. Para a PDT, a mobilização subjetiva e o grau de investimento de inteligência estão diretamente ligados com a qualidade e a produtividade do trabalho.
A inteligência prática surge da prescrição da atividade, a partir do proposto é que ela entra em ação. Podemos observá-la em qualquer trabalho, e seu desenvolvimento contribui para o potencial criativo do trabalhador, para resolução de problemas, diminuição do desgaste físico e mental e sua estimulação decorre do reconhecimento externo do seu desempenho. (Athayde, 1996, p.48)
A Teoria da Psicodinâmica do Trabalho proporcionou uma mudança na compreensão do trabalho, trazendo uma nova visão para a investigação desse objeto de estudo tão atual e enfatizado: o trabalho e suas consequências. Segundo Codo, Soratto e Vasques-Menezes (2004), "a organização do trabalho é analisada pela sua dimensão socialmente construída, subjetiva e intersubjetiva, e não pela dimensão tecnológica, tarefa-atividade, normas de produção, rotinas, etc."(p. 287).
Partindo dessa visão - da qual a PDT compartilha - , a forma de estudar os problemas da organização sai de uma perspectiva coletivista para uma visão individualizada, ou seja, não é mais uma psicologia do trabalho, e sim uma psicologia do sujeito imerso no ambiente organizacional. As doenças e transtornos do trabalho agora são mencionados pelos próprios trabalhadores através de suas respostas (percepção subjetiva) às entrevistas. Pode-se, assim, justificar a escolha metodológica do uso de entrevistas e da análise de conteúdo, como abordagens individuais ou focais (qualitativas), abrindo-se mão de questionários e de métodos quantitativos.
4. Método
4.1. Objetivo Geral
O objetivo geral deste estudo é o de investigar e identificar possíveis fatores que proporcionam prazer e sofrimento em trabalhadores de uma instituição pública federal, relacionando a sua posição com as características específicas das instituições públicas em que estão inseridos (no caso, Tribunal Judiciário). Tal objetivo pôde ser operacionalizado em: identificar a dinâmica de prazer e sofrimento em relação ao trabalho do servidor público federal e captar como os sujeitos se sentem e reagem diante de tais situações no dia a dia do seu trabalho.
A fim de atingir o objetivo proposto, foi percebida a necessidade de se considerar o sujeito do estudo como um ser bio, psico e sociocultural, que é complexo, contraditório, inacabado e em permanente transformação. No âmbito judiciário, todas essas características influenciarão no resultado do seu trabalho. Portanto, utilizou-se uma abordagem qualitativa de pesquisa, pois ela, segundo Biasoli-Alves (1998), possibilita maior compreensão dos processos pelos quais as pessoas constroem sentidos e significados, permitindo ao pesquisador uma imersão nas vivências e modos de pensar e agir dos sujeitos em relação ao tema pesquisado.
4.2. Participantes
Os participantes da pesquisa foram 7 (sete) funcionários de um órgão público federal do Judiciário, cujos cargos específicos eram os de Analistas Judiciários (n = 3) e Técnicos Judiciários (n = 4). Nesse grupo, o tempo na profissão variou de 16 a 24 anos, ou seja, eles atuam nesse modelo técnicoburocrático há bastante tempo. Todos tiveram a mesma forma de inserção na instituição (concurso público) e se colocaram como voluntários para participar deste estudo.
O procedimento de coleta dos dados obteve permissão inicial do órgão público do Judiciário, e foi realizado um contato com funcionários da instituição, apresentando-se o caráter voluntário da pesquisa e seu cunho totalmente acadêmico. Os sujeitos foram entrevistados de maneira individual e submetidos aos instrumentos da pesquisa.
4.3. Instrumentos
Para atingir os objetivos propostos, foi realizada uma entrevista semiestruturada, com uso de um gravador digital, com questões também referentes a variáveis sociodemográficas, como o tempo na profissão, a forma de inserção naquele órgão público e o cargo que ocupam. As questões da entrevista semi-estruturada foram:
- Quais as dificuldades que o serviço público impõe ao trabalho? Como se sente diante dessas dificuldades?
- Como é a relação hierárquica neste órgão público?
- Já sofreu algum tipo de preconceito por ser servidor público de uma instituição federal?
4.4. Procedimentos
O primeiro passo, de posse das respostas gravadas, foi realizar a transcrição para arquivo Microsoft Word 2003, para dar-se início à análise dos dados. Para trabalhar nos dados quantitativos do questionário sociodemográfico, foi utilizado o SPSS for Windows (14.0), a fim de se identificarem a média e o desvio-padrão do tempo de serviço na instituição.
As entrevistas transcritas foram submetidas a uma análise de conteúdo dos entrevistados, com base nos discursos latentes que surgiam, detectandose, assim, os grandes discursos presentes. Aanálise de conteúdo contou com a colaboração de quatro juízes e sua finalidade é a de produzir inferências, trabalhando-se com vestígios e índices postos em evidência (Nunes, Lins, Baracuhy & Lins, 2008).
5. Resultados
Na análise de conteúdo das entrevistas, pôde-se apreender que os servidores evocam um sofrimento relacionado às dificuldades impostas pelo serviço público, ou seja, pelo modelo de gestão altamente hierarquizado e tomado pela racionalização burocrática, no caso do técnico-burocrático. As seguintes falas demonstram uma fase dessa realidade:
Suj. 2: "Tem um monte de barreiras [...]. E, às vezes, a gente quer fazer as coisas e não consegue, tudo tem que passar pela diretoria".
Suj. 7: "Faz com que a gente fique impotente; às vezes você quer fazer, mas não consegue, e você pensa que é um entrave da própria administração, mas não é, é a burocracia."
A burocracia é a chave que move o processo de sofrimento: produz a falta de autonomia, e os servidores se mostram atados, o que gera frustração. O modelo empregado na organização, assim, constitui um dos fatores que proporcionam e caracterizam o sofrimento no trabalho. A organização burocrática tradicional possui uma hierarquia conhecida pela divisão vertical do trabalho e, muitas vezes, traz consigo a impessoalidade, também fonte de frustração e desânimo, possivelmente afetando o desempenho do servidor público.
Suj. 2: "Então, nós temos dificuldades até hierarquicamente; muitas vezes, pessoas num cargo de coordenação e de chefia imediata, elas não entendem muito esse trabalho e não têm base científica para isso, e nem estão sensibilizadas. E, muitas vezes, acontece o entrave dos nossos projetos, e os projetos ficam lá parados por conta disso".
A questão do preconceito com relação ao serviço público deve-se ao fato de os trabalhadores se verem mergulhados na 'burocracia', acabando por assimilar suas características específicas, tais como morosidade e extrema regulamentação na dinâmica do trabalho. Para o senso comum, então, foi criada a visão que um dos participantes expõe:
Suj. 1: "Uma laranja podre pode estragar o cesto, e quem trabalhava no serviço público era, em tempos atrás, taxado de marajá, e a gente ficava receoso em dizer que trabalhava aqui, mas não é verdade [...]. Aqui a gente trabalha, trabalha mesmo!".
Foram também relatados casos de doenças e transtornos gerados pelo trabalho, tais como a LER, rinites alérgicas e o estresse, com ocorrência frequente especialmente do estresse e de tipos leves de estafa. Alguns dos relatos descrevem essa questão com mais clareza:
Suj. 5: "Várias fases de execução do meu trabalho, como na fase do planejamento, execução e conclusão, onde você tem de estar com tudo em dia, os bastidores dos eventos são muito estressantes."
Suj. 4: "Meu colega de trabalho teve que ser afastado porque afetou tanto o desempenho dele aqui, que não estava dando certo. E ele estava num ponto que não sabia se o estresse era gerado no trabalho ou em casa, que estava afetando nos dois. Depois de um tempo, ele voltou e foi transferido para outro setor menos estressante".
A maioria dos servidores públicos consegue manter-se em um estado de normalidade, por meio de defesas que o ajudam a superar o sofrimento.
Portanto, pôde-se também observar que o trabalho não era fonte somente de sofrimento, mas também de prazer, seja pelo envolvimento com as tarefas desenvolvidas, seja com a equipe de trabalho. Aqui se apresenta a dicotomia prazer e sofrimento na fala de um dos participantes:
Suj. 6: "Meu trabalho me faz sentir frustrada, mas não desanimada, porque é um trabalho que, quando a gente abraça, a gente sabe que vai encontrar dificuldades".
Suj. 3: "Mas nem tudo é sofrimento; às vezes, quando a gente consegue realizar um projeto, a gente se sente feliz com isso; assim, o trabalho se torna gratificante".
A partir das observações apresentadas, o processo de prazer e sofrimento no âmbito do serviço público federal se apresenta como realidade, proveniente de fatores claros: o modelo técnico-burocrático em si e a relação de poder da divisão de trabalho (verticalizada); o estereótipo do servidor público federal, caracterizado pela morosidade; e a saúde individual afetada, no âmbito mais amplo do termo. Visualizando apenas um dos braços das instituições públicas federais, que essencialmente se utilizam do modelo técnico-burocrático, são percebidas lacunas sobre a experiência específica dessa classe de colaboradores, mas este estudo pode ser apresentado como indicativo para que problemática seja aprofundada.
6. Discussão
Pôde-se constatar, com base na análise da Psicodinâmica do Trabalho dos servidores públicos federais que participaram deste estudo, a forma como o trabalho é percebido por eles, na relação prazer e sofrimento, e como eles lidam com as adversidades e satisfações originadas no ambiente laboral.
Os resultados apresentados permitem inferir pontualmente que certas formas de sofrimento no trabalho guardam estreita relação com o serviço público federal, podendo ser encontradas em diferentes cargos e posicionamentos na hierarquia burocrática, como em Analistas e Técnicos de Justiça. Provavelmente, esse é um padrão que pode ser identificado em outras instituições públicas, especialmente federais. A psicodinâmica do trabalho, demonstrada em maior parte através das dificuldades e insatisfações do servidor público, tem seu suporte no poder de resiliência dos indivíduos ocupantes dos mais variados cargos. O prazer identificado nos servidores públicos é justificado pelos mecanismos coletivos de defesa, para manter a normalidade e valorizar o que o servidor público possui de mais clássico, tão requerido por todas as outras classes trabalhadoras nos dias de hoje: a estabilidade financeira.
À partida, tais evocações sugerem a necessidade de um diagnóstico sobre a aplicação do modelo de gestão imposto. O modo de gestão técnicoburocrático foi o carro-chefe da condição de sofrimento no trabalho dos entrevistados, com suas características mais latentes, como a hierarquia e a burocracia, tratando da importância da forma de liderar e de trabalhar as relações para um resultado de prazer que se pressupõe inerente ao trabalho exercido pelo indivíduo. Maneiras de modificar a experiência de sofrimento devem ser o foco de uma busca inicial, na tentativa de proporcionar mais o prazer no trabalho, permitindo que essa relação seja saudável para quem está inserido nesse tipo tão específico de posto de trabalho.
Como limitações do estudo, encontra-se o tamanho da amostra para o objetivo posto, pois muito se tem para descobrir enquanto se vai trabalhando com ele, e a utilização apenas do enfoque qualitativo, o que deixa de lado algumas variáveis que poderiam auxiliar na percepção mais característica do prazer e sofrimento das falas encontradas. A amostra é pequena para inferir mais incisivamente quanto à dialética do prazer e sofrimento no trabalho. Por isso, sugere-se ampliar-la, como também realizar pesquisas comparativas em diferentes setores do funcionalismo público (por exemplo, legislativo e judiciário). Outra sugestão é de se utilizar uma metodologia mesclada (quantitativa e qualitativa), para se trabalhar com escalas pontuais sobre a qualidade de vida e bem-estar, e identificar, nas falas e posicionamentos, o que caracterizaria o prazer e sofrimento no trabalho, a fim de se obter um estudo completo das problemáticas e das formas de defesa que determinado modelo de gestão organizacional pode proporcionar.
Este estudo possibilitou uma melhor compreensão da realidade e uma atenção ao que compõe a percepção do servidor público federal em relação ao seu trabalho, como uma classe de trabalhadores que está presente no dia a dia do cidadão em várias áreas de atuação do Estado (saúde, educação, poder judiciário, etc.). No caso dos trabalhadores deste estudo, por um lado, eles ocupam funções desejadas pelos aspirantes ao funcionalismo público e, por outro, são constantemente cercados de notícias da mídia que fragilizam a imagem do seu trabalho perante os cidadãos. E esse tipo de sofrimento não é encontrado no senso comum tão explícito quanto o apresentado aqui, através de uma reflexão contextual sobre o problema.
O prazer e o sofrimento estarão sempre presentes na vivência laboral. Cabe aos trabalhadores aprenderem a lidar com esse contraponto, respeitando seus limites, e, aos pesquisadores, buscarem formas de interpretar essa realidade, contribuindo não só com a promoção do conhecimento, mas também para oferecer mecanismos e ferramentas de intervenção aos profissionais que atuam na área, como psicólogos organizacionais, administradores e gestores de recursos humanos.
Referências
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