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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.14 no.4 Florianópolis dez. 2014
SEÇÃO PONTO E CONTRAPONTO
Empresas juniores de psicologia: capacitar, desenvolver e transformar
Junior enterprises in psychology: training, developing, and transforming
Adriano de Lemos Alves Peixoto
Administrador e Psicólogo, PhD em Psicologia pelo Instituto de Psicologia do Trabalho da Universidade de Sheffield - Inglaterra. Bolsista de Pós-doutorado da CAPES no Instituto de Psicologia da UFBA. Atualmente é presidente da SBPOT - Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho
RESUMO
Ao longo dessa apresentação procurei demonstrar que o espaço de formação proporcionado pelas EJ faz sentido político, educacional e pedagógico para a Psicologia, de modo geral, e para a sub área de POT, de forma específica. Espero ter deixado claro que a natureza da resistência que elas enfrentam decorre de uma visão particular sobre nossa profissão e sobre a própria função da universidade. Argumentei ainda, que as EJs se apresentam como uma atividade extracurricular que permite a complementação da formação para os estudantes que dela se aproximam e que seus benefícios não são exclusivos. Outros tipos de atividades formativas podem oferecer resultados assemelhados. Entretanto, seus benefícios justificam a sua existência e funcionamento. Por fim, apresentei as principais formas que vêm sendo utilizadas para resolver a questão da relação entre as EJs e as universidades em função de sua natureza jurídica.
Palavras-chave: empresa junior, POT, formação, diversidade.
ABSTRACT
Throughout this presentation I have tried to show that the training space provided by the JEs makes political, educational, and pedagogical sense for Psychology, in general, and for the work and organizational psychology sub area, specifically. I hope I have made it clear that the nature of the resistance they face stems from a particular view of our profession and about the role of the university itself. I have also argued that the JEs are presented as an extracurricular activity that offers complementary training for students who participate in this activity, and that its benefits are not exclusive. Other types of training activities can offer similar results. However, its benefits justify its existence and operation. Finally, I have presented the main ways being used to address the issue of the relationship between JEs and universities due to its legal nature.
Keywords: junior enterprises, POT, formation, diversity.
Meu primeiro contato com o movimento Empresa Júnior (EJ) foi puramente acidental. Sabia de sua existência, mas nunca havia participado diretamente, nem como aluno, nem como professor, até o dia em que fui convidado para dar uma aula aos membros da Empresa Júnior de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Psicojunior, coisa que eles, por algum motivo, chamavam de capacitação. Depois, veio um segundo e um terceiro convites e, quando dei por mim, percebi que havia sido adotado pela Psico (forma carinhosa como eles se autodenominam) como um de seus professores orientadores.
Além de participar da capacitação dos empresários juniores, a partir de demandas que eles apresentavam em função de seus problemas e dificuldades, passei a solicitar, em nome da universidade, alguns trabalhos para a Psico. De forma mais específica, eles fizeram três pesquisas sobre a imagem da UFBA: uma com alunos; uma com professores e funcionários; e a terceira com estudantes de pré-vestibular, cursinho, professores, agências de intermediação de mão de obra e gerentes de recursos humanos (RH). O produto deste trabalho forneceu subsídios para pensar ações de melhoria da gestão da universidade, sendo, posteriormente, incorporado aos relatórios de gestão apresentados ao Ministério da Educação (MEC).
Confesso que meus primeiros contatos foram marcados pela curiosidade. Em função de minha formação e atuação profissional, olhava para a Psico com olhos de gestor e, a partir dessa perspectiva, achava que faltava objetividade às suas atividades, mais agressividade no contato com o mercado e que a estrutura organizacional poderia ser diferente. Levou algum tempo até eu entender que o olhar de empresário não era o mais adequado para aquele conjunto de atividades que acompanhava. Então, com o aprofundamento de minha vivência com o pessoal da Psico, pude perceber que meu estranhamento vinha de uma perspectiva equivocada sobre a natureza da atividade de uma EJ. Apesar de o nome (empresa) e de sua estrutura organizacional (presidência, diretoria, marketing, projetos...), a Psico é, fundamentalmente, uma atividade educacional e não uma iniciativa empresarial.
Em agosto de 2014 tive a oportunidade de participar da festa de 15 anos da Psico, realizada em um dos auditórios da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, lotado de estudantes, ex-estudantes, amigos e familiares. Em determinado momento, a mãe de uma das empresárias juniores pediu licença para falar e começou a destacar o envolvimento, a dedicação e a entrega da filha à EJ (esta foi a primeira vez que vi familiares na universidade que não fosse na solenidade de formatura). Ela, professora universitária, falou como inicialmente não compreendia e resistia ao nível de envolvimento da filha nessa atividade, mas que, com o passar do tempo, percebeu um crescimento e um amadurecimento tão expressivo que ela agora se mostrava uma entusiasta e admiradora da EJ e do trabalho realizado pela filha. Ela dava testemunho público da transformação de sua filha e do desenvolvimento de um conjunto de competências e valores dos quais ela, como mãe, se orgulhava.
Ao ingressar em uma EJ, o estudante se vê como o principal responsável pela existência e pelo funcionamento daquela organização, reconhece que seu trabalho e esforço representam mais um elo em uma corrente que se formou antes de seu ingresso e que ele tem a responsabilidade de dar continuidade ao trabalho e aos esforços de todos aqueles que o precederam. Na EJ, o estudante é o protagonista da sua própria formação. É justamente esse envolvimento pessoal e emocional com a atividade que constitui o substrato sobre o qual o estudante aprende e se desenvolve.
Minha experiência mostra que os alunos que passam pela Psicojunior tornam-se profissionais diferenciados, que demonstram profundo senso de responsabilidade, grande dedicação, comprometimento com suas atividades e enorme disposição para aprender, além de serem pessoas que assumem responsabilidades por seus atos e enfrentam desafios. Hoje considero-me um entusiasta do Movimento Empresa Junior e entendo que é o tipo de iniciativa que deve ser apoiada pelos professores dos cursos aos quais as EJs se encontram vinculadas. Acredito que esse seja o motivo pelo qual a rPOT me convidou para escrever sobre este tema, que marca a abertura da seção Ponto e Contraponto.
Após essa introdução de caráter mais pessoal e emocional, pretendo apresentar meus argumentos a favor das EJs na seguinte sequência: começo com a definição básica do que é uma EJ e apresento algumas de suas principais características. Sigo argumentando que as controvérsias sobre o funcionamento das EJs situam-se na confluência de disputas político-ideológicas, uma específica da psicologia e uma mais geral focada em uma visão particular sobre o papel da universidade pública. Depois, tentarei discutir as EJs como um campo de formação que permite operacionalizar os objetivos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a psicologia e apresento algumas evidências sobre as competências dos estudantes desenvolvidas em função da atuação nas EJs. Desse ponto, passo para uma última reflexão sobre a inserção das EJs nas instituições públicas e, por fim, apresentarei uma breve conclusão, onde tento fechar as ideias e os argumentos apresentados.
O que é uma EJ?
Na seção anterior sugeri que uma EJ deve ser compreendida como uma atividade pedagógica e não como uma atividade empresarial propriamente dita. As razões para tal são facilmente compreendidas: a empresa se caracteriza pela junção de elementos de natureza jurídica e econômica que não estão presentes nas EJs a despeito de sua denominação.
O conceito econômico de empresa se estabelece, segundo Requião (2003), pela "[...] combinação de elementos pessoais e reais, colocados em função de um objetivo econômico, e realizada em vista de um intento especulativo de uma pessoa, que se chama empresário". Para poder ser denominada de empresa a atividade organizada precisa ter um claro fim econômico. Desenvolvendo este argumento um pouco mais, Coelho (2005) aponta, de forma inequívoca, que o objetivo econômico implica necessariamente a geração de lucro. Ou seja, uma empresa tem como uma de suas características fundamentais a busca pelo lucro. Esse é um elemento tão importante a ponto de Requião (2003) nos lembrar, no seu Curso de Direito Comercial, que "o conceito jurídico de empre sa se assenta nesse conceito econômico" (p.50).
De uma perspectiva legal, não existem controvérsias ou discussões sobre a forma como deve ser constituída uma Empresa Júnior. Existe uma orientação claramente estabelecida pela Confederação Brasileira de Empresas Juniores no documento intitulado Conceito Nacional de Empresa Junior (Brasil Junior, 2012) que em seu art. 2º estabelece:
As empresas juniores são constituídas pela união de alunos matriculados em cursos de graduação em in stituições de ensino superior, organizados em uma associação civil com o intuito de realizar projetos e serviços que contribuam para o desenvolvimento do país e de formar profissionais capacitados e compro metidos com esse objetivo. (grifo nosso)
Já o art. 53 do Código Civil Brasileiro indica que as associações caracterizam-se pela união de pessoas organizadas para fins não econômicos (Lei nº 10.406, 2002). Se as associações têm fins não econômicos elas não podem se orientar para o lucro e, portanto, não podem ser consideradas como empresas. Ou seja, tanto de uma perspectiva econômica como de uma perspectiva jurídica/legal, uma EJ não é uma empresa, apesar de sua denominação.
Isso não significa que uma EJ não possa obter um resultado financeiro a partir de suas ações, mas a legislação veta expressamente que ele seja distribuído entre seus participantes, da mesma forma que a regulamentação da Brasil Júnior proíbe que a instituição de ensino superior também se beneficie diretamente do resultado do trabalho das EJs. Assim, todos os recursos eventualmente gerados pelo trabalho desenvolvido por uma EJ devem ser revertidos para a sustentação da própria atividade, para a capacitação e para o desenvolvimento de seus membros. Esse é um elemento central para a compreensão do que é e do papel de uma EJ.
A realização desse objetivo de desenvolvimento e capacitação ocorre pela vivência quasi empresarial, por meio da realização de projetos e serviços na área de atuação específica da formação que está sendo realizada pelo estudante. As EJs têm como clientes potenciais (preferencialmente) micro e pequenas empresas e organizações do terceiro setor que normalmente não têm acesso ao tipo de serviço que elas prestam em função dos custos de contratação no mercado. Outro objetivo igualmente importante é o de fomentar o empreendedorismo entre seus membros associados (Brasil Junior, 2012).
As empresas juniores são totalmente geridas pelos estudantes que as compõem, tanto nos seus aspectos técnicos quanto nos seus elementos de gestão da organização. Entretanto, isso não significa que eles atuem sozinhos ou isolados. Sua atividade normalmente é registrada como um projeto de extensão contínua, ainda que hoje esta seja uma recomendação e não uma imposição legal, e sua ação ocorre sob constante supervisão de um ou mais professores orientadores (Oliveira, 2003).
Não existe um número preciso sobre quantas EJs estão em funcionamento no país atualmente. O censo realizado pela Brasil Júnior em 2012 trabalhou com uma amostra de 365 EJs e um total de 7.785 membros. Entretanto, Oliveira (2003) fala em mais de 600 empresas e 15 mil estudantes, ao passo que Campos (2012) estima existirem no Brasil cerca de 1.120 EJs perfazendo um total de 27.800 participantes. Em parte, essa divergência é justificada pelo fato de que nem toda EJ encontra-se federada à Brasil Júnior e existem, ainda, casos de não resposta ao censo. De qualquer forma, mesmo que o número total de EJs não seja conhecido, ele é bastante expressivo.
A maioria das EJs (87,4%) encontra-se vinculada a universidades públicas, federais (63,83%) ou estaduais (23,56%) (Brasil Junior, 2012b). Esse dado sugere uma inserção em um contexto pedagógico-educacional diferenciado em relação ao próprio perfil das universidades no país, as quais são predominantemente privadas, indicando que o caldo de cultura mais propício ao surgimento das EJs é público, diverso e democrático.
Antes de seguirmos, é preciso observar que, nesse texto, foco especificamente nas EJs de psicologia e assumo que elas atuam em Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT). Na verdade, isso corresponde a um estreitamento de suas possibilidades de atuação. Não existem impedimentos de que a mesma EJ reúna mais de um tipo de subárea da psicologia ou mesmo que tenha mais de um curso vinculado a ela. De fato, 42% das empresas juniores no país estão vinculadas a mais de um curso simultaneamente (Brasil Junior, 2012), sendo esta é uma estratégia de organização interessante, pois abre a possibilidade de uma efetiva ação interdisciplinar já na graduação.
As EJs no centro de uma disputa ideológica
Do meu tempo como estudante do curso de Psicologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), guardo vivas memórias das aulas e das discussões sobre história da psicologia, uma disciplina ministrada logo no primeiro semestre. Era fascinante descobrir um campo de conhecimento que se apresentava como novo e antigo simultaneamente. Percebíamos que questões atuais sobre a natureza e o comportamento humanos já haviam sido postas e discutidas há muito tempo, demonstrando uma clara continuidade vital entre o passado e o presente em termos do objeto de estudo (Shultz & Shulz, 1994, p.17).
Mais fascinante ainda era descobrir as múltiplas e variadas respostas oferecidas a esses mesmos problemas ao longo do tempo pelas diversas escolas de pensamento, pelos inúmeros sistemas e teorias psicológicas, configurando aquela que talvez seja uma de nossas características mais importantes: a diversidade. O que se iniciava como uma discussão sobre a natureza pré-paradigmática da psicologia como ciência (Kuhn, 1997), direcionava-se ao reconhecimento da complexidade e da multideterminação do nosso objeto de investigação e atuação e a consequente incapacidade de apreensão deste objeto a partir de uma única abordagem teórica ou perspectiva metodológica (Gleitmen, Erindlund & Reisberg, 2005). Tudo isso confirmava uma situação em que se afirmava a existência de vários tipos de psicologia que interagem e interpenetram-se mutuamente (Hewstone, Fincham & Foster, 2005; Kosslyn & Rosenberg, 2006).
A questão da diversidade é fundamental para o argumento que procuro desenvolver neste texto por dois motivos distintos: primeiro, ela circunscreve o lugar de onde falo, ou seja, estabeleço um pressuposto para minha argumentação, sinalizando a base sobre a qual considero que o debate sobre as EJs seja possível. Se o leitor aceita essa perspectiva, existe a possibilidade de estabelecermos um diálogo, no sentido original da palavra grega, que quer dizer troca através da palavra, o que julgo ser um elemento fundamental para o debate proposto pela revista. O segundo é que, se o leitor parte da concepção mais restrita da psicologia, por uma limitação de suas práticas, de seus espaços de atuação, de seus métodos ou objetos, receio não haver como trocar e, portanto, creio que o diálogo não seja possível.
Essa concepção plural da psicologia tem implicações sociopolíticas que vão além do domínio teórico-metodológico específico do campo do saber. Ela se constitui a partir do reconhecimento de que a diversidade estabelece uma rede de múltiplos interesses entre os diversos atores do processo de produção do conhecimento e do fazer psicológico que não podem ser negados, nem desconhecidos. De forma análoga, eles não podem ser sumariamente eliminados pela eventual hegemonia de uma escola, teoria ou sistema psicológico. Assim, o processo político de constituição do campo pressupõe negociação, conformação e aceitação de mínimos denominadores comuns sobre quais práticas são aceitáveis e legítimas.
Nesse ponto, precisamos fazer uma reflexão acerca das razões pelas quais as EJs de psicologia têm enfrentado dificuldades em algumas instituições de ensino superior, especialmente as públicas. Seria ingênuo achar que essa resistência encontra-se dissociada do fato de elas serem loci privilegiado de formação de estudantes com interesse específico na área de POT em função de sua forma, natureza e objetivos. Assim, considero que, para compreensão adequada dos problemas enfrentados pelas EJs, precisamos abordar essa questão na perspectiva de um movimento mais amplo de resistência à nossa subárea, que tem longas raízes históricas (p. ex. Codo, 1984). Essa resistência às vezes se manifesta em nome de uma suposta atuação crítica do profissional de psicologia ou, ainda, em nome da realização de um projeto ético-político (CFP, 2013, p.15) que seria incompatível com a atuação em POT. Nesses casos, ela (a POT) tem sido tradicionalmente associada à defesa dos interesses do capital em detrimento de abordagens que teriam seu foco no bem-estar e na saúde mental do trabalhador (Mehry-Silva, 2008).
Essa resistência vem se apresentando de múltiplas formas e intensidades ao longo do tempo, tendo se energizado em um período recente levando a própria Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT) a se pronunciar formalmente em três ocasiões distintas: contra tentativas de construções de identidades restritivas para a psicologia brasileira (SBPOT, 2007); contra uma visão reducionista, estereotipada e maniqueísta da POT que, por ignorar ou falsificar a própria evolução histórica de nossa subárea, busca identificar no campo do Trabalho virtudes redentoras da sociedade, ao passo que associa-se ao campo das Organizações defeitos sociais (SBPOT, 2009); e em defesa das próprias EJs de psicologia que atuam em POT (SBPOT, 2013).
Na verdade, essa resistência é mais ampla e extrapola o espaço específico da psicologia. Ele vem no bojo de uma luta ideológica contra tudo que lembre o capitalismo ou o mercado de alguma forma, e a noção de "empresa" que acompanha as EJs, desperta essa resistência (é o que podemos ver, por exemplo, em Bicalho & De Paula, 2012). Em relação às universidades públicas, esse elemento ideológico se expressa na disputa pela extensão universitária popular (e as EJs normalmente são atividades de extensão), que deve ser voltada exclusivamente para demandas dos movimentos populares e sociais (MUP, 2009).
Em outras palavras, considero que as disputas em torno das EJs de Psicologia podem e devem ser compreendidas pelo fato delas se situarem na confluência de dois movimentos político-ideológicos distintos, um de caráter geral em torno do papel da universidade, e um específico da psicologia que se ancora em uma visão estreita da área.
É importante ressaltar o fato de que a atuação em POT não é isenta de polêmicas tensões e contradições (Tomanik, 2003), mas afirmo que esta é uma característica da profissão e não um elemento específico da subárea. É nesse sentido que Bastos, Yamamoto e Rodrigues (2013) lembram, com bastante propriedade, que nossa atuação profissional não ocorre em um vácuo social, mas é marcada por uma realidade social complexa, multifacetada e contraditória dela mesma.
Falar em um projeto ético-político único para um campo e uma profissão tão plural dá a impressão de autoritarismo por considerar que existe a possibilidade de uma unidade ou uma identidade única em uma ciência e uma profissão tão multifacetada. Ou seja, "[...] um projeto ético-político para a profissão não suprime, portanto, as divergências, mas deve ser cons truído, se possível, apesar da existência dessas diferenças e das suas contradições internas" (Yamamoto, 2012, p. 14).
A partir dessa perspectiva político-ideológica, a defesa das EJs é a negação explícita do monopólio do compromisso social a partir de um referencial teórico específico.1 Aceitar essa restrição de atuação é negar a própria constituição da psicologia e sua história, admitir que existe apenas uma forma de ação social legítima e que apenas um segmento de profissionais pensa e atua de uma forma específica (em função do alinhamento a um referencial teórico) apresenta essa qualidade tão valorizada (Bastos, Yamamoto & Rodrigues, 2013) que é a capacidade de pensar e agir de forma crítica.
Como mencionei, existe um segundo motivo para a centralidade do conceito de diversidade na argumentação em favor das EJs: ela está na base das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o curso de psicologia e, consequentemente, ocupa um lugar central na formação do psicólogo.
Na seção seguinte, discuto como as EJs podem contribuir para a realização dos objetivos formativos previstos nas DCN.
A contribuição das EJs para a formação do psicólogo organizacional e do trabalho
As DCN são marcos legais que têm por objetivo servir de referência para as instituições de ensino superior "[...] na organização de seus programas de for mação, permitindo flexibilidade e priorização de áreas de conhecimento na construção dos currículos plenos" (MEC, 2003). Há um reconhecimento de que o modelo das DCN constitui-se em um avanço sobre o modelo anterior de currículo mínimo. O novo modelo se estrutura sobre a concepção de aquisição de competências e habilidades para a formação e o exercício profissional (Brasileiro & Rebello de Souza, 2010) em vez de oferecer uma estrutura única e rígida para todo o país, que desconsidera as especificidades e as necessidades de contextos locais, a autonomia das instituições e a flexibilidade das possíveis trilhas formativas.
Especialmente no nosso caso, as DCN preveem a formação ampla do psicólogo, respeitando a multiplicidade de suas concepções teóricas e metodológicas originadas em diferentes paradigmas e modos distintos de compreender a ciência, assim como a diversidade de suas práticas e contextos de atuação (MEC, 2004). Em outras palavras, o reconhecimento e a aceitação da diversidade pelas DCN garantem, simultaneamente, uma formação homogênea e generalista para o psicólogo (Bardagi et al., 2008). Assim, ao deixar a universidade, o profissional estaria, em tese, apto a trabalhar em qualquer área de atuação que caracterize a profissão. Esses elementos encontram-se explícitos em seu texto, nos incisos do art. 3º, que apresentam os princípios e compromissos que devem guiar a formação:
II - compreensão dos múltiplos referenciais que bus cam apreender a amplitude do fenômeno psicológico em suas interfaces com os fenômenos biológicos e sociais;
III - reconhecimento da diversidade de perspectivas necessárias para compreensão do ser humano e incen tivo à interlocução com campos de conhecimento que permitam a apreensão da complexidade e multide terminação do fenômeno psicológico (MEC, 2011).
Este é o motivo pelo qual Bernardes (2012) considera as DCN um marco histórico da psicologia bra sileira, já que ela foi fruto de "[...] debates, de relações de poder e de intensas negociações entre diversos atores/ autores e instituições" (p.220).
A operacionalização desses princípios e compromissos se dá pela aquisição de um conjunto de competências e habilidades gerais que todo profissional de psicologia deve ter. Nas DCN, existe a previsão de seis competências. Entre elas, destaco o inciso V do art. 4º:
V- Administração e gerenciamento: os profissionais devem estar aptos a tomar iniciativas, fazer o ger enciamento e a administração da força de trabalho, dos recursos físicos e materiais e de informação, da mesma forma que devem estar aptos a serem em preendedores, gestores, empregadores ou líderes nas equipes de trabalho (MEC, 2011).
Considero que há dois motivos principais para o destaque às competências de administração e gestão: o primeiro faz uma óbvia referência à necessidade do profissional de psicologia ocupar espaços de decisão participando diretamente das equipes de gestão nas organizações onde atua e influenciando as ações e práticas nesses contextos. O segundo, e mais importante motivo para essa competência básica específica, diz respeito ao fato de que, possivelmente à exceção da clínica individual, todas as outras formas de exercício profissional ocorrem em algum tipo de organização de trabalho, seja ela privada, pública ou do terceiro setor. Mesmo atuando em outras subáreas da psicologia, o profissional sofrerá permanente interferência do contexto de trabalho. Ele precisará compreender e frequentemente atuar sobre processos organizacionais ou trabalhistas se quiser desenvolver sua atividade de forma satisfatória, como podemos ver em Martinez (2010) ao se referir sobre as possibilidades de atuação do psicólogo no contexto escolar.
Esse padrão de formação generalista previsto nas DCN tem como vantagem a possibilidade de uma ampla visão sobre o campo e uma grande mobilidade quanto às possibilidades de exercício profissional. Entretanto, essa estratégia também tem suas desvantagens. A formação básica oferecida pelos cursos de graduação não dá conta das necessidades de especialização da profissão. Esse é um fato mais do que reconhecido em nossa literatura, que pode ser percebido, por exemplo, nas críticas feitas à formação em relação à atuação no hospital (Torezan et al, 2013), em saúde mental (Ribeiro & Luzio, 2008) e no sistema de saúde (Poppe & Batista, 2012).
Poucas são as matérias específicas relacionadas à POT oferecidas na matriz curricular. A exceção dos cursos que têm ênfases voltadas para gestão, a maioria das graduações oferece apenas uma ou duas disciplinas dessa subárea que normalmente são apresentadas já em períodos mais avançados do curso. A principal consequência desse tipo de situação é a informação e o conhecimento bastante restrito ao aluno sobre essa importantíssima área de atuação profissional que, segundo Bastos, Gondim & Borges Andrade (2010), é a que melhor remunera e a segunda que mais emprega profissionais de psicologia.
Assim, existe a necessidade de aquisição de conhecimentos e de aprofundamento técnico e teórico em relação a áreas de atuação específicas. Essa necessidade de complementação curricular não se estabelece com a conclusão do curso. Já na graduação, espera-se que os alunos desenvolvam de forma proativa estratégias de aprendizagem que aportem conteúdos complementares ao currículo e que venham ao encontro de suas necessidades e vontades específicas de atuação, principalmente por meio de participação e envolvimento em atividades extracurriculares. Os formatos mais comuns para essas atividades envolvem a iniciação à pesquisa e a participação em atividades de extensão (seminários, congressos, cursos). É justamente nesse ponto que se inserem as EJs de psicologia ao oferecem a possibilidade de uma vivência prática no contexto organizacional ainda durante a graduação.
As EJs constituem-se como um lócus privilegiado de formação complementar para estudantes que têm interesse pela área de organização e trabalho e que, ao longo de suas trajetórias curriculares, têm oportunidades limitadas de desenvolver um conjunto de competências e conhecimentos específicos. Ou seja, as EJs apresentam-se como espaços de formação (Campos, 2012) onde teoria, prática e objetivos educacionais e sociais se integram. Evidências empíricas sobre o impacto da participação em EJs na formação do estudante pode ser visto, por exemplo, no trabalho de Campos (2012) que, em sua dissertação de mestrado, identificou que a participação dos estudantes nesse espaço de formação propicia oito categorias de oportunidades distintas para desenvolvimento pessoal (desenvolvimento de competências, capacidade empreendedora, formação diferenciada, networking, empregabilidade, desenvolvimento profissional, responsabilidade e comprometimento e liderança) e que o estudante que dela participa desenvolve 25 competências distintas.
Esse reconhecimento da importância das EJs para a formação do graduando é explicito em várias instituições de ensino superior, como é o caso da Universidade de Brasília que, em 1993, através de seu centro de desenvolvimento tecnológico, criou o programa Pro Jr com o objetivo de estimular e fortalecer a criação de empresas juniores, proporcionando aos alunos complementação de sua formação acadêmica e maior vivência profissional (Bermudez, 2000).
Essa combinação de formação generalista e experiências práticas ainda na graduação são consideradas por Gondim (2002) formas de "[...] atender a exigência de um perfil multiprofissional e proporcio nar a maturidade pessoal e a identidade profissional necessárias para agir em situação de imprevisibilidade, realidade a que estão sujeitas as organizações atuais" (p.300).
Por outro lado, a experiência prática proporcionada pelas EJs se assenta sobre dois fundamentos pedagógicos distintos, igualmente importantes: a aprendizagem por projeto baseada em problema (Fagundes, Sato & Maçada, 1999) e o protagonismo estudantil. Como um espaço de formação, as EJs estabelecem um ambiente de articulação entre professor, aluno e recursos disponíveis que interagem na compreensão, na representação e na resolução de uma situação problema (Almeida, 1999) ou projeto. No caso, a demanda por um serviço que é apresentado à empresa júnior.
Não é necessário grande esforço para observar que a ação na EJ segue os princípios básicos da metodologia de aprendizagem por projetos, ou seja, a cada nova demanda os estudantes precisam levantar aquilo que sabem (certezas provisórias) e não sabem (dúvidas temporárias) sobre a questão que lhes foi apresentada. Eles devem definir o que será feito e estabelecer critérios de avaliação sobre a relevância das informações em relação ao contexto, precisam se organizar em grupos de trabalho para o atendimento da demanda, planejar de forma cooperativa as hipóteses de trabalho e a forma de levantamento de informações, avaliar a relevância da informação para a solução do problema e a qualidade do próprio trabalho enquanto ele está sendo executado e, por fim, precisam organizar e comunicar o conhecimento produzido ao demandante de forma sistemática, transferindo o que foi aprendido (Schlemmer, 2001). É justamente por ter um caráter integrador, construtivo e dinâmico, que a pedagogia de projeto tem sido cada vez mais valorizada na formação do sujeito crítico e consciente de seu papel nas mudanças sociais que ocorrem a cada segundo em nossa sociedade(Oliveira & Ventura, 2005, p.22).
Um segundo fundamento pedagógico sobre o qual se assenta a importância das EJs para a formação profissional está relacionado à sua própria estrutura e funcionamento, e guarda relação com a aprendizagem por projeto que lhe caracteriza: a noção de protagonismo na educação. Quando o aluno assume o protagonismo no seu processo formativo, ele se situa no centro do processo educativo e atribui ao professor basicamente a função de orienta dor. Assim, uma EJ pode ser concebida como uma forma de pedagogia ativa cujo foco é a criação de espaços e condições que propiciem ao jovem estudante empreender ele próprio a construção de seu ser em termos pessoais e sociais (Ferreti, Zibas & Tartuce, 2004, p, 414). Estando o aluno na condição de protagonista do seu processo educacional, são atribuídos a ele iniciativa, liberdade e compromisso (p. 415). Esse padrão é compatível com o achado de Lemos, Costa e Viana (2012), que estudaram valores de empresários juniores e chegaram à conclusão de que seu perfil básico é compatível com aquele formado por indivíduos arrojados, independentes, propensos a correr riscos e ambiciosos por realização profissional. Em resumo, a forma de organização e funcionamento das EJs tem sentido pedagógico.
Pelo lado de sua inserção específica no campo da POT, elas têm potencial para oferecer uma oportunidade ímpar de formação do estudante interessado nessa área específica de atuação. Mais ainda, outras subáreas da psicologia podem se beneficiar igualmente desse tipo de atividade extracurricular.
Entretanto, há que se reconhecer que as virtudes do espaço educativo de uma EJ não lhes são exclusivas, pois outras metodologias educacionais podem alcançar resultados semelhantes. Nesse sentido, não se imagina que passar por uma EJ seja a condição necessária ou mesmo suficiente para uma adequada formação profissional. De qualquer forma, essa é uma importante opção de complementação à formação oferecida na graduação que, por seus méritos e virtudes, deve estar à disposição daqueles que se interessam e se aproximam de sua proposta pedagógica.
A inserção das EJs nas universidades públicas
Nessa discussão, é abordada a questão que diz respeito à regulamentação da atividade das empresas juniores no contexto das universidades públicas. Aqui, as críticas se direcionam ao caráter "privado" de suas atividades e à relação com as instituições públicas. O cerne da discussão é o fato de as EJs possuírem CNPJ próprios e distintos daquelas das IES públicas.
Como indicado, as EJs não têm fins econômicos, mas educativos, e todos os recursos eventualmente gerados voltam aos seus membros em forma de capacitações. Entretanto, as EJs prestam serviços a outras organizações e podem ser remunerados por eles. Nesses casos, a legislação impõe a necessidade de cumprimento de obrigações fiscais exigidas a partir da emissão de nota fiscal, ou seja, ter um CNPJ próprio é a única forma de viabilizar o formato empresa júnior na burocracia das universidades públicas brasileiras.
Existem alguns segmentos na universidade que consideram esse tipo de ação equivalente à privatização da universidade, o que não faz o menor sentido. Sendo válidos estes argumentos, isso significaria colocar em xeque outras iniciativas que estabelecem parcerias ou participações de organizações privadas nos espaços públicos, como as incubadoras de empresas e os parques tecnológicos que se estabelecem com o objetivo específico de apoio ao empreendedor e ao empreendimento e à transferência de conhecimentos produzidos na universidade (Ribeiro & Andrade, 2008), ainda que a natureza da atividade das EJs seja completamente diversa. É nessa direção que Cunha (1999) argumenta pela existência de uma grande lacuna entre a universidade e as empresas e elenca as EJs como um dos principais mecanismos de interação entre estes dois domínios.
Como indiquei anteriormente, a maioria das EJs organiza-se como uma atividade de extensão permanente e, nesse sentido, segue o normativo específico de cada instituição. Entretanto, ainda que uma EJ seja concebida como atividade de extensão, seu formato difere bastante das demais práticas que na universidade usualmente constituem-se sob esse rótulo. Por esse motivo, alguns críticos argumentam, nesses casos, que a regulamentação geral da extensão não é suficiente para prover um controle adequado de funcionamento das EJs.
Diante disso, algumas instituições federais de ensino superior (IFES) têm produzido normas específicas para o funcionamento das EJs. A Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por exemplo, por meio de resolução do seu Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE), estabeleceu não somente uma legislação específica, mas reconheceu explicitamente a importância e o valor desse tipo de iniciativa para o empreendedorismo, a criação e a inovação no contexto da universidade ao criar uma Central de Empresas Juniores (UFRN, 2008), vinculada à Coordenação de Apoio às Iniciativas Empreendedoras da Pró-Reitoria de Pesquisa (PROPESQ), que congrega os repre sentantes das Empresas Juniores e que conta ainda com a participação dos Coordenadores de Iniciativas Empreendedoras e do Núcleo de Inovação Tecnológica (Art.3º). Legislação específica também pode ser encontrada na Universidade Federal de Santa Catarina que, por meio da resolução 08/2010 do Conselho Universitário, estabeleceu normas para a criação, o reconhecimento e o funcionamento de empresas juniores (UFSC, 2010), e na UFBA, que criou normas semelhantes por meio do seu Conselho Acadêmico de Pesquisa e Extensão (UFBA, 2014).
Em geral, o corpo normativo produzido é bastante semelhante entre si e segue os princípios já estabelecidos e consolidados pelo Movimento Brasil Júnior sobre o que é uma EJ, como ela funciona, quais suas atribuições e o que lhe é vetado. As diferenças ocorrem em relação à forma de tramitação da proposta na burocracia de cada instituição e nos mecanismos de controle estabelecidos. Em última instância, as normas individuais demonstram o reconhecimento das instituições públicas sobre a importância e a legitimidade de funcionamento das EJs e o seu valor para a formação dos futuros profissionais.
No momento em que este texto está sendo escrito, encontra-se em discussão na Câmara Federal um projeto de lei, o PLS 437/2012, que disciplina a criação e a organização das associações denominadas empresas juniores, com funcionamento perante insti tuições de ensino superior. Esse projeto já tramitou no Senado Federal tendo sido aprovado na Comissão Educação, Cultura e Esporte, e na Comissão de Constituição e Justiça por unanimidade e com reconhecimento do mérito educacional. Assim como o normativo específico das universidades, o projeto de lei segue os princípios gerais já consolidados e estabelecidos no âmbito do Movimento Brasil Júnior.
Em suma, a crítica sobre a existência de uma entidade "privada" independente no âmbito da instituição pública tem-se resolvido pela via dos normativos institucionais e já caminha para uma legislação federal que contempla o assunto de forma plena.
CONCLUSÃO
Ao longo desta apresentação, procurei demonstrar que o espaço de formação proporcionado pelas EJ tem sentido político, educacional e pedagógico para a psicologia, de modo geral, e para a subárea de POT, de forma específica.
Espero ter deixado claro que a natureza da resistência que elas enfrentam decorre de uma visão particular sobre a profissão e sobre a própria função da universidade. Argumentei ainda que as EJs apresentam-se como uma atividade extracurricular que permite a complementação da formação para os estudantes que dela se aproximam e que seus benefícios não são exclusivos. Outros tipos de atividades formativas podem oferecer resultados semelhantes, mas seus benefícios justificam sua existência e funcionamento. Por fim, apresentei as principais formas que vêm sendo utilizadas para resolver a questão da relação entre as EJs e as universidades em função de sua natureza jurídica.
Considero a atuação em uma EJ de psicologia uma prática legítima para os estudantes interessados em POT sem que precisem se desculpar ou justificar sua atuação para outras subáreas que se pretendem mais críticas ou portadoras da verdade social.2
Se alguém me pedisse, hoje, para resumir em uma frase o que é uma empresa júnior e quais benefícios ela traz para os alunos que dela participam, eu recorreria ao lema da Psicojunior e diria sem pestanejar: capacitar, desenvolver e transformar.
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1 Para uma excelente discussão sobre compromisso social e ético da psicologia, recomendo o trabalho de Bastos, Yamamoto e Rodrigues (2013).
2 Eu já vi isso acontecer...