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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.14 no.4 Florianópolis dez. 2014
Orientação de carreira para jovens vivendo com sofrimento mental: possibilidades e limites
Career counseling for youths living with mental suffering: potentialities and limits
Marcelo Afonso Ribeiro
Doutor em Psicologia Social; Especialista em Orientação Profissional e de Carreira; Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; faz pesquisas na interface trabalho, identidade e carreira
RESUMO
Diante da constatação da falta de estudos e propostas de intervenção de orientação, preparação, inserção e acompanhamento das atividades e trajetórias de trabalho de jovens vivendo com sofrimento mental, grupo potencialmente caracterizado como vulnerável psicossocialmente em função de sua situação, o presente artigo visou, por meio de uma pesquisa de intervenção sistemática, postular alguns princípios teóricos e práticos para propostas de orientação de carreira a este grupo específico de pessoas. Como principais conclusões, pode-se dizer que o estigma e a impossibilidade de construção de uma carreira ainda são predominantes, mas a atual conjuntura de transição mundial parece estar criando novas possibilidades às populações tradicionalmente vulnerabilizadas em função da fragilização das estruturas sociais anteriormente vigentes e da emergência de novas estruturas mais receptivas ao diferente. Atualmente, jovens vivendo com sofrimento mental podem criar lugares diferenciados para si por meio da desconstrução do conceito de "louco" utilizando o trabalho como suporte, ao mesmo tempo em que encontram extrema dificuldade em realizar essa tarefa, sendo as propostas de orientação de carreira importantes para auxiliar este processo. Suas limitações e dificuldades foram analisadas.
Palavras-chave: contemporaneidade, trajetórias de trabalho, projeto de vida, sofrimento mental, orientação profissional.
ABSTRACT
There is a lack of studies and proposed actions for counseling, preparation, market entry, and monitoring of the work activities and trajectories of youths living with mental suffering, a group potentially characterized as psychosocially vulnerable due to their situation. Given this situation, this article aimed to put forth some theoretical principles and practical proposals for career counseling for this specific group of people, based on a systematic intervention study. As main conclusions, it can be stated that the stigma and the impossibility of building a career are still prevalent, but the current situation of global transition seems to be creating new opportunities for populations traditionally vulnerable, due to the weakening of the traditional social structures and the emergence of new structures more receptive to the those that are different. Currently, youths living with mental suffering can build differentiated places for themselves through the deconstruction of the concept of "mad", using work activity as a support. At the same time they encounter extreme difficulties in accomplishing this task, which makes proposals for career counseling relevant in assisting this process. Limitations and potentialities are discussed.
Keywords: contemporaneity, work trajectories, life project, mental suffering, career counseling.
A temática das relações entre trabalho e "loucura"1 pode ser compreendida por meio de dois caminhos possíveis: a) o caminho da "loucura" do trabalho, saindo do trabalho e resultando na "loucura", em função de organizações do trabalho potencialmente geradoras de "loucura" e de psicopatologias do trabalho; e b) o caminho do trabalho à "loucura", saindo da "loucura" e resultando no trabalho como uma atividade humana potencialmente geradora de emancipação.
A primeira situação é um fenômeno classicamente investigado no campo global da Psicologia do Trabalho e das Organizações, com presença importante na América Latina nas chamadas relações entre saúde mental e trabalho (Bárbaro, Robazzi, Pedrão, Cyrillo, & Suazo, 2009; Borsoi, 2007; Gómez, 2007), contudo, no tocante à segunda situação, não há quase registros de investigações no campo de estudos do trabalho, sendo um fenômeno mais estudado pelas áreas da saúde (Nicácio, Mangia, & Ghirardi, 2005; Salles & Barros, 2009).
A questão da orientação, da preparação, da inserção, do acompanhamento das atividades e das trajetórias de trabalho de pessoas vivendo com sofrimento mental são demandas importantes, pois, como apontam algumas pesquisas, o desejo de trabalhar e ter uma trajetória laboral com continuidade é um desejo manifestado por parte deste grupo específico de pessoas. Isso se configura como uma real possibilidade de trabalho a despeito de todas as dificuldades encontradas, buscando evitar a cronicidade da falta de atividades sociais reconhecidas, como a atividade de trabalho, que, em geral, resulta numa situação de vulnerabilidade psicossocial (Eklund, 2008; Gove, 2004; Ribeiro, 2004; Zambroni-de-Souza, 2006).
Apesar da clara importância da reinserção laboral e da reabilitação psicossocial, ela tem se configurado como uma questão muito presente no campo da saúde, principalmente da saúde mental, mas não tem se mostrado de forma significativa no campo da Psicologia do Trabalho e das Organizações, nem no campo específico da Orientação Profissional e de Carreira, principalmente em relação a propostas de intervenção.
Pouco se tem discutido, na literatura especializada, sobre as escolhas iniciais e a construção das trajetórias de trabalho de jovens que, em função de algum tipo de sofrimento mental, são considerados indivíduos em situação de vulnerabilidade psicossocial pelas dificuldades de construção de projetos e carreiras.
Melo-Silva, Leal e Fracalozzi (2010) realizaram um levantamento da produção científica em congressos brasileiros de orientação vocacional e profissional entre 1999 e 2009, em que foi constatado que apenas 2,2% dos trabalhos apresentados eram relativos a populações diversas, entre elas pessoas vivendo com sofrimento mental. Esses dados indicam a necessidade de mais estudos e intervenções com este grupo específico, assim como já haviam apontado Ribeiro (2004), Valore (2010) e Varjal, Medeiros e Oliveira (2000).
Por meio de uma análise da produção científica da Revista Brasileira de Orientação Profissional do período de 1997 a 2006, Teixeira, Silva e Bardagi (2007) apontam que a orientação profissional brasileira "parece estar fazendo um esforço para ampliar seus focos de intervenção e contribuir para o entendimento das relações homem-trabalho em diferentes etapas e contextos de vida" (p. 34), bem como de públicos diversos, como pessoas com necessidades especiais e adolescentes em situação de vulnerabilidade, ainda que este se configure em um movimento incipiente.
Assim, essa discussão se torna extremamente importante, pois uma orientação de carreira potencialmente auxiliará nos processos de reinserção social em uma dimensão da vida, que é o trabalho, central para a construção subjetiva e identitária, para ter um lugar socialmente reconhecido e para a questão da sobrevivência material, sendo uma atividade que atua no sentido de preparação para a inserção concreta no mundo do trabalho - ação de difícil realização por pessoas vivendo com sofrimento mental.
OBJETIVO E JUSTIFICATIVA
Diante da constatação da falta de estudos e propostas de intervenção sistematicamente realizadas e avaliadas nas questões relativas ao trabalho de jovens vivendo com sofrimento mental, o presente artigo, por meio de uma pesquisa de intervenção sistemática realizada de forma longitudinal ao longo de 15 anos, visou estabelecer alguns princípios teóricos e práticos para propostas de orientação de carreira que tentem responder às demandas contemporâneas específicas em relação às potencialidades e limites de construção de projetos, de identidades e de trajetórias de trabalho voltadas a situações de vulnerabilidade psicossocial, especificamente de jovens vivendo com algum tipo de sofrimento mental.
Optou-se pela utilização da noção de vivendo com2 para desconstruir a clássica concepção de "loucura" como essência e introduzir a noção contemporânea da "loucura" como uma situação psicossocial transitória, e não uma condição permanente ou constitucional, sem desconsiderar, entretanto, as questões psíquicas e orgânicas em jogo nesta situação.
Assim, o presente artigo buscou trazer mais elementos para análise das possibilidades de construções no mundo do trabalho destes jovens, auxiliando a todos os que trabalham diretamente com eles a evitar estereótipos e concepções generalizadoras e a refletir sobre estratégias de auxílio na construção de projetos, identidades e trajetórias de vida, principalmente por meio de propostas de orientação de carreira, como recomendaram Melo-Silva et al. (2010), Ribeiro (2004) e Valore (2010).
REVISÃO DE LITERATURA
Marco teórico
De forma sintética, pode-se dizer que o mundo do trabalho vem se diversificando, heterogeneizando e complexificando gradativamente, e isso o tem transformado em um espaço menos estável e contínuo para uma realidade mais flexível, e de mudança com padrões menos absolutos. Isso caracteriza um momento de transição, em que novas formas de exclusão aparecem e atingem novos grupos de pessoas e as tradicionais formas de exclusão sofrem uma fragmentação, pois ainda operam, porém não de forma absoluta, embora sejam geradas situações de vulnerabilidade e obstáculos psicossociais para a construção de projetos, identidades e trajetórias de vida (Castel, 2009, Touraine, 2006).
Segundo Paiva, Ayres e Buchalla (2012), a vulnerabilidade deve ser concebida em sua tridimensionalidade, ou seja, toda situação de vulnerabilidade carrega em si elementos de vulnerabilidades sociais (por exemplo, famílias desestruturadas ou contextos violentos de moradia), vulnerabilidades pessoais (por exemplo, baixa qualificação, poucos recursos financeiros ou dificuldades em lidar com imprevistos) e vulnerabilidades programáticas (por exemplo, acesso precário à saúde, educação de baixa qualidade e ausência de serviços públicos de intermediação de mão de obra).
Nesse sentido, a vulnerabilidade não seria nem social, nem individual, mas psicossocial como noção ontológica central. Assim, a vulnerabilidade psicossocial pode ser definida como
Uma diminuição da possibilidade de estabelecer vínculos e redes sociais, não uma fragilidade pessoal, nem institucional, e sim relacional, ou seja, a vulnerabilidade psicossocial seria a resultante de contextos de intersubjetividade, isto é, espaços delimitados (sociais, culturais, laborais, econômicos, simbólicos) de relação, geradores de vulnerabilidade, nos quais as pessoas se encontram em dificuldade de estabelecer vínculos em alguma dimensão significativa da vida, como o trabalho (Ribeiro, 2014, p. 65).
Shotter (1993) postula que o psicossocial não seria nem subjetivo, nem social, mas uma "terceira coisa", construída como processo discursivo relacional. Frosh (2012), corroborando esta ideia, aponta que considerar o psicossocial como mais do que a relação entre subjetivo e social, tomados de maneira separada, "significa testar-se pela negação, questionando suas próprias premissas, e buscando engajar-se com um espaço que não é nem 'psico', nem 'social', mas transcende a separação de elementos para criar algo novo" (p. 148).
Assim, o psicossocial é aqui definido como construção contínua e compartilhada, compreendida como um único processo visto como elo de continuidade do subjetivo ao social e vice-versa, "que seriam polos extremos de uma mesma realidade discursiva processual global, produzida através de processos de construção e significação no seio das práticas e discursos sociais: do subjetivo ao social e vice-versa, num movimento contínuo" (Ribeiro, 2014, p. 27).
Essa noção cumpre o objetivo de retirar das pessoas a responsabilidade única e central por não conseguirem, por exemplo, construir uma trajetória de trabalho, incluindo outras dimensões dificultadoras, o que também impacta as propostas de intervenção, as quais não devem ser concebidas, a partir desta noção teórica, como estratégias que considerem apenas a pessoa como agente de sua própria vida e trajetória.
A flexibilização e a precarização do trabalho, a redução considerável dos empregos e os obstáculos para se conseguir um trabalho decente e uma trajetória socio-ocupacional contínua têm afastado muitas pessoas da possibilidade de trabalhar em condições satisfatórias e de ter no trabalho um valor básico, sendo a juventude - toda pessoa entre 15 e 29 anos - uma faixa etária extremamente impactada por essas mudanças (Andrade, 2008; Organização Internacional do Trabalho [OIT], 2009).
Tradicionalmente, definia-se a fase da juventude como adolescência, a qual era associada a uma faixa etária genérica do ciclo vital e caracterizada pela universalidade das transformações biológicas e psicológicas deste período. Como vem apontando a literatura atual sobre juventude, classificá-la como fase universal da vida é não levar em conta a situação psicossocial de cada jovem em contextos específicos marcados por diferenças socioculturais (diversidade das formas de reprodução e produção sociocultural). Por isso, a concepção de jovens ou juventudes deve ser pensada como variações produzidas de formas e condições diferenciadas de ser e de se sentir jovem (Coimbra, Bocco, & Nascimento, 2005; OIT, 2009).
Em função da educação oferecida à maioria dos jovens ser insuficiente para atender suas necessidades e demandas de formação, da dificuldade de iniciar a trajetória de trabalho e ter empregos decentes e da vivência da falta de respaldo social para a construção de seus projetos e trajetórias de vida, os jovens tornaram-se, na contemporaneidade, um grupo diversificado em suas condições e características, mas unificados em uma situação de vulnerabilidade psicossocial pela impossibilidade de vínculo social através do trabalho ou pela precarização deste vínculo (OIT, 2009; Wickert, 2006).
É importante lembrar que, segundo Castel (2009), um dos princípios para a vida humana é sentir-se seguro nas suas várias dimensões e que, na sociedade ocidental moderna, a proteção social advém da possibilidade de trabalhar, pois, pela atividade de trabalho, a pessoa potencialmente conquista direitos e proteções sociais básicas.
Ainda dentro deste grupo social, determinado por uma faixa etária e por uma condição psicossocial específica, há subgrupos que carregam características como classe social, gênero, raça, etnia e orientação sexual, que podem auxiliar ou dificultar a construção de projetos, identidades e trajetórias de vida. Dentre eles, os jovens que vivem com algum tipo de deficiência ou sofrimento mental e lidam com as dificuldades decorrentes destas, somadas às dificuldades genéricas geradas pela juventude (Ribeiro, 2004; Valore, 2010).
Tomando especificamente o sofrimento mental como questão para investigação e análise, pode-se dizer que, tradicionalmente, a doença mental foi definida como essência, ou seja, uma pessoa é "louca", não está com problemas mentais, sendo tratada como desvio em relação à norma. Para Frayze-Pereira (1982) "o anormal é uma relação: ele só existe na e pela relação com o normal" (p. 22).
Nesse sentido, se a base ontológica deste artigo é psicossocial, faz-se necessário apresentar as propostas de análise psicossocial através de uma ruptura da ideia de doente mental e a introdução da noção de pessoas vivendo com sofrimento mental, sendo que, psicossocialmente, a doença mental pode ser entendida como:
Produto e produtora de um tipo especial de relação subjetivo (sujeito) e o social (meio social) e coloca sujeitos em espaços de impossibilidade de dialetização dessa relação, ou seja, presos em um lugar sem chance de colocarem o processo dialético em movimento: reduzindo-se a produtos e produtores de uma mesma relação ad infinitum (Ribeiro, 2004, p. 42).
No caso dos jovens vivendo com sofrimento mental, há um paradoxo contemporâneo instalado, pois eles vivenciam situações contraditórias de exclusão e vulnerabilização simultaneamente a situações de oportunidades potenciais.
É importante lembrar que o mundo do trabalho tradicional, que perdurou no Brasil até os anos de 1980, era marcado pela homogeneidade e normatização com consequente exclusão de tudo o que era considerado diferente e anormal, como o caso das pessoas vivendo com sofrimento mental. Não havia lugar para a diferença e o indivíduo considerado diferente era marginalizado, estigmatizado e tutelado pelas práticas da saúde e da assistência social (Frayze-Pereira, 1982; Silva, 2005).
O mundo do trabalho, principalmente o do século XXI, vivencia um paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que segue marginalizando e excluindo, cria lugares para a diferença e muitas vezes a inclui por meio de ações afirmativas e lei de cotas. Isso configura um estado de transição com dupla consequência, segundo Ribeiro (2004) e Silva (2005), com a produção simultânea de padrões de exclusão (Castel, 2009) e de oportunidades de emancipação e de constituição de formas diferenciadas de relação social, em uma nova oportunidade de retorno de grupos tradicionalmente apartados da possibilidade de inclusão pelo trabalho.
Partindo dos pressupostos de que:
a) A atividade de trabalho é fundamental para a conquista da segurança e da proteção social.
b) As juventudes têm vivido situações de vulnerabilidade psicossocial, principalmente em função da precarização e exclusão do trabalho gerada pela impossibilidade de trabalhar.
c) Jovens vivendo com sofrimento mental experimentam simultaneamente situações de exclusão e de potencial inclusão contemporânea no trabalho.
d) Não há leis federais específicas que auxiliem na preparação e inserção destes jovens no mundo do trabalho, tampouco iniciativas organizacionais nesta direção, e as propostas existentes são oriundas do campo da saúde, prioritariamente, como parte da rede de atenção em saúde mental na forma de cooperativas, associações e oficinas de geração de renda (Salis, 2011).
e) A psicologia, em suas áreas específicas da Psicologia do Trabalho e das Organizações e da Orientação Profissional e de Carreira, tem como principais focos de intervenção a atividade de trabalho, a construção de projetos e trajetórias de trabalho e o auxílio na inserção no mundo do trabalho.
A pergunta que aqui se coloca é: em termos de auxílio profissional, o que essas áreas específicas da psicologia teriam a oferecer na contemporaneidade para jovens vivendo com sofrimento mental? Dentre muitas alternativas de intervenção, a orientação profissional e de carreira foi escolhida no presente artigo para ser analisada como estratégia possível de auxílio a esses jovens.
O campo da orientação profissional e de carreira
O campo brasileiro da Orientação Profissional e de Carreira teve início nas primeiras décadas do século XX e se consolidou como área responsável por auxiliar jovens de classes média e alta na escolha de cursos superiores. Esta é uma prática vinculada às escolas e consultórios psicológicos que vem sofrendo mudanças gradativas e interpelações internas (questionamentos oriundos do próprio campo da orientação) e externas (novas demandas sociais, novas questões e novos desafios), tanto no Brasil (Melo-Silva, Bonfim, Esbrogeo, & Soares, 2003; Ribeiro, 2014), como em outros países (Duarte, 2011; Guichard, 2012; Metz & Guichard, 2009).
Especificamente no Brasil, essas interpelações têm gerado a realização de pesquisas e o desenvolvimento de estratégias que buscam compreender e intervir de forma ampliada objetivando atender às demandas sociais clássicas, como jovens de classes média e alta, e contemporâneas, como adultos, pessoas em situação de desemprego, jovens de camadas populares, universitários, aposentados, crianças, jovens institucionalizados, pacientes portadores de doenças crônicas e pessoas vivendo com deficiência e com sofrimento mental, conforme apontaram os estudos de revisão de literatura de Melo-Silva et al., (2010), Noronha e Ambiel (2006) e Teixeira et al., (2007), bem como estudos específicos de Bock (2010), Farina e Neves (2007), Ivatiuk e Yoshida (2010) e Valore (2010).
Para Guichard (2012), contextos emergentes produzem novas questões e necessidade de atualização das intervenções em orientação profissional com enfoques que possam acessar múltiplos aspectos da vida das pessoas em seus contextos, colocando a área em xeque e fazendo com que se busque menos processos de adaptação ao mundo e mais processos de construção, como operação de relação entre pessoa e contexto em um mundo instável e em constante mudança, sendo a palavra-chave atual para descrever essa operação que dá origem à carreira - noção central para o campo da orientação.
MÉTODO
Participantes
A pesquisa foi realizada, em sua maior parte, com adultos entre 30 e 55 anos, mas aproximadamente 25% das intervenções foi realizada com jovens, sendo esta parte a ser aqui analisada, o que perfaz um total de 80 jovens que participaram integral ou parcialmente dos 30 grupos ou atendimentos individuais realizados.
Procedimentos
A estratégia utilizada para a construção da proposta aqui apresentada de orientação de carreira3 para jovens vivendo com sofrimento mental foi a pesquisa de intervenção, que visou elaborar uma nova forma de atuação em orientação de carreira, utilizando-se de maneira sistemática dos conhecimentos existentes, através de um caminho de fazer e refazer o próprio processo da pesquisa. O modelo de intervenção elaborado foi resultado de aproximações teóricas e testes empíricos, por falta de modelos prévios de orientação de carreira para este público.
As intervenções foram realizadas basicamente em equipamentos de saúde mental e serviços universitários de orientação profissional e de Psicologia do Trabalho e das Organizações no período de 1994 a 2009.
Modelo de análise do processo
Foi realizada uma avaliação do processo de cada atendimento (individual e grupal) e, colocado em ação o modelo proposto de atuação em orientação de carreira, foram apontadas as consequências, os efeitos, as possibilidades e as impossibilidades para esse público específico, através de análise e comentários do material coletado.
APRESENTAÇÃO DOS PRINCIPAIS RESULTADOS
Como forma de embasar a estratégia proposta, serão apresentadas: (a) concepção genérica de orientação de carreira que embasa o modelo, (b) modelo de orientação de carreira proposto para pessoas vivendo com sofrimento mental, (c) função do(a) orientador(a), (d) descrição e análise de um grupo realizado; e (e) avaliação dos resultados e limitações da proposta.
Concepção genérica do processo de orientação de carreira
O modelo de orientação de carreira adotado teve como base o auxílio no processo de (re)construção da carreira, transcendendo a concepção clássica da carreira organizacional, como a literatura já vem indicando há algumas décadas (Hall, 1996; Savickas et al., 2009), e a concebendo a partir de duas dimensões constitutivas: a dimensão do projeto e do plano de ação de trabalho e a dimensão da trajetória de trabalho (Ribeiro, 2014).
O projeto de trabalho é definido como intenção para a vida de trabalho (projeto de vida) por meio da compreensão das resultantes estruturantes dos acontecimentos passados da vida das pessoas (construções identitárias) e do planejamento de ações futuras (plano de ação).
A trajetória de trabalho seria o processo de articulação das ações cotidianas e acontecimentos da vida em unidades episódicas (trajetória de vida), através do entendimento dos modos mais frequentes de construção de linhas de ação no mundo (enredos de vida) e dos eixos comuns de construção de sentidos neste processo (temas de vida).
Com base no modelo proposto por Ribeiro (2011), a orientação de carreira deve buscar a (re)construção de carreira possibilitando que, a cada período de crise, a pessoa possa estar instrumentada subjetiva e objetivamente para atender as demandas enfrentadas para o desenvolvimento de sua carreira por meio de um processo de reconstrução contínua do projeto e da trajetória de trabalho. A orientação de carreira oferecerá, então, um espaço de mediação que garanta uma continência inicial, o resgate do vínculo com o social pela reconstrução identitária e do projeto de vida, e a possibilidade da autonomia pela consolidação psicossocial de um plano de ação.
A instrumentação cumpre o papel de auxiliar a pessoa a dar continuidade ao seu desenvolvimento de carreira sempre que uma nova crise surgir. Este termo significa o desenvolvimento de discursos e estratégias para a relação e a construção de projetos e trajetórias no mundo sociolaboral, que tem duas dimensões: (a) instrumentação subjetiva que ocorre por meio da reconstrução identitária e do projeto de vida, via construção de significados e práticas, e (b) instrumentação objetiva, definida pelo desenvolvimento de estratégias operacionais para construção de projetos no mundo, bem como para inserção sociolaboral por meio da utilização de seu repertório de competências, práticas e significados, que são transformados em instrumentos para planejar a ação e agir sobre o mundo.
Modelo de proposta de orientação de carreira para pessoas vivendo com sofrimento mental
Primeiramente, deve-se delimitar o marco estratégico desse trabalho tentando responder a seis perguntas básicas que todo projeto de intervenção deve responder.
1) Para quem é destinada a orientação de carreira?
A orientação de carreira foi idealizada para auxiliar pessoas que tenham vivido uma experiência de crise psicótica, tenham sido atendidos em equipamentos de saúde mental, não estejam mais em crise e busquem retornar à vida social no sentido de retomarem a possibilidade de dialetizar nas relações sociais, retirada com a crise psicótica e com a rotulação de "psicótico" ou "louco" que lhes foi atribuída social e cientificamente.
2) Quando deve ocorrer a orientação de carreira?
A orientação de carreira deve ocorrer após o tratamento da pessoa em crise, após ela já ter conseguido elaborar sua experiência (resgate do ser), e antes dos programas de reabilitação social (resgate do ser ao fazer em relação), nos quais a pessoa é auxiliada a voltar às suas relações sociais. Esse momento é importante, pois uma volta prematura às relações sociais pode desencadear novas crises que, quando ocorrem seguidamente, vão diminuindo cada vez mais a possibilidade dessa volta.
3) Onde a orientação de carreira deve acontecer?
A orientação de carreira não deve estar vinculada diretamente a um espaço de saúde mental, como hospitais, ambulatórios e CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), pois esses espaços são caracterizados como destinados a pessoas com problemas de saúde. Portanto, a orientação de carreira deve ocorrer em espaços comunitários destinados à população em geral que busca auxílio para demandas relativas à carreira, como forma de marcar que o fato de ter tido uma crise psicótica não o diferencia do restante da população. Diante disso, a orientação de carreira pode ter espaço em centros de orientação profissional de universidades, sindicatos, escolas e clínicas ou em espaços institucionalizados para tal atividade, como o CECCO (Centro de Convivência e Cooperativas).
4) Para que a orientação de carreira existe?
O principal objetivo da orientação de carreira é resgatar e desenvolver o potencial de contratualidade social (Saraceno, 2001), entendida como a possibilidade de obrar e estabelecer trocas nos espaços públicos de relação social, como o espaço do trabalho, ou seja, resgatar o potencial de dialetizar nas relações sociais através do resgate do processo de construção e reconstrução identitária, do projeto de vida e do plano de ação no trabalho. Visa propiciar um espaço intermediário de desconstrução da concepção estigmatizante de "louco" que o sujeito tinha de si; avaliação e percepção da situação em que o projeto de vida se encontra; reconquista de um espaço para desenvolver seu potencial de contratualidade social; e resgate da identidade de trabalho.
5) Como funciona a orientação de carreira?
O enquadre da proposta pressupõe: periodicidade semanal, 20 encontros individuais ou grupais de 60 a 90 minutos, sendo a modalidade grupal composta por grupos homogêneos (destinados somente a pessoas vivendo com sofrimento mental) e fechados de cinco a dez pessoas (para facilitar o vínculo grupal e a realização da tarefa), realizados em sistema de cocoordenação para distribuição dos vínculos e acompanhamento mais próximo.
Há um sistema de triagem, no qual os interessados são convidados a participar de uma reunião inicial aberta em que lhes é apresentada a proposta e eles escolhem participar ou não da orientação de carreira, que é baseada em uma regra geral e dois princípios. A regra geral é que precisam estar no momento do tratamento em que estejam mais estabilizados e demandem principalmente uma reinserção social para refletir sobre o retorno ou ingresso no mundo do trabalho. Os dois princípios são a recomendação dos profissionais de saúde mental que os atendem e o desejo pessoal de participar ou não de uma orientação de carreira. A prioridade é o atendimento grupal, mas, caso não haja pessoas suficientes para formação de um grupo, são realizados encontros individuais.
A estratégia pressupõe encontros individuais ou oficinas grupais permanentes divididas em cinco fases, sendo que, a cada fase, deverá ser desenvolvido um projeto, inicialmente em parceria e, ao final, individual. O objetivo dos projetos é instrumentar objetiva e subjetivamente as pessoas para lidarem com as constantes crises a que estarão submetidas em suas carreiras, se decidirem retomá-las.
As fases são as seguintes:
a) Formação da membrana grupal; aceitação da exclusão de pessoas tendo como fator determinante a sua "doença"; e fortalecimento do self pela reapropriação gradativa sobre si por meio do relato da sua história de vida e pela oportunidade da construção de uma nova possibilidade de ser (processo de reapropriação da trajetória de vida e de reconstrução identitária).
b) Passagem do estado passivo para o ativo pela sustentação em um projeto com a inclusão dos aspectos vitais e não doentes de cada um (processo de reconstrução do projeto de vida).
c) Tentativa individualizada de construção de projetos, buscando a construção de estratégias operatórias (processo de construção de um plano de ação).
d) Pesquisa de possibilidades concretas de ação pela integração de todos os aspectos da pessoa inserida em um contexto sociocultural (processo de construção de um plano de ação).
e) Elaboração de um projeto de vida inserido em um projeto social por meio da intermediação do trabalho, partindo da participação ativa pessoal e social (integração entre projeto de vida e plano de ação).
6) Quais são os pressupostos técnicos da orientação de carreira?
Toda atividade é seguida de um momento de reflexão sobre o que é realizado, ou seja, o modelo pressupõe a ação (projetos) e uma reflexão sobre a ação. O foco é o desenvolvimento de estratégias (objetivas e subjetivas) para a reconstrução contínua do projeto de vida e do plano de ação de trabalho, sendo que os projetos realizados durante o processo de orientação nunca deveriam se encerrar no grupo, mas antes alcançar a realidade externa, para retornar com elementos que ajudem na efetivação da tarefa.
Função do orientador de carreira
O orientador não teria mais o lugar de segurança daquele que sabe sobre as pessoas e o mundo do trabalho, principalmente em função da heterogeneização e complexificação das possibilidades de trabalhar no mundo contemporâneo. Portanto, deve sair da posição de orientador e assumir uma posição de intermediário, implicando ser uma ponte para a construção da carreira do outro e não aquele que sabe sobre as possibilidades para a carreira do outro e indica caminhos e alternativas.
Além disso, deve assumir que o outro também sabe, por meio do movimento da hermenêutica diatópica proposto por Santos (2003), no qual o pressuposto é que o orientador tem o conhecimento técnico e o orientando tem o conhecimento do cotidiano. Assim, a construção da carreira é o resultado desse processo de relação e intermediação entre orientador e orientando, a fim de que possa auxiliá-lo a construir uma narrativa de sua trajetória de vida com sentido para o outro (processo de coconstrução como possibilidade atual para uma orientação de carreira). Com base no marco teórico-técnico proposto, será apresentada e discutida a realização de um grupo de orientação de carreira como forma de ilustrar a proposta aqui explicitada.
Descrição e Análise De Um Grupo Realizado: A Orientação De Carreira Em Ação
Reunião inicial aberta
O primeiro passo foi convidar os interessados a participar da orientação de carreira por meio da apresentação de sua estrutura e de sua escolha em ingressar no trabalho proposto. Em geral, as pessoas buscavam a orientação motivadas pela expectativa de que fossem conseguir um emprego, mas se assustavam com a proposta de refletir acerca de seus projetos de vida no trabalho e da necessidade de uma participação ativa no processo, o que ocasionava, invariavelmente, uma reação inicial de entusiasmo (esperança) seguida do medo de não conseguir (desesperança): "Estou muito feliz, mas muito assustado. Será que vai dar certo?" (participante).
A "cura para sua doença" aparecia como condição para qualquer possibilidade de retomar sua vida de trabalho, pois o discurso da "loucura" como impossibilitador de qualquer ação sobre o mundo era uma verdade, como aponta o relato de dois participantes: "É possível trabalhar com essa doença que nós temos?" ou "Sou esquizofrênico, e esquizofrênicos não podem trabalhar".
Alguns desistiam, outros ficavam perplexos e alguns aceitavam correr o risco de experimentar algo diferente, pois tinham a percepção de que o mundo estava mais aberto para eles: "Eu já sei conviver com a minha doença, conheço essa história de cor, agora quero fazer algo diferente".
Fase 1
Tinha como objetivos o conhecimento recíproco, a reafirmação da proposta da orientação apresentada na reunião inicial e, principalmente, a formação da membrana grupal, caracterizando o espaço do grupo como um espaço artificial de continência, de reapropriação gradativa sobre si e de criação através da proposta de transformação de uma realidade estruturada (como por exemplo, reestruturar uma propaganda já realizada de um produto a partir de suas próprias ideias, experiências e competências), que se constituiria no primeiro projeto a ser desenvolvido.
"Achei muito bom fazermos todos juntos. É difícil ir sozinho."(participante)
"Foi muito bom poder me lembrar de episódios de minha vida (...), pois isso serve para pensar no futuro (...). Isso é algo que eu não consigo e não tenho vontade de fazer sozinho." (participante)
Cada projeto contaria com lições de casa (atividades a serem desenvolvidas no intervalo entre os grupos), atividades externas (como forma de estabelecer o vínculo concreto com a realidade) e situações imprevistas (para possibilitar o desenvolvimento gradativo de estratégias para lidar com crises). Quanto mais situações de desafio fossem experimentadas, mais as estratégias objetivas e subjetivas para as crises eram reforçadas.
A ideia inicial era que o grupo se constituísse em um espaço de potencialização das competências e experiências e de minimização das deficiências e dificuldades, pois isso impediria qualquer possibilidade de arriscar e tentar voltar a obrar no mundo. O espaço grupal sustentaria artificialmente o grupo e possibilitaria ser um espaço intermediário no qual todos pudessem experimentar e resgatar a capacidade criativa, pois pode exercer essa função de espaço transicional de que a pessoa que vive com sofrimento mental tanto necessita para (re)construir sua estruturação existencial por meio da ressignificação de sua história.
Fase 2
Cumprida a fase 1, na qual a consecução do projeto viabilizou o resgate da história de vida e das competências dos(as) participantes(as), o que, em tese, reforçou seu self, a fase 2 tinha como objetivos a percepção da "loucura" como uma parte da vida, e não como a vida toda; a consolidação do espaço grupal como espaço intermediário de experimentação e a possibilidade de viver o desejo e o projeto pessoal sustentados pelo desejo do outro (no caso, do grupo), caracterizando uma tentativa de iniciar o processo de construção desse projeto pessoal no seio do projeto social. Para tais objetivos, o grupo iria escolher um projeto a ser realizado (geralmente a abertura de um pequeno negócio em todas as suas dimensões) diante de várias opções trazidas pelos orientadores.
A escolha deveria levar em conta critérios realistas tanto em relação às possibilidades de cada participante, quanto ao mundo do trabalho, pois era necessário que fosse um projeto viável. Como apontou um dos participantes: "Se é para inventar, melhor não colocar, senão o trabalho fica uma brincadeira." (participante)
A retomada da história de trabalho deveria aparecer agora, não como um exemplo a mais das impossibilidades de cada um, mas como um elemento concreto para produzir algo, o que poderia gerar uma ressignificação dessa história e um impulso para arriscar na carreira novamente.
Essa atividade gerou envolvimento, afastamento e desistência, pois, se alguns estavam começando a desconstruir o discurso de "louco" que tinham sobre si próprios, nem todos conseguiam apostar em um caminho diferente para sua vida sem a marca determinante da "doença". Nesse momento, inclusive, alguns participantes costumam começar a arriscar no mundo externo pela busca de empregos ou pela volta aos estudos, comumente associados ao desenvolvimento da carreira. Esse movimento antecipava a fase 3.
Fase 3
Este era um momento-chave, pois cada um deveria idealizar um projeto individualmente sem a ajuda direta dos outros participantes, o que invariavelmente levava a duas reações distintas: (a) uma reação de crescimento e desenvolvimento, consolidando a possibilidade de realizar projetos no mundo; ou (b) uma reação de regressão ao estado no qual corroborava o discurso impossibilitante de vida ativa acerca do "louco", o que impedia a realização de projetos e podia redundar em paralisia ou até em crises.
Esse projeto reforçava a desconstrução do conceito de "louco" que tinham sobre si e resgatava a esperança de obrar no mundo. Também reforçava que esta tarefa passava por sucessos e insucessos, o que seria uma vicissitude da vida, não um fator limitante desta. Como indicou um dos participantes: "Quem nunca foi demitido? Faz parte do trabalho. Quem trabalha está sujeito a ser demitido. Só quem nunca trabalhou, nunca foi ou será demitido".
Outra constatação foi que, em um mundo em transformação constante, você deve desenvolver estratégias para lidar com as crises que terá na vida, e que isso também seria uma vicissitude da vida: "Tivemos de improvisar, não é? A vida é assim" (participante).
Período de férias
Como forma de criar um ambiente artificial de trabalho, foi proposto um período de férias que tinha como objetivos: disponibilizar uma parada no processo e um tempo para pesquisar recursos para seu projeto de trabalho e demonstrar que as experiências e as construções permanecem, não morrem e podem sobreviver na ausência do grupo, se tornando parte constituinte da história de vida.
Fase 4
O objetivo desta fase era investigar possibilidades concretas de viabilizar um projeto de trabalho através do entrecruzamento entre o que eu gosto (resgate dos interesses), o que eu quero (resgate do desejo) e o que existe para mim (pesquisa de possibilidades concretas de ação em classificados de jornais, conversar com amigos, busca de cursos).
Basicamente, este projeto possibilitou uma visão integrada e contínua da vida laboral, o que permitiria identificar potencialidades, mas também antecipar dificuldades e obstáculos, resgatando o processo dialético de construção e reconstrução da identidade e do projeto de vida, como relatou um dos participantes: "Estou pesquisando bastante e acho que vou voltar a estudar. Há uma escola técnica ao lado da minha casa que eu não conhecia. Fui lá ver quais cursos tinha e acho que vou estudar lá, é muito bom lá".
As fases 4 e 5 cumpririam o papel de crescente diferenciação entre espaço psíquico e espaço grupal pelos participantes, permitindo que cada um assuma novamente e de forma gradativa a sua vida como pessoa, e não mais como membro do grupo somente.
Fase 5
A fase 5 buscou a finalização da elaboração do projeto de vida e do plano de ação de trabalho de cada um, bem como a avaliação do processo. Em geral, obteve-se como resultados que todos os participantes que concluíam o processo conquistaram algo em suas vidas, seja no sentido de retomar seu projeto de trabalho (objetivo central da orientação de carreira); ou de perceber a si mesmo e sua situação de vida em termos de possibilidades e impossibilidades; ou ainda de que, apesar das crises, as pessoas o viam como alguém que poderia algo além de ser um "doente".
O que unia essas pessoas foi a desconstrução da concepção de "louco" que tinham de si, que poderia resgatar a possibilidade de voltar a trabalhar na construção de si e do mundo, perdida com a crise psicótica, através do resgate da sua identidade. É importante lembrar que, sem suporte social, nada disso seria possível.
Avaliação dos resultados e limitações da proposta
Fazendo uma breve síntese dos resultados alcançados, pode-se dizer que 35% dos participantes cumpriram os objetivos propostos pela orientação de carreira ou aproveitaram o trabalho desenvolvido de alguma maneira.
a) Aproximadamente, 10% dos participantes conseguiu experimentar e fazer projetos de carreira concretizados em atividades de geração de renda e/ou conseguiu retornar à educação ou à qualificação;
b) Houve uma apropriação singular do processo por parte de 25% dos participantes que conseguiram experimentar e se desenvolveram, principalmente fazendo tentativas de sair do papel de "louco e incapaz" através do envolvimento em atividades cotidianas familiares, como ir ao banco, ajudar na limpeza da casa e fazer compras, ou então não conseguiram experimentar e tiveram clareza dos motivos, ou seja, compreenderam os motivos que os impediam no momento de construir um projeto de carreira, mas apostavam que poderiam fazê-lo em um futuro próximo.
Do outro lado, o restante dos participantes (65%) teve dificuldades nesse processo, o que fez com que alguns não conseguissem experimentar e:
a) Optassem em permanecer acomodados na posição de assistidos sociais em função de sua "loucura" (25%);
b) Não conseguissem experimentar e não tivessem clareza dos motivos, pois tentavam fazer projetos, mas não compreendiam porque não conseguiam concretizá-los (16%);
c) Desistissem, pois estavam em crise e não conseguiam pensar em projetos futuros, ou entraram em crise em função das demandas da orientação de carreira (10%); faziam parte de uma dinâmica familiar que os impedia de se desenvolver (4%); ou estavam acomodados na aposentadoria por invalidez (10%).
Em geral, as desistências ocorrem por diversas causas e têm base nas três dimensões da vulnerabilidade psicossocial anteriormente indicadas, a saber: questões orgânicas e psíquicas geradas pelo sofrimento mental (vulnerabilidade pessoal), questões sociais geradas principalmente pela estigmatização e pouca abertura de espaços no mundo do trabalho para pessoas vivendo com sofrimento mental (vulnerabilidade social) e ausência de política públicas específicas (vulnerabilidade programática).
Apesar da potencialidade da proposta de orientação de carreira descrita, ela apresenta uma série de limitações e dificuldades, das quais se pode citar:
a) A proposta é destinada somente a um grupo limitado de pessoas vivendo com sofrimento mental, não todas que estão nessa condição (vulnerabilidade pessoal).
b) A eficácia da proposta depende diretamente de recursos externos, como apoio familiar, continência comunitária e abertura do mundo do trabalho para acolher pessoas vivendo com sofrimento mental (vulnerabilidade social).
c) Uma parte considerável das pessoas desiste, pois elas ainda não estão em condições de retomar suas carreiras em função da vulnerabilidade psicossocial a que estão submetidas.
d) A orientação de carreira só poderá ter algum sucesso se vinculada às comunidades e instituições.
e) O estigma com relação à doença mental ainda é forte e não há quase iniciativas de proteção por parte do poder público, como propostas de ação afirmativa (Salis, 2011), o que aponta para as dimensões sociais e programáticas da vulnerabilidade.
f) Movimentos de estagnação e de paralisia são recorrentes durante todo processo de orientação (vulnerabilidade pessoal).
CONCLUSÕES
A proposta de uma orientação de carreira para pessoas vivendo com sofrimento mental de base psicossocial amplia a possibilidade de auxílio a esse grupo de pessoas, principalmente os jovens, pois, sem negar a existência de fatores psíquicos, orgânicos e sociais limitantes, propõe considerá-los, sem torná-los impossibilitadores das atividades sociais reconhecidas, como é o caso do trabalho.
Reconhece-se que viver com sofrimento mental é estar exposto a vínculos geradores de vulnerabilidades nas três dimensões apontadas (pessoal, social e programática), mas que também há dois tipos principais de posições com relação à construção de projetos de carreira:
a) A posição que a menor parte ocupa de conseguir, mesmo que parcialmente, construir projetos de carreira, os quais podem ser potencializados pela orientação de carreira ao promover a possibilidade de falar de si e de seus projetos, ao retomar sua história profissional de uma forma mais consciente e crítica e percebendo que não era o único responsável pelo fracasso ou sucesso de sua vida, ao ter maior consciência das perdas geradas por sua situação de sofrimento mental, ao visualizar obstáculos e possibilidades para o seu futuro projeto, e ao acreditar que há vida apesar do sofrimento mental, contribuiu significativamente para a desconstrução da concepção de "louco" que tinham de si mesmos.
b) A clara dificuldade da maioria diante da necessidade de agir sobre o mundo de forma estável, impedindo, total ou parcialmente, a construção de projetos de carreira, muitas vezes clarificada ao longo da orientação de carreira.
Apesar das limitações e dificuldades da proposta de orientação de carreira apresentada, ela pode abrir uma nova possibilidade de intervenção no campo da Orientação Profissional e de Carreira, que amplia seu espectro e suas estratégias de ação por conta das novas demandas de um mundo em transição, como complementar às intervenções realizadas no campo da Saúde Mental, resgatando a esperança de criação de espaços diferenciados para a pessoa vivendo com sofrimento mental, tendo o projeto de vida no trabalho como foco. Mas é importante ressaltar que sem a abertura de espaços de experimentação no seio do projeto social, a orientação de carreira seria apenas mais um esforço subjetivo (psicológico) de alcance reduzido e limitado, ou seja, o projeto e o plano de ação de trabalho são sempre psicossociais e a vulnerabilidade não é uma questão somente pessoal.
Enfatizamos como mais importante a abertura de espaços comunitários, que, na condição de espaços intermediários, permitem a troca dialética entre o social (objetivo) e o individual (subjetivo).
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Endereço para correspondência:
Marcelo Afonso Ribeiro
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Brasil)
Av. Prof. Mello Moraes, 1721
São Paulo-SP - CEP 05508-030
Telefones: 55-11-30914184 / 55-11-30914188 / 55-11-30914174 / 55-11-30911968
E-mail: marcelopsi@usp.br
Recebido em: 30.09.2013
Primeira decisão editorial em: 19.11.2014
Versão final em: 30.11.2014
Aceito em: 02.12.2014
1 O fenômeno da "loucura" foi colocado entre parênteses para destacar que é uma categoria de significação e nomeação que está em mudança, e muda porque o mundo, como um todo, tem vivido momentos de transição, no qual modelos consolidados seguem atuando, mas não mais hegemonicamente, e novos modelos surgem para conviver com os já estabelecidos.
2 A ideia de utilizar a expressão vivendo com é inspirada na proposta de Paiva, Ayres e Buchalla (2012) como estratégia ético-política de enfrentamento da redução da pessoa a uma situação vivencial presente e sua consequente rotulação a partir dessa situação, potencialmente geradora de estigmas sociais acarretando a geração de situações de vulnerabilidade psicossocial em função desse processo. Por exemplo, quando se reduz uma pessoa vivendo com sofrimento mental à condição de "louca", ela fica submetida ao estigma social associado a esta condição.
3 Optou-se por utilizar o termo orientação de carreira ao invés de orientação profissional, que representa melhor a tradição brasileira. Esta escolha se justifica porque, no campo da orientação mundial, o termo mais utilizado é career counseling, e o diálogo internacional se faz importante. Entretanto, considera-se que, de acordo com a história do aconselhamento e da orientação no Brasil, a melhor tradução para counseling seja orientação, e não aconselhamento, por isso a utilização do termo orientação de carreira.