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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.11 no.1 Florianópolis jun. 2011
ARTIGO
Ser operário da construção civil é viver a discriminação social
To be a construction worker is to experience social discrimination
Livia de Oliveira BorgesI,*; Tamara Palmieri PeixotoII,*
IProfessora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH). Departamento de Psicologia. liviadeoliveira@gmail.com. http://lattes.cnpq.br/3554721183676963
IIEstudante de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). tamarap_peixoto@yahoo.com.br. http://lattes.cnpq.br/8232394258177885
RESUMO
A pesquisa objetivou estudar as discriminações e os preconceitos sociais que afetam simultaneamente a vida do operário e as práticas de gestão na construção de edificações em Belo Horizonte. Adota-se uma perspectiva de análise psicossociológica, estudando os fenômenos em seu contexto socioeconômico e político. Quanto ao método, aplicaram-se três estratégias: análise de conteúdo de 22 boletins do sindicato trabalhista, um survey com aplicação de questionários estruturados em uma amostra de 361 operários e entrevistas individuais e semiestruturadas de dois operários. Os resultados apontaram o predomínio de formas veladas do preconceito e as vivências dos operários enquanto minoria social, abrangendo o desenvolvimento de atitudes de resignação que cristalizam e naturalizam a discriminação social. O saber operário é ignorado, e é enfatizada a carência do conhecimento formal que o exogrupo domina. Aponta-se a necessidade da gestão organizacional no setor de edificações incorporar e aprender práticas sociais questionadoras, contribuindo para transformar a situação social.
Palavras-chave: operários, preconceito, condições do trabalho, perspectiva psicossociológica.
ABSTRACT
The research aimed to study the discrimination and social prejudices that affect both employee life and management practices in building construction in Belo Horizonte. A psycho-sociological perspective was adopted in which the phenomena of discrimination and social prejudices were considered in their socioeconomic and political context. As to method, three strategies were applied: content analysis of 22 labor union newsletters, a survey applying a structured questionnaire to 361 worker participants, and individual and semi-structured interviews with two workers. The results exposed the prevalence of veiled prejudices, and the experiences of workers as a social minority, including the development of attitudes of resignation that crystallize and naturalize social discrimination. The worker's knowledge is ignored and the lack of formal knowledge, dominated by the outgroup, is emphasized. This points out the need for organizational management in the building sector to incorporate and learn social practices of questioning that contribute to transforming the social si-tuation.
Keywords: construction workers, prejudices, working conditions, psycho-sociological perspective.
O presente artigo relata a pesquisa que teve como objetivo estudar as discriminações e os preconceitos sociais vivenciados por operários da construção de edificações de Belo Horizonte, enquanto componente psicossocial das condições de trabalho.
A construção de edificações: o contexto de trabalho operário
A construção civil no Brasil é um setor econômico valorizado, além de estar em um período de crescimento (Barros Neto, Fensterseifer & Formoso, 2003; Frej & Alencar, 2010; Mello & Amorim, 2009; Mello, Amorim & Bandeira, 2008; IBGE, 2008). Sua importância tem sido justificada por especificidades como: elevado efeito multiplicador, menor necessidade de investimento, utilização intensiva de mão de obra, significativa porção de investimento e reduzido coeficiente de importação, caracterizando-se por elevada nacionalização (Mello & Amorim, 2009; Sousa, 1983). As estatísticas do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE) mostram que, no período de dezembro de 2009 a setembro de 2010, o número de trabalhadores do setor aumentou 14,59%, enquanto no conjunto dos demais setores econômicos aumentou 6,67% (CAGED, 2010).
O setor segue, entretanto, apresentando problemas tecnológicos e de gestão (Mello & Amorim, 2009; Mello, Amorim & Bandeira, 2008). Assim, Mello e Amorim (2009, p. 393) assinalam que: "A produtividade europeia é 75% da americana e a brasileira é 15% da americana..." e "O prazo médio para obras de edificação no Brasil é três vezes maior do que nas construções americanas e duas vezes o despendido nas construções europeias" (p. 393). O crescimento do setor da construção civil não tem sido acompanhado proporcionalmente pelo aumento da capacidade de atrair pessoal, tornando a mão de obra escassa (Mello & Amorim, 2009; Sousa, 1983; 1994). Sousa (1983) já assinalava que o setor possui elevadas taxas de rotatividade, que geralmente são justificadas pelo caráter cíclico dos investimentos e do desenvolvimento da obra. A autora descreveu a atividade operária no segmento de edificações, identificando quatro etapas: limpeza do terreno e implantação do canteiro, fundação, estrutura e acabamento. Cada etapa da obra é realizada por equipes cujos serviços se sucedem. O duplo caráter cíclico da produção serve, então, para naturalizar a rotatividade dos operários. A gestão das empresas, contando historicamente com amplo exército de reserva, não aprendeu a combater efetivamente a rotatividade.
Para explicar a baixa produtividade do setor, Mello e Amorim (2009) elegem como um dos aspectos contribuintes a desqualificação e desatualização da mão de obra. Estes aspectos, bem como a baixa remuneração e o caráter braçal do trabalho são reconhecidamente componentes da imagem de senso comum do operário. Compete, então, indagar até que ponto o trabalho é vivenciado dessa maneira pelo próprio operário.
A organização do trabalho da construção de edificações segue uma lógica manufatureira, abarcando o caráter artesanal da produção, exigindo um longo aprendizado por meio da experiência prática e sendo dividido entre vários trabalhadores encarregados de tarefas limitadas (Sousa, 1983). O trabalhador coletivo assume, então, o lugar de artesão. Borges (1996; 1999) e Borges e Tamayo (2001) descrevem os significados atribuídos por operários da construção de edificações, abrangendo, entre outros aspectos, responder às exigências sociais, realizar-se pessoalmente no sentido de que vivenciam prazerosamente os desafios inerentes às suas tarefas e atribuir elevada centralidade ao trabalho nas suas vidas. Santos (2010) mostra os saberes tácitos construídos na experiência concreta de trabalho do servente e a identificação com as atividades de trabalho por parte de alguns entrevistados; fato que corrobora a elevada centralidade encontrada por Borges e Tamayo (2001) e por Oliveira e Iriart (2008). O caráter manufatureiro da produção e esses significados atribuídos pelo operário ao trabalho elucidam a possibilidade de desenvolvimento de vínculo com o modo de fazer e com o produto do trabalho. O rótulo, portanto, de trabalho desqualificado traduz a desvalorização social da experiência operária como a contrapartida social da valorização do saber acadêmico e formal de seus dirigentes. O operário vivencia tal desvalorização com sofrimento?
A literatura especializada indica que os significados atribuídos pelos trabalhadores, encerram sempre atributos de prazer e sofrimento inter-relacionados (Barros & Mendes, 2003; Borges, 1996; Borges & Tamayo, 2001). Da mesma forma que Borges (1996; 1999) e Borges e Tamayo (2001) relataram aqueles significados atribuídos ao trabalho pelo operário, já mencionados, mostraram também que abrangem conteúdos, agrupados no fator designado por Esforço Corporal e Desumanização, como trabalhar é pegar no pesado, é executar tarefas apressadamente, sentir-se tratado como animal ou máquina, fazer esforço físico, ser humilhado e se sentir discriminado. Oliveira e Iriart (2008) mencionaram categorias semelhantes: trabalho arriscado, pesado, desvalorizado, discriminado e sem futuro. Conteúdos como esses revelam que as vivências operárias remetem à existência de preconceito e à experiência da discriminação social, no que diz respeito a como sentem, percebem e reagem. Definir, por exemplo, que trabalhar é pegar no pesado, pode representar a incorporação do preconceito e a resignação e, ao mesmo tempo, valorizar o endogrupo, representando uma forma de revidar e tornando o trabalho intelectual um não trabalho.
As reações operárias à discriminação social, no nível individual, aparecem também em registros de Sousa (1983) e Iriart e colaboradores (2008), segundo quem os operários gostariam que seus filhos estudassem para "conseguir coisa melhor" (fala do operário em Iriart et al., 2008); e na vergonha que alguns vivenciam de ser operários (Oliveira e Iriart, 2008), de forma que, no momento de sair do espaço do canteiro de obra, tentam dissimular sua condição no vestir (Sousa, 1983). Há, portanto, uma consciência que são desvalorizados socialmente.
Santos (2010) descreve a discriminação vivenciada pelos serventes, reportando-se à fala dos mesmos em que ser servente é estar "correndo atrás" para ser oficial. Ou seja, deixar a condição de servente.
O discurso, que os categoriza de mão de obra desqualificada, é incorporado pelos operários, fortalecendo a resignação e reproduzindo as discriminações nas próprias relações entre eles. Assim, os serventes entrevistados por Santos (2010) relatam o tratamento humilhante e discriminante recebido de alguns encarregados e mestres e os rótulos utilizados entre eles, como "serventes nó-cego" (p. 98).
Assim, o rótulo de trabalhador desqualificado pode ser uma fonte de sofrimento para o trabalhador, que se considerando portador de tal traço, se submete às formas autoritárias de gestão por falta de alternativas, resignando-se (Barros & Mendes, 2003; Borges & Tamayo, 2001; Iriart et al., 2008; Santos, 2010; Sousa, 1983; 1994).
Do ponto de vista do empregador, o perfil educacional do trabalhador e a existência de amplo exército de reserva têm, historicamente, justificado práticas de baixa remuneração, negação de direitos trabalhistas e a baixa profissionalização da gestão de pessoas (Sousa, 1983; 1994). A categorização do operário da construção civil como mão de obra desqualificada, portanto, tem um componente ideológico, útil para justificar a dominação. Compete então indagar: o que a teorização sobre discriminações e preconceito sociais pode contribuir na compreensão de tal realidade?
Preconceito e discriminação social
Segundo Belo, Souza e Camino (2010), a partir da década de 1980, as teorias sobre preconceito e discriminação social se desenvolveram em duas vertentes - a Psicologia Social Psicológica e a Psicologia Social Sociológica - refletindo o que ocorre na Psicologia Social como um todo (Alvaro & Garrido, 2006a). A primeira vertente evidencia o pensamento em favor do grupo de pertencimento e a minimização das qualidades do exogrupo; a segunda situa o preconceito nos processos sociais de exclusão/inclusão social e busca compreender a discriminação a partir de conflitos sociais e embates ideológicos. Nessa vertente, portanto, o preconceito supõe a existência de um grupo excluído ou tratado como minoria.
Tajfel (1983) ressalta que não é a quantidade de membros que define a condição de minoria de um grupo social, mas antes sua posição social. Complementando a definição, elucida algumas características como: constituírem setores subordinados de sociedades complexas; possuir traços depreciados pelos grupos dominantes, existir vínculos entre os membros baseados nos traços e incapacidades compartilhadas; e adotar critérios de inclusão que tem a ver com a sucessão geracional.
Essa definição, diante do que foi descrito sobre os trabalhadores da construção civil, permite entender que os operários constituem uma minoria social, porque realizam trabalhos braçais pouco apreciados pelas elites e são rotulados como mão de obra desqualificada, desprezando seus saberes, tácitos ou não, aprendidos na experiência operária, como abordado anteriormente. A rotulação torna a desqualificação um traço depreciativo, ao mesmo tempo que contribui para ligar entre si os operários construindo uma identidade coletiva que facilita a dominação pelo exogrupo. A definição de minoria de Tajfel ilumina o que foi descrito, chamando atenção que tal condição torna esperado um coletivo bem identificado e, assim dar-se conta de que a literatura tem descrito as reações e formas de resistência no nível do indivíduo, mas não no nível do coletivo. Segundo Tajfel (1982), a noção de preconceito supõe a categorização social - processo no qual se reúnem objetos ou acontecimentos sociais, agrupando-os. A categorização social, por um lado, é um sistema de orientação que ajuda a definir o lugar do indivíduo na sociedade. Por outro, sustenta o processo de comparação social. Tais processos podem construir consensos sociais sobre um fenômeno, sendo suficiente para dar um rótulo aparentemente objetivo às opiniões sobre ele. Tais opiniões refletem as diferenças de valor entre seu próprio grupo e os demais, incorporadas culturalmente na inserção das pessoas e/ou dos grupos na sociedade. Essas opiniões valorativas que dialeticamente contém o desvalor do exogrupo é o preconceito, que, por sua vez, implica em discriminação social. Portanto, Tajfel (1982) reelabora a aplicação do conceito de categorização de Allport (1954, conforme citado por Tajfel, 1982) para compreender a formação do preconceito e mostra que nem toda categorização produz um preconceito.
Portanto, o rótulo (categorização) de mão de obra desqualificada é preconceituoso, à medida que funciona como um critério de comparação depreciativo com outros grupos de trabalhadores e sustenta a discriminação social, no sentido de que contribui para a exclusão social. Corresponde também à previsão de Tajfel (1982) de aparentar objetividade.
Corroborando, Pager e Shepherd (2008) asseveram que discriminação social são as situações de tratamento desigual de pessoas ou grupos com base em uma ou mais de suas características. É um fenômeno complexo, incluindo diversas motivações entre as quais estão os preconceitos. O rótulo de mão de obra desqualificada justifica socialmente o tratamento desigual em comparação com outros grupos de trabalhadores, haja vista que se ampara nos princípios meritocráticos culturalmente valorizados.
Rodríguez (1996) relata que Pettigrew (1979) adiciona aplicações da teoria da atribuição de causalidade, transferindo a noção de viés de atribuição para explicar as relações das pessoas com o endogrupo e o exogrupo. Argumenta que causas internas (pessoais ou disposicionais) são atribuídas às condutas positivamente valoradas do endogrupo e aspectos situacionais, às do exogrupo. E, ao contrário, causas situacionais são atribuídas às condutas negativamente valoradas, quando do endogrupo, e causas internas, quando do exogrupo. Compreende-se, então, que explicar os problemas de produtividade do setor pela desqualificação da mão de obra é atribuir a responsabilidade pela situação ao grupo estigmatizado. Mencionar simplesmente a desqualificação torna o problema um traço das pessoas de tal grupo e (aparentemente) ignora o processo histórico de exclusão da educação formal.
Mais recentemente, autores (p. e., Brauer, Wasel e Niedenthal, 2000; Belo, Souza & Camino, 2010; Crandall & Eshleman, 2003; Lacerda, Pereira & Camino, 2002) têm assinalado a transição entre duas formas de preconceito: 1) manifesto ou aberto, que supõe uma inferioridade de um grupo em relação a outro, pautada em relações de poder; 2) sutil ou encoberto, que se desenvolveu a partir da Segunda Guerra Mundial, em decorrência de restrições institucionais e consiste em expressões disfarçadas que aparentemente validam práticas institucionais socialmente aprovadas e, concomitantemente, permanecem preservadas em ambientes mais restritos. Além disso, o preconceito adquire caráter natural na cultura, pois, por um lado, os preconceitos se aprendem com a linguagem e desse modo parecem baseados na realidade; e, por outro, o preconceito é uma conduta condenável. Alguns autores, (como Belo, Souza & Camino, 2010; Lacerda, Pereira & Camino, 2002) fazem também menção às discriminações abertas e encobertas. E realmente, compreende-se aqui que muitas vezes a discriminação social está invisível para sua(s) vítimas. O preconceito sutil e os discursos para justificá-lo desenvolvidos para compensar o esforço de supressão do preconceito (proibido institucionalmente) terminam, em última análise, dissimulando também a discriminação.
Crandall e Eshelman (2003) propuseram o Modelo de Justificação-Supressão da Expressão da Experiência do Preconceito. Argumentam que as pressões socioinstitucionais conduzem as pessoas a tentarem suprimir a expressão do preconceito genuíno (original). Para compensar o esforço da supressão, elaboram justificativas discursivas que permitem a expressão do preconceito de uma forma socialmente aceitável. As justificativas encobrem o preconceito genuíno e evitam as sanções sociais. São elaboradas a partir de diversas fontes, como: falácias naturalizantes e de manutenção do status quo, celebração da hierarquia social, atribuições e responsabilidade social, crenças, sistemas de valores, religiões, estereótipos e processos grupais. Esse processo dialético de tentar suprimir e, ao mesmo tempo, construir justificativas cristaliza e fortalece o preconceito, porém sua expressão é sutil ou encoberta. Guinote (2009) demonstrou experimentalmente que, quando as pessoas dispõem de posição de poder mais elevada, é mais provável a expressão dos preconceitos contra o grupo estigmatizado. E Fernandes, Costa, Camino e Mendonza (2007) encontraram que a priorização de valores materialistas (status, lucro, poder, autoridade, etc.) tende a fortalecer atitudes de dominância social e sustentar condutas de discriminação.
Considerando os aportes teóricos sintetizados e que os marcos institucionais no Brasil desencorajam práticas sociais preconceituosas e de discriminação; espera-se a prevalência atual do preconceito sutil contra a condição de operário da construção de edificações, mas também que a distância acentuada de poder e a justificativa da desqualificação do operário permitam algumas manifestações explícitas do preconceito.
Condições de trabalho
Ramos, Peiró e Ripoll (2002) apontaram que se aplica o termo condições de trabalho de forma pouco consensual. Há autores (p. ex., Muchinsky, 1994) que se prendem aos aspectos do entorno das atividades de trabalho, enquanto outros (p. ex., Alvaro e Garrido, 2006b; Blanch, 2003; Prieto, 1994) envolvem também o conteúdo e a realização das atividades. A última tendência tem sido influenciada, entre outras razões, por iniciativas como o Observatório Europeu das Condições de Trabalho mantido pela União Europeia1. De tal tendência, destaca-se aqui o seguinte conceito:
um conjunto de situações nas quais se desenvolve a atividade laboral e que influenciam significativamente tanto a experiência do trabalho como a dinâmica das relações laborais. (Blanch, 2003, p. 43).
A evolução conceitual das condições de trabalho ocorreu também em conjunto com a elaboração de tipologias (Alvaro & Garrido, 2006b; Blanch 2003; Ramos et al., 2002). Essas abarcam, entre outros aspectos, aqueles referentes às interações interpessoais, às práticas sociais relativas à gerência do trabalho, ao clima organizacional e às práticas sociais decorrentes da inserção no mercado de trabalho (parcerias, redes de trabalho formais ou informais, etc.). Embora cada tipologia revisada se refira a um ou dois desses aspectos, estes podem ser reunidos sob a designação de ambiente sociogerencial. As práticas sociais vivenciadas no âmbito interpessoal e as ações de gestão são elementos configurantes das condições de trabalho e incorporam e refletem a inserção sociocultural dos atores (operários e representantes patronais). Espera-se, então, que no setor da construção civil a discriminação e os preconceitos sociais, referidos nas seções anteriores, se manifestem nas ações e omissões gerenciais, bem como nas relações interpessoais em geral.
MÉTODO
O planejamento metodológico da pesquisa2. para atingir o objetivo anunciado na introdução3. consistiu na aplicação de três estratégias: 1) análise de conteúdo dos boletins sindicais; 2) aplicação de questionários estruturados nos operários; e 3) entrevistas individuais com operários. Esperava-se com as duas primeiras estratégias explorar o preconceito aberto; enquanto com a terceira estratégia, o preconceito sutil ou encoberto. Esperava-se também que a primeira servisse para elucidar mobilizações e reações coletivas à situação de discriminação. Além disso, essa estratégia focaliza um material discursivo produzido por deliberação dos operários e seus representantes sem intervenção da equipe de pesquisa, o que é importante como estratégia de aproximação da realidade, partindo-se do suposto que o operário, no cotidiano, tenta dissimular e/ou negar a si mesmo que suas vivências, seja no ambiente de trabalho ou em outros ambientes, abrangem o enfrentamento de atitudes preconceituosas e condições de exclusão social (discriminação social).
Análise de conteúdo dos boletins sindicais
A análise de conteúdo dos Boletins Sindicais dos Operários da Construção Civil de Belo Horizonte e adjacências (intitulado Marreta) se dividiu em cinco etapas: 1) seleção do material; 2) leitura flutuante; 3) criação das categorias; 4) categorização e 5) análise (Bardin, 1977; Minayo, 2000).
Na primeira etapa, selecionaram-se os boletins, definindo o período de publicação (setembro de 2008 a março de 2009) e totalizando 22 boletins. Organizaram-se tais boletins com uso do programa de informática QDA Miner, facilitando a execução das etapas subsequentes. Na segunda etapa, as pesquisadoras se familiarizaram com o material e delimitaram as primeiras categorias. Na terceira etapa, essas categoriais iniciais foram organizadas e descritas.
Na quarta etapa, aglutinaram-se categorias semelhantes, ampliou-se a abrangência de outras e revisaram-se denominações. Na quinta etapa, desenvolveram-se algumas estatísticas descritivas e a reflexão sobre a categorização.
Aplicação de questionários estruturados
Participantes
Aplicaram-se os questionários na sede do sindicato trabalhista e nos canteiros de duas empresas, atuantes na região metropolitana de Belo Horizonte, obtendo-se 361 questionários válidos. Quanto à idade, a média dos participantes foi de 36,79 anos (desvio padrão de 12,32), enquanto o tempo médio de trabalho foi de 17,25 anos (desvio padrão de 11,68) e o tempo médio de serviço na empresa atual foi de 1,72 anos (desvio padrão de 3,52). A diferença entre o tempo médio de trabalho e o tempo médio na empresa atual corrobora o que foi apontado na literatura sobre a prática de elevados índices de rotatividade do seu pessoal pelas empresas do setor da construção civil. Quanto à instrução formal, 7,5% dos participantes estudam atualmente e os demais pararam de estudar, em média, aos 11,4 anos de idade (desvio padrão de 8,1), corroborando que vivenciaram a exclusão da educação formal.
Instrumento técnico-científico
Utilizou-se um questionário baseado em um do European Working Conditions Observatory (EWCO). Adaptou-se a linguagem ao contexto cultural brasileiro, eliminaram-se itens não aplicáveis à realidade local e adicionaram-se outros sobre aspectos característicos da nossa realidade. Desse questionário, a presente análise focaliza a parte referente às condições do ambiente sociogerencial. São questões sobre a autoavaliação do operário sobre sua qualificação, suas vivências no coletivo de trabalho, as práticas dialógicas e, por fim, diretamente as vivências de discriminações sociais.
Aplicaram-se ainda questões sociobiográficas (como idade, número de anos de estudo, tempo de serviço e tempo de serviço na empresa atual), a fim de permitir descrever os participantes. Evitou-se a adoção de uma ficha detalhada, tendo em vista manter o anonimato do participante.
Procedimentos de coleta e análise dos dados
A coleta de dados consistiu nas seguintes etapas: 1) divulgação prévia da pesquisa no local de trabalho, por meio da visita da equipe de pesquisa e apresentação dela aos trabalhadores; 2) convite aos trabalhadores a responderem os questionários; 3) aplicação individual dos questionários com ajuda de dispositivo informatizado de mão, tipo Pocket PC, de forma que o participante não precisava ler e escrever. As respostas dos participantes eram transferidas para arquivo no formato de banco de dados do SPSS (Statistical Package for Social Science), a partir do qual as análises estatísticas foram desenvolvidas.
Entrevistas
Duas entrevistas individuais semiestruturadas foram realizadas (gravadas), transcritas e analisadas com o objetivo de apreender a fala do trabalhador, haja vista que Rodríguez (1996) apontou que o preconceito encoberto pode ser melhor apreendido na linguagem, observando como se descreve o endogrupo e o exogrupo. Tais entrevistas abrangiam questões abertas sobre a discriminação social no contexto de trabalho.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Boletins sindicais
Predominaram manifestações indiretas (ou implícitas), pois em nenhum boletim o tema do preconceito e da discriminação social é mencionado como tal e o material analisado é produzido pelos representantes sindicais do grupo socialmente minoritário com outros objetivos. Dois conteúdos são os mais tratados nos boletins: 1) combatividade operária e 2) os aspectos econômicos e/ou salariais. Os primeiros atravessam diversos outros conteúdos inclusive as cinco categorias listadas na Tabela 1. Estas, ao mesmo tempo que expressam as tentativas de demonstrar combatividade, expressam também a condição de minoria social dos operários da construção civil. Assim, a primeira das subcategorias é composta de expressões apelativas existentes nos boletins que consistem em desvalorizar o exogrupo (no caso, o patronato, o governo, etc.). Essa subcategoria ocorre 57 vezes em 15 dos boletins. Exemplos delas são: "esses carrascos", "esses patrões sanguessungas", "patrões gananciosos e exploradores" e "esses políticos safados". O uso de tais expressões acentua o desvalor do exogrupo, o que por sua vez tem a ver com a reafirmação de que os grupos sociais são efetivamente diferentes, como descrito por Tajfel (1982). São manifestações explícitas da irritação gerada pelo enfrentamento dos preconceitos dirigido à condição de operário da construção civil e pela experiência da discriminação social. Segundo May, Cochran e Barnes (2007) a rejeição social implícita na situação de discriminação aumenta a probabilidade de condutas agressivas no grupo estigmatizado entre outras consequências.
A segunda subcategoria - denúncias de manipulações - expressa que os autores dos textos dos boletins supõem que o exogrupo subestima os operários, tratando-os como incapacitados, como nos trechos:
"Debatemos em nossa assembleia sobre as mobilizações nos locais de trabalho e a ardilosa jogada dos patrões, que para não oferecer um reajuste digno para a categoria, fazem ofertas indecorosas de "bônus" de R$ 100,00 para quem não fizesse greve, R$ 120,00 para quem construísse 3 lajes até o fim do mês, aumento no salário de quem não aderisse a convocação da greve. Para tentar intimidar a categoria,...". (Marreta, 12/12/2008).
"...enganando os trabalhadores, oferecendo churrasco e 4% de reajuste de salário. (Marreta, 12/12/2008).
Companheiros, vamos repudiar essa manobra barata de reajustarem o nosso salário somente com o INPC!". (Marreta, 20/11/2008).
"Queremos aumento para ter salário digno e direito de comprar carne para comer todos os dias e não churrasco de músculo para enganar o trabalhador em época de GREVE". (Marreta, 12/12/2011).
As denúncias de manipulação expõem que o operariado vivencia ser tratado como um grupo inferiorizado e desvelam as manifestações preconceituosas do exogrupo, se é que houve tentativa de suprimi-las.
Na terceira categoria - esclarecimentos - há argumentos para caracterizar o processo de exploração dos operários pelo patronato, no sentido de que se apropriam indevidamente do trabalho do operário. É o que fica claro, por exemplo, no trecho: "Quem constrói somos nós, a classe operária, enquanto os patrões parasitas só sabem explorar e se enriquecer às nossas custas." (Marreta, 29/10/2008). Ao realizar essas exposições voltam a desvalorizar o exogrupo e, adicionalmente, descaracterizam o que os dirigentes realizam como trabalho. Mas o que é principal é que de maneira quase direta falam do preconceito dirigido ao operário, que não tem seu trabalho reconhecido.
A quarta categoria - violação dos direitos - consiste em denúncias sobre ações patronais que tentavam impedir ou controlar, pelo uso da força, as ações de mobilização dos trabalhadores, como no trecho:
"Também usaram a repressão da polícia militar e seguranças particulares para ameaçarem os trabalhadores e obrigá-los a entrar nas obras. Os patrões ameaçaram os trabalhadores de demissão, ofereceram prêmios de produção para impedir que o carro de som do sindicato chegasse até os operários". (Marreta, 09/01/2009).
Observa-se que nesse trecho os conflitos que sustentam os preconceitos e a discriminação social estão evidentes. Além de que o respaldo da classe patronal pela força de polícia demonstra tais preconceitos e discriminação social estão culturalmente validados (naturalizados) na sociedade, de forma que quem devia garantir os direitos de ambos os grupos, nega o direito de greve e apoia os interesses patronais. Em outras palavras, a sociedade ampara reprimir a reação dos operários aos efeitos do fenômeno no lugar de inibir ou combater a própria discriminação social.
A quinta categoria - agressões - consiste em denúncias de agressões físicas e verbais contra os trabalhadores. Essa categoria também está presente no último trecho dos boletins citados, pois que o impedimento da mobilização por meio da força policial é uma forma de agressão. Mas no trecho subsequente, há referência à agressão física direta:
"A ação truculenta e sanguinária de mais de seiscentos policiais fortemente armados que dispararam contra mulheres, crianças e adultos, assassinou dois trabalhadores, pais de família... que defendiam o seu direito a moradia."(Marreta, 10/09/2008).
Considerou-se que o preconceito e a discriminação social aqui se manifestam de maneira aberta, porque se concretizou em ação concreta de violência de uma maioria contra uma minoria social. A ação de repressão nega direitos humanos do grupo minoritário. Essas duas últimas categorias encontradas (Tabela 1) corroboram os achados de Guinote (2009) de que a posição de poder facilita a expressão dos preconceitos contra o grupo estigmatizado.
O segundo conteúdo mais tratado nos boletins, referentes aos aspectos econômicos e/ou salariais se caracterizam por menções ao fenômeno do arrocho salarial, consistindo em diversas formas de apresentação das reivindicações salariais. Esses conteúdos se repetem em 15 dos boletins analisados (68,2% do total de 22 boletins) por 60 vezes. Quando essas menções são chamadas curtas (p. ex., "Abaixo o arrocho salarial!", Marreta, nov/2008), expõem apenas seu caráter econômico. Quando estão no meio de uma argumentação, expressam também que as vivências do trabalho são experiências da condição de minoria, como se pode ver no seguinte trecho:
"Companheiros, todos nós estamos vendo que nunca os empresários da construção lucraram tanto, e por outro lado nunca sofremos um arrocho tão grande em nossos salários." (Marreta, 03/09/2008).
"O operário da construção que constrói prédios de apartamentos que são vendidos por até R$ 5 milhões cada unidade enfrentam o mais cruel arrocho e exploração. O salário de um trabalhador da construção não passa de R$ 700,00 (salário mais alto do oficial). Um servente tem que sustentar a sua família com apenas R$ 400,00." (Marreta, 02/12/2008). "Queremos aumento para ter salário digno e direito de comprar carne para comer todos os dias." (Marreta, 12/12/2008).
Esses trechos exprimem a consciência de uma situação de inferioridade e a contestação da diferença social, bem como que tal situação de inferioridade tem por trás o conflito capitaltrabalho. Tais observações são coerentes com a perspectiva da Psicologia Social Sociológica que situa o preconceito nos processos sociais de exclusão/inclusão social e compreende a discriminação a partir dos conflitos. Os trechos citados demarcam as diferentes condições de vida do segmento socialmente minoritário (operários) e o majoritário (patronal).
Questões estruturadas
Quando indagados sobre sua qualificação, a maioria dos participantes (85,6%) avalia que possuem as qualificações necessárias às suas funções (Tabela 2). Esse resultado encontrado corrobora pesquisa anterior (Borges, Ros & Tamayo, 2001) sobre a socialização do operário da construção civil, em que este se percebia como competente. Portanto, a autopercepção da maioria dos operários da construção civil não coincide com a percepção de senso comum e de parte da literatura que lhes classifica como mão de obra desqualificada.
Adicionalmente, destaca-se que 52,5% dos operários (Tabela 2) indicam também que encontram no trabalho abertura para se atualizar. Entretanto, ao se perguntar aos participantes sobre a oportunidade de participar de algum tipo de formação para melhorar suas competências no último ano, apenas 19,4% responderam afirmativamente. Destes, quase 81,4% tiveram seu treinamento custeado pela empresa. É importante perceber que a participação em algum tipo de formação ocorre predominantemente com o apoio organizacional. Essas respostas, adicionadas ao fato de deixarem de estudar precocemente (registrado na descrição dos participantes na seção do método), evidenciam que os operários seguem com pouco acesso às oportunidades de educação e à qualificação continuada e formal. As iniciativas pessoais do operário para buscar por si oportunidades de atualização certamente são raras não só pelos custos econômicos, mas pelas características da jornada de trabalho prolongada e abrangendo esforço corporal. Enquanto se usa o rótulo da desqualificação para justificar o preconceito, não são oferecidas as condições para superar a situação.
Para apreender parcialmente o clima que predomina no ambiente de trabalho dos participantes, indagou-se aos operários sobre as suas vivências no coletivo de trabalho (Tabela 3). A todas essas perguntas os participantes respondiam optando pela afirmação ou negação ("Sim" ou "Não"). Observou-se que as proporções das respostas a todas as perguntas apresentam uma tendência para a negação. Assim, não predomina a exposição a pressões por decisões rápidas, à falta de material para executar as tarefas, às exigências desproporcionais às condições de trabalho, a conflitos com colegas e chefias, a agir contra seus princípios e valores, à sobrecarga de tarefas e a realizar tarefas contraditórias.
No entanto, apenas em um aspecto desses - conflitos com colegas e chefes - o predomínio da negação da exposição ultrapassa os 80%, aproximando-se de uma situação consensual. Os demais variam entre 51,9% a 79,4%. O que significa que a proporção de respostas afirmativas não é desprezível. E quando se trata de clima organizacional, poucas ocorrências desagradáveis podem ser suficientes para corroê-lo.
Seguindo, na Tabela 4., apresentam-se as respostas dos participantes sobre práticas de diálogo entre chefia e subordinado. As proporções das respostas são predominantemente negativas em relação a todas as perguntas, indicando reduzida institucionalização das práticas de diálogo entre chefia e subordinado. A exemplo das respostas anteriores, estas voltam a sublinhar um clima organizacional desfavorável. Obviamente, o fato pode se relacionar com as competências daqueles que exercem cargos de chefia de incentivar a participação e se abrir ao diálogo. Entretanto, é pertinente também lembrar que grupos estigmatizados tendem a apresentar as atitudes de resignação (Tajfel, 1982), tornando previsível que impacte nas práticas dialógicas por meio da minimização da proatividade operária.
Corroborando essa interpretação, na apresentação dos resultados da pesquisa aos dirigentes das empresas, eles reagiram com surpresa às baixas frequências das práticas dialógicas, principalmente considerando as políticas de avaliação e acompanhamento do desempenho profissional adotadas por uma delas. Portanto, é provável que estejam mais associadas aos processos culturais e de socialização do que à adoção declarada de certos estilos e programas gerenciais.
Os diversos estilos gerenciais e modos de organização do trabalho mais recentes convergem na defesa de que as práticas gerenciais devem partir de pressupostos básicos de respeito ao ser humano como ele é. Além disso, o avanço da maioria dos países para fortalecer a democracia levou à criminalização de práticas que até recentemente faziam parte do mundo do trabalho sendo bem aceitas. O conceito de violência, por exemplo, se ampliou bastante. Perguntaram-se, então, sobre a ocorrência de várias formas de violência (Tabela 5) que seriam formas abertas de expressão da discriminação e do preconceito.
As proporções de participantes que responderam negativamente são extensas, aproximando-se da consensualidade, visto que são em quase todos os itens superiores a 90% da amostra. No entanto, chama a atenção o fato de que no primeiro item - agressões verbais - as respostas afirmativas sejam de 12,5%. As respostas que afirmam ocorrer intimidações/perseguições e discriminações relacionadas à religião aproximaramse de 10%. Comenta-se que religião representa uma esfera de vida muito forte para os operários (Borges & Tamayo, 2001), pois que posicionam a religião como a terceira esfera de vida mais importante (após a família e o trabalho) diferentemente da tendência da maioria de ocupações que atribui essa terceira posição ao lazer. Essas respostas corroboram a hipótese de que no setor ocorrem algumas manifestações abertas do preconceito, embora prevaleçam as formas encobertas.
Entrevistas
As respostas dos participantes nas entrevistas mostram que há uma naturalização do preconceito sofrido e da discriminação social vivenciada, a partir do momento em que o operário reconhece a existência dessas experiências, mas ao mesmo tempo afirma nunca ter sofrido com essas atitudes, como pode ser evidenciado no seguinte trecho do diálogo:
Entrevistador: Aqui dentro tem discriminação?
Operário 1: Acho que tem viu.
Entrevistador: Que tipo?
Operário 1: Tem sempre gente que gosta de falar mal dos outros assim né. Perto da gente mesmo não fala, mas chega perto dos outros e fala.
Entrevistador: Você já se sentiu discriminado?
Operário 1: Não, nunca chegou perto de mim pra falar não. Sempre tem um preconceitozinho.
Entrevistador: Mas preconceito de que?
Operário 1: De discriminação, fala da gente aí. Não sei entrar em detalhes, às vezes fala "aquele puxa-saco ali".
Entrevistador: E que impactos essas discriminações têm?
Operário 1: Pra mim, não interessa nada. Pra mim, estar falando ou não falando...
À mesma pergunta sobre a existência de discriminação, o segundo entrevistado respondeu de forma muito semelhante: "falar eles falam né. Mas não ligo não". Essas falas, além de apontar para a tendência em dissimular o preconceito, encerram outros processos. A discriminação social é dirigida a um grupo ou segmentos de pessoas como um todo e não a cada um individualmente. Perceber a existência de preconceito e discriminação social e não se sentir afetado é, na realidade, alienar-se dos impactos vividos; fato que decorre da naturalização do processo e, ao mesmo tempo, representa outra forma de manifestação das atitudes de resignação.
As indicações da existência de preconceitos encobertos se repetem nas entrevistas inclusive em relação a outros objetos que não a própria condição de operário. Assim, ao se indagar sobre o preconceito em relação à religião o primeiro operário respondeu: "Na verdade a gente nem toca nesse assunto aqui não. Nem falo qual a minha religião não".
Quando indagado sobre que tipo de melhoria o operário queria para si, respondeu:
"Pra mim é na parte de estudos. Estudar um pouco mais pra melhorar mais, pra ter um salário melhor... É o que eu falei pra você, tô lutando pra ser um encarregado. Posso até ser em outro lugar aí, posso fazer um curso, pra conhecer mais os produtos. Eu vou fazer o curso, vou fazer sim."
Por um lado, essa fala manifesta uma aspiração de estudar, bem aceita socialmente, e que pode ter impactos positivos na vida do operário que vão além do mundo do trabalho se forem levadas a cabo; o que é pouco provável porque a extensão e as características da jornada de trabalho real não favorecem. O perfil dos participantes já mostrou que poucos estudam atualmente. Por outro lado, mostra que o operário naturalizou o preconceito, incorporando a justificativa culturalmente aceita de que ganha pouco, porque estudou pouco. Não há reivindicação de reconhecimento de seu conhecimento adquirido na experiência, nem o registro dos problemas de acesso à educação formal decorrente de sua condição socioeconômica de origem. Portanto, o operário discriminado assume, como sua, a responsabilidade por não haver estudado. Além disso, para melhorar sua condição de vida, precisam deixar de ser o que são: operários e/ou serventes. Precisam ocupar outro posto, que é uma aspiração a que poucos efetivamente terão acesso. O acesso construído pelo esforço individual provavelmente gera mobilidade social, fazendo que o operário migre do grupo social. Não geraria mudança social, reposicionando socialmente o grupo e suas habilidades, considerando a diferenciação entre mobilidade e mudança social nos termos de Tajfel (1983).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A forma de expressão do preconceito é principalmente velada, mas ocorrem expressões explícitas na forma de violência como apareceu na análise de conteúdo dos boletins sindicais e nas respostas ao questionário estruturado. Os resultados mostraram mais a naturalização dos preconceitos e da discriminação social, do que as formas de expressão, o que não era esperado no planejamento da pesquisa.
Como há pressão demandando a supressão do preconceito, ele raramente é mencionado. O modo de autoproteção principal encontrado no grupo minoritário, no nível de análise individual, foi a resignação, corroborando os aportes teóricos. Vivenciar o preconceito e a discriminação social significa experimentar a rejeição social. Sobre isso, é importante considerar que May e colaboradores (2007) mostraram, entre outros aspectos, que a vivência de rejeição no contexto da discriminação social tem consequências psicossociais que se manifestam na forma de limitações sociais ou na forma de condutas agressivas, depressivas e condutas pouco saudáveis como o consumo de tabaco e de bebidas alcoólicas. Lima (2004) já mostrou que o alcoolismo e a esquizofrenia ocorrem entre os operários da construção civil com mais frequência do que em outros trabalhadores.
No nível coletivo, as denúncias nos boletins sindicais devem provavelmente contribuir para o operário se reapropriar do sofrimento silenciado. Em momento algum a condição de enfrentar o preconceito à condição de operário da construção civil e viver a discriminação social foi mencionada diretamente, mas foram mencionadas práticas sociogerenciais que são consideradas pela literatura especializada manifestações preconceituosas abertas.
O referido preconceito e situação de discriminação social em relação ao operário da construção civil são problemas de gestão, como era esperado, à medida que afetam as práticas dialógicas, a adoção de estratégias de educação e qualificação continuada, a capacidade de iniciativa do operário no ambiente de trabalho, suas possibilidades de ações autônomas e a capacidade de atrair pessoal pelas empresas.
A modernização da gestão de pessoas, no setor da construção de edificações, exige uma redefinição dos problemas. Provavelmente, enquanto persistir o rótulo de uma mão de obra desqualificada e não se abrir mão das vantagens de redução de custos derivadas do rótulo, não se superará o problema. É preciso que as empresas e a sociedade assumam sua parte de responsabilidade. As empresas precisam diagnosticar a carência de programas de formação e qualificação continuada, bem como reconhecer a necessidade de adequar a jornada de trabalho à oportunização de novos acessos à educação formal. Tal reconhecimento será mais provável diante de políticas públicas que o requisitem. Enquanto isso não ocorre, os programas de educação e qualificação serão escassos e de curto alcance. Estes precisariam atingir a massa de operários e aspirantes. As práticas dialógicas não mudarão enquanto não houver o reconhecimento aberto e implícito do saber operário e da humanidade de cada operário.
No nível político, é preciso compreender que a mobilização coletiva e o desenvolvimento de uma identidade também coletiva que fortaleça a autoestima operária demandam a explicitação e o questionamento da naturalização da discriminação e o reconhecimento das atitudes de resignação.
Por fim, comenta-se que a presente pesquisa tem o mérito de demonstrar que aportes teóricos da Psicologia Social, sobre categorização, preconceitos e discriminação social podem contribuir para elucidar melhor esses fenômenos em relação aos operários da construção civil. Em contrapartida, as estratégias utilizadas na pesquisa demandam enriquecimento diante das tendências atuais, resgatando técnicas experimentais, uso de questionários especializados na mensuração das vivências de discriminação e que incorporem o conceito de priming. Da mesma maneira, é recomendável a adoção de estratégias que trabalhem com o discurso da classe dirigente, precisando o pesquisador encontrar a adequada forma de acesso.
Registra-se, também, que essa pesquisa priorizou estratégias metodológicas que abordam indiretamente os aspectos de preconceito e discriminação social da experiência do operário da construção de edificações. Essa é uma opção metodológica possível e que foi bem-sucedida para os objetivos definidos. Entretanto, outras opções podem ser realizadas, permitindo aprofundamentos e avanços no tema. A Psicologia Social tem se caracterizado pela multiplicidade de abordagens teóricas e de técnicas metodológicas; fato que, certamente, amplia as possibilidades de outras opções bemsucedidas.
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Recebido em: 19.02.2011
Aprovado em: 24.08.2011
Publicado em: 31.10.2011
* Endereço para correspondência: Rua Kennedy Maro Campos, 40. Apto. 101. Bairro Castelo. Belo Horizonte (MG). CEP 30.840-440.
1 Essa iniciativa está disponível em http://www.eurofound.europa.eu/observations.htm.
2 A presente pesquisa se insere em projeto mais amplo sobre condições de trabalho, sob a coordenação da primeira autora do artigo.
3 Objetivo da pesquisa: estudar as discriminações sociais vivenciadas por operários da construção de edificações de Belo Horizonte, enquanto um componente psicossocial das condições de trabalho.